Dossiê
Recepción: 17 Mayo 2023
Aprobación: 02 Octubre 2023
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2024.16.37.7917
Resumo: O presente trabalho busca refletir sobre a construção identitária do poeta Antonio Gonçalves Dias como um dos ícones da literatura brasileira, entendendo que sua figuração em nosso panteon literário se deu como o resultado de um esforço pessoal seu na elaboração de uma memória que o vinculava diretamente a uma memória nacional, e que foi consolidada depois por seus críticos e biógrafos. No que tange aos registros autobiográficos deixados por Gonçalves Dias, nos concentraremos aqui em algumas de suas cartas, escritas em diferentes momentos de sua vida, e numa nota autobiográfica escrita em 1854, que, embora pareça inacabada e lacunar, é bastante emblemática pela maneira peculiar com que o poeta escolhe relacionar o seu nascimento ao da pátria.
Palavras-Chave: Gonçalves Dias, Narrativas autobiográficas, Constru-ção de memória.
Abstract: This work seeks to reflect on the identity construction of the poet Antonio Gonçalves Dias as one of the icons of Brazilian literature, understanding that his appearance in our literary pantheon was the result of his effort in the elaboration of a memory that linked him directly to a national memory, which was later consolidated by its critics and biographers. Regarding the autobiographical records left by Gonçalves Dias, we will focus on some of his letters, written at different moments in his life, and on an autobiographical note, written in 1854, which, although it seems unfinished and lacking, is quite emblematic due to the peculiar way in which the poet chooses to relate his birth to the “birth” of the country.
Keywords: Gonçalves Dias, Autobiogra-phical narratives, Memory construction.
Resumen: Este trabajo busca reflexionar sobre la construcción de identidad del poeta Antonio Gonçalves Dias como uno de los íconos de la literatura brasileña, entendiendo que su aparición en nuestro panteón literario fue resultado de su esfuerzo personal en la elaboración de una memoria que lo vinculaba directamente con una memoria nacional, que luego fue consolidada por sus críticos y biógrafos. En cuanto a los registros autobiográficos dejados por Gonçalves Dias, nos centraremos aquí en algunas de sus cartas, escritas en diferentes momentos de su vida, y en una nota autobiográfica, escrita en 1854 que, aunque parece inacabada y con vacíos, es bastante emblemática, debido a la peculiar manera en que el poeta elige relacionar su nacimiento con el “nacimiento” del país.
Palabras clave: Gonçalves Dias, Narraciones autobiográficas, Construcción de memoria.
Um ou muitos eus: a título de introdução
Todo destino, por longo e complicado que seja, compreende na realidade um único momento: aquele em que o homem descobre, de uma vez por todas, quem é1 (Borges, 1967 apud Dosse, 2009, p. 9, grifo no original).
Uma biografia é vista como completa quando dá conta simplesmente de cinco ou seis eus, quando um ser humano pode ter milhares deles (Woolf, 1928, apud Loriga, 2011, p. 31).
Se para Borges por mais complicado que possa ser o destino de um indivíduo, há um único momento, e nele reside toda a importância da existência desta vida individual, em que esse sujeito é capaz de descobrir quem realmente é, seu verdadeiro eu, para Virginia Woolf, tentar reduzir o ser humano a um único individuo jamais daria conta de toda a sua “realidade”, de toda a sua complexidade. Para ela não haveria um “eu”, mais muitos “eus” que se alternariam ao longo de uma vida individual, e sem dúvida seu “Orlando” compreende a maior expressão desse seu pensamento.
Ainda que pareçam polos opostos, por apontarem para a unicidade ou multiplicidade de “eus”, o pensamento dos dois autores nos traz algo em comum. Ambos apontam para a significação de um sujeito individual que é muito mais complexa do que a simples designação de um nome próprio. O sujeito, o eu que marca o particular de cada indivíduo, é a configuração multifacetada de operações que conjugam construções de memórias individuais e coletivas, contextos e relações sociais e toda uma série de fatores que não podem ser exprimidos por um simples registro civil de nascimento.
Ao nascer no Maranhão em 10 de agosto de 1823, o filho do português João Manuel e da cafuza Vicência Mendes Ferreira, o menino Antonio, embora fosse filho ilegítimo, recebeu o sobrenome do pai, Gonçalves Dias. Não tivesse ele se tornado o maior poeta do nosso romantismo, seu nome não seria importante. Mas tendo ele se tornado o maior ícone de nossa poesia romântica, seu nome carrega a significação de uma memória consolidada. Ele é o autor da “Canção do exílio”. Ele é o iniciador da “verdadeira” literatura brasileira.
Sabemos qual a origem de Gonçalves Dias. Suas muitas biografias já se encarregaram de mapeá-la. Sabemos de seus amores, das inspirações para seus poemas líricos. Sua qualidade literária é inegável e nem nos caberia mesmo questioná-la. Mas em que momento Gonçalves Dias se tornou Gonçalves Dias? Para lembrar Borges, em que momento ele descobriu de uma vez por todas quem é?
Refletir sobre as multiplicidades do eu nos faz pensar que problematizar a vida de um poeta como Gonçalves Dias é mais do que pensar sobre seu nascimento e morte, é pensar sobre a sobrevivência de seu nome na nossa história literária e sobre a sobrevivência de suas obras, em particular, de sua “Canção do Exílio”, em nossos ícones de identidade.
Para pensarmos estas questões estamos desenvolvendo o projeto de construção de uma biografia intelectual do poeta maranhense. Ao escolhermos esse caminho, o que optamos foi por desenvolver um projeto onde a biografia que se pretende construir não está preocupada em apresentar a trajetória de vida de Gonçalves Dias do seu nascimento até o último dos seus dias, mas sim em ser uma biografia intelectual que procurará investigar sua formação como autor, sua construção identitária e as relações e mecanismos que identificaram seu nome e sua obra à certo modelo de identidade nacional e às conjunturas que permitiram que essas memórias e construções se estabelecessem e se propagassem através do tempo. A biografia é assim, a abordagem escolhida por nós para mapear a construção de memória de um indivíduo, uma opção que se justifica pelas possibilidades analíticas e discursivas que permite e que mais do que contar a vida do poeta procurará dar conta de suas ideias, produções e formulações.
Para trilhar esse caminho pretendemos dividir a futura biografia em duas partes, uma que procurará dar conta dos mecanismos de construção de si empreendidos por Gonçalves Dias na construção de sua identidade de poeta nacional e outra que se encarregará de perceber como essa memória foi fixada, moldada e ressignificada ao longo do tempo através de biografias, críticas literárias e comemorações. Grosso modo o que pretendemos é perceber Gonçalves Dias pelo seu próprio olhar e pelo olhar do outro.
No âmbito específico deste trabalho nos concentraremos em nossas considerações iniciais sobre essa primeira parte. Sobre esse trabalho de memória e construção de si empreendido, conscientemente ou não, pelo poeta, investigado aqui, prioritariamente, através de suas cartas.
Construindo memórias: a correspondência pessoal de Gonçalves Dias
Qué mejor modelo de autobiografia se puede concebir que el conjunto de cartas que uns ha escrito y enviado a destinatarios diversos, mujeres, parientes, viejos amigos, en situaciones y estados de ánimo distintos? (Piglia, 1980, apud Santiago, 2002, p. 7).
Como aponta Ricardo Piglia, na citação recuperada aqui a partir da obra de Silviano Santiago, as cartas seriam o melhor modelo de escrita autobiográfica, pois se configurariam como o registro principal da escrita intima, não modulada e onde o indivíduo se mostraria em sua intimidade. Além da possibilidade de enxergamos a intimidade do indivíduo pesquisado, entendemos que as cartas são também um meio para acessar mecanismos, deliberados ou não, de criação de memória e imagem deste indivíduo. Isso porque, como afirma Leonor Arfuch, entendemos que o sujeito se constrói ao mesmo tempo em que se mostra ao outro, numa relação dialógica que modela a narração de si. Nas palavras da autora (2010, p. 73, grifo no original):
não é tanto o “conteúdo” do relato por si mesmo - a coleção de acontecimentos, atitudes -, mas precisamente as estratégias - ficcionais - de autorepresentação o que importa. Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instancia, que história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu.
Tendo por base aqui o material epistolar de Gonçalves Dias para mapear sua construção de memória estamos preocupados em identificar como o poeta se mostrou a seus correspondentes em diferentes momentos de sua vida. Vejamos então como ele costumava apresentar a si mesmo nos relatos que deixou a fim de procurar encontrar nessas narrativas as pistas sobre o momento particular em que ele se tornou a figura ilustre que conhecemos:
Não tenho nem a ambição de figurar na política do meu país, nem o amor de fazer fortuna, e quando se desse o contrário faltar-me-ia ainda a habilidade, o jeito para alcançar ambas, ou qualquer destas coisas. Assim parece-me que nem chegarei a ter mais do que hoje tenho, sendo difícil que venha a ter menos, nem valerei mais do que hoje valho, que é bem pouco (Dias, Correspondência, 1964, p. 132).
Foi assim que Gonçalves Dias se descreveu em 1851 em carta enviada à D. Lourença Francisca Leal Vale, para pedir a mão de sua filha, Ana Amélia, em casamento. D. Lourença negou o pedido do poeta e o amor por Ana Amélia o seguiu pelo resto da vida, marcando seus versos líricos. Mas o que nos importa aqui é a maneira como Gonçalves Dias se apresentou à pretensa futura sogra. Antes, vejamos como ele se apresentou na carta enviada à Joaquim Ferreira Vale, irmão da jovem Ana Amélia, também tratando do pedido de casamento à jovem:
Sabes que não tenho fortuna, e que longe de ser fidalgo de sangue azul, nem ao menos sou filho legítimo: [...] Não tenho fortuna, e segundo todas as probabilidades não a terei nunca, porque para isso, como para mil outras cousas, não tenho nem jeito, nem paciência, nem cabeça. Não tenho ambição do poder, - talvez mesmo não tivesse possibilidade para a realizar; mas quando as tivesse não imagino que possa haver interesse nem meu nem de família minha, que me extraviem do trilho a que eu, talvez erradamente, chame o meu destino (Dias, Correspondência, 1964, p. 133).
Um pedido de casamento é sempre um evento decisivo e marcante na vida de um indivíduo. Como tal, ele é também um momento de construção e fixação de memória. No caso do poeta maranhense é curioso que ao pedir a mão da jovem Ana Amélia em casamento, jovem que não só provinha de uma origem mais abastada que a sua, mas a cuja família ele estava ligado por fortes laços de amizade2, ele tenha optado por se apresentar da forma mais humilde e até mesmo pejorativa possível. Não tinha fortuna, não tinha ambição, não tinha posses no presente e não haveria de tê-las no futuro... era isso o que Gonçalves Dias dizia tanto ao irmão quanto à mãe da “futura noiva”. De fato, não havia nisso um falseamento da verdade. Ele era filho ilegítimo, não tinha posses e as dificuldades financeiras sem dúvida o acompanharam até o fim da vida, mas chama atenção que ele não dê destaque ao valor de seu nome, dado que em 1851, quando do pedido de casamento, ele já era reconhecido como o grande ícone de nossa poesia romântica. Os três volumes3 de seus cantos já haviam sido publicados e seu mérito literário já era inquestionavelmente reconhecido. O destino que ele trilhava se não lhe daria fortuna, havia lhe garantido renome precocemente. Por que não recorreu a esse renome então na hora de fazer o pedido?
Parece-nos que, ainda que não conscientemente, ao apresentar-se desta forma Gonçalves Dias construía para si uma imagem de homem de poucas ambições, mas ao mesmo tempo de muita honra, por não tentar encontrar subterfúgios para “conquistar” a mulher amada. Se sua estratégia retórica não encontrou sucesso, uma vez que seu pedido foi negado pela mãe da moça, sua construção narrativa nos permite pensar nas muitas formas de construção de si que ele empreendeu ao longo do tempo, seja em suas publicações literárias, seja em sua vida íntima. E é esse o ponto particular que nos interessa no presente trabalho, qual seja, como perceber as estratégias de construção de si de Gonçalves Dias como estratégias de construção de memória que de alguma forma contribuíram para formar e consolidar a imagem dele entre os ícones de nossa literatura nacional.
A memória, como sabemos, é antes de tudo, um lembrar de si, uma recuperação do passado que é particular, individual, mas esta lembrança individual do sujeito se constrói numa relação direta com a memória do outro. Nas palavras de Ricoeur (2008, p. 107): “Enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito”, mas a memória individual só pode sobreviver se encontrar eco na memória social, coletiva. Voltemos então à Gonçalves Dias.
Sem ter deixado seu arquivo pessoal organizado ou mesmo uma autobiografia formal, o poeta nos deixou registros valiosos de construção de sua autoimagem. O primeiro que identificamos é o seu vasto material epistolar. O segundo, a nosso ver, provém de um cuidado que Gonçalves Dias tinha nas publicações de suas obras, incluindo e suprimindo notas e epígrafes, prólogos, poemas, na escolha pelos editores e em muitas outras formas de construção discursiva que se materializaram nas publicações e reedições que vieram à luz sob sua supervisão. Por fim, temos uma curta nota autobiográfica que em suas poucas linhas, muitas significações nos trazem sobre a memória que o poeta criou para si e que seus biógrafos se encarregaram de consolidar mais tarde. No espaço deste trabalho, nos concentraremos em algumas de suas cartas e na emblemática nota autobiográfica, não sem antes recuperar um pouco da trajetória de Gonçalves Dias a fim de melhor contextualizar os relatos aqui apresentados.
Como dito, filho ilegítimo, Gonçalves Dias nasceu no Maranhão em 1823. Aos 15 anos seguiu para Coimbra onde formou-se Bacharel em Direito4. Foi durante os anos de estudo em Coimbra que conheceu o grupo de amigos, em sua maioria maranhenses, que lhe apelidaram de “esperançoso menino do Maranhão”, dado seu espírito sonhador e ambicioso de trilhar uma brilhante carreira literária. Entre esses amigos, estavam o já citado Alexandre Teófilo e Antonio Henriques Leal, primo deste, e autor da primeira grande biografia de Gonçalves Dias (Leal, 1987). Com uma vida financeiramente instável, Gonçalves Dias vai ser repetidamente socorrido por seus amigos, seja no empréstimo direto de dinheiro para sua manutenção em Coimbra ou no Rio de Janeiro ou, e aqui temos um ponto fundamental para nós, no uso das relações sociais para alcançar postos de trabalho e favorecimentos pessoais. O estabelecimento profissional não vai ser simples e embora o reconhecimento pela sua qualidade literária venha de forma inegável já com a publicação de seus “Primeiros Cantos” em 1846, a consolidação como escritor num cenário como o do nosso Império não lhe garantia grandes meios materiais de sobrevivência, daí que esse seja um dos maiores motivos de queixa em suas cartas e talvez daí também a humildade em se apresentar à dona Lourença no pedido de casamento. Àquela altura já havia admitido, talvez, que suas obras não lhe garantiriam fortuna. Mas sobressai na análise de suas cartas também a constante referência a carreira literária como um destino do qual não poderia abrir mão, quase uma missão, mas não uma missão religiosa, mas sim a missão de quem sabe que é o único caminho possível de realização pessoal. Nesse mesmo caminho, a literatura aparece como a opção de sobreviver ao esquecimento, de “fazer seu nome”, de, enfim, alcançar o projeto de ser “o primeiro poeta do Brasil”5.
Em 1845 assim ele escreveu ao amigo Alexandre Teófilo:
Triste foi minha vida em Coimbra - que é triste viver fora da pátria, subir degraus alheios - e por esmola sentar-se à mesa estranha. Essa mesa era de amigos... embora! O pão era alheio - era o pão da piedade - era a sorte do mendigo. Compaixão! É um termo de expressão incompreensível - não a quero.
Mas ser desconhecido - ou mal conhecido, mas sentir dores d’alma, mas viver e morrer sem nome, sonhar de tormentos e viver deles - é mais triste ainda (Dias, Correspondência, 1964, p. 38-39)
Leonor Arfuch (2013), ao recuperar as ponderações de Boltanski e Grenier, nos aponta que o trabalho de memória, de conservação dos registros de vida é de alguma forma, uma maneira de evitar a morte, de sobreviver ao esquecimento e perpetuar seu nome. No mesmo sentido, Silviano Santiago (2002, p. 20) afirma que no “mesmo movimento em que o sujeito se abre ao outro para que este o conheça, ele também se dá a conhecer a si por si mesmo”, nesse sentido a carta seria, segundo o autor, um misto de diário íntimo e de prosa de ficção.
Ao escrever suas cartas Gonçalves Dias, que queria fazer brilhar seu nome, imprimia também a marca de criação de um “arquivo” de suas lembranças, cujo guardião em sua falta ou impossibilidade, deveria ser Alexandre Teófilo, como ele mesmo declarou, em carta enviada ao amigo em 1846:
Queres diários em vez de cartas, - queres a minha vida com todos os seus acidentes, em vez de quatro frases insípidas, que para estranhos serão boas, mas que para amigos não basta: tens razão; eu mesmo estimo que assim seja. Se algum dia me acontecer perder a memória, poderei afoitamente ir ter contigo, e dizer-te: “Meu amigo, conta-me a minha vida em tal tempo”. Tu sacaras então de um enorme calhamaço e principiarás com ela, levando-a sem lacunas de cabo a rabo.
Continuarei pois com o meu diário; continuarei com ele, até que me grites lá desse recôndito Maranhão: - Basta, Jonatas! - Eu ouvirei a tua voz, quebrarei o bico da minha pena epistolar, e de então por diante começarei a ensacar a minha vida [...].
- Escrever-te um diário, meu Teófilo, é ainda viver contigo, e viver contigo é um prazer - mais do que isso - é felicidade bem alta, que eu não mereci a Deus desfrutar. Escrever-te a minha vida, é também uma necessidade para mim. Neste mar da vida, onde vou boiando às tontas, e tão fora do rumo ordinário que outros seguem, quem me sustenta - bem o sabes, é apenas a minha vontade. Eu disse: quero; e tenho querido sempre apesar de ninharias, vexaçãozinhas e mesquinhezas que há muito teriam subjugado a mais altos do que eu. Para se ter uma vontade destas, é preciso um pouco de orgulho. Careço de orgulho para entrar no círculo em que eu disse que havia de viver e para vencer dificuldades; careço da vontade para não desanimar. Isto que me pode salvar, pode também perder-me bem o sei; então chamar-se-á a minha vontade obstinação, e ao meu orgulho - presunção e soberba. Seja como for, em quanto eu me confessar aos meus amigos poderão eles repreender em mim muitos erros e muitos defeitos; - crime ou vícios - creio que não. Concluiras pois que as minhas cartas são para mim - um prazer - uma necessidade - e uma fonte de aperfeiçoamento (Dias, Correspondência, 1964, p. 56-57).
A citação é longa, mas necessária ao nosso propósito. Nela percebemos a consciência de Gonçalves Dias de que suas cartas eram mais do que um simples meio de comunicação. Tal como um diário íntimo, elas tinham a função de registrar sua vida, guardar sua memória, compartilhar suas experiências e impressões de mundo. Para nós elas eram também uma forma de construção de memória e imagem de si, uma vez que ao narrar-se para o outro Gonçalves Dias, deliberadamente ou não, editava sua vida através da escrita e com isso criava para si mesmo uma representação de identidade. Em 1848, ele mesmo definira suas cartas ao amigo nestes termos: “Creio em Deus que as minhas cartas, mas só as que te escrevo terão de passar a posteridade como o monumento mais caprichoso do seu gênero” (Dias, Correspondência, 1964, p. 108).
Arfuch nos lembra a noção de pacto autobiográfico proposta por Phillip Leujene e se questiona até que ponto poderíamos falar de “identidade” entre autor, narrador e personagem, apontando que para Leujene a questão não é de identidade e sim de semelhança. O pacto, proposto pelo autor traria além de uma questão filosófica, a percepção de que há na narrativa autobiográfica um deslocamento de temporalidade que torna o relato “retrospectivo” e que por isso provoca uma disjunção na construção da identidade da vida narrada (Arfuch, 2010, p. 53). É essa disjunção que em alguma medida percebemos na correspondência de Gonçalves Dias. Ao contar-se para o outro, o poeta reconstrói os fatos de sua vida, os ressignificando e redimensionando.
De fato, como aponta Jöel Candau (2011, p. 71), “o ato de memória que se dá a ver nas narrativas de vida ou nas autobiografias coloca em evidencia essa aptidão especialmente humana que consiste em dominar o próprio passado para inventariar não o vivido, mas o que fica do vivido”. Nesse sentido, ainda segundo Candau (2011, p. 74), “todo aquele que recorda domestica o passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma espécie de selo memorial que atua como significante da identidade”.
Ao narrar sua vida Gonçalves Dias parecia querer ressaltar algumas características: seu espírito independente, seu destino literário, a necessidade dos amigos, o sentimento de ser incompreendido e o desejo/projeto de tornar-se conhecido por sua literatura. Havia em seus escritos também o constante sentimento de que tudo o que queria fazer deveria ser feito de forma rápida, do contrário poderia não ter tempo de vida suficiente para realizar todos os seus projetos. Desde muito jovem, falava que viveria pouco. Mas nem sempre suas cartas tinham o tom melancólico, muitas vezes eram de pura ironia e pilheria em geral dirigida à própria figura, como nesta, também enviada ao amigo Alexandre Teófilo:
Em bailes a que tenho ido, tenho passado por um menino, que de vez de quando diz as coisas assim não sei como, que não é ordinário; ali fiz o figurão de... Dr. Pigmeu! Conheço agora o que tenho de esperar. Vou me apregoar por uma raridade - e mandar por nos jornais:
Atenção!!
Tom Pouce Americano, dá espetáculo em tais e tais noites: é uma raridade maravilhosa. Tom Pouce faz versos e tem umas cartas de Bacharel. Tom Pouce é um pigmeu gigante, o que é prodigioso; Tom Pouce fala como a gente, o que é estupendo; Tom Pouce namora uma Judia, o que é divertidíssimo! Sabe um pouco de Latim, Espanhol, Frances, Italiano e Alemão: o que é sem exemplo para um pigmeu. Tom Pouce tem 20 e tantos anos e será, pelo que parece, macróbio entre os seus, - pode chegar até aos 30 anos. (Dias, Correspondência, 1964, p. 74).
Nesta carta Gonçalves Dias narrava ao amigo sua vida na Corte. Queixava-se de ainda não ter se “arranjado”, isto é, ainda não ter conseguido um emprego na administração pública e queixava-se, e divertia-se, com o fato de estar fazendo papel de atração nos bailes e salões que frequentava. Em seus comentários podemos perceber certo incômodo pessoal de um homem cuja altura não excedia 1,50m, mas que apesar disso parecia fazer “sucesso” com as mulheres. Percebe-se também a preocupação em exaltar sua formação, seja na menção às tais “cartas de bacharel”, seja na referência aos idiomas que conhecia. Tal preocupação, para além de uma afirmação de sua erudição, talvez tivesse como gatilho a preocupação em mostrar-se habilitado por ter sido tomado por uma fraude em sua terra natal por um figurão local que havia duvidado que ele possuísse o grau de bacharel6.
Em outra carta, datada de 1847, ele queixava-se mais claramente das dificuldades de viver no Rio de Janeiro, não sem deixar claro que estava sendo reconhecido e bem recebido. Subentendemos que o que lhe faltava eram os recursos materiais de subsistência, o dinheiro, o emprego fixo... a fama e o reconhecimento literário ele já começava a alcançar:
Meu bom Teófilo - Isto de Rio de Janeiro vou vendo que não me serve, ou eu lhe não sirvo. Há perto de um ano que aqui estou e por ora nada de arranjar-me - até disso vou perdendo as esperanças. Os nossos grandes homens recebem-me com a carinha n’água, namoram-me quase como se eu pudesse dispor de alguns votos, e estou certo que se for bem recebido pelo Imperador a quem terei a honra de ser apresentado um destes dias, ninguém será mais festejado, mais gabado, mais apreciado e mais acariciado que eu: veremos pois se os bons olhos de S. M. fazem mudar a minha estrela - de promessas já estou farto, de esperanças me vou fartando: e um ano de espera é muito esperar. Qualquer dia embirro os pés na parede, volto a cabeça como um burro cabeçudo e ponho-me ao fresco: vou plantar batatas, que é melhor do que fazer versos (Dias, Correspondência, 1964, p. 86).
Sua sorte, enfim, começou a mudar ainda no ano de 1847, quando ao ser criado o Liceu de Niterói, foi indicado, por influência de Lisboa Serra, para o cargo de secretário e professor adjunto de Latim. Nesse mesmo ano havia sido nomeado sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o principal locus dos debates intelectuais no Império, assumindo desde o início a pesquisa de memórias históricas. Em junho de 1848, surgiam os “Segundos Cantos”, alcançando êxito tão grande quanto o dos “Primeiros”. Nessa época, já não lecionava mais no Liceu, pois havia pedido licença para se dedicar ao cargo de redator dos debates do Senado para o “Jornal do Comércio”. O mesmo fazia na Câmara, em nome do “Correio Mercantil”. Colaborou também com o “Correio da Tarde” e com a “Gazeta Oficial”, sendo que no primeiro, como crítico literário sob o pseudônimo de Optimus criticus. Esses trabalhos na imprensa serviram para lhe tornar mais conhecido e alargar-lhe o círculo de amizades. Em março de 1849, foi nomeado professor de Latim e de História do Brasil do Imperial Colégio D. Pedro II. No mesmo ano, ao lado de Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Araújo Porto-Alegre, lançava a revista literária “Guanabara”, inserindo-se assim num novo campo de atuação política e social, como era o caso dos processos editoriais tanto de revistas quanto de periódicos.
Consagrando-se no meio, o poeta parecia notar que havia sobre ele a impressão de que havia nascido poeta, ou havia nascido para sê-lo, o que se de alguma forma até correspondia a ideia que ele fazia de sua própria vida literária como um destino, por outro parecia apagar ou minimizar todos os obstáculos superados cotidianamente para que aquele reconhecimento fosse alcançado, e isso o incomodava. Já em 1847, ou seja, pouco depois da publicação dos “Primeiros Cantos”, ele comentava da naturalização que as pessoas pareciam fazer de sua vida literária, naturalização que será mais tarde marcada em muitas de suas biografias que o apresentarão como o gênio, poeta desde o nascimento.
Esta gente que se dá comigo não sabe que independência que eu tenho na minha vida, nos meus atos e nas minhas opiniões: não queira Deus que eles o saibam nunca, porque eu exagero tudo - sempre nos extremos ou muito condescendente, ou muito imprudente: odeio ou amo com extremo, - e será terrível o dia em que eu tiver de mostrar, em algum ato solene, entende-se, que por baixo desta mascara de cera que todos me vêem, há uma vontade inflexível - uma estátua de ferro. Dize-me há muita gente tua conhecida que tenha afrontado mais obstáculos, que tenha começado e progredido na sua carreira com mais paciência, com mais tenacidade do que eu? - Mas isto é para ti que me conheces; para os outros é tudo muito natural: é muito natural que eu indo à Coimbra seja Bacharel, que eu sendo brasileiro esteja no Rio de Janeiro, e que enfim eu faça versos tendo nascido poeta: ó santa natureza! (Dias, Correspondência, 1964, p. 90-91).
O trecho também demonstra que Gonçalves Dias tinha claro que sua figura de poeta era uma construção, uma representação de identidade que de alguma forma moldava-se segundo o ambiente e as circunstâncias. Diz ele que apenas os amigos o conhecem verdadeiramente. É quase como se assumisse que a figura pública que apresentava fosse uma espécie de personagem de si mesmo. Supostamente, ao menos ele parecia pensar assim, nas cartas ele mostra-se verdadeiro, real, sem máscaras. Mas para nós que analisamos essas narrativas sob o olhar da pesquisa histórica, com a distância do espaço e do tempo, não nos pode fugir de vista a noção de que nenhum documento pessoal pode nos fornecer a imagem da pessoa tal como ela foi. Sabemos o que ele quis mostrar, temos acesso ao que ele, de alguma forma nos permitiu ter acesso ao deixar registrado. Ângela de Castro Gomes nos chama atenção para os perigos do “feitiço de ilusão da verdade” que os documentos pessoais podem nos submeter, ao nos dar a falsa impressão de que neles o indivíduo se encontra no mais puro de sua essência (Gomes, 1998). Mas qual seria a verdadeira essência de um indivíduo? Poderíamos mesmo chegar a essa resposta? Poderíamos, tal como esperava Borges, descobrir quem o indivíduo realmente é?
O que podemos ver então é quem Gonçalves Dias achava que era, ou melhor, como ele escolheu apresentar-se. Deixemos as cartas um pouco de lado e vejamos como, em 1854, ele narrou seu nascimento ao escrever uma emblemática nota autobiográfica a pedido do francês Ferdinand Denis:
As províncias do norte do Brasil foram as que mais tarde aderiram à independência do Império. Caxias, então chamada Aldeias Altas no Maranhão, foi a derradeira. A independência foi ali proclamada depois de uma luta sustentada com denodo por um bravo oficial português que ali se fizera forte. Isto teve lugar à (sic) 1° de Agosto de 1823. Nasci a 10 de Agosto desse ano7 (Dias, 1854, apud Pereira, 1943, p. 9).
Arfuch nos lembra, a partir das preocupações de Aristóteles de como tornar presente o que está ausente, ou seja, como trazer à lembrança o passado já vivido, que ao recordarmos, recordamos uma imagem e a afeição que acarreta essa imagem. Nas palavras dela (2013, p. 31, tradução nossa), “poderíamos afirmar então que não há imagem sem lugar, um contexto espacial, um âmbito no qual se recorda”. Nesse sentido, podemos pensar que ao referir-se assim ao seu nascimento Gonçalves Dias buscava recordar de suas origens, seja pelo local em que nascera, o Maranhão, seja pela correlação entre a Independência do Brasil e seu nascimento que ele marcadamente imprimia ao seu relato.
Dizer que nascera junto com a pátria, era nesse sentido, lembrar que de alguma forma era filho desse processo turbulento. O que a concisa nota não exprime, mas que sabemos pelo conhecimento de sua biografia é que Gonçalves Dias não era só um brasileiro filho de um português com uma cafuza, ele era filho de um português que resistira à independência do Brasil na província que mais tarde aderira ao projeto encabeçado pelo Rio de Janeiro. O poeta não nos diz na referida nota, mas após seu nascimento, e com a província já rendida ao projeto imperial, João Manuel Gonçalves Dias fugiu para Portugal onde se exilou por um tempo para evitar as punições por ter feito parte da resistência (Cf. Pereira, 1943). O pequeno Antonio, nascido em meio a toda essa turbulência política e social, somente conheceria o pai dois anos depois. Dessa forma, ainda que não declaradamente, ao narrar seu nascimento nestes termos, Gonçalves Dias parecia procurar estabelecer um sentido para aqueles fatos que tão decisivamente haviam marcado sua vida.
Segundo Joël Candau, não podemos recordar um acontecimento do passado sem que o futuro desse passado venha a ser integrado à lembrança (Candau, 2011, p. 66), isto é, lembrar uma história é redimensioná-la e significá-la à luz das questões do tempo presente daquele que relembra o já vivido, pois “o tempo da lembrança não é o passado, mas ‘o futuro já passado do passado’” (Candau, 2011, p. 66). Nesse sentido, toda recordação é, segundo o autor, tributária da natureza do acontecimento memorizado, do contexto passado desse acontecimento e daquele momento de recordação. Em suas palavras (Candau, 2011, p. 71),
O narrador parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de sua vida que julga significativos no momento mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, “sublimações”, esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, “vida sonhada”, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em toda narrativa.
Nas palavras da biógrafa Lucia Miguel Pereira (1943, p. 9), a nota autobiográfica do poeta é
importantíssima, pelo que diz, e pelo que omite. Mais ainda pelo que omite do que pelo que diz. Com efeito, ligando o seu nascimento aos sucessos políticos, patenteia Gonçalves Dias que foi profundamente marcado por eles. Que o fato de nascer com a independência da sua província influiu no seu feitio, na direção que imprimiu à sua obra. Do contrário não mencionaria a coincidência nessa concisa informação, em que mais nada adiantou sobre a sua vida particular.
Na interpretação da biógrafa, em seus silêncios sobre outros aspectos de sua vida privada, Gonçalves Dias deixava transparecer a inquietação de seu lugar social, de sua posição de filho natural de uma mãe mestiça e um pai português que resistira à independência do Brasil. Era o silêncio revelador de um estado d’alma (Pereira, 1943, p. 9). Não nos cabe aqui aprofundar ou debater tal interpretação, embora deva se pensar que talvez sua condição de mestiço tenha pesado - positivamente, devemos dizer - para sua identificação como ícone da nacionalidade brasileira. Mas seja como for, ao estabelecer esta relação, o poeta firmou para si um pertencimento e uma vinculação particular com sua pátria, numa imagem que ajudou a perpetuar o seu nome junto à memória nacional.
Para Marcia de Almeida Gonçalves, ao estabelecer esta relação, Gonçalves Dias, mais do que um pertencimento, firmava um compromisso de representar por meio de sua vida particular - e aqui entendemos também por meio de sua obra - a comunidade imaginada, sentida e significada como nação (Gonçalves, 2009, p. 428).
De alguma maneira podemos dizer então que Gonçalves Dias decidira proclamar-se como brasileiro desde o nascimento, identificando-se ao Brasil cuja imagem ajudava a divulgar e reconstruir, num exercício onde o presente e o futuro pesavam decisivamente sobre a memória do passado. Ele era brasileiro desde o nascimento, mesmo que ser brasileiro naquele momento ainda fosse algo em construção.
Operações complexas, a reconstrução de um passado e a consequente construção de sua memória, demonstram alguns dos objetivos não diretamente anunciados e reveladores desses movimentos. Movimentos que, no caso das narrativas pessoais, buscam tornar estável, verossímil e previsível os projetos que norteiam ou nortearam a vida daquele indivíduo.
Sabendo que esta nota autobiográfica foi escrita por Gonçalves Dias em 1854, para ser remetida à Ferdinand Denis, como atesta Manuel Bandeira em seu “Gonçalves Dias, esboço biográfico”, publicado em 1952, podemos afirmar que quem pontuava que nascera junto com a independência de seu país não era um jovem Gonçalves Dias ainda desconhecido, procurando construir uma brilhante carreira literária, mas sim um homem cuja fama no cenário letrado já havia atravessado o oceano e consagrado o seu nome como o iniciador de nossa verdadeira literatura.
Ao conhecer o livro de estreia do poeta maranhense, Alexandre Herculano, por exemplo, impressionou-se a tal ponto que escreveu um artigo afirmando que a partir dos “Primeiros Cantos” de Gonçalves Dias tinha início a literatura brasileira e terminava a literatura portuguesa. O artigo, simbolicamente intitulado “Futuro Literário de Portugal e do Brasil”, foi escrito em novembro de 1847 e publicado na “Revista Universal Lisboense” (Cf. Dias, 1998), e começava com as seguintes palavras:
Bem como a infância do homem a infância das nações é vívida e esperançosa; bem como a velhice humana a velhice delas é tediosa e melancólica. Separado da mãe pátria, menos pela série de acontecimentos inopinados, a que uma observação superficial lhe atribui a emancipação, do que pela ordem natural do progresso das sociedades, o Brasil, império vasto, rico, destinado pela sua situação, pelo favor da natureza, que lhe fadou a opulência, a representar um grande papel na historia do Novo Mundo, é a nação infante que sorri: Portugal é o velho aborrido e triste que se volve dolorosamente no seu leito de decrepidez (Herculano, 1847, apud Dias, 1998, p. 97).
O artigo do letrado português acaba sendo ao mesmo tempo um elogio ao livro de Gonçalves Dias e ao brilhantismo e esperança que ele identifica no império do Brasil e uma dura crítica à nossa antiga metrópole, que segundo ele se apresenta como uma velha consumida por vícios e decrepitudes. Ao finalizar sua crítica, Herculano afirmava não conhecer Gonçalves Dias, e que suas palavras elogiosas haviam sido inspiradas pelo coração e pela simpatia que o livro lhe provocara. Os dois só viriam a se conhecer anos mais tarde, mas a crítica, a qual Gonçalves Dias deve ter tomado conhecimento pouco depois de sua publicação8, foi decisiva para a visibilidade alcançada pelo poeta maranhense.
Para José Henrique de Paula Borralho (2009, p. 208), a “repercussão do artigo de Alexandre Herculano nos jornais do Império foi imediata e pesou decisivamente para a visibilidade e dizibilidade do cantor timbirense e de sua utilização pelo Império brasileiro dentro do projeto criador da nação”.
Num momento em que a nação se construía e se firmava, receber a declaração de independência literária pelas mãos de um dos mais aclamados homens de letras da antiga metrópole certamente se revestia de um aspecto mais do que simbólico, havia no ato uma dimensão política. Com a exaltação de Gonçalves Dias feita por Herculano, o Império brasileiro não era mais apenas independente politicamente, ganhara o aval para ser autônomo em sua literatura e história. E não seriam justamente essas duas esferas entre as principais responsáveis pela construção da nação, nos termos de instituir e significar uma autêntica cultura nacional?
Mas se em terras brasileiras a crítica de Herculano encontrou ecos positivos, em Portugal o caminho parece não ter sido esse. Em carta a Teófilo de abril de 1850, Gonçalves Dias comentou:
Não sabes que ao passo que o Garrett e o Alexandre Herculano apontam para o Brasil como a terra da promissão, aquela que há de guardar o depósito das glorias e tradições portuguesas, a canalha literária de Portugal principia a mordernos porque prometemos alguma coisa mais do que eles fizeram no espaço dos 6 melhores séculos da história moderna, e mesmo da antiga, para a historia, literatura, ciências, artes, descobertas e invenções? Persuadem-se estolidamente que alguma espécie de rivalidade é possível de existir entre uma literatura que acabou e outra que agora começa, entre uma gloria que desponta e outra que já teve ocaso, entre um povo que foi e outro que começa a ser. Deixá-los: hão de por fim convencerem-se que a coisa que mais podemos dispensar é a colonização portuguesa em literatura (Dias, Correspondência, 1964, p. 117).
Criando descontentamentos ou não, o fato é que a crítica de Herculano foi usada por Gonçalves Dias como mais um recurso na construção de seu nome e de sua imagem. Prova disso é que ao organizar, em 1857, uma publicação que reunia seus “Primeiros”, “Segundos” e “Últimos Cantos” - intitulada “Cantos” - precedeu-a pelo artigo de Herculano, num claro recurso de reafirmação de sua obra e de sua imagem. Na publicação, antes do artigo de Herculano, Gonçalves Dias (1998, p. 95) inseriu também uma pequena introdução, a título de “Sirva de prólogo”, onde afirmou:
A coleção de poesias, que agora reimprimo, vai ilustrada com algumas linhas de A. Herculano, a que devo a maior satisfação que tenho até hoje experimentado na minha vida literária.
Merecer a crítica de A. Herculano, já eu consideraria como bastante honroso para mim; uma simples menção do meu primeiro volume, rubricada com o seu nome, desejava-o decerto; mas esperá-lo, seria de minha parte demasiada vaidade.
Ora, em vez da crítica inflexível, que eu devera, mas não ousava recear; em vez da simples notícia do aparecimento de um volume, que não seria de todo ruim, pois que teria merecido ocupar a sua atenção; o ilustre escritor pôs por alguns momentos de parte a severidade que tem direito de usar para com todos, quando é tão severo para consigo mesmo -, e, benevolamente indulgente, dirigiu-me algumas linhas, que me fizeram compreender quão alto eu reputava a sua glória, na plenitude de contentamento, de que as suas palavras me deixaram possuído (Dias, 1998, p. 95).
Com essas duas “introduções” ele marcava definitivamente seu último volume de poesias como obra de um poeta consagrado dentro e fora do Império. Se em 1846 ele dizia a Teófilo que sua vida literária seria “como os dias nos pólos - isto é - infinitamente pequena” e que por isso queria fazê-la no pouco tempo que tinha “o mais brilhante possível” (Dias, Correspondência, 1964, p. 48), pouco mais de uma década depois ele poderia se felicitar de ter alcançado seu projeto. Não só fizera brilhar sua carreira literária como sua memória se consolidou de tal forma que mesmo o passar dos anos não foram capazes de apagar a força de seus versos. “Canção do exílio” ainda é, mesmo hoje, repetida e parafraseada aqui e acolá, basta lembrarmos o samba da campeã Portela no carnaval carioca de 2017: “É água de benzer, água pra clarear. Onde canta um sabiá...”
Importante ter em mente, como ressalta Joël Candau, que o trabalho da memória nunca é um ato individual. Em suas palavras,
A forma do relato, que especifica o ato de rememoração, “se ajusta imediatamente às condições coletivas de sua expressão”, o sentimento do passado se modifica em função da sociedade. [...] Muitas de nossas lembranças existem porque encontramos eco a elas, observação que conduziu Halbwachs a elaborar a noção de “quadros sociais da memória”. Por isso, é um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade (Candau, 2011, p. 77).
Nesse sentido, argumentamos que, se Gonçalves Dias se fixou na memória nacional como letrado a ser reverenciado, não foi apenas pelo sucesso de seu projeto de “fazer seu nome”. Tal projeto muito pouco teria valido se a memória que procurou criar de si não encontrasse eco na memória social. Dessa forma, entendemos que ao procurar criar para si mesmo uma identidade que permitisse perpetuar seu nome no cenário nacional, Gonçalves Dias criou para si mesmo significados que permitiram que sua figura, e consequentemente sua obra, fossem associados a um modelo ideal de brasileiro ou de brasilidade. A associação de seu nascimento ao “nascimento” da pátria e a difusão de sua “Canção do exílio” talvez sejam os maiores exemplos disso. Assim, seu projeto foi vitorioso porque ao criar-se como “brasileiro”, sua voz ressoava junto ao projeto nacional, garantindo-lhe posição de destaque perpetuada entre os nomes ilustres do país.
Fontes
BANDEIRA, Manuel. Gonçalves Dias: esboço biográfico. Rio de Janeiro: Pongetti, 1952.
DIAS, Antonio Gonçalves. Correspondência ativa de Gonçalves Dias. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1964.
DIAS, Antonio Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
LEAL, Antônio Henriques. Pantheon maranhense: ensaios biográficos dos maranhenses ilustres já falecidos. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987.
PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.
Referências
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CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
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GONÇALVES, Marcia de Almeida. Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil imperial 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 425-465.
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Notas