Dossiê
Recepción: 16 Diciembre 2020
Aprobación: 19 Abril 2020
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.224-256
Resumo: Partindo da discussão sobre o antropoceno, o trabalho busca apresen-tar um panorama contemporâneo da prevenção do suicídio, destacando sociedades tradicionais, especialmente os Guarani-Kaiowá. A enorme pressão, confronto e luta com a cultura ocidental europeia dos colonizadores é cons-titutiva da situação. A proposta de um contrato natural na filosofia de Michel Serres e o advento de conceitos como a solastalgia permitem estender a com-preensão de saúde mental até objetos e animais. Considerando novos aspectos no estudo do suicídio nestas sociedades, a contribuição etnológica se mostra imprescindível, especialmente no senti-do da tradução de experiências. Duas vertentes são exploradas: a questão do pertencimento a terra e ao espaço cosmológico da aldeia e da casa, onde podemos situar as questões ecológicas contemporâneas; e a relação com o branco, em sua gama de questões políticas, incluindo a ciência. Ambas que fazem da experiência indígena algo especial e promissor a partir do xamanismo e do perspectivismo amerín-dio.
Palavras-chave: Solastalgia, Guarani-Kaiowá, Prevenção do suicídio, Contrato natural, Perspectivismo.
Abstract: From the anthropocene discussion as a starting point, the work seeks to present a contemporary panorama of suicide prevention, highlighting traditional societies, especially the Guarani-Kaiowá. The enormous pressure, confrontation and struggle with the Western European culture is constitutive of the situation. Both Michel Serres' philosophy about the natural contract and concepts such as solastalgia allow the enlargement of mental health understanding towards objects and animals. The ethnological contribution has foremost importance considering new aspects in the study of suicide in indigenous societies, especially concerning translation of experiences. Two aspects are explored: the sense of belonging to the land and the cosmological space of the village and the house, where we can situate contemporary ecological issues; and the relationship with white people, in its range of political issues, including science. Both of which make the indigenous experience special and promising from shamanism and amerindian perspectivism.
Keywords: Solastalgia, Guarani-Kaiowá, Suicide prevention, Natural contract, Perspectivism.
Resumen: A partir de la discusión sobre el antropoceno, el trabajo busca presentar un panorama contemporáneo de la prevención del suicidio, destacando las sociedades tradicionales, especialmente la guaraní-kaiowá. La enorme presión, confrontación y lucha con la cultura europea occidental de los colonizadores es parte de la situación. La propuesta de un contrato natural en la filosofía de Michel Serres y el advenimiento de conceptos como la solastalgia permiten extender las concepciones de salud mental a objetos y animales. Considerando nuevos aspectos en el estudio del suicidio en estas sociedades, el aporte etnológico es fundamental, especialmente en el sentido de traducir experiencias. Se exploran dos aspectos: la cuestión de la pertenencia a la tierra y el espacio cosmológico del pueblo y la casa, donde podemos situar las cuestiones ecológicas contemporáneas; y la relación con los blancos, en su variedad de cuestiones políticas, incluida la ciencia. Ambos que hacen de la experiencia indígena algo especial y prometedor basado en el chamanismo y el perspectivismo amerindio.
Palabras clave: Solastalgia, Guarani-Kaiowá, Prevención del suicidio, Contrato natural, Perspectivismo.
Emergência da solastalgia
A Austrália tem sido atravessada por catástrofes ambientais generalizadas nas últimas décadas. A mineração também é praticada de modo exaustivo. Não por acaso os aborígenes iniciaram um debate importante sobre a personalidade jurídica de ancestrais, avatares, personagens míticos geo-localizáveis, seus parentes, que para os anglo-saxões invasores seriam “acidentes geográficos” (Wittaker, 1994; Hill, 1995). Uma vitória na corte suprema tende a reconfigurar o campo das disputas jurídicas de direitos de animais, não-humanos e elementos geográficos, com repercussão internacional (Lockie, 2004; Woo, 2011).
Para Elizabeth Povinelli, podemos tomar uma paisagem como geo-ontologia própria, autônoma e independente. As relações mutuamente constitutivas das geografias (locais) e biografias (vidas humanas) são geo-ontologias que funcionam como estratégias indígenas de sobrevivência (Povinelli, 2006, 2016; Povinelli; Coleman; Yusoff, 2017). Igualmente as pedras podem ser pensadas como uma forma de ser terrano - parente das grandes montanhas e vulcões dos Andes, cuja existência geológica tece tramas entre animais, plantas, terra, humanos e objetos da cultura material. Montanhas interseccionam com as vidas de seus habitantes humanos de maneiras complexas, irredutíveis a um mero entendimento geológico das pedras (De la Cadeña, 2015). Os poderes das pedras sieidi dos povos nórdicos tradicionais de Finnmark, como o povo Saámi1, integra um elenco de investigações sobre a convivialidade com as pedras. Permite igualmente pensar humanidade e ontologias paradoxalmente relacionadas com a noção de vida: “Caso levada realmente à sério, [a pedra, para alguns povos] existe de maneira que desestabiliza muitas suposições acerca do que é uma paisagem e o que pode conter” (Reinert, 2016, p. 101).
É neste contexto que emerge a atenção em saúde mental voltada para uma nova configuração da paisagem, verdadeira metamorfose dos problemas da ciência romântica acerca da paisagem familiar, originária ou de seu valor estético. Um estudo pioneiro buscou avaliar o impacto na saúde provocado por transformações radicais no meio-ambiente efetivamente vivido, seu panorama danificado, a perda de configurações e formas existenciais. Nesta agenda começou a desenhar-se uma categoria nosológica intitulada solastalgia, com uma literatura científica ainda escassa, porém precisa. A noção pertence a um conjunto de conceitos que procura descrever e aferir as implicações da catástrofe climática no bem-estar e na saúde mental (Eisenman et al., 2015; Askland; Bunn, 2018). Há importante discussão sobre a questão, que permanece, contudo, colocada prioritariamente em termos biológicos e epidemiológicos. A construção desta entidade nosológica sob habitual engessamento quantitativo não a impede de estimular reflexões etnológicas e climatológicas. Como tampouco de articular tomada de decisão ambiental e ensaios clínicos randomizados, numa era de crise da expertise, negacionismo (Kelly; Mcgoey, 2018); ou tampouco deixar de estimular a prestação de contas (responsabilidade) epidemiológica num contexto de auditagem governamental e justiça ambiental (Reubi, 2018). Alguns já se referem a estes estados como psychoterratic (psicoterranos2) ou efeitos terra-orientados (Albrecht et al., 2007; Albrecht, 2011; Mcmanus; Albrecht; Graham, 2014; Riley et al., 2020).
O termo foi introduzido por um filósofo ambientalista na Ecohealth Conference de Montreal de 2003. Em 2005, Glenn Albrecht publica o primeiro paper relevante, contudo inúmeros ecologistas e antropólogos já haviam dado anteriormente destaque aos aspectos espirituais, vivenciais e mentais das perturbações climáticas antrópicas ocasionadas pela tecnologia (Bateson, 1972; Antonioli, 2004; Albrecht, 2005; Guattari, 1989, 2014). Sempre caberá mencionar dois livros publicados em 1962 com certo impacto, mas logo sepultados pelo culto neoliberal do progresso - “Silent Spring”, de Rachel Carson, que descreve de modo literário a experiência do desaparecimento das aves na primavera em função do DDT (pai dos agrotóxicos); e “The Drowned World” de James Graham Ballard, autor de uma trilogia distópica de ficção científica, com o advento de secas e inundações tomando a superfície do planeta. Em ambos emerge claramente a experiência de angústia, ansiedade e sofrimento psíquico com o dano ambiental circunvizinho - a eco-ansiedade (Albrecht, 2020).
A rigor, as síndromes psicoterranas ampliam bastante o escopo estudado. A depressão é uma causa preponderante de disfunção (disability) mensurada por YLDs ou DALYs, para ambos os sexos, segundo a OMS. Cabe admitir alguma contribuição do estresse ambiental em circunstâncias como o suicídio na Austrália, principal causa mortis entre 15-34 anos.
Uma revisão recente enumera as fontes de mudança ambiental causadoras de solastalgia, a saber: desastres naturais e eventos meteorológicos extremos (inundação, seca, furacão, ciclone, desabamento), mudanças climáticas, prolongada transformação ambiental, deflorestamento/desmatamento, limpeza de terras e terraplanagem extensa, extração de recursos na mineração, gentrificação com mudança rápida de ambiente construído, deslocamento forçado ou expropriação de terras ou impedimento de ocupação (guerra, violência política, milícias, tráfico), desenvolvimento industrial rápido (Galway et al., 2019). A gestão dos extremos hidrológicos no antropoceno é crítica (Baldassarre et al., 2017). Não identifiquei nenhum estudo quantitativo robusto sobre hidrelétricas (ainda não há pesquisas sobre represas chinesas, russas ou brasileiras), e menos ainda sobre impactos na saúde, o que parece necessário considerando que sua edificação interfere em todas as fontes supracitadas (Dudgeon, 2019). Isto sugere a importância de pesquisas voltadas para a legislação dos licenciamentos e suas agências assim como revisões de pesquisas científicas negacionistas financiadas no contexto das lutas climáticas, com omissão de conflitos de interesse (Almeida et al., 2016).
Os elementos mais comuns na definição de solastalgia, verificados em uma revisão sistemática, incluíam a descrição pormenorizada da destruição do ambiente, cujo exemplo paradigmático seriam as mudanças ambientais associadas com extração de recursos (Galway et al., 2019). Igualmente encontram-se a descrição do lugar ou ambiente sofrendo transformação (domicílio, lar ou ambiente pessoal estimado). Por último, cabe mencionar os impactos específicos associados com a transformação (dano em saúde mental, depressão). Noções e termos como domicílio, lar, ambiente estresse, e perda são recorrentes nestas pesquisas. A alienação estrutural do cidadão, que não conseguiria medir nem sentir as modificações climáticas senão apoiado em evidência científica estocástica, fora da escala sensível e de sua compreensão, foi sendo deslocada para iniciativas de ciência cidadã e de formas de participação popular na construção do conhecimento científico.
Os conhecimentos locais, imanentes, que usualmente são tradicionais e populares tem sido reconhecidos, ainda que por pressão dos grupos envolvidos. No caso das síndromes terranas (somatoterranas e psicoterranas, como a solastalgia) verifica-se uma outra volta do parafuso, pois trata-se de reconhecer, ainda que negativamente, capacidades sensíveis diretamente ligadas ao antropoceno, exercidas pelos corpos afetados. Ao discutir o conceito de transformação ambiental crônica e seus efeitos - síndromes emergentes psicoterranas - Albrecht (2011) apresenta uma tipologia dessas síndromes emergentes terra-orientadas buscando entender respostas à mudança ambiental crônica.
O tema da perda de regularidade, que significa variação extrema das condições biofísicas para a vida social de humanos e outras espécies, está relacionado com o aquecimento global e mudanças termodinâmicas repercutindo no ritmo, na regularidade da energia solar, nas estações do ano, ventos, marés e outros padrões dotados de repercussão biológica significativa na evolução de um grande número de espécies que chegaram até o holoceno em co-evolução. A destruição dos ritmos sociais e biológicos no capitalismo tardio ou capitaloceno (Haraway, 2015) ocorre de modo incontornável quando as cidades não param nem desligam à noite e sobretudo, segundo Jonathan Crary (2013), o mundo digital promove a compra/negociação ininterrupta, estando a acabar com o sono de várias maneiras.
A fenologia, lembra Albrecht (2011), é um estudo de longo termo ritmos e padrões da natureza em sua relação com os fundamentos dos viventes. Sono e vigília, ritmo circadiano de muitas espécies, assim como ciclo menstrual e padrões bioquímicos (da melatonina) que vão desde os corais até os humanos são estudados pela fenologia e pela biocronologia. No interior do cérebro, o tálamo dos mamíferos funciona de acordo com ritmos ambientais. Na floresta amazônica, a verdejante massa de folhas em permanente fotossíntese também possui ritmos interligados.
Segundo o IPCC3 a mudança climática, por meio do aquecimento global, modificou o caráter do clima, das estações do ano e do tempo meteorológico no mundo inteiro. Isso ocorre significativamente com muitos animais já atingidos por essa transformação. As relações predador-presa não parecem mais se manter em equilíbrio e os herbívoros podem se tornar incapazes de mudar sua dieta ao longo das migrações. Certamente o problema da luminosidade artificial também está diretamente relacionado com estresse e migrações. Os não-humanos estão possivelmente muito estressados pelas mudanças impostas pelo aquecimento. Seria impossível não lembrar de zoonoses com alto impacto econômico e disseminação ampla no planeta como dengue, chicungunya, malária, H1N1 e covid-19. Entretanto, poucas pesquisas têm sido dedicadas ao impacto da transformação climática na saúde e bem-estar dos animais selvagens, que por sua vez se comunicam de várias formas com sociedades indígenas (Albrecht, 2011).
Podemos, portanto, falar também em estresse climático atingindo diretamente os seres humanos (Mcnamara; Westoby, 2011; Warsini; Mills; Usher, 2014). As sociedades tradicionais são capazes de perceber e lidar com isto: “Populações que ainda vivem bem próximas da terra e seus elementos e começam a experimentar a mudança crônica ou de longo termo do seu ambiente doméstico e seu clima, respondem de modo que refletem sua intimidade com a Terra” (Albrecht, 2011, p. 47).
Um exemplo importante é fornecido pelos povos innuit, que perceberam avisos precoces sobre o impacto da mudança climática na saúde mental, e acabaram usando um termo que era utilizado para “descrever o que atitude de um próximo que começava a agir estranhamente ou de maneira imprevisível” (Albrecht, 2011, p. 47). Esse termo, uggianaqtug, passou a ser usado para descrever a mudança climática e seu impacto no ambiente e na Cultura. Para muitas sociedades tradicionais aquilo que chamamos de meio ambiente é tudo o que está mais próximo, com que se mantem intimidade e trocas sensíveis. Não poderia se tornar lata de lixo (expurgo oculto) pois integra os corpos, a sociedade e a cultura (Albrecht, 2008).
No que diz respeito às síndromes psicoterranas ou terra-orientadas, pode-se falar em um espectro. Sua tipologia ou fundamento vem sendo proposta e discutida. Pessoas atentas às implicações potencialmente sérias da mudança climática, são também bastante sensíveis e potenciais candidatos à ansiedade relacionada aos possíveis danos que poderiam ocorrer com seus fetos, bebês e crianças no futuro e também com respeito ao destino das futuras gerações. No limite podemos dizer que o principal critério de transtorno de estresse pós-traumático (perceber ameaça de vida ou dano corporal permanente) torna-se aplicável àqueles sob ameaça ambiental.
É possível que, entre o que Albrecht entende por síndromes somato-terranas (Albrecht, 2011; Warsini; Mills; Usher, 2014) existam interações sinergísticas relacionadas com extremas temperaturas, poluentes orgânicos, compostos voláteis orgânicos, hormônios ou substâncias disruptoras do sistema endócrino, e todas as formas de estresse em humanos (medidas por exemplo no cortisol sérico ou salivar). Portanto ambientes físicos internos, como corpo-organismo; e eco-sistemas mentais, no sentido talvez da ecologia psíquica pensada por Gregory Bateson ou Felix Guattari; assim como os ambientes externos propriamente ditos (ecossistemas poluídos) podem gerar acumulações, ciclos de sinergismo e uma escalada no estresse dos humanos e dos animais.
É absolutamente necessário prestar atenção para o estresse ligado ao calor canícula, desidratação de idosos e crianças, doenças gastrointestinais ligadas ao excessivo calor e má conservação dos alimentos. Chama igualmente atenção o câncer, nas neoplasias de origem ambiental que são pouco estudadas e menos ainda divulgadas, sem esquecer disruptores endócrinos, como por exemplo a feminização e a alteração hormonal dos homens europeus (queda da fertilidade e atividade dos espermatozoides ocorrendo em muitas espécies), e deve-se mencionar ainda os transtornos afetivos periódicos (depressivos) ligados às estações do ano que tem sido cada vez mais estudados.
Do ponto de vista dito psicoterrano, Albrecht separa a eco-ansiedade, a ecoparalisia, a solastalgia e ainda o que chama de econostalgia, que não é exatamente um sentimento estético mas uma experiência estudada por exemplo no soldado que se torna vulnerável ou deprimido na guerra, em correlação com prazos de retorno ao lar e licenças. A saudade ou nostalgia tematizada pelo romantismo alemão e pela Naturphilosophie esteve ligada à terra, mas também àquilo que se tornou um nefasto pensamento nacionalista. Caminhou da estética até a política, tornando-se uma circunstância exterior à cidade modernista. Caso o planeta substitua sua vegetação autóctone por agricultura em mais de 70% de área não-inundada, desaparecerá completamente a atmosfera que conhecemos. Com a industrialização maciça do campo, sua infiltração por agrotóxicos, impermeabilização e retirada dos reservatórios naturais de carbono, ou ainda mega-incêndios florestais, emergem disciplinas científicas interessadas na solastalgia. Com as migrações climáticas temos econostalgia e exílio. Estudos baseados em evidência com descrição dos danos clínicos em humanos (e não humanos), ainda que maciçamente estocásticos, podem ajudar nas guerras do antropoceno. Muitos caminharão para uma política da estesia.
Um estudo promovido pelo Ministério da Economia do Brasil fez uma revisão não-sistemática da literatura sobre desmatamento na Amazônia e prejuízos para a saúde. São discriminados os agravos: acidente por animais peçonhentos, Dengue, Doença de Chagas, Esquistossomose, Febre Tifóide, Leishmaniose tegumentar americana, Leishmaniose visceral, Lepstospirose, Malária, Sarampo e Rubéola. Os autores afirmam que: “Interpretando esses resultados por variação de 1% no desmatamento anual, é possível inferir que, em média, cada 1% de área municipal desmatada na Amazônia [legal] produz um aumento entre 14,5% e 23,2% na incidência de malária e entre 5,12% e 9,26% na incidência de leishmaniose” (Saccaro Junior; Mation; Sakowski, 2015, p. 29-30). A pergunta pelo impacto psíquico da catástrofe ambiental ronda as pesquisas e carece de novas ferramentas para avaliar danos tão insidiosos, controversos, negados e camuflados pela comoditização da vida cotidiana. Esperamos que as hipóteses sobre a solastalgia possam ser examinadas em regiões gravemente afetadas como a Amazônia Legal.
Eis que os urbanos de matam, verifica Durkheim
Descrever o panorama contemporâneo de discussão sobre a prevenção do suicídio, é uma tarefa extenuante, complexa e fadada ao fracasso, caso pretenda ser englobante. A suicidologia, consolidada nas últimas quatro décadas, valoriza transtornos mentais junto com aspectos socioeconômicos, e se detém no controle de meios de autoextermínio pela sociedade civil e criação de linhas de cuidado dedicadas aos enfermos e vulneráveis sob maior risco. O campo investigativo tem se organizado fortemente em torno da prevenção, especialmente na Europa, Reino Unido, Canadá, Austrália. A suicidologia emerge como setor interdisciplinar. Foram criadas associações multiprofissionais com integrantes de todos os continentes. Alguns periódicos ostentam forte especialização, profissionalização e fator de impacto relevante. Embora sustentando um escopo variado, com temas de pesquisa de amplo interesse, observa-se facilmente que convergem para a discussão da prevenção.
Sempre cabe lembrar Émile Durkheim e seu libelo teórico fundador da sociologia e do campo da suicidologia (Durkheim, [1897]1990) - que entende o suicídio enquanto modelo de desagregação ou ruptura do laço social. Sua ênfase no problema foi estratégica. Consiste em tomar o autoextermínio enquanto fato social, constitutivo de uma contraprova da anomia, espécie de avesso do lien social4. Há dois eixos de oposições que são cortados: indivíduo e sociedade; desagregação e reunião. No suicídio egoísta, ocorre individuação excessiva face ao socius desagregador; no suicídio altruísta, há um dever impessoal por extrema subordinação do indivíduo aos fins sociais; e, no suicídio anômico, ocorre desregramento, crises e modificações oriundas do enfraquecimento da malha social.
Anthony Giddens (1965) dirá que não são tipos de suicídio, mas tipos específicos de condições sociais onde se encontra taxas mais elevadas de suicídios. Naroll (1965), trabalhando com sociedades sem escrita nos anos sessenta, tenta retomar a teoria durkheimiana, propondo que uma “desorientação social” seria mais característica do que a perda dos laços. Acrescenta que, para o desfecho suicídio seria necessário um fator psicológico desencadeando reação a contextos de thwarting disorientation (desorientação por frustração, impedimento, contrariedade). Lembre-se ainda que Jeffreys (1952), também partindo de Durkheim, encontrou uma forma africana de suicídio a que denominou sansônica, que não seria incompatível com a tipologia, mas representaria um esperado quarto tipo de que falam alguns especialistas (suicide fataliste), larvar na argumentação original (Mucchielli; Renneville, 1998). Mawson assinala que uma confusão entre normlessness (desregramento) e anomie tende a reunir suicídio anômico com egoísta. Isso ocorreria em função da excessiva ênfase na “operacionalização” e na opinião dos atores envolvidos em detrimento das teorias (Mawson, 1970). Berenice Pescosolido tem retomado os paradigmas com base em estudos epidemiológicos robustos em populações urbanas estadunidenses, obtendo resultados afins. Importa notar que fala em “construção social dos dados e taxas de suicídio”, interessando-se pelas cross-pressures que negociam os vereditos de suicídio ou acidente (Pescosolido; Mendelsohn, 1986, p. 95). David Lester (2012, p. 209) irá reconstruir o argumento para o suicídio dos indígenas Mojave, onde observa a desagregação seguida de “forte ligação amorosa” com a esposa ou amante, resultando em suicídio. Aparentemente estas investigações acabam por direcionar a problemática para uma discussão sobre o individualismo (Wray; Colen; Pescosolido, 2011).
Um importante livro de Maurice Halbwachs (1930) sobre as causas do suicídio, reavalia as posições de Durkheim no campo médico (Friedmann; Mueller, 1946; Canguilhem, 2012). O suicídio passa a ser também reconhecido como desfecho de muitos e distintos agravos à saúde. Com a epidemiologia moderna ponderando possibilidades de prevenção reais ou enviesadas - encontramos a saúde/doença mental participando ainda mais fortemente do problema e de suas repercussões em inúmeras esferas da vida social. Entretanto, quando pensamos no debate preventivo, cabe especialmente recordar os esforços da sociologia quantitativa norte-americana a partir do pós-guerra sob influência de Merton e de Parsons. O indivíduo enfermo diagnosticado ou a unidade discreta dos estudos estocásticos não são homólogos à hipótese durkheimiana, que inclusive entendia a patologia na sociedade de modo muito específico, pois desvinculada da enfermidade psiquiátrica (Mucchielli; Renneville, 1998). Prevenir o suicídio foi se tornando uma tarefa relevante desde a década de setenta do século passado, no hemisfério norte. Em 2005-2006, a prevenção do suicídio emerge no Brasil com o auxílio de uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (WHO/OMS) e Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (supre-miss), resultando em estudos, documentos e experimentos férteis, porém tímidos e desconhecidos (Fleischmann et al., 2005; Cais et al., 2009; Botega, 2005, 2009, 2014).
As pesquisas em suicidologia tendem a bifurcar-se, de modo sempre complementar, buscando investigar meios de autoextermínio ou pesquisar pessoas vulneráveis em crise. O agente fica separado das condições de sua ação. Por mais que se desenvolva uma teoria sociológica, uma teoria médica, ou ambas articuladas, ou ainda alguma teoria ética ou estética, muito ainda permanece enigmático constituindo sempre um desafio.
A própria definição de suicídio é problemática pois torna necessário reunir em um só ato, intenção (duvidosa, mental, interior, “subjetiva”) e cadáver (verificável, corporal, exterior, objetivo). Trata-se de uma “associação causal” que é intrigantemente paradoxal: a interrupção do viver como causa e consequência ao mesmo tempo. No caso da morte autoinflingida, não se trata absolutamente de uma entidade ou objeto discreto, mas de um entrecruzamento de experiências, aspectos, determinações.
Fala-se por um lado em cuidar das pessoas em estado crítico (ideação suicida, planos, desesperança), aliviar seus problemas e tratar os transtornos implicados - aqui nova bifurcação: melhorar o atendimento nas emergências médicas é imprescindível, assim como é absolutamente necessário detectar mais precocemente casos potenciais na saúde primária. O espectro depressivo (que pode ser abordado enquanto transtornos mentais comuns) fornece o principal modelo para avaliação e intervenções, porém, sem jamais esquecermos de - violência, todas as formas de abuso, bullying, ansiedade extrema, pânico, transtornos de personalidade, etc. - insultos que se encontram fortemente associados ao espectro depressivo-ansioso. Trata-se de condições clínicas que implicam em extrema vulnerabilidade.
A psicanálise trouxe uma nova perspectiva sobre os humilhados e ofendidos através de uma economia simbólica dos ideais danificados da pessoa. O Eu-ideal e o ideal do eu constituem importante teoria da perda, quando, nos termos de Freud (1978, p. 110) “a sombra do objeto recai sobre o Eu (Ich)”. Podemos pensar nas pessoas em situações de retraimento, afastamento, solidão e desamparo. Estas graves perdas de planos, situações, projetos, ideais, honra e dignidade geralmente permanecem ocultas numa biografia superficialmente reconstruída. Cabe sublinhar que uma montanha, uma casa ou um panorama podem ser objeto de investimento amoroso, de ideal e grave perda irreparável. Estas experiências podem propiciar longas trajetórias melancólicas. Situações em que pode ser preciso proteger o paciente de si próprio (risco eminente de suicídio) modificando seu alcance “aos meios de autoextermínio” durante a fase crítica. É importante mencionar que na metapsicologia freudiana, verifica-se um paralelo entre o luto social e a melancolia individual. Exatamente a partir deste comentário é mencionada a agressividade, que vai do ódio até a extrema violência contra o objeto perdido. O suicida ataca seus objetos amorosos em sua própria pessoa, de acordo com a economia pulsional proposta pela psicanálise. Os sobreviventes amam e odeiam secretamente o morto.
O suicídio constitui um terceiro índice de mortes violentas difundido no mundo contemporâneo, ultrapassado apenas por mortes por homicídio e por acidentes de trânsito. Ato violento, prenhe de repercussões e desdobramentos, interiorizou-se no país a partir de 2007-2008, como assinala o Mapa da Violência no Brasil organizado por Waiselfisz (2008, 2013). Os outros indicadores com níveis muito elevados têm mantido a estabilidade, enquanto o suicídio decresceu no intervalo de 1990 a 2015, caindo de 8,1 por cem mil habitantes para 6,6 em 2015. A fidedignidade destas séries históricas pode naturalmente ser discutida no caso do suicídio. A suicidologia aliás, sempre esteve marcada pela extrema suspeita quanto à qualidade da evidência5. As taxas mais elevadas por estado têm ocorrido no Rio Grande do Sul, e por município em jovens de localidades com predominância de população indígena ou grupos aldeados.
No que concerne à carga de doença, levando em consideração internação, custos e morbidade, verifica-se que, no ranking de causas externas por Disability-Adjusted Life Years (DALYs), predominaram as agressões por arma de fogo, seguidas de acidentes de trânsito e em sexto lugar lesões autoprovocadas (Malta et al., 2017). Um importante estudo sobre Carga Global de Doença (GBD) estimou 973 milhões de pessoas feridas e 4,8 milhões de mortes por acidentes e violências no mundo, em 2013. As principais causas de óbito foram acidentes de transporte terrestre (29,1%), suicídios (17,6%), quedas (11,6%) e homicídios (8,5%). Entre aqueles atingidos com lesões, 5,8% (56,2 milhões) precisaram ser internados e 38,5% (21,7 milhões) apresentaram fratura (Haagsma et al., 2016).
O risco de suicídio constitui a principal emergência médica em psiquiatria. As equipes de emergência têm dificuldade para responder adequadamente ao risco e às tentativas de suicídio. Nota-se muitas vezes hesitação, certa lentidão, é preciso inclusive reconhecer o despreparo. Inexistem emergencistas psiquiátricos no Brasil até o momento (Estellita-Lins, 2012).
Ainda que estas taxas de mortalidade por suicídio sejam menos elevadas do que aquelas de outras mortes violentas, não se deve esquecer que as tentativas de suicídio são bem mais frequentes, contando com mais de uma casa decimal. Estas mortes anunciadas, são repetitivas, incapacitantes, perturbadoras. Acredita-se que todos os profissionais de saúde devem estar concernidos, preparados, capacitados e ainda atentos, pois também constituem um grupo de risco elevado. Talvez todo cidadão possa envolver-se positivamente na prevenção já que o suicídio tem sido encarado como uma questão de saúde pública.
O papel das instituições científicas, médicas e de saúde pública na formulação de políticas públicas para o enfrentamento e prevenção do suicídio ainda se mostra incipiente. Sua história ainda está por redigir. Assistimos reviravoltas e impasses. A reforma da assistência psiquiátrica foi uma etapa importante na modificação substancial de um modelo dessueto e violento, que ainda existe e ameaça o sistema de cuidados em saúde mental.
A violência urbana nos leva ao luto. No caso da morte maciça de jovens adultos negros ou pardos no Brasil atinge famílias e deixa esposas, mães e irmãos afetados. O próprio evento suicida revela a necessidade de cuidar dos enlutados e sobreviventes envolvidos. Quando estamos falando do estudo de causas externas de mortalidade na população brasileira é preciso lembrar do fracasso da “guerra às drogas”, da predominância de forças paramilitares, das empresas de segurança privada e do emprego paralelo. Conflitos de classe, racismo, pressão consumista, vida curta de homens jovens pretos brasileiros, alfabetização funcional letramento baixo, precarização ou ‘uberização’ do mundo do trabalho, tudo isto se mostra no conjunto de dados. Sobretudo quando a violência está sendo aferida por indicadores de morte por causas externas.
Viver numa sociedade menos violenta e com limitado acesso aos meios usuais de autodestruição pode significar uma redução das taxas de suicídio e tentativas de morte, com menor morbidade, custo, estigma, sofrimento. Este aspecto é eminentemente dialógico, político, erístico, e tem arrimo na responsabilidade republicana. Concerne diretamente à saúde pública e ao governo. A investigação dos meios de suicídio é importante na prevenção. A sociedade, sempre dividida, atravessada por interesses e conflitos em vários níveis, pode e deve ter algum controle sobre o vasto repertório dos meios de autoextermínio disponíveis num dado momento, em dada cidade ou território, para determinada etnia, classe ou grupo.
Uma estranha experiência, tão surpreendente como é o suicídio, presente em inúmeras culturas, reorganiza-se e reconfigura-se permanentemente. Simples recortes demográficos ou desagregação epidemiológica confirmam sua determinação multietiológica, multicausal, multifatorial, polinomial, etc. Mulheres usualmente com mais tentativas de suicídio e entre os homens encontramos mais mortes. Os meios utilizados são intrigantemente diferentes de acordo com gênero, escolaridade, cultura, nação, idade. Os meios são variáveis, mas seguem certos padrões no tempo e no espaço dentro de cada cultura.
Contudo, tão relevante quanto a discussão sobre restringir o acesso de indivíduos vulneráveis aos meios letais, torna-se o debate sobre modos de vida e formas de trabalho na atualidade. O suicídio está fortemente associado à depressão e ansiedade. Campanhas de prevenção do suicídio constroem agendas de desarmamento, meios de locomoção saudável, segurança no trânsito, segurança digital e evitação de redes sociais tóxicas, combate ao bullying, ao racismo, à violência de gênero e violência entre parceiros íntimos, respeito pelos territórios indígenas e agricultura familiar (agrofloresta, permaculture, “plantar água”, etc.). Em conjunto com os questionamentos sobre o antropoceno e os nexos da saúde ambiental emergem as lutas climáticas ampliadas. Uma preocupação cosmopolítica segue resistindo às inúmeras tecnologias de ameaça, dano e controle incidindo sobre a vida de humanos, animais, vegetais, vírus e quaisquer actantes responsáveis pela manutenção do sistema Gaia (Stengers, 2003, 2009, 2018; Danowski; Viveiros de Castro, 2014).
Há recursos limitados e uma experiência inédita de sofrimento entendida como solastalgia, em função deles. O estudo do suicídio enquanto modelo de desfecho complexo multicausal poderia tornar-se paradigmático na investigação de meio ambiente e saúde. Sem decurso temporal adaptativo-evolutivo confortável ou saudável, sem recursos - sejam insumos, produtos ou dejetos do processo desenfreado de captura de energia, água e recursos naturais - e sem percepções agudas das transformações (excetuando populações tradicionais): muito ou quase tudo tende a ser vivido como enfermidade ligada ao aquecimento global e seus desequilíbrios irremediáveis.
Suicídio indígena
Apresentar um panorama contemporâneo de discussão sobre a prevenção do suicídio, demanda que se destaque as sociedades tradicionais, especialmente ameríndias, (amazônicas e do planalto central) usualmente sob enorme pressão, atrito, confronto e luta com a cultura ocidental europeia dos colonizadores. Admite-se que há novos aspectos para pensar no estudo do suicídio nestas sociedades, quando contrastado com a suicidologia urbana mais consolidada, que valoriza transtornos mentais junto com aspectos socioeconômicos e se detém no controle de meios e linhas de cuidado aos enfermos ou vulneráveis sob maior risco.
Especialmente cabe pensar que se trata de uma preciosa fonte para a reflexão na suicidologia, que pode inclusive modificar as perguntas a serem feitas para a saúde do não-indígena. Contudo será preciso além disto ficar atento para os debates da etnologia clássica, da saúde indígena e da antropologia médica que se reconfiguram com as transformações contemporâneas e com demandas situadas na aldeia além da cidade. Iniciativas etnopsiquiátricas e transculturais tem buscado igualmente esta articulação.
No Brasil, há mais de 8 famílias linguísticas e mais de uma centena de etnias dotadas de imensa diversidade cultural e experiências de adoecimento e saúde. Não se pode falar de modo homogêneo em saúde mental, “psicoses” ou sofrimento psíquico em sociedades cuja complexidade dispensa a oposição corpo-alma ou transforma profundamente seu sentido. Cabe evitar o etnocentrismo característico da ciência ocidental.
Em muitas comunidades indígenas, suicídio, alcoolismo e transtornos mentais comuns constituem dados epidemiológicos preocupantes junto com oral health, diabetes mellitus tipo 2, doenças infecciosas, crônicas como tuberculose ou virais agudas como o sarampo, H1N1 e covid-19. Considerando que o suicídio expresse crenças culturais e espirituais distintas daquelas típicas sociedades ocidentais, incluindo o espectro de crenças na ciência ocidental, cabe discutir se, e como, políticas de saúde pública dirigidas por estados nacionais podem abordar as condições de saúde das comunidades indígenas, especialmente sem prejuízo da autodeterminação.
É importante desenvolver critérios para discutir a saúde mental de comunidades indígenas além dos dados sobre suicídio consumado, que é basicamente um desfecho relevante na medicina baseada em evidência (principal item na agenda de saúde mental indígena). O suicídio entre indígenas somente poderá ser adequadamente avaliado e compreendido levando em consideração suas práticas e tradições. Deste modo, a etnografia deve preceder e contextualizar a pesquisa epidemiológica (Estellita-Lins, 2017).
Muitas causas desse sofrimento que podemos associar a essa epidemia de suicídios estão certamente relacionadas às interações com os não-indígenas, tais como grandes usinas hidrelétricas que deslocam comunidades e etnias oferecendo tecnologia urbana em troca - luz elétrica permanente, sal e açúcar para crianças indígenas, frango congelado no freezer - modificando o ritmo circadiano, a pressão arterial e o sofisticado imbricamento entre cultura e sazonalidade de antigos caçadores coletores. Trata-se de modos de vida. Os territórios de caça e pesca são disputados pelo “desenvolvimento” modernizador da pecuária e do plantationceno, que há uma década foram condenados pela ciência (Rockström et al., 2009). Agrotóxicos indiscriminados e sem agência regulatória especializada, estão em expansão devido à aprovação de transgênicos (recusada na União Européia) destruindo abelhas, insetos e o ciclo de árvores frutíferas. A guerra, conflitos intertribais e com invasores ocidentais se torna assimétrica. Portugal e o Brasil pós-colonial temiam especialmente os Caiapó do Sul (Panará), do Norte (Menkranoti, Mektutire, etc.) e os Mundurucu, caçadores de cabeças. Da guerra biológica, jogando roupas contaminadas de sarampo e varíola ou caixas de aguardente passou-se aos famigerados ataques com agentes químicos (napalm ou agente laranja, especula-se) na Serra do Cachimbo pela FAB (Schwartzman, 1988; Giraldin, 1997). Somente a destruição do meio ambiente parece atingi-los mais fortemente porque se trata de seu jardim e de seu mundo. Conflitos, tensão e medo prejudicam povos guerreiros, caçadores e destemidos.
Cabe perguntar se o suicídio é igualmente suicídio para os indígenas. Como disse Colucci e Lester (2012, p. 80): “É possível ver que exemplos de comportamentos suicida, costumes e atitudes nos povos indígenas são capazes de desafiar teorias tradicionais de suicídio ocidentais”. Talvez seja legítimo falar em evidencia indiscutível de morte, mas se sua causa já é polemica nas ciências de branco envolvidas (labirinto forense), como não deve ser nas várias apreensões de diferentes sociedades tradicionais?, sobretudo no que diz respeito aos agenciamentos participantes e suas cosmopolíticas que tratam da morte? Para uma teoria nativa do suicídio há necessidade de explicitar melhor os acordos ou traduções pois mal-estar, feitiço, possessão ou dor, entre si e dentro de cada cultura já são muito diferentes. As etnografias indicam que estas experiências arrastam consigo saberes, práticas materiais, ritos e mitos que podem eventualmente se estabilizar em práticas xamânicas. Se entendidas por cientistas desavisados como puramente “curativas” ou “resolutivas”, serão ainda mais enigmáticas pois são evidentemente diferentes da construção da morte por causas externas, classificadas como suicídio. Ontologias diversas operam com distintos rendimentos nas ciências envolvidas, como pequenas guerrilhas identificáveis, que devem ser administradas com diplomacia.
Preciso confessar minha impressão sobre as chamadas culture bound syndromes, que estão circulando em função das enfermidades do antropoceno e do suicídio de povos indígenas. Aparecem frequentemente como anedota histórica, superada, de uma época menos especializada da psiquiatria transcultural6. Argumenta-se que sintomas e patoplastia são cultura e, portanto, há pleonasmo; que sua tradução é possível; Contudo, são exatamente os enunciados relativistas que reinstauram a psiquiatria estadunidense através de uma denúncia piedosa do preconceito ou do colonialismo envolvido. Não vejo como omitir narrativas de experiência de doença na literatura etnográfica, alegando que seriam “exóticas” ou mesmo truncadas. Seriam apenas linguagens culturais de um mesmo substrato desvendado pelo ocidente. Às vezes tenho a impressão contrária, de que se existissem tais síndromes, então desapareceria a noção de uma natureza única, científica e obrigatoriamente aceita por quem pratica a ciência moderna, ou pelo menos de que desapareceria a psiquiatria transcultural. Não há como pensar políticas de saúde mental na catástrofe climática sem encontrar traduções melhores do que meros “idiomas de estresse”. Evidentemente há uma noção de natureza única, científica e hegemônica criando obstáculos, ou como diria Stengers, fazendo questão de curar somente pelas “boas razões” (Chertok; Stengers, 1989; Stengers, 2005).
Índios fortemente metafísicos
Antes havia guerra aberta, com bandeiras e monções, subindo os “sertões da farinha podre” e com absoluto temor dos índios bilreiros. A circulação segura e o roubo de mulheres índias fazia parte do cardápio de ocupação do território inimigo. A coroa portuguesa cafetinava as terras, reconhecia índios livres e almas pagãs mas também foi capaz de autorizar excepcionalmente a guerra total contra os caiapó setentrionais (Panará), representando um genocídio assumido (Mead, 2010). O represamento de guaranis sem-terra para o suicídio (Azevedo, 1991), ou represamento de rios piscosos amazônicos para hidrelétricas e a distribuição de cloroquina na crise de covid-19 podem ser admitidos como genocídios potenciais, ainda em discussão.
A destruição das populações ameríndias nas Américas ocorreu fundamentalmente por epidemias virais, contra as quais não existia nenhuma imunidade em função do longo isolamento geográfico. Os indígenas são especialistas em pandemias. Talvez por isto estejam mais preocupados com os funerais do que os brancos, mesmo entre religiosos de adesão monoteísta. Durante uma pandemia podemos avaliar o que significava ser dizimado junto com a quase totalidade da aldeia pelas epidemias-feitiçaria dos brancos. Os funerais Krahô (Jê) e sua experiência de luto, assim como a morte Araweté (Tupi) e sua metafísica canibal remetem ao privilégio que o mundo dos mortos possui na filosofia indígena (Carneiro da Cunha, 1978, 1986; Viveiros de Castro, 1986). Observe-se que “A queda do céu”, texto de Davi Kopenawa, importante xamã Yanomami, e Bruce Albert (2015), trata de repensar cosmologias sobre as doenças do branco e sua ligação com a extração de minérios do interior da terra, o que não deixa de evocar a encíclica do Papa Francisco, “Laudato Sí”, ou o documento sobre a “Querida Amazônia”.
A guerra do Paraguai foi um conflito entre soldados indígenas e soldados negros. Tivemos os grandes senhores da borracha escravizando etnias do noroeste amazônico. Tivemos o império da Matte-Larangeira, entre outros ervateiros, escravizando os terena, xocleng-kaingang, guarani mbya, nhandevá e Kaiowá (Falcão; Ferreira, 2013).
A intelligentsia brasileira, não me refiro aos antropólogos sociais, passou por algumas etapas cuja história intelectual ainda é obscura mas parece fortemente ligada ao bacharelismo positivista, ao racismo e a herança colonial. A querela da eugenia durante o Estado Novo testemunha projetos de branqueamento. Assinalo uma polaridade com tensão evidente. Aqueles que enxergam riqueza no patrimônio cultural indígena, percebem-no amplo e variado, mas pretendem se apropriar disto em nome da nação em formação. Noutra visão, aqueles que ignoram os indígenas, isto é, consideram-nos um problema e pretendem que sejam assimilados, evidentemente sem a sua terra e sem a sua língua, ambos obstáculos ao desenvolvimento. Não se tratava simplesmente de expulsá-los de seu território, fato consumado, mas de dissolvê-los no proletariado urbano crescente. O chamado “problema dos índios” marca o início da república, hesitava entre exterminar ou proteger, tornando-os brasileiros vivos ou mortos. A reflexão sobre um projeto de nação pelos modernistas - reconhecendo indígenas - contrasta com a ignorância, o desprezo e a “foraclusão” do índio. Evidentemente havia uma enorme cisão entre a direita de Menotti del Pichia, que insistia em tirar a terra mas “ensinar” agricultura, e a esquerda de Oswald de Andrade, que preferia aprender política cultural com os índios. Mais grave que o orientalismo, parece ter sido a completa eliminação da alteridade, característica do projeto pós-colonial a partir da primeira república. O termo “bugre” contém desprezo destilado e racismo puro, vigorando no planalto central nos últimos dois séculos. Significa que a recusa em reconhecer sua existência, surpreende-se agora com o retorno daquilo que não poderia existir.
Na etnologia brasileira encontramos a difícil tarefa de reconhecer estas tensões e administrá-las. Tarefa que possivelmente já era percebida por Candido Rondon, Roquete Pinto e Heloisa Alberto Torres. Rondon e o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) serviam pelo menos a dois senhores ao mesmo tempo. Não caberia discorrer sobre os modos complexos com que a etnologia, especialmente brasileira, vem estudando e atuando a partir daquele momento. Menciono simplesmente que desde as teorias do atrito cultural e do campesinato indígena houve desenvolvimentos importantes, como a economia moral da intimidade, a economia política do controle e a economia simbólica da alteridade (perspectivismo ameríndio) - de onde emergem controvérsias sobre a predação familiarizante, estudos de domesticação, etc. Usualmente afirmamos que os amazonistas investigam cosmologias chamadas de “metafísicas” por contrastar com o universo indígena africano marcado pela linhagem e descendência. Estudos tributários da luta por demarcação de terras e apostas na força de resistência e criatividade dos grupos indígenas invadidos tem incorporado as demandas de saúde e um vasto repertório de questões em que o suicídio veio se aninhar.
O maior etnógrafo deste período difícil e perigoso foi Curt Onkel Nimuendaju, que numa carta ao seu amigo Diretor do Museu Goeldi, em que não esconde a falta de esperança, se refere a um grupo indígena reduzido ao alcoolismo, prostituição e fome, depois de várias epidemias, como “schlammbugrismo”7, neologismo ácido, que reúne dois termos terríveis: lama, em alemão e bugre, termo pejorativo das frentes de contato (Nimuendaju, 2000). Ninguém pode duvidar do amor de Nimuendaju pelas populações indígenas, portanto a expressão torna-se mais ainda representativa de uma reprovação e temor pelos danos do contato com os brancos do que de um juízo acerca de determinado grupo. Entendo que schlammbugrismo tematiza saúde e território enquanto experiência de enfermidade. Não se trata se uma descrição da miséria ou fraqueza, mas de uma proto-solastalgia. Neste sentido deveríamos força-lo na direção dos debates sobre síndromes culturais ou idiomas de sofrimento, do mesmo modo que uma querela recalcitrante insiste em torno de sua entidade prototípica, o taijin-kyofusho. Descrito por uma psiquiatra japonês como doença típica não-ocidental, foi reconfigurado para caber dentro dos transtornos de fobia social das três últimas edições do DSM (Diagnostic and Statistic Manual, USA). Contudo permanece útil para a prática dos médicos mentais asiáticos e deste modo não dá sinais de ter sido absorvido nem eliminado (Kirmayer, 1991; Ono et al., 2001; Iwata et al., 2011).
Depois veio a marcha para oeste de Getúlio Vargas, assim como os soldados da borracha na Amazônia. Aparecem então as reportagens de fotojornalismo em que belas imagens se encarregam de mostrar um índio glorioso ao lado de um avião. Heroico, porém afastado do progresso que aparece no reclame de liquidificador da página seguinte. O SPI acaba convergindo para a criação e reconhecimento do parque do Xingu, através dos irmãos Villas-Boas. Há um desânimo generalizado que aguarda a “destruição da cultura”, aculturação, assimilação, e sobretudo a teoria da “fricção interétnica” de Roberto Cardoso de Oliveira ou da “transfiguração étnica” de Darcy Ribeiro.
Durante a ditadura militar, empenhada em impedir que o foquismo guerrilheiro “tome a Amazônia”, descobre-se duas coisas. Que há muitas etnias sem contato - verdadeira maravilha no final do século XX - e que a capacidade de resistir dos indígenas parece ser mais complicada e inesperada. O canibalismo guerreiro tupi, as antigas sociedades guarani organizadas contra o Estado, a fabricação do corpo nas sociedades xinguanas ressurgem de modo surpreendente entre americanistas, com grande rendimento e felicidade. A sociedade civil que luta pelo restabelecimento do estado de Direito passa a exigir que a terra dos índios seja reconhecida como direito na Constituição Republicana de 1988. Alguns antropólogos tiveram enorme importância neste movimento como Darcy Ribeiro e Manoela Carneiro da Cunha, entre outros.
Algumas First Nations foram deslocadas para o Território do Xingu durante os anos 50 e outras tiveram a Demarcação de suas terras reconhecida a partir da constituição. Muitas reservas indígenas permanecem, contudo, não-demarcadas, aguardando desintrusão ou invadidas por madeireiros, extrativistas e garimpeiros, como é o caso da terra indígena Yanomami. Este processo republicano, que busca resgatar algo do genocídio praticado por brasileiros e seus governos tem sido impedido por organizações ruralistas.
Com o desenvolvimento da etno-história, de iniciativas historiográficas de longa duração, história ambiental e etno-ecologia torna-se mais viável dimensionar o genocídio continuado e incluir nesta reflexão a saúde indígena e o suicídio. Aposto especialmente na escola indígena e sobretudo em teses e dissertações a partir da política de cotas e inclusão, que já tem trazido ao convívio universitário algo da experiência indígena. Muito se espera de uma antropologia reversa, onde os indígenas possam estudar os brancos e avançar na tarefa impossível, mas necessária da tradução.
Os indígenas, por sua vez, estão parcialmente protegidos da vingança de Gaia, menos porque seriam apenas mais uma cultura entre inúmeras e bem mais porque pensam a natureza com estranhos pressupostos de multiplicidade. Poderíamos aqui falar em multinaturalismo com Viveiros de Castro (2013, 2014), que sucede e articula seu perspectivismo, do perspectivalismo de Marylin Strathern, da invenção da cultura de Roy Wagner ou das quatro ontologias de Phillipe Descola. Como indica Taddei:
o sucesso da teoria do perspectivismo ameríndio, que deu visibilidade inédita aos temas indígenas, fora dos domínios da etnologia; sua associação com as filosofias de Bruno Latour, de Isabelle Stengers e de Patrice Maniglier, além de alianças com a antropologia melanésia de Marilyn Strathern e Roy Wagner, reposicionou o pensamento indígena em chave de centralidade no contexto das discussões dos problemas contemporâneos, dentro e fora da academia (Taddei, 2018, p. 290).
O perspectivismo, investigado em grupos do tronco linguístico Tupi-guarani, mas postulado para vários grupos ameríndios e ainda siberianos, significa que é preciso retomar as questões sobre o animismo das sociedades selvagens, que foram abandonadas precipitadamente na etnologia. Para muitos grupos ameríndios o mundo é povoado por uma multiplicidade de seres, incluindo não-humanos, dotados de pontos-de-vista traduzíveis em consciência e cultura. O perspectivismo é constituição de mundos, seres e existências. Cada uma destas espécies vê a si mesma e as outras espécies como humana e assume as demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais, espíritos ou objetos agenciados. Destacando-se do relativismo multiculturalista, a hipótese toma impulso no perspectivismo leibniziano e nietzschiano. Há disputas por pontos-de-vista, operadores xamânicos, equívocos e resultantes cosmológicas cuja estabilização é uma política ontológica (Viveiros de Castro, 1986, 1996). Partindo de uma perspectiva disputada que seria aquela da Cultura estabelece-se relação genética com muitas formas de Natureza. Seu desdobramento necessário é o multinaturalismo, que recentemente foi objeto de controvérsia entre Latour, Descola e Viveiros de Castro (Latour, 2011).
Admitindo que várias etnografias acompanham uma reversão de perspectiva com repercussão política, que o “mármore e a murta” operam desfazendo conversões, não caberia mais olhar para uma submissão incondicional e uma terra arrasada, nem mesmo no domínio biomédico ou do ensino matemático em que a ciência ocidental pontifica. Ao contrário, há um movimento insidioso amazônico de “pacificação do branco” e de incorporação de elementos relevantes para cada determinada etnia em situação específica de vida. Emerge um projeto indígena de tornar-se branco sendo ainda mais índio.
Estudos recentes têm descrito os próprios conceitos ameríndios sobre as transformações vividas na convivência com os brancos. Aparecida Vilaça fala na “domesticação” ou amansamento dos brancos (Vilaça, 2002, 2008, 2011), Bruce Albert e Alcida Ramos em “pacificação dos brancos” (Albert; Ramos, 2002) e João Kelly Luciani em um projeto indígena de “virar branco” (Luciani, 2005). Seguindo a hipótese perspectivista diremos que no processo de se constituírem, operam “integralmente pela captura de recursos simbólicos do exterior” (Viveiros de Castro, 2009, p. 114). Muito já se escreveu acerca da enorme capacidade dos grupos guarani de se interessar e adotar traços do cristianismo jesuíta desde as Missões, realizando misturas, sínteses, sincretismo, mas também peculiares experimentos de pensamento e sociedade. O tekohá Kaiowá funciona como uma esponja capaz de interessar-se por várias formas de transfiguração, transubstanciação ou transformação. Ao produzir o que é entendido no ritual como “adorno” (jegua), pajés reconhecem sua capacidade protetora para evitar o suicídio de jovens. Ao proliferar os sentidos de adornar-se com histórias e ser adornado com cantos (puraheí) de preparação da alma e orações ou rezas (Borges, 2002; Brand, 2004; Grubits; Freire; Noriega, 2011; Lopes, 2019). Poderíamos até imaginar que se trata da prevenção do autoextermínio.
O contato sempre foi difícil, o branco é um irmão gêmeo em alguns mitos, mas também um invasor, sedutor poderoso, dotado de venenos e feitiços. Um leque de relações que os povos ameríndios efetuam com os brancos em suas inúmeras frentes coloniais ao longo da história - missionários, colonos, agentes do estado, ONGs, etnógrafos, jornalistas, new-agers, etc. - não deixam de fornecer material para a constante atividade de recriação dos corpos e modos de viver socialmente. Mesmo as várias incursões neopentecostais duramente dedicadas à transformação da cultura local mediante bíblias traduzidas e condenação do corpo podem ser vistas no quadro de uma instabilidade de crenças e imanência de projetos que desafia os impérios transcendentes. Como reconhece Matos (2017, p. 150-151), se “concordamos com esses autores, o problema da ‘aculturação’, a substituição de uma ‘cultura’ (costumes, valores, crenças, sistemas de conhecimento, etc.) por outra no contato com a sociedade não-indígena, torna-se um falso problema”.
Há, contudo, um caráter intrinsecamente transformacional, como sugere Peter Gow, que não invalida a permanência relacional e permite que estas sociedades continuem se diferenciando de uma sociedade nacional (Gow, 2003; Amoroso; Lima, 2011).
Guarani e Kaiowá
No caso das inúmeras etnias indígenas a situação das mortes por suicídio se inverte. Encontramos taxas de 25 a 30 por cem mil (Coimbra Junior; Santos, 2000; Bernardes, 2011), elevadíssimas, complexas e irredutíveis ao modelo epidemiológico etnocentrado usual. Na população geral do Amazonas foi reportada taxa de mortalidade por suicídio de 4,2 por 100 mil habitantes, em contraposição a municípios com alta proporção de população indígena como São Gabriel da Cachoeira (27,6) ou Santa Isabel do Rio Negro (36,4), onde a maioria dos suicídios ocorreu em homens jovens, entre 15 e 24 anos; por enforcamento no domicílio; no “fim de semana”. Este contraste também foi observado no Alasca, Canadá e USA. A dimensão e magnitude do problema pode ser mais grave se observarmos cada etnia em seu território. Lembremos ainda que tentativas de suicídio não são registradas, sendo somente acessíveis ao etnógrafo cuidadoso imerso em campo.
Entre os índios aldeados, o suicídio é relatado entre os Guarani-Apapokuva, Urubu-Kaapor, Paresi, Ticuna e Yanomani. As taxas estimadas entre os Ticunas, e os Guarani são elevadas (aprox. 130 por 100 mil segundo FUNASA, entre 2000 e 2008). Estratificado por pólos-base em território Guarani, o estudo de Coloma, Hoffman e Crosby (2006) encontra números estrondosos de 9,6% de mortes entre 2000 e 2003, o que corresponde a taxas entre 41 e 529 por 100 mil.
Entre os povos Kaiowá e Nhandewá, o chamado jejuvy é mais que a simples tradução de enforcamento. Trata-se de um modo de morrer culturalmente prescrito, relacionado às concepções que cercam a produção da pessoa, a convivência social e práticas da feitiçaria. Os Guarani e Kaiowá habitam atualmente cerca de 30 terras indígenas e aproximadamente outros 35 a 40 acampamentos, sendo estimados no total em 46,3 mil indígenas guarani e Kaiowá com taxas de suicídio de aproximadamente 10 por 100 mil. As Reservas estão superlotadas (Gerber; Mendes, 2017). O processo de confinamento territorial compulsório do grupo, com superpopulação das aldeias, em região de agronegócio internacional e conflitos de terra, demanda política governamental de defesa dos direitos destas comunidades (Cimi, 2012). A monocultura em extensões gigantescas, a cultura alienígena de cana-de-açúcar, pulverização aérea ofensiva de agrotóxicos, transformação rápida do ecossistema e urbanização veloz. Jovens guarani estão vivendo em terras próximas de zonas de colonos, estudando em escolas mistas, sob pressão de conflitos de terra estão expostos ao desrespeito, bullying, uso de drogas. Transitam por áreas ou tem seu território habitado por brancos (mestiços ou não-indígenas casados com indígenas), karaí, marcado por tráfico de drogas, conflitos por atividades não-tradicionais sem fiscalização, violência sexual contra crianças, bullying em escolas não-indígenas.
Em publicações jornalísticas ou relatórios oficiais sugeriu-se a relação dos suicídios com o alcoolismo, a “aculturação”, com a proximidade das cidades ou a chegada de igrejas evangélicas. Spency Kmitta Pimentel pergunta-se inclusive por que teria sido mais sensível à associação da onda de suicídios com a ‘ida para terra sem mal sem passar pela morte’, fortemente tematizada no profetismo Guarani, depois criticada por Wicker enquanto “patologização” crescente da mitologia (Wicker, 1997). Seguindo Levcovitz (1998), ele observa-se que errância rumo à terra sem mal poderia constituir um transfundo tradicional para uma situação inédita, inclusive sob pressão midiática. Esta conjectura foi igualmente questionada pelo próprio Pimentel pois percebeu que parlamentares e juízes de Mato Grosso do Sul transformavam a hipótese numa “desculpa oriunda das próprias culturas indígenas para poder lavar as mãos diante dos problemas” (discutia-se aliás a compreensão do problema das terras indígenas como genocídio). Como afirma: “os próprios indígenas não percebiam essas mortes de forma corriqueira ou habitual, e sim como um problema trazido pelos novos tempos - em que os guarani e kaiowá passaram a ser obrigados a viver confinados em pequenas reservas de terra, a partir da colonização massiva por não indígena na região sul de Mato Grosso” (Pimentel, 2017, p. 291).
Grande parte das aldeias guarani-Kaiowá estão virando um ambiente onde, do ponto de vista dos nhanderu e nhandesy8 torna-se muito difícil viver de modo são e seguro, do ponto de vista físico, mental e espiritual. Essas observações são sempre realizadas em “clave xamânica”, e apontam para a terra sem mal mítica assim como para as práticas em torno do Tekohá, verdadeira máquina de guerra, entre uma nave bélica e um espaço religioso ultra-pacífico. O importante termo Teko-ha - lugar do teko, lugar onde se pode viver “do nosso próprio jeito”, é segundo Pimentel uma denominação usual para as terras de ocupação tradicional que o movimento Guarani e Kaiowá de luta pela terra pleiteia.
O reconhecimento de uma escolha do morto, entendida como opção do indivíduo, frequentemente coexiste com a suspeita de feitiço ou assassinato, podendo sempre ser apresentado ou omitido, em função da proximidade do interlocutor com os familiares. Como relata Pimentel, sobre a versão que a família guarani-kaiowá constrói em relação ao “suicídio”:
(ocorre) negar a possibilidade de que a morte tenha sido obra do próprio morto. O feitiço, pajé vai, ou moha vai, seres sobrenaturais referidos como o “dono da corda” e o angue, espectro perambulante dos mortos, são, em geral, os primeiros suspeitos. O angue, nesse novo ambiente, bem como os feitiços, podem muito bem se tornar “obra de Satanás”. E, por sinal, o efeito colateral dessa difusão do pentecostalismo nas aldeias é, sem dúvida, a violência contra as pessoas que, publicamente, se apresentam como adeptas do xamanismo (Pimentel, 2017, p. 295).
A divulgação descuidada de imagens relacionadas a essas mortes tem sido um fenômeno excepcional, facilitado por redes sociais9. Foi muito criticada pelos xamãs. As teorias do copycat ou efeito werther buscam controlar a divulgação em função do potencial de gerar novas mortes ou tentativas de suicídio por imitação. No país ocorreu uma interiorização do suicídio de jovens, que tem sido investigada levando em consideração as redes sociais e os regimes globalizados da cidade.
Olhar para o xamanismo e seus compromissos cosmológicos, seguindo a proposta de Esther Langdon, não se restringe somente a especialistas, os “pajés” do imaginário popular. Trata-se de amplo conjunto de saberes e práticas, voltados para as relações entre os seres do universo. O debate sobre xamanismo horizontal ou vertical, e uma compreensão do xamanismo transversal proposta por Viveiros de Castro, descortina nexos onde não caberia entender saúde-doença a partir de normal e patológico, e ainda menos projetar a patologia da medicina experimental em outros regimes semióticos avessos à semiologia médica típica do nascimento da clínica. Como afirmou Langdon (2005, p. 124):
Enquanto a biomedicina tende a limitar suas noções de doença e cura aos processos biológicos verificáveis através da observação concreta, a medicina indígena busca uma compreensão maior. Na sua visão, o processo saúde/doença faz parte da ordem cosmológica e abarca as forças invisíveis, as forças da natureza e as forças humanas. Em outros trabalhos, esta visão de mundo é chamada de “cosmologia xamânica” (Langdon, 1996). Outros a caracterizam como “perspectivismo amazônico” (Viveiros de Castro, 1996) particular a estes povos, um conceito que ressalta a sua concepção particular sobre a natureza do mundo e seus seres. [...] para os índios, a experiência da doença, particularmente em casos prolongados ou sérios, remete a questões que vão além do tratamento dos sintomas físicos, único alvo de nossa medicina baseada no diagnóstico e tratamento da doença.
Aproximar práticas indígenas ligadas à doença ao pensamento perspectivista, que não utilizam modelos de causalidade tributários da ciência moderna (Kant-Newton), mostra-se interessante. Bruce Albert (1985) e Kelly Luciani (2018) também entendem que a virada ontológica, por exemplo na ontologia Yanomami, explica mundos onde doença ou bem-estar estão em transformação, devir permanente, admitem o “tempo do cuidado” e espaços topológicos inéditos (investigações etnológicas praticadas na área rio negrina e da Guiana tem revelado o valor dos tubos e garrafas de Klein). Animais, rios, montanhas, mata, roça são capazes de agir, reagir, negociar e sobretudo capazes de engendrar capacidades imanentes, autênticos actanciais semióticos. O estudo de Eduardo Kohn (2013) sobre os modos de pensar das florestas ou a interpretação dos sonhos dos cães em uma aldeia do altiplano vai ao encontro da história pasteuriana descrita por Latour (1995), em que Pasteur dependeria menos do reconhecimento de experimentos científicos do que do diálogo que foi capaz de criar entre os micróbios, doença dos rebanhos de vacas, o ácido lático, os prefeitos e os circuitos do leite. A situação Guarani- Kaiowá admite perfeitamente esta deixis cosmológica.
Como disse Pimentel (2017, p. 294):
O primeiro passo para compreender o ponto de vista guarani e Kaiowá sobre essas mortes tem a ver com algo que tem sido constatado de forma ampla pela etnologia nas últimas décadas: o xamanismo ameríndio e uma teoria sobre o mundo em que as ações de predação são um forte componente. As doenças, por exemplo, são vistas como uma agressão - seja de um ser sobrenatural ou de um inimigo, por meio de feitiços. Quando um xama cura uma doença, ele está, muitas vezes, contra-atacando um inimigo ou negociando com seres poderosos a liberação da pessoa - oscilando entre o campo militar e o diplomático, vamos dizer. O xamanismo, afinal, é um modo guerreiro de pensar o mundo.
O xamanismo passa, de várias maneiras pela pratica de cantos, para curar, para defender-se ou para atacar alguém. Os guaranis chamam os xamãs de cantores, oporaiva, e os kaiowa de “rezadores”, referindo-se aos cantos que são denominados “rezas” em português. Estar pendurado, ser pego pelo cipó, acabar na árvore ou pendurar-se - não fica clara a intenção ou vontade, tampouco alguma passividade, pois não é só questão de gramática10. Esta “oscilação pronominal” parece ser decididamente cosmológica. O suicídio guarani e Kaiowá aparece frequentemente dotado de uma aura xamanística, onde sempre há lugar para uma interpretação erística, negociada ou “guerreira”, voltada para a morte: “As suspeitas em torno do feitiço, o entendimento do enforcamento como resultado de uma “doença” que e explicada como um artificio sobrenatural para confundir mentalmente uma pessoa, a possibilidade de ser apanhado pela assombração que o “altera” e o leva a provocar sua própria morte” (Pimentel, 2017, p. 298).
Aquilo que Foucault (1997) denominou poder psiquiátrico, na Europa continental do século XIX, consiste na aliança disciplinar da psiquiatria com o Direito que, ao conectar a visibilidade dos corpos com os saberes foi capaz criar corpos histéricos, neurológicos e clínicos. Os rumos jurídico-psiquiátricos que constroem o fato suicídio, que ocorre geralmente fora do alcance dos outros, em segredo, reúnem um suicida ao registro forense que instaura um discurso verdadeiro sobre esta morte (Timmermans, 2002). A dança dos números da biopolítica do século XIX produz uma inscrição bastante peculiar. Chama atenção o óbvio: ameríndios, sem depender diretamente da máquina de curar ocidental tampouco dependem de teorias da “passagem ao ato suicida”, que não são aristotélicas apenas na expressão. O indivíduo moderno, o controle das populações através da epidemiologia e a governamentalidade biopolítica (que quer fazer crescer populações, defender territórios ou praticar necropolítica), estão interligados desde o projeto colonial (Foucault, 2003, 2004, 2006, 2012). Estão onipresentes na saúde indígena e pervasivos nos DSEI. Não foram criados para se viver no colapso do antropoceno.
Existiria uma psicopatologia de cada etnia, cultura, grupo circunstancialmente enunciativo? Há um devir-menor da psicopatologia? Ou elas seriam formas de se contrapor ao Ser, ao corpo visível regulado pelos enunciados, à tecnomedicina da ciência moderna? Não cabe responder aqui nem acredito que o esforço seja legítimo alhures. Seria preciso sair do debate sobre culture-bound syndrome. Seria preciso repensar a matemática que conta cadáveres. Não que se deva impugnar estas perguntas, mas é a natureza da multiplicidade que fica em questão - o que significa igualmente pensar a Natureza como multiplicidade ou admitir a noção de multinaturalismo (Viveiros de Castro, 2019).
Entre os jovens Guarani-Kaiowá que vão à forca existem “estados emocionais” percebidos por familiares e próximos. Estar nhemyro, termo polissêmico e peculiar é um sentimento ligado à contrariedade, geralmente em conflitos familiares, que envolvem relações amorosas. Poderia ser traduzido por “pirraça”, mas significa raiva, ira, tristeza. Admite vagamente uma influência espiritual e frequentemente é ampliado ou catalisado pelo álcool. Compreende-se que ir à forca é estar nhemyro. Este estado pode ser engendrado pelos pais, que não sabem o que fazer com as dificuldades do confinamento territorial e se tornam ríspidos com as crianças.
Cumpre notar que para as lideranças do movimento Aty Guasu, o suicídio é morte decorrente de “lesão grave a integridade mental” dos indígenas, em função do ambiente depressivo atualmente verificado nas reservas, lugares onde os grupos guarani e Kaiowá encontram-se “submetidos intencionalmente a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial” (nos termos da lei 2.889/56, que define o crime de genocídio). Por outro lado, um estudo epidemiológico rigoroso baseado em dados do DSEI, com autores do CDC estadunidense, convoca pesquisas qualitativas para suplementar suas conclusões, e depois de percorrer sumariamente a cosmologia Guarani fornece uma análise: 1) a rápida “transculturação” rompe normas e faz anomia entre jovens; 2) mudanças estruturais, sociológicas, envolvendo emprego trazem conflitos familiares, geracionais e de autoridade (Coloma; Hoffman; Crosby, 2006). Numa análise a terra está ligada à existência enquanto na outra é o emprego.
De acordo com etnógrafos trabalhando com estes grupos, há um valor adicional no debate aberto e continuado sobre o suicídio que ocorre há mais de três décadas. Isto seria uma contribuição para outras etnias em outras regiões do país, onde a ocorrência de “suicídios indígenas” é uma questão mais recente na esfera pública (Pimentel, 2012; Staliano et al., 2019). Talvez se possa acrescentar ainda que o debate político fornece linguagem e memória ao luto dos sobreviventes, paradoxalmente compondo uma estratégia de prevenção “de branco”.
Isto posto, para além de nossos mortos falando através desta estranha fronteira clínica e escatológica, é preciso admitir que somos também convocados, e que, nisto ficamos muito aquém dos desafios desta outra estranha fronteira entre os vivos e os mortos que se desenha no sofrimento psíquico extremo. A emergência da solastalgia e síndromes correlatas como percepção do dano ambiental, assim como a porosidade aos saberes tradicionais sobre enfermidades ligadas à terra e sua expropriação pelo grande capital balizam novos territórios investigativos.
Entrando ou saindo do antropoceno
Especialistas em saúde pública, medicina social, políticos, instituições e ONGs ligados aos direitos humanos vivem neste momento entre a vergonha, a impotência e uma enorme incapacidade. Vivemos hoje uma zoonose pandêmica, absolutamente inédita em vários sentidos, com trezentos e cinquenta e duas mil mortes (mais de cem mil subnotificações) absolutamente evitáveis no Brasil11. A nação que vende sistemas de saúde e medicina hipertecnológica, controlada pela epidemiologia clínica e seus sistemas de publicação, fracassou igualmente12.
De um lado predomina a denegação, que pode apresentar-se como cinismo ou má-fé. Subjaz a ideia de que se pode modificar fatos construídos, sem demolição, apenas colando um cartaz com a palavra “não” ou “jamais”. Esta foi a principal resposta das Américas, em contraste com a União Europeia que titubeou na decisão de lockdown e financiamento do prejuízo civil nos primeiros dois meses, mas assumiu a tarefa. Por outro lado, buscou-se responder à pandemia com as tecnociências e o imperativo de controlar armas biológicas. Ao invés de fechar aeroportos e limitar a epidemia ao sudeste asiático, o capitalismo escolheu criar vacinas a posteriori. Durante esta catástrofe esperava-se outras epidemias concomitantes, como alcoolismo e violência doméstica, ou ainda, transtorno de estresse pós-traumático e depressão, de acordo com a lição do Ebola africano. Outras foram inéditas, como a obesidade, a supercontaminação em ambiente carcerário ou concentracionário, e os danos à saúde mental de crianças. O suicídio, bastante imprevisível, mas também aguardado, estaria ligado às perdas financeiras e ao desemprego como ocorreu na crise de 2008 (Chang et al., 2009; Levine, 2010; Nandi et al., 2012; Nordt et al., 2015). Cabe ainda acompanhar a solastalgia antecipatória provocada pela crisecovid-19, que pode impactar na diástase depressiva e no suicídio (Moratis, 2020). Os dados sobre suicídio na pandemia de covid-19 ainda são preliminares.
Desde o início do século XXI emerge uma tematização mais profunda e cheia de consequências sobre o aquecimento global. Periódicos de alto fator de impacto como “Science” e “Nature” resolveram dar voz a conglomerados de cientistas como os integrantes do IPCC (paleoclimatologistas, dendroclimatologistas, geólogos, cientistas atmosféricos, ecologistas, etc.), e dirimir controvérsias mantidas por cientistas de aluguel a soldo da indústria petrolífera, químico-farmacêutica e agronegócio. Ocorre que as conclusões não são apenas da ordem do “proteja a natureza” ou “seja verde, vegano e ecológico”, pois ao reconhecer o aquecimento, admite-se que a tecnologia humana grandemente acelerada se tornou um agente geológico que jogou o planeta fora do curso regular e previsível do Holoceno. A Terra está doravante sujeita aos comportamentos erráticos de sistemas instáveis. O sistema Gaia torna-se claramente hostil à maior parte do repertório de existências conhecido hoje, às formas de vida que reconhecemos, e aos modos de vida centrados em alto gasto de energia, que praticamos. Chamou-se a isto de antropoceno (Crutzen, 2004, 2009; Steffen et al., 2011). A conclusão foi de que há zonas ou espaços de atuação ainda seguros, desde que respeitados, e outros que já foram danificados para todo o sempre (sexta grande extinção dos animais em curso). Isto também quer dizer que a economia deve modificar-se, desacelerar e parar com o imperativo usual de crescimento por ciclos reiterados. Geologia, economia e, sobretudo, historiografia se desconfiguram, pois a noção usual de uma agência humana atuando no teatro da Natureza, terá que ser substituída por agenciamentos ramificados e estratificados que compõem o sistema Terra (Chakrabarty, 2009; Latour, 2020). Humanos, animais, não-humanos, entidades espirituais, neutrinos, formam redes causais cuja interação costuma ser política. No lugar da paisagem, do telescópio e do microscópio, característicos da ciência moderna, ambicionamos recuperar perspectivas instáveis, provisórias, circulando ao longo de efeitos corporais não-orientados. Isto não desvaloriza antigos jardins ou panoramas, ao contrário, nos convida a construí-los de muitas formas e zelar por eles. A Catástrofe climática, termo que deve ser doravante utilizado no lugar do eufemístico aquecimento global, é um paradoxo: cada vez menos alimentos, água e ar, isto é, condições de vida humana para quase todos os humanos, entretanto, enquanto isso, 1% detém a maior parte da riqueza e gasta 35 vezes mais energia do que outros. A extinção dos animais e rarefação das florestas são preocupantes. O falado negacionismo não significa apenas ignorar o aquecimento global, mas simplesmente não admitir que a economia não conseguiu se tornar sustentável e deve mudar completamente. Somente etnias indígenas e populações tradicionais têm sido capazes de mitigar o dano ambiental com a preservação de florestas e ecossistemas complexos. Tanto o conceito de antropoceno como de BAU, business as usual ou negócios como sempre, tem sido postergados em novas controvérsias “re-negócionistas”. O sonho do desenvolvimento sustentável e o fracasso dos mercados de carbono são exemplos de que o planeta tem recursos limitados situados no centro da política contemporânea (Ehrenstein, 2018). Como disse Greta Thunberg, então adolescente, em seu discurso na ONU de 2019: roubaram os sonhos da juventude com “o conto de fadas do crescimento econômico eterno”13 (The Guardian, 2019).
Neste contexto, logo no início da pandemia Bruno Latour (2020) abordou a falácia de que não poderíamos parar a economia ou frear o consumo ou diminuir a emissão de gazes estufa. A zoonose também funciona como um laboratório generalizado para os problemas de Gaia. Neste sentido caberia imaginar gestos que possam evitar o pior. Neste sentido fala-se da política dos comuns (Ostrom, 2015) - a terra, a água e o ar são usufruto dos humanos vivendo com animais e não-humanos (poderíamos acrescentar ainda ondas eletromagnéticas, solo profundo da mineração, espaço sideral, mundo virtual). Cabe notar que os “gestos barreira” latourianos ou a exortação de Slavoj Zizek (2020) ao comunismo (dos comuns) emergem com precisão, mas sem nenhuma divulgação pela grande imprensa. Todos buscam tematizar este lapso de tempo criado pela crise-covid. Trata-se de um instante ou acontecimento estranho, período de excepcionalidade, que suspende ou reinstaura um Estado de Exceção impulsionado pela doença. Entendendo esta zoonose em sua inimaginável dimensão ecológica, no sentido da patocenose de Grmek (1966), poderíamos falar em exfermidade (Estellita-Lins, 2021) - crise zoonótica com repercussão escatológica e co-responsabilidade sanitária. Seus rastros moldam o que passou a se chamar de “novo normal”, cujo sentido ambíguo assinala a disputa em jogo.
A obra de Michel Serres me parece fundamental para a compreensão daquilo que tem estado em jogo nos social studies of science. Como é sabido, há uma confluência de iniciativas relacionadas com a virada ontológica da etnologia, que por sua vez guarda homologia com a sociologia simétrica das ciências, dedicada às porosidades do agenciamento. Nisto se insere a dimensão actancial que nos interessa: a inclusão dos animais e de não-humanos na política vem sendo pensada a partir de muitos encaminhamentos teóricos no campo científico. Nas ciências sociais, em que se percebia uma extensa trajetória do projeto moderno dedicado a atuar criticamente junto aos atores sociais, emergem reservas quanto ao alcance de uma reflexão exclusivamente centrada no ator e na “ação social” (lembremos que um dos cânones foi estabelecido por Parsons). O pensamento centrado no sujeito, nas representações, no individualismo ou na ideologia, acabou cedendo seu lugar às redes. Ocorreu uma grave crise do humanismo após o Shoah, em que a continuação do projeto moderno encontrou-se em questão. Emergem esforços pós-estruturalistas de desconstrução da metafísica, do writing culture antropológico, dos agenciamentos deleuzianos, dos dispositivos e tecnologias de poder. A história das ciências foi violentamente arrastada pela sociologia das ciências em seu programa forte, seja através da escola de Bath ou de Edimburgo, para não mencionar a Escola de Minas parisiense (com Michel Callon, Madaleine Ackrich e Bruno Latour). A questão do agir e da causalidade foram progressivamente sendo refinadas, saindo dos indivíduos ou grupos orientados por interesses discretos. Começou a ter maior rendimento pensar redes, enxames e nuvens. Admitir um parlamento das coisas em que a Terra tem protagonismo.
Podemos então situar uma pequena obra de Serres, contemporânea da RIO-92, a primeira conferência climática do antropoceno - trata-se do “Contrato Natural” (1991), que de modo simplório, mas engenhoso retorna a Jean-Jacques Rousseau. Sua questão é, por um lado, entender como e por que o homem se tornou uma doença de pele tecnológica do planeta Terra, tendo saído definitivamente das áreas rurais. Por outro lado, entender como a Terra e o mundo com seus objetos, montanhas e coisas, reaparece para os homens que o abandonaram ou excluíram.
Em sua reflexão, um “contrato natural” deveria substituir o contrato social. Para que seja possível reparar o equívoco de ter feito um contrato exclusivamente entre os homens, excluindo a natureza, mas colocando a propriedade da terra (ideias de propriedade) como um apêndice destes homens: “O sujeito do conhecimento e da ação goza de todos os direitos e seus objetos, de nenhum. Ainda não tiveram acesso a nenhuma dignidade jurídica. Isto porque, desde então, a ciência tem todos os direitos” (Serres, 1991, p. 48).
A resposta de Serres, está no mandato que os cientistas adquiriram, em sua capacidade de trazer de volta a natureza e seus elementos, em ser capaz de testemunhar por eles de modo legítimo. Evidentemente, seu programa de história das ciências não distingue sociologia e matemática, assim como admite que física do turbilhão e da percolação poderia ser pensada a partir de Lucrécio. O contrato natural, portanto, embora assertivo, parte de um problema sutil: os animais e as coisas foram expulsos, mas a ciência se tornou um canal, veículo, palanque capaz de dar voz a estes seres, quid juris. Ao reintroduzi-los faz cosmologia e política. Um novo confronto ocorre, com a terra atingida revidando, entre “o mundo mundial das coisas, a Terra, e o mundo mundano de nossos contratos, o direito” (Serres, 1991, p. 22). Não somente as ciências sociais claudicam ao supor um antropocentrismo fundador, como as ciências da natureza ignoram o quanto praticam de mútuo ventriloquismo com a natureza. Alguns alunos de Serres como Latour, Stengers ou Pierre Levy guardam este projeto de um novo contrato como marca de nascença.
Vejo outros desdobramentos além da imperiosa necessidade de pensar tecnociências descentradas construindo radicalmente seus objetos - a terra capturada pelo contrato social talvez se solte, se desgarre da propriedade e possa ser retomada, como está sendo, pelas ciências da terra junto com aquelas da vida; igualmente, a comunicação entre entes factícios e resistentes, nos obriga abandonar concepções triviais do mental rumo às três ecologias - psíquica, ecológica e operária. Caberá doravante convocar práticas de povos não-ocidentais, que muitas vezes são conhecidas somente por seus etnógrafos dada a complexidade e o escândalo de negociar conhecimentos com espíritos, sistemas animistas, mortos e mundos secretos de animais selvagens e estranhos (Szerszynski, 2017). Em suma, os teóricos do antropoceno estudam Gaia e os “comuns”: terra, ar e água compartilhados pelos viventes, inclusive aqueles que não se interessam muito pelo contrato social. Outros sábios, ameríndios dedicados à ciência do concreto, parecem especializar-se em formas de política e diplomacia necessárias fora dos tempos de guerra, são exatamente os xamãs. Um dos nomes de sua prática multinaturalista, vem a ser o perspectivismo ameríndio. Não cabe analisar aqui qual a extensão desta noção, se prioritariamente Tupi, amazônica ou ameríndia. Tampouco se, estando próxima do perspectivismo nietzschiano, não dependeria de estados valetudinários como a embriaguez, o transe, a doença, a loucura e o suicídio.
Conclusão
As comunidades indígenas têm interesse em combater a “vida breve”, prologar a vida e, portanto, aquecer-se tecnologicamente. Mas, também é conhecida a capacidade destrutiva destas promessas (modos de vida, clima, visões de mundo). Iniciativas como o “Global Mental Health”, caso consigam orientar-se pela diferença, ganham papel relevante no debate entre as muitas concepções de natureza com suas respectivas cosmologias (multinaturalismo) e o estatuto político e ético das negociações da saúde na terapêutica, envolvendo equidade e questões relativas ao poder.
Evidentemente, não se deve limitar o interesse pelo suicídio ao campo biomédico ou da saúde coletiva. Neste sentido, a contribuição etnológica se mostra imprescindível, especialmente no sentido de uma tradução de experiências. As dificuldades não estão somente no campo biomédico ou na medicina social. Taddei (2018) afirma que etnógrafos ainda ajustam o passo com a virada ontológica e os desafios de uma antropologia reversa que pense a saúde mental:
Através de um exercício de antropologia reversível (não apenas reversa, mas um em que o etnógrafo efetivamente habita os dois mundos), [percebe-se que] no caso da ideia de doença mental, os autores (antropólogos), salvo raríssimas exceções, se eximem da constituição de aliança consistente com a (ou contra a) psiquiatria e usam a ideia de doença de forma leviana, sem que os efeitos pragmáticos disso sejam considerados (Taddei, 2018, p. 302).
Acolhemos o surgimento da solastalgia. Acompanhamos as inflexões da suicidologia. Sugerimos que síndromes psicopatológicas culturalmente reconhecidas fossem re-examinadas à luz das questões climáticas e antropológicas atuais. Adotei aqui duas vertentes, entre muitas, por explorar. A questão do pertencimento a terra e ao espaço cosmológico da aldeia e da casa, onde podemos situar as questões climáticas e ecológicas contemporâneas, que fazem da experiência ameríndia algo especial e promissor, senão para o Brasil certamente para os terranos humanos do planeta. A outra vertente é a relação com o branco, em sua gama de questões políticas, todas ligadas à condição pós-colonial no antropoceno. Na saúde mental pós-colonial, atenta para a virada ontológica, cabe tentar colocar de modo preciso o bullying, o racismo e a exclusão de grupos que se mostram vulneráveis sob certos aspectos, mas que são fortes, autônomos, criadores e guerreiros sob outros. De um lado, ficaria a solastalgia e suas cosmopolíticas, de outro a prática de um perspectivismo multinaturalista e xamânico, com suas resistências. Evidentemente ambos se reorganizam para motivar novas articulações.
Entretanto é preciso ver que noções como: tentativa de suicídio, avaliação do risco eminente e a compreensão do óbito foram sendo construídas por saberes e práticas distintos em sociedades aquecidas, urbanas, do capitalismo avançado durante as grandes acelerações modernistas. O luto envolvido nas mortes e as formas de conhecimento exercitadas respondem a este panorama e configuram distintas ontologias do sofrimento e da doença. Observe-se que a anomia se transfigura com a solastalgia pois a desagregação concerne ao planeta e às coisas.
A questão da prevenção ao suicídio pode ter, de direito, quid juris, um estatuto hierárquico elevado nas pesquisas acerca de determinantes do processo saúde-doença, modelagem epidemiológica, estudos de efetividade (hipóteses, reflexões, elucubrações). Desfecho eminentemente multifatorial, com evidente polimorfia transcultural, a questão do suicídio enquanto perda, transita do nível macromolecular ao cosmológico como um fractal de Mandelbrot. Tentar pensar a experiência contemporânea do autoextermínio chama atenção para a cultura e aponta para determinantes antropológicos além daqueles mais estudados - econômicos e sociológicos. Trata-se de uma pergunta sobre a vida.
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Notas