Resumo: O objetivo principal deste artigo é analisar, no texto jurídico afonsino das Siete Partidas, a forma como o casamento é concebido e apresentado, e como a enunciação e a ordenação das normas lhe dão um significado especial e um lugar de centralidade no conjunto da obra. Essa ordenação não é fortuita, antes, constrói um discurso de amparo e legitimação da função régia. Utilizou-se, como fonte principal deste trabalho, o quarto livro das Siete Partidas, que versa especificamente sobre o direito matrimonial.
Palavras-chave:Quarta PartidaQuarta Partida,CasamentoCasamento,ordenação socialordenação social.
Abstract: The main objective of this paper is to analyze, within the alfonsine juridical work of the Siete Partidas, how marriage is presented and conceived, and how the enunciation and ordination of the norms give it a special meaning and a central place inside this juridical work. This ordination is not fortuitous, and, in the contrary, it builds a speech that supports and legitimates royal function. The main documental source consulted for this paper was the fourth book of the Siete Partidas, specifically dedicated to matrimonial laws.
Keywords: Fourth Partida, marriage, social ordination.
Artigo
Casamento e monarquia na IV Partida de Afonso X (século XIII)
Marriage and Monarchy in Alfonso X’s IV Partida (XIIIth century)

Recepción: 20/12/2017
Aprobación: 18/02/2018
As leis do quarto livro das Siete Partidas .IV Partida) desenvolvem um modelo de sociedade a partir dos significados que elas conferiam ao matrimônio e aos diferentes vínculos que se considerava oriundos dele. Ao casamento, porque estaria em conformidade com a ordem divina da criação do mundo, dava-se a capacidade de manter a ordem hierarquizada da sociedade, organizada através de laços originados naturalmente em débitos pessoais. Tais dívidas possuiriam a capacidade de preservar os laços de obrigação pessoal entre os diferentes tipos de senhores e dependentes. Através da elaboração de leis, a prerrogativa legislativa régia organizava essa ordem e, ao dispor o casamento no quarto livro do conjunto de sete livros que compõem as Siete Partidas, dava-lhe, a partir da função socializante conferida ao matrimônio, um lugar central na obra e no discurso legitimador que a monarquia construía para si.
O reinado de Afonso X e a produção das Siete Partidas
Antes de analisar as leis da IV Partida convém fazer um resumo das condições de produção do corpus documental ao qual pertencem. Iniciou-se nos séculos centro-medievais um movimento intelectual que ficou conhecido como o Renascimento Cultural dos séculos XII e XIII. Houve, nesse período, uma onda de estudos das fontes antigas por parte das elites letradas. O direito canônico se desenvolveu juntamente com o redescobrimento, o cultivo e a adaptação do direito romano de Justiniano, aplicado por sua vez às questões de direito civil. Os textos básicos adotados pelos juristas eram o Corpus Iuris Civilis de Justiniano, e o Corpus Iuris Canonici.1
O reino de Castela não poderia ficar à margem desses processos, tendo em vista as intensas relações exteriores mantidas com outros reinos. Já no século XII há sinais da recepção dessa cultura jurídica na Península Ibérica. Desenvolvem-se vários núcleos de recepção da nova cultura em cidades que eram sedes eclesiásticas e nas cortes régias. Afonso X, de Leão e Castela (1252-1284), conhecido como “O Sábio”, foi um dos protagonistas do Renascimento cultural. É de significativa importância a grande quantidade de textos produzidos no âmbito de sua corte e que tratavam de variados assuntos pertencentes aos mais diversos campos do saber.
Os labores jurídicos e culturais de Afonso X foram empreendidos em meio à consolidação da expansão territorial e populacional do reino, após o período de conquistas que marcara o reinado de Fernando III. É importante perceber que tais empresas afonsinas, segundo afirma Inés Fernández-Ordoñez, correspondiam a um mesmo projeto político, devido às semelhanças ideológicas entre elas.2 Não entraremos nos detalhes, mas interessa ressaltar a possibilidade de entrever, em toda a produção afonsina, uma unidade ideológica a qual, longe de ser fortuita, correspondia aos interesses concretos do rei e do modelo monárquico que esse procurava construir.
António Pérez-Martín identificou três vias pelas quais se administrou o direito no reinado de Afonso X: primeiro por uma política de continuidade com relação a seus predecessores, levada a cabo pela concessão de direitos próprios preexistentes; segundo pela criação de “uma via própria, a elaboração de códigos jurídicos novos com a pretensão de que rejam em todo o reino”,3 ou seja, as grandes obras às quais nos referimos; e terceiro, “mediante a expedição de privilégios e normas para resolver problemas particulares. Trata-se de uma legislação mais detalhada e circunstancial (…) na qual se aborda problemas puntuais.”4 Marcelo Lima lembrou que o esforço jurídico afonsino não constituiu em si um evento totalmente singular, uma vez que, na mesma época, outras autoridades europeias também se reservaram a tarefa de produzir vastos compêndios jurídicos. A redação desses códigos se vincularia ao contexto europeu de desenvolvimento citadino e universitário. Porém, relativizar a singularidade das empresas legislativas afonsinas não significaria ignorar as especificidades de Castela e Leão, em especial a consolidação e ampliação das conquistas realizadas no reinado de Fernando III. Embora possamos questionar quanto do reinado de Afonso X constituiu uma inovação com relação ao de Fernando III, é certo que, ao subir ao trono, o Rei Sábio herdava de seu pai um reino expandido, territorial e culturalmente. O território castelhano mais do que dobrara e, após o período das conquistas guerreiras, era lógica e necessária a consolidação social e política das mesmas. É importante lembrar que as empresas militares não cessaram durante o reinado de Afonso X, mas sofreram uma intensa redução. O momento era outro: era chegada a hora de solidificar as conquistas fernandinas, e o Rei Santo deu lugar ao Rei Sábio.
Os labores historiográficos e jurídicos empreendidos por Afonso X estavam, assim, inseridos nesse espectro de consolidação da expansão territorial e populacional do reino. Os primeiros correspondiam ao desejo de criar uma memória comum sobre o passado da monarquia castelhana e, mais especificamente, uma memória que justificasse o reinado de Afonso X e dos reis de quem o mesmo se considerava herdeiro político. Os segundos correspondiam à intenção de centralizar jurídica e politicamente os territórios castelhanos – antigos e recém-conquistados – na figura máxima do rei, em um primeiro momento, e na do rei imperador, em um segundo, quando iniciada a busca de Afonso X por ser sagrado imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Embora o reinado de Afonso X tenha sido pacífico em comparação com o de seu pai, ele não esteve por isso isento de conflitos. Desses destacam-se a revolta mudéjar de 1264, os levantes nobiliários de 1272 e 1277, e a questão sucessória ao final da qual seu filho Sancho IV acedeu ao trono. Dentre todos os eventos de importância política sucedidos no reinado de Afonso X, um dos mais relevantes foi o que ficou conhecido como “fecho del imperio”, motivador de alianças e rivalidades relativamente ao rei castelhano. A Europa cristã contava com dois grandes poderes: um espiritual, representado pelo papa, e outro temporal, representado pelo imperador. No período afonsino, esse poder temporal encontrava-se materializado no Sacro-Império Romano Germânico, governado desde 1137 pela dinastia dos Staufen. As relações entre papado e império eram, desde a época da Querela das Investiduras, no século XI, bastante complicadas. Os territórios da península itálica eram os mais problemáticos nessa relação, uma vez que lá havia várias comunas sujeitas apenas teoricamente ao imperador germânico. Ocorreram enfrentamentos entre os grupos denominados güelfos, partidários dos pontífices, e os gibelinos, defensores dos imperadores do Sacro-Império.
Após a morte de Frederico II Staufen, imperador do Sacro-Império e rei da Sicília, quem ficara conhecido, entre outros motivos, pelo embate que o opusera ao pontificado e lhe rendera duas excomunhões, o trono do Sacro-Império ficou vacante por um longo período. Em março de 1256, Afonso X recebeu em Soria uma embaixada gibelina proveniente de Pisa, enviada para lhe solicitar que apresentasse sua candidatura ao trono do Sacro-Império, ao qual possuía direitos sucessórios por parte de sua mãe, Beatriz da Suábia.5
Não era, porém, o único candidato. Juntara-se a ele na disputa Ricardo da Cornualha, irmão de Enrique III da Inglaterra. Escolhia-se o imperador do Sacro-Império por meio do voto. Eram sete, no total, os que possuíam tal poder de escolha, os maiores senhores do império. Em 1257 os eleitores, divididos após duas reuniões distintas e em lugares diferentes (em nenhuma das quais estiveram presentes todos os sete, exceto pelo rei da Boêmia que comparecera às duas e votara distintamente em cada uma delas), elegeram tanto Ricardo da Cornualha como Afonso X. Seguiu-se então uma disputa que ao longo de anos, durante os quais se conheceu um interregno no Império germânico, envolveu várias das principais autoridades europeias e quatro pontífices que se sucederam. Em 1272 falecera Ricardo da Cornualha. Porém, ao invés do trono imperial ser entregue a Afonso X, em 1273 outro imperador foi eleito, Rodolfo de Habsurgo, quem recebera logo depois o reconhecimento pontifical das mãos de Gregório X. Em 1275, Afonso X chegara ainda a se encontrar com Gregório X, reunião da qual não tirara nenhum fruto e que selara sua derrota na disputa pelo trono do Sacro-Império.6
Quanto à redação das grandes obras jurídicas afonsinas, não se pode negar que houve um desejo de maior unificação jurídica, mas não estava desvinculada da necessidade prática de incluir a noção política de regnum numa diversidade de poderes e senhorios mais ou menos independentes. A escolha dos lugares ao quais se concediam foros não era fortuita, e correspondia, antes, a uma maneira de incorporar regiões conflituosas através de um programa ideológico que se utilizava da memória histórica adotada pela monarquia. Almejava-se a que o poder monárquico fosse reconhecido e obedecido, mais do que se pretendia deter controle total e concreto sobre todo o território. A lei, nesse sentido, traduzia normas gerais a serem reconhecidas como modelo de retidão, mesmo se não fossem seguidas, e chegava a pressupor a exceção como elemento constituinte da mesma, e não como antítese sua.
Os labores jurídicos empreendidos por Afonso X estavam inseridos no espectro mais amplo de consolidação da expansão territorial e populacional do reino. A composição das Siete Partidas dataria de algum momento entre 1256 e 12757, constituindo o maior e mais completo texto legislativo afonsino. O título pelo qual as conhecemos hoje se deve à sua divisão em sete livros, mas a denominação é posterior à época de sua composição. Em seu tempo, teriam sido chamadas principalmente de Libro de las leyes ou Libro del fuero de las leyes.8 Os livros que compõem as Siete Partidas tratam respectivamente de: matérias eclesiásticas, a fé católica e o direito canônico (I Partida); as atribuições dos imperadores e dos reis (II Partida); a administração da justiça (III Partida); os casamentos (IV Partida); os contratos e negócios (V Partida); as heranças e os testamentos (IV Partida) e, por fim, os crimes e o direito penal (VII Partida).
O direito matrimonial canônico deu origem ao direito matrimonial civil o qual, creem alguns, encontra-se finalizado no quarto livro das Siete Partidas.IV Partida).9 O Corpus Iuris Canonici é uma compilação de textos oriundos desse processo, utilizado como material básico nas universidades medievais. Dentre eles, o Liber Extra, ou Decretais de Gregório IX10, foi reunido e redigido em 1234 por Raimundo de Peñafort, sob o mandado de Gregório IX. Contém cinco livros, em que foram organizadas as decretais de Alexandre III (1159- 1181) e Gregório IX (1227-1241). Um sexto livro foi adicionado por Bonifácio VIII em 1298. Juntaram-se, em 1317, as Clementinas de Clemente V e, mais tarde, as Extravagantes, formando esse conjunto o Corpus Iuris Canonici.
O quarto livro das Decretais de Gregório IX contém os decretos matrimoniais, assim como a IV Partida contém a maior parte das leis sobre casamentos. As normas evocadas na IV Partida remetem às do quarto livro dessas decretais, e a disposição de suas matérias se originou na da IV Decretal. A IV Partida contém duzentas e cinquenta e cinco leis, distribuídas entre vinte e sete títulos. Desses, os quinze primeiros correspondem majoritariamente aos temas da IV Decretal. Os seguintes doze títulos não correspondem aos temas da IV Decretal. Referem-se aos aspectos da vida e do casamento castelhanos que iam além do que então se contemplava na normativa canônica
As informações contidas no prólogo e na I Partida afirmam que aquelas leis foram selecionadas a partir do direito natural, dos usos e costumes, e dos todos os “grandes saberes”. Em geral, as Partidas citam por alto as fontes utilizadas. Encontramos, nos trabalhos de António Pérez Martín, exposições detalhadas das fontes identificadas por ele e por outros estudiosos. Encontram- se obras referentes ao direito romano como fora recebido na Idade Média por glosadores e comentaristas, dentre as quais o Corpus Iuris Civilis de Justiniano.
Encontram-se também obras do direito canônico, como o Decreto de Graciano e as Decretais de Gregório IX. Além disso, havia também obras tradicionais do direito castelhano e leonês (fundamentalmente o Fuero Juzgo); compilações de direito territorial castelhano; foros municipais; as Flores del Derecho de Jácobo de las Leyes, a Doctrinal de Giácomo Giunta e a Margarita de Los Pleitos de Martínez Zamora; o Fuero Real e o Espéculo. Há também obras não-jurídicas, como os clássicos greco-latinos; a Bíblia; os Pais da Igreja; filósofos e teólogos medievais; e obras islâmicas e orientais.11
Existem atualmente três versões impressas das Siete Partidas: a edição de 1491, glosada por Alfonso Díaz de Montalvo; a de 1555 por Gregório López; e a de 1807 publicada por Francisco Martínez Marina. A intenção de Gregório López por trás da reedição das Partidas era – tal como a de Diaz de Montalvo – oferecer um texto “autêntico”, livre de erros, que servisse como uma edição juridicamente aceitável. Porém, também a edição de 1555 foi objeto de críticas, por não conter prólogo, bibliografia, e nem citar, tal como Díaz de Montalvo o fizera, as fontes manuscritas.12 Porém, tornou-se a mais célebre edição impressa das Partidas, e é a mais utilizada pela maioria dos estudiosos.
Foram consultadas, para este trabalho, uma versão da edição de 1555, de Gregório López, e uma versão digitalizada do manuscrito reputado por ter pertencido aos reis Católicos, disponível para consulta e download no site da Biblioteca Nacional de España.13O manuscrito, embora tenha pertencido a Fernando II de Aragão e a Isabel I de Castela, remonta ao século XIII, e é a mais antiga versão completa das Siete Partidas. A mais antiga se encontra na British Library, mas o códice que lá está contém apenas o primeiro livro, de maneira que o manuscrito dos Reis Católicos é provavelmente a versão mais antiga da IV Partida.
Nas Siete Partidas, cada novo assunto é iniciado por uma pequena introdução. Aquela que encabeça o Título II da IV Partida abre-se com a seguinte sentença: “Casamiento establecio el nuestro seynor dios de ome e de muger enel parayso”.14 O redator remete-se ao prólogo desse livro, em que o casamento é apresentado e definido a partir da metáfora bíblica da criação do mundo. Deus teria honrado o homem acima de todas as outras criaturas, pois o fizera à sua imagem e semelhança, e lhe dera a faculdade do entendimento. Também o honrara muito quando lhe dera mulher, e celebrara o casamento no Paraíso. Porque o matrimônio fora realizado por Deus no momento da Criação, derivaria da disposição divina sobre o mundo e concordaria com ela. Ao ser realizado corretamente garantiria a manutenção da ordem do mundo conforme havia sido criada pela divindade. O Rei, ao exercer seu papel de legislador, coloca-se na posição de cooperador na manutenção dessa ordem. Estabelecia as regras que deveriam ser seguidas, garantindo que a ordem divina se mantivesse estável entre os homens.
O surgimento da mulher e o primeiro casamento são descritos da seguinte forma:
Et sin todo esto le ouo fecho otra muyt grant honrra qua fizo muger quel diesse por compaynnera en que fiziesse linage et estableciero(n) el casamiento deyllos amos en parayso et puso ley naturalmente ordenada que assi commo era(n) dos cuerpos departidos segunt natura que fuessen en uno quanto en amor de manera que non se pudiessen partir guardando lealtad el uno al otro. E otrossi que daqueylla amistat saylhesse linage de que el mundo fuesse poblado de gentes et el loado et servido.15
O objetivo principal da criação do homem e da mulher encontrar-se-ia na linhagem, que povoaria o mundo para o serviço de Deus. Esse último é um ponto relevante. A própria criação do mundo obedecia a objetivos hierarquizantes. O prólogo diz, a esse respeito, que Deus dera honras assinaladas ao homem por fazê-lo à sua imagem e semelhança. Depois, por lhe dar entendimento, de forma que pudesse saber, entender e separar cada coisa à sua maneira – com justiça, portanto. Por fim, honrou-o muito, concedendo-lhe para seu serviço as outras criaturas. O Homem ocupa o lugar mais alto de toda a Criação. A ele teriam sido reservadas as maiores honras, que o aproximariam da divindade. Os outros seres vivos estariam destinados ao seu serviço, da mesma forma como ele estaria destinado ao serviço do seu Criador. Esta seria a ordem do mundo, como Deus a fizera: o homem acima dos outros animais, e Ele mesmo acima do homem, como Senhor máximo. Para que o propósito divino fosse cumprido seria necessário que a espécie humana crescesse e se desenvolvesse. O sexo feminino teria sido então criado e entregue ao masculino, honrando-o novamente.
O homem recebe a mulher para “fazer linhagem”, garantir através dela a raça humana que povoaria o mundo para o serviço de Deus. Para ordenar – no sentido de organizar, dar ordem – essa linhagem humana, Deus teria realizado no Paraíso o primeiro casamento, no momento em que submetera os homens a uma lei ordenada “naturalmente”. Essa lei consistiria em que os esposos formassem um só corpo, unido pelo amor, apesar de possuírem corpos distintos por natureza. Não poderiam se separar, e guardariam lealdade. Dessa união viria a linhagem que povoaria o mundo. O serviço à divindade seria o objetivo da criação do ser humano: “de quel el mundo fuesse poblado de gentes et el loado et seruido”.16 Quanto à junção entre homem e mulher, seu objetivo seria essa síntese dos dois corpos na descendência de ambos. O casamento seria a própria ordenação pela qual a descendência poderia existir, cumprindo as disposições divinas.
Dois conceitos fundamentais para entendermos não apenas o panorama mental e social do casamento e outras relações na Castela do século XIII, mas também a estrutura discursiva e argumentativa da IV Partida, são-nos fornecidos pelo próprio texto. Trata-se dos conceitos de natura . naturaleza. O prólogo da IV Partida, listando os temas tratados no livro, anuncia: “E sobre todo mostraremos, del debdo que los omes han entre si por naturaleza”,17 ressaltando a importância da idéia no discurso normativo que se seguirá. O Título XXIV18 está inteiramente dedicado às relações existentes entre os homens e seus senhores por razão da dívida de “naturaleza”. O conceito é definido a partir da noção de natureza, referida nas Partidas pelo vocábulo natura.
Essa primeira ideia – natura – é explicada em uma lei da I Partida: .Natura es fechura de Dios, e el es el Señor e el facedor della”.19 Corresponderia à Criação, da qual Deus era o senhor. Toda a natureza estaria subordinada ao poder divino, pois lhe devia a sua existência. Essa criação, sujeita à vontade divina, funcionaria segundo uma ordem fixa, predeterminada por Deus. Seria, por isso, imutável, e nada – exceto o poder que lhe dera origem, poderia obrar contra o seu funcionamento.20Uma vez que o ser humano era criação divina, faria parte da natureza e teria com a divindade uma dívida perene a atá-lo à ordem do mundo. Ao ocupar o posto mais alto de toda a Criação, assumiria com Deus uma dívida maior, derivada da sua existência e do senhorio, recebido através da graça divina, sobre o restante dos seres. A dívida com o plano divino era considerada a primeira pela qual a humanidade estaria regida.
No título XIV da IV Partida, . natura é definida como “una virtud, que faze ser todas las cosas en aquel estado que Dios las ordeno”21. Reitera- se o caráter do Divino Criador e Regedor, e ressalta-se a bondade e a imutabilidade da sua ordem. As digressões das Siete Partidas, a respeito da natura,remetem a uma longa tradição filosófica medieval, desenvolvida nos círculos intelectuais a partir da apropriação do pensamento grego – especialmente aristotélico e estoico – articulado a influências bíblicas. No século V, Aurélio Prudêncio teorizava sobre a natureza segundo concepções cristãs. No hino terceiro do Cathemerinon, quando canta e cristianiza as horas do dia dedicadas à alimentação, apresenta uma concepção da natureza cujos moldes se encontravam no relato do Gênesis. O interessante nesse hino é que, ao conceber o alimento como uma dádiva de Deus, de forma que a divindade seria entendida como “um dominus, aquele que concede o pão em um ato de graça”22, Prudêncio põe a tônica na contrapartida humana, materializada no serviço devido à divindade. Mário Bastos disse a respeito que “Deus concede, submete a natureza ao homem, mas mantém-se como intermediador, ao suprimir qualquer suposta direta relação existente entre suas criaturas. A relação, originada do poder, embasa a dependência.23
Da fonte aristotélica, a Idade Média teria bebido na Metafísica, que define a natureza como o princípio que daria movimento aos seres vivos, de onde viria a capacidade de reprodução e de crescimento. Isidoro de Sevilha (560-636) associa a natureza à divindade, por sua capacidade de gerar vida.24 A natureza, como equivalente ao conjunto da Criação, tornou-se uma noção basilar nas concepções cristãs. De acordo com o relato bíblico, Deus situara o homem em posição de proeminência quando lhe concedera soberania sobre os outros seres, submetendo-lhe a natureza. O homem, em contrapartida, se submeteria a Ele, devendo-lhe serviço por seu ato de graça.25 O relato da IV Partida corresponde a tais desenvolvimentos. O presente da Criação geraria a primeira dívida do homem. Seria a primeira e a maior de todas, pois uniria o homem a Deus no serviço que lhe rendia, configurando uma dívida de natura.
A palavra latina natura possui como primeira acepção o sentido de nascimento, ou de fazer nascer. O sentido de “natureza” e “ordem natural das coisas”26 é secundário. A noção de natureza deriva, assim, da idéia de nascimento, e como tal é apropriada pelos medievais. Na IV Partida, por exemplo, a dívida existente entre pais e filhos é entendida como de natura27, uma vez que a concepção seria uma criação, derivada do poder divino, e não uma simples transformação do estado das coisas.
No entanto, haveria outra forma de débito, semelhante à natura, e diferente dela por sua essência humana. É a naturaleza, corruptela castelhana do vocábulo latino. Esse termo foi traduzido como “naturalidade” pelo hispanista Georges Martin, em estudos28 dedicados à sua utilização na IV Partida, e também por José Manuel Nieto Soria29.
A naturaleza corresponderia a uma forma de débito semelhante à da natura e estabeleceria algumas das ligações fundamentais entre os homens, pois atuaria na manutenção da ordem social. Como demonstrou Georges Martin, na II Partida era considerada, junto com a vassalagem, uma das maiores dívidas a unirem os homens aos seus senhores.30 Nessa referência a naturalidade prima sobre a vassalagem. Na II Partida afirma-se que, embora existissem vários tipos de senhores, aqueles que o eram por naturalidade se encontravam acima dos outros, havendo maior obrigação de respeitá-los. O rei seria um senhor natural, e com base nesse princípio deveria ter seu poder plenamente reconhecido.31
No entanto, a naturaleza só será definida, e o assunto abordado detidamente, no Título XXIV da IV Partida, “Del debdo que han los omes con los Señores por razon de naturaleza”. Diz a primeira lei:
Naturaleza tanto quiere dezir, como debdo que han los omes vnos con otros, por alguna derecha razon en se amar, e en se querer bien. E el departimiento que ha entre natura, e naturaleza, es este. Ca natura es vna virtud, que faze ser todas las cosas en aquel estado que Dios las ordeno. Naturaleza es cosa que semeja a la natura, e que ayuda a ser e mantener todo lo que desciende della.32
A natura corresponderia à ordem do mundo, arrumada por disposição divina. Seria a melhor ordem, e as desigualdades fariam parte da sua engrenagem. A naturaleza, embora se assemelhasse à natura – pois, assim como ela, derivaria de uma ordem corretamente hierarquizada – tangeria ao mundo dos homens. No entanto, estabeleceria ali a dívida maior pela qual a humanidade se uniria. As suas regras, quando respeitadas, garantiriam que a ordem divina da natura se cumprisse.
A respeito da correlação entre as palavras natura . naturaleza no título XXIV da IV Partida, Martin vê uma analogia entre a solidariedade derivada de ambas, embora na lei I se “matize a semelhança através de uma diferença”,33 ao entender como análogas a ordem da natura e a da naturaleza. As diferentes dívidas de naturaleza foram listadas na lei II do título XXIV. São, respectivamente: a relativa ao senhor natural, por nascimento nas terras de seu senhorio; a que decorreria da vassalagem; a que viria da educação; aquela derivada da cavalaria; a que viria por razão de casamento; ou por herança, ou por soltar alguém da prisão ou por salvá-lo da morte ou da desonra; a que viria por razão de alforria; ou por conversão ao cristianismo. Por fim, aquela que derivaria da residência por mais de dez anos em um lugar, sem ter nascido lá.34 Martin apontou como, nessa listagem e em toda a lei que trata da naturaleza, ela é antes associada a um princípio territorial, e depois a um princípio contratual.35 José Manuel Nieto Soria também põe a tônica na idéia de territorialidade implícita na noção de naturaleza e na sua utilização em prol da defesa do poder monárquico sobreposto ao dos demais senhores.36 A primeira e a última forma de naturaleza listadas na lei II – o nascimento em uma terra ou a permanência por dez anos em alguma outra – remeteriam diretamente a esse princípio territorial37 e dariam legitimidade ao poder régio.
As outras maneiras de naturaleza corresponderiam a um princípio considerado contratual, pois suas obrigações dependeriam de um livre compromisso entre as partes. É importante notar aqui a confusão deliberada entre naturaleza e vassalagem: enquanto na II Partida a vassalagem aparecia ao lado da naturaleza como “los mayores debdos que ome puede auer con su Señor”,38 na IV Partida ela está incluída dentro do rol das dívidas de naturaleza. Nieto Soria, a respeito dessas articulações, comenta que, ao se situar em segundo lugar o vínculo vassálico, apontava-se em direção ao estabelecimento de um vínculo de naturalidade “superior e preferível de todos os habitantes do reino” àquele devido a um dos senhores do reino. Isso “hipotecava os deveres de lealdade desse último aos provocados por aquele outro”. Nieto Soria aponta a utilização, mais ou menos indistinta, nas Partidas, do vocábulo “senhor”, referindo-se tanto ao rei como aos outros senhores, donde a necessidade de distinguir hierarquicamente entre as diversas formas de senhorio e de dependência, “o que trazia uma fórmula de estruturação interna da própria comunidade política”.39
Voltemos ao prólogo. A descrição do primeiro casamento – aquele que Deus estabelecera no Paraíso – diz o seguinte: “(...) puso ley naturalmente ordenada que assi commo era(n) dos cuerpos departidos segunt natura que fuessen en uno quanto en amor de manera que non se pudiessen partir guardando lealtad el uno al otro.40
O casamento era a primeira dívida de naturaleza (lembremos que figura na listagem das formas de naturaleza), criada por disposição divina de maneira que a humanidade pudesse se desenvolver e se organizar segundo a ordenação hierárquica do mundo. Por isso, afirma-se mais adiante no prólogo que o matrimônio deveria ser reconhecido como o sacramento responsável pela manutenção do mundo – “mantenimiento del mundo” – pois faria os homens viverem uma vida pura segundo a ordenação natural.41 A dívida de natura com Deus era a primeira a recair sobre os homens. A segunda que lhes competiria era, na realidade, a primeira contraída entre eles, e corresponderia ao laço matrimonial. Derivaria do amor do casamento. Cumpriria o papel de garantir a lealdade entre marido e esposa, e a indissolubilidade da união.
A dívida matrimonial daria raiz às outras dívidas de naturaleza, que incluíam tanto aquela gerada pela criação dos filhos, quanto as dívidas com os senhores naturais e a vassalagem. A sociedade se desenvolveria a partir da primeira e, quando fosse respeitada, ou seja, quando o casamento fosse realizado corretamente, a sociedade também se desenvolveria corretamente. Por isso o matrimônio seria “manutenção do mundo”: o laço gerado pela dívida matrimonial garantiria que a ordem hierarquizada da natura permanecesse e que os homens se relacionassem de acordo com ela, através das dívidas de naturaleza.
A sociedade seria desigual, assim como eram desiguais as posições dos filhos, a relação entre homem e mulher e, em última instância, a interação entre o homem e Deus. Uma vez que existiria por uma questão de natura, a sociedade seria desigual, tal como a natureza era desigual. Essa seria a ordem do mundo, derivada da inquestionável disposição divina. Ao organizar os homens através das leis, o monarca deveria respeitar a ordem divina, o que significava organizar pela desigualdade – dizendo a cada um o lugar que lhe era devido. Aplicava-se assim a justiça.
Portanto, a dívida de naturaleza não encerrava em si apenas uma noção territorial. Mas, ao se incluir essa noção em um livro sobre matrimônios – aliança que geralmente implicava, no caso da aristocracia, em trocas territoriais como doações matrimoniais – como parte essencial das dívidas de naturaleza, procurava-se criar uma primazia conceitual do senhorio monárquico sobre o dos demais senhores. Esses estavam incluídos no rol dos naturais de Castela, de forma que também seriam naturais do rei, cujo senhorio específico atuaria sobre todos os naturais do reino. Afirmava-se assim que todos os habitantes do reino estavam sujeitos ao rei pela dívida de naturaleza, mesmo que não possuíssem com ele uma dívida de vassalagem. Uma vez que o casamento era uma dívida de naturaleza - não apenas mais uma, mas a primeira, aquela que daria origem às outras – essa forma de débito ganha um papel central na IV Partida. A referência à origem divina da primeira dívida de naturaleza funciona como argumento inquestionável na defesa das outras, das quais vimos que prima a naturaleza com relação ao rei sobre a ligação vassálica. A vassalagem aparece, por vezes, englobada na naturaleza, por vezes ao seu lado, mas nas Partidas é colocada em posição de dependência com relação a ela. Para que houvesse vassalagem, deveria antes existir naturaleza.
Por último, ressaltemos como as dívidas determinavam as relações entre os homens, nos casamentos, nos laços de parentesco e restantes ligações. A idéia da dívida – e do serviço e do benefício por ela gerados – permeia todo o conjunto da IV Partida. As relações ali descritas se fundamentam nela. Algumas das principais dívidas a governarem esse mundo movido a débitos e obrigações eram a natura e a naturaleza. Participariam da existência do mundo, fariam parte da ordem, e seriam fundamentais para a governança. O sacramento matrimonial garantiria a multiplicação dos homens e a sua organização em sociedade. Ordenar o casamento significaria ordenar também os seus frutos, aquilo que provinha dele, ou seja, em primeiro lugar, os filhos que ele originaria, e em segundo lugar a sociedade hierarquizada, no âmbito da qual essa filiação se desenvolveria.
Percebe-se que as leis da IV Partida, acompanhando a lógica do prólogo, podem ser agrupadas em três esferas: em primeiro lugar, vêm as disposições a respeito do matrimônio per se. Explicita-se o seu significado, a maneira como deveria ser realizado, quem poderia contraí-lo e oficializá-lo (prerrogativa pertencente ao clero), sobre as uniões proibidas e sobre as condições e trocas envolvidas no processo matrimonial. Depois, normatiza-se a relação entre pais e filhos, o poderio dos pais sobre os filhos e as regras básicas que envolveriam a criação, a educação e o amor filial. Em seguida os redatores da IV Partida tratam de outras relações – que aos nossos olhos contemporâneos não nos pareceriam, à primeira vista, derivadas do casamento – a que correspondem às principais dívidas existentes entre os homens, em cada um dos seus grandes estratos sociais. São elas: a servidão, a naturalidade (dos homens livres), e a vassalagem. O último título trata da amizade. Os títulos da IV Partida seguem uma progressão, cujas bases foram apresentadas no Prólogo. O livro passa do matrimônio para os filhos e, por fim, para a sociedade fundada com base nas dívidas entre os homens. Da boa linhagem, oriunda do bom casamento, derivaria a organização correta dos homens. A IV Partida foi composta refletindo-se essa organização divina do mundo, que derivaria do casamento e se conservaria graças a ele. O monarca, ao legislar sobre o casamento, ordenaria também a descendência e a ordem social que ele formaria. Assim, o rei garantiria a manutenção da ordem desigual do mundo.
As considerações da IV Partida a respeito do sacramento matrimonial justificam o posicionamento das leis sobre casamentos no quarto livro. Sendo as Siete Partidas uma obra concebida como um conjunto, com alto nível de coerência interna, seria inadequado supor que o tema dos matrimônios se encontrasse ali aleatoriamente. Muitas leis da IV Partida coincidem com as da IV Decretal de Gregório Magno. Porém, as decretais são apenas cinco, e o fato das Partidas se dividirem em sete livros faz com que o quarto esteja no centro. O mesmo não ocorre nas Decretais. No conjunto dos temas das Siete Partidas, o casamento é um assunto central, literalmente.
Primeiramente, o prólogo prioriza o sacramento matrimonial, e de sua originalidade – teria sido o primeiro, instituído no Paraíso – extrai a justificativa da sua especial importância. Em seguida, o redator explicita a função do casamento como elemento de preservação social: manteria a ordem do mundo, pois permitiria aos homens se organizarem em sociedade, protegendo-se do pecado e respeitando as leis divinas. Assim, faria com que os demais sacramentos existissem e fossem cumpridos.42
Por fim, o redator faz uma analogia entre o sacramento matrimonial e duas imagens, a do coração e a do sol:
E por esso lo pusimos en medio de las siete Partidas deste libro; assi como el coraçon es puesto en medio del cuerpo, do es el spiritu del ome, onda va la vida a todos los miembros. E otrossi como el Sol alumbra todas las cosas, e es puesto en medio de los siete Cielos, do son las siete estrellas, que son llamadas Planetas. E segund aqueste, pusimos la Partida que fabla del Casamiento, en medio de las otras seys Partidas deste libro. (…) E, por esso lo pusimos en la quarta Partida deste libro, que es en medio de las siete, assi como puso nuestro Señor el Sol en el quarto Cielo, que alumbra todas las estrellas, segund la su Ley.43
Através da analogia com o sol e o coração, as considerações do prólogo justificam o posicionamento do casamento nas Siete Partidas. O quarto livro está no exato ponto médio da obra, situando-se na intercessão entre o mundo dos governantes (eclesiásticos e laicos) e o dos governados – dos quais tratam as três primeiras e as três últimas Partidas. Por distintos que fossem, o coração e o sol possuiriam em comum o fato de estarem posicionados no centro de seus domínios. O coração estaria no meio do corpo, tal como o sol estaria no meio do céu, e por isso também as leis matrimoniais deveriam estar no meio do conjunto de leis. De forma imagética, o sacramento matrimonial era associado ao sol, pois iluminaria os demais, tal como o sol iluminava o mundo. Pretendia- se que o matrimônio clareasse, tornasse visível e evidenciasse a condução da vida humana segundo a vontade do Criador. Para atuar em seu papel de farol celeste, o sol teria sido posto no centro do universo, no meio dos sete céus que pertenceriam aos sete planetas do sistema solar. Uma vez que também era sete o número de livros das Siete Partidas, aquele que regulava os casamentos deveria estar no centro do conjunto, para que, conforme a semelhança do sacramento matrimonial com o sol, iluminasse o significado dos outros.
O sacramento matrimonial também se assemelharia ao coração, mais um motivo pelo qual as leis matrimoniais deveriam estar no centro das Siete Partidas. Entendia-se que o matrimônio, como o coração, continha a dimensão espiritual da vida humana e a transmitia na ordenação da vida, tal como o sangue bombeado pelo coração conduzia a vida aos membros do corpo. Partia-se de uma concepção dita “corporativa”, baseada numa analogia fundamental entre o funcionamento do corpo e da sociedade.44 A prole derivada do casamento, boa desde a concepção, geraria uma sociedade também boa, no sentido de que estaria conforme a vontade divina. Do matrimônio legítimo derivaria a ordem social correta. Reforça-se, com isso, também a idéia da espiritualidade do casamento, e da união espiritual que através dele se produziria entre o homem e a mulher e, consequentemente, entre eles e sua prole, de forma que estaria na base do desenvolvimento humano. Estando o coração posicionado no meio do corpo, consequentemente as leis matrimoniais, devido à semelhança entre o casamento e o coração, deveriam se localizar no meio das Siete Partidas. Como não lembrar, ao ler essa passagem, das “Três Ordens” de Georges Duby? “Para tornar (...) tolerável a desigualdade, é bom fazer crer que na sociedade cristã (...) o amor une os corações. Concordia, um só coração. Por isso um só corpo onde cooperam todos os membros”.45
As analogias da centralidade do casamento servem para o próprio livro da IV Partida. A quarta parte era apresentada como aquela que iluminaria e animaria as demais. Seria o centro de onde derivariam todas as outras regras, de forma que, da boa condução das uniões matrimoniais, viria a boa condução dos homens, cada qual segundo o espaço de atuação que lhe coubesse. Quando o rei, na sua função legislativa, organizava a ordem matrimonial, estaria ao mesmo ordenando o bom funcionamento social e atuando com justiça na sua manutenção.
A simbologia carregada por essas imagens não se encerra aí e, embora pareçam remeter ao casamento, na realidade encerram toda uma concepção de poder monárquico que o texto ardilosamente deixa transparecer. Mas, não o faz de forma evidente, do que justamente extrai a sua força associativa e daí – por que não? – argumentativa e propagandística, atributos do discurso das Siete Partidas. Embora seja o casamento que, nessas passagens, foi associado à estrela e ao órgão, quem realmente se mostra através delas é o Rei, em todo o seu esplendor e fortaleza. Como Sol, como Coração.
Logo em seguida, no mesmo prólogo, Afonso faz perfilar os assuntos de que tratam os demais livros das Siete Partidas. Faz aí menção às duas espadas que se tornaram referência da chamada Querela das Investiduras, tida como uma longa disputa entre o Papa e o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico (posteriormente estendida também para as monarquias feudais), num conflito acirrado em que estaria em jogo a afirmação – e especialmente a efetivação – da superioridade de um poder sobre o outro. A querela perpassou séculos e reinos. No entanto, mais do que uma disputa dicotômica entre autoridades eternamente concorrentes, visão que tende à simplificação, os desenvolvimentos históricos que a questão encerra poderiam ser mais bem compreendidos se encarados do ponto de vista de um processo complexo, desencadeado pela necessidade de afirmação dos espaços de exercício do poder correspondentes a cada uma dessas instâncias. As duas espadas – logo, as duas justiças – eram a espiritual e a temporal. Cada uma lançou mão de discursos, símbolos, metáforas, alegorias e, principalmente, analogias diversas para definir e defender as prerrogativas reivindicadas por cada uma.
António Pérez Martín definiu o Ius Commune como “a cultura jurídica que domina em quase toda a Europa desde o século XII”,46 e que se ensinou nas universidades européias tendo como pontos de apoio o Corpus Iuris Civilis de Justiniano e o Corpus Iuris Canonici. Esse “direito comum” tem sua origem no chamado renascimento cultural dos séculos XI-XIII, e se insere no marco da “luta entre o Imperador e o Pontífice por obter a supremacia da “respublica christiana”.47 Juristas a serviço de ambas as autoridades se alinhavam em prol do Imperador, os chamados “civilistas”, ou em prol do Papa, os “canonistas”. Com o novo despertar para os textos da antiguidade clássica, ambas correntes buscavam lá elementos que fundamentassem “as pretensões de supremacia de seu respectivo senhor”.48 Convencionou-se, ao fim e ao cabo, pela existência simultânea de duas autoridades, expressa através de duas imagens principais: a dos dois gládios, um espiritual e o outro temporal, e a das duas grandes luzes do firmamento, isto é, o Sol e a Lua. A questão era saber qual desses poderes correspondia ao Sol e qual deles à Lua. Astro brilhante, o Sol tornou-se a própria alegoria do poder supremo. A lua, desprovida de luz própria, não faria mais do que refletir a do Sol, como uma face permanece sempre oculta, misteriosa. Para os defensores do pontífice, o gládio espiritual semelharia o Sol. O gládio temporal, a Lua. Para os civilistas a relação poderia se inverter, de maneira que se associava o Sol ao imperador, como cabeça governante da cristandade, cuja razão se expressaria naquilo que manifestamente poderia ser visto à luz do dia, ou seja, no tocante ao mundo físico dos homens. O poder espiritual do Papa se tornava então a Lua, com proeminência nas coisas ocultas e misteriosas do mundo, pertencentes ao campo incorpóreo do espírito.
A necessidade de demarcar os espaços e limites do poder espiritual e temporal tem seus antecedentes em épocas mais remotas, a partir da oposição que desembocou no Cisma do Oriente. Findo o Império Romano, diferentes autoridades reclamavam para si a prerrogativa de continuadores da tradição romana. Bizâncio tornou-se Constantinopla, entendida como a nova Roma, sede do Império e da religião, cuja predestinação era superar em majestosidade a primeira. Trazia-se assim uma concepção do cristianismo que Eusébio de Cesaréia expressaria sob a forma de uma “teologia política” que tinha no Imperador cristão o senhor absoluto, “representante direto e único de Deus na terra, porque constitui a imagem da onipotência absoluta de Deus”,49 já que Ele mesmo o teria escolhido para ser seu representante, sem intermediários. Ser chefe de Estado equivalia a ser o chefe da religião do Estado, segundo um princípio de unidade indissolúvel com a Igreja. Nessa concepção, haveria apenas um poder máximo, apenas uma soberania.
Não era a Igreja que continha em si o Império, mas o Império que continha em si a Igreja. Tempos depois, frente ao cesaropapismo de Constantinopla, o bispo romano contrapôs a noção da teocracia, segundo a qual a Igreja disporia do poder político capaz de outorgar legitimidade. No século V, Leão I formulou a teoria da monarquia papal; contrariamente a Bizâncio, a Igreja, por ter o primado da autoridade religiosa, teria também primazia como autoridade política. No século V, Gelásio I dirigiu ao imperador Anastásio I uma epístola advertindo-o de que não haveria um só poder a governar o mundo, e sim dois, o sacertodal e o real. Afirma ainda, quanto à relação entre eles, que o sacerdotal estaria acima do real devido à superioridade de seus fins, voltados para a salvação espiritual. Sugere, portanto, pela primeira vez no discurso político cristão, a existência de dois poderes, com a dependência do reinado ao sacerdócio. Essas idéias estabeleceram uma distância entre as concepções bizantinas e pontifícias de forma que “enquanto aos imperadores bizantinos lhes parecia impossível aceitar a idéia papal do primado do Bispo de Roma, aos papas romanos lhes parecia impossível aceitar o mito de Bizâncio como nova Roma.”50
Passado o tempo, estava já desenvolvida a teoria política medieval fundamentada na existência de dois grandes poderes, relacionados analogicamente com as duas espadas, com o Sol e com a Lua, e também a modelos organicistas que associavam o corpo político ao corpo humano, em que a alma era identificada como o sacerdócio, que conduziria movimento aos membros.51 Na concepção organicista, a sociedade era entendida como um corpo humano, perfeitamente harmonizado a partir de uma hierarquia fundamental. Essa elaboração medieval se correlacionava com a idéia das três ordens. Tal como o corpo se dividia em distintos membros que, cada um, desempenhava funções própias que não haviam sido feitas para os outros, o mesmo ocorreria com as ordens dos homens. Assim, pés deviam ser pés, mãos deviam ser mãos, e a cabeça devia ser a cabeça. Essa última possuía o poder de raciocínio e comando que os demais membros, para o bom funcionamento do corpo, obedeceriam. Os pés não poderiam, portanto, ocupar o lugar das mãos, e muito menos o da cabeça, sob o risco de um colapso total. Essa se posicionava acima de todo o corpo. Fica claro, nessa analogia, que a cabeça corresponderia ao governante da cristandade, pairando acima dela, comandando-a do alto. A potestade máxima do Sol, o brilho que permitia iluminar e, assim, mostrar o caminho correto, se assemelhava à potestade e ao lugar da cabeça, que com sua visão indicaria o movimento a ser desempenhado pelos membros. A Lua, como astro dependente que era, apenas poderia iluminar o refletir o sol, e não chegava a desfazer a sombra. A questão era se a cabeça corresponderia à autoridade religiosa do papado e de todo o clero, ou à autoridade temporal do Imperador, ou ainda dos reis e de todos os demais senhores. Esse corpo, tal como era comum nas elaborações filosóficas medievais, poderia ter uma dupla natureza, já que possuía uma dimensão material e outra espiritual. O Papado poderia ser a cabeça do corpo espiritual e o Rei a cabeça do corpo material. Mas as duas naturezas faziam parte de um mesmo e único organismo, e embora pudessem ser distinguidas entre si, atuariam conjuntamente, de maneira que o espírito influenciava a matéria e a matéria influenciava o espírito.
No caso em que a cabeça era identificada com o Rei, os braços e as mãos poderiam ser a nobreza. No entanto, o rei era nobre, e não deixaria de fazer parte do conjunto da aristocracia, que aceitava mal a idéia de um de seus pares se colocar acima de todos. E aí que entra o coração. Assim como o corte da cabeça mataria o corpo, o mesmo ocorreria com a retirada do coração. Esse, embora não pudesse por si só comandar o corpo, já que lhe faltava o intelecto, era, no entanto, a morada da alma. Sua função também era vital: como o sangue por ele bombeado, o coração podia levar o espírito aos membros, animando-os literalmente.
Na Idade Moderna, a metáfora do coração progressivamente perde a sua força, até se eclipsar no âmbito das monarquias ditas “absolutistas”, em face da metáfora do Sol e da cabeça.52 O exemplo mais significativo é o do próprio Luix XIV da França, quem, utilizando-se ostensivamente da imagem do Rei-Sol, afirmava a radical autonomia de seu poder, situado sozinho acima de qualquer outro (ainda que, na prática, essa solidão poderosa de Luis XIV possa ser relativizada). Durante a Idade Média, no entanto, a idéia do coração floresceu. Principalmente, a idéia de que a cabeça governava através do coração, pois este órgão, localizado no centro do corpo, transmitiria a alma que permitia aos membros se avivarem ao comando da cabeça. De novo, discute-se quem estaria nessa função. A cabeça poderia ser o papado, e o rei o coração que aplicava a sua ordem. Ou o Rei poderia ser a cabeça, e o clero o coração. Ou ainda – e essa é a idéia desenvolvida pelos juristas afonsinos– o rei era a cabeça, o coração e a alma de seu reino. Nem totalmente acima, nem totalmente localizado no mesmo nível que o restante na nobreza (o coração se localizaria no mesmo nível que os braços), e sim, a partir de ambas as posições, que assumiam entre si uma complementaridade na transmissão da ordem divina – na transmissão da alma. Nas Siete Partidas essa era identificada com a justiça, a lei e a ordem do Rei,53 elaborada quando em sua função de cabeça, transmitida em sua função de coração. Em Afonso X, a justiça era entendida como aquilo que permitia ao rei atuar nessas funções, cujo objetivo era a união de todos os membros através do seu correto ordenamento. Um corpo uno. Caso contrário se desagregaria e deixaria de existir. Essa justiça uniria ao dar a cada um a sua função específica em prol do bem comum, o funcionamento desse corpo uno e departido. Ela juntaria e animaria, seria o próprio espírito transmitido pelo coração. A respeito dessas noções, disse José d’Assunção Barros
O que significa dizer que “o rei é a cabeça do reino”? A imagem da ‘cabeça’ – bem sintonizada com o “simbolismo da ascensão” ou das alturas – implica antes de tudo na idéia de ‘topo’, de ‘ponto mais alto’, de ‘nível superior’. Dizer que o rei é a “cabeça do reino” é construir uma topografia para o poder, bem fundada no imaginário das alturas. É também pensar a possibilidade de uma separação entre a cabeça e o corpo por ela governado, ou entre o rei e o seu povo (...).54
Porém, esse lançamento do rei às alturas celestes, capaz de aproximá- lo de Deus, ao mesmo tempo o distanciaria dos homens de seu reino, o que, para um governante, não seria exatamente a melhor estratégia. Dessa forma, tornava-se necessária a construção da idéia de um“centro político” capaz de entrelaçar todo o corpo social, expressa na simbologia do coração e da alma:
um investimento simbólico na idéia de intimidade de que o governante ou o núcleo político é uno com o seu povo, de que um está entranhado no outro, de que o governante é o próprio povo, ou pelo menos o povo condensado em todos os seus melhores aspectos. A imagem que a literatura ibérica do século XIII encontrou para expressar este outro circuito de idéias e de sentimentos é a de que “o rei é o coração do reino”. (...) Mas existe por fim, a idéia de que o rei não governa nem de cima e nem de dentro, mas de fora de algum ponto que transcende o organismo social e que, estando em todos os lugares, não está concretamente em lugar nenhum. Esta última idéia foi condensada pelos medievais-ibéricos na imagem de que “o rei é a alma do reino”. (...) Aos homens de Portugal e da Castela medieval foi preciso investir significativamente no direito humano às ambiguidades (...) para encampar simultaneamente as três imagens acima descritas na célebre frase, proferida no século XIII, de que “o rei é a cabeça, o coração e a alma do reino.”55
E o casamento, como se encaixa nessa engrenagem? Conforme vimos, no prólogo da IV Partida é o sacramento matrimonial que é associado ao Sol e ao coração, e não ao monarca. Isto é, não de maneira explícita – o que seria, no mínimo, menos elegante. Voltemos ao texto das Partidas. Ali, depois de justificar o posicionamento do quarto livro no meio das Siete Partidas, devido à semelhança do sacramento matrimonial com o Sol e com o coração, ambos posicionados no centro de seus universos (o céu, no caso do sol; e o corpo, no caso do coração), Afonso lista os assuntos das demais Partidas, e, ao falar da primeira e da segunda – relativas, respectivamente, ao poder espiritual do clero e ao poder temporal do monarca e dos outros grandes senhores – diz
E segund aqueste, pusimos la Partida que fabla del Casamiento, en medio de las otras seis Partidas deste libro. Porque assi la primera, que habla de todas las cosas que pertenescen a la Fe Catholica, que faze al ome conocer a Dios por creencia, e también la Ley de nuestro Señor Jesu Christo, que es la espada espiritual que taja los pecados encubiertos. Como la segunda, que fabla de los grandes Señores, que es la temporal, que taja poderosamente los males manifiestos, e deuedados.56
Vemos que Afonso se utiliza da metáfora das espadas espiritual e temporal. Sendo que, para ele, a espada espiritual talha os pecados encobertos, isto é, os males feitos espiritualmente e que não são evidentes no mundo físico, e a espada temporal, paralelamente, talha os males manifestos, isto é, visíveis e pertencentes ao terreno. Os dois gládios aparecem também em outras passagens, das quais uma das mais significativas está no prólogo da II Partida:
porende nuestro Señor Dios puso otro poder temporal en la tierra, con que esto se cumpliesse, assi como la justicia que quiso, que se fiziesse en la tierra por mano de los Emperadores, e de los Reyes. E estas son las dos espadas, por que se mantiene el mundo. La primera, espiritual. E la otra, temporal. La espiritual, taja los males ascondidos, e la temporal, los manifiestos.57
Vê-se que ambas as espadas são apresentadas como possuindo funções parecidas, mas ao mesmo tempo distintas. Ambas possuem um mesmo objetivo, que é o de bem conduzir os homens segundo a vontade divina. Mas a espada temporal não existe em função da espiritual, e sim foi posta por Deus mesmo na terra para que, ao lado da espada espiritual, pudesse agir naquilo que ela não podia. Assim, o poder temporal também deriva diretamente de Deus, e os Imperadores e os Reis são seus vigários diretos, conforme a linguagem utilizada diversas vezes ao longo das Siete Partidas, dispostos em seu lugar para cumprir no mundo físico – e manifesto – a vontade divina. No máximo, a mediação entre o Rei e Deus seria feita não pelo Papa, e sim pela Santíssima Virgem Maria: “acorrimonos de la merced de Dios (...) e de la Virgen Santa Maria (...), que es medianera entre Nos e el”.58 Portanto, na querela entre Papado e monarquias, Afonso – quem ambicionava o trono imperial – defende que entre ambos os poderes não haveria necessariamente uma relação de superioridade, uma vez que emanariam independentemente da mesma origem divina. Suas atuações seriam paralelas, devendo ser exercidas em conjunto para que se pudesse de fato guardar e preservar no mundo a ordem divina:
Como quier que las leyes sean unas quanto en derecho, en dos maneras se departen quanto en razón. La una es á pró de las almas, y la otra á pró de los cuerpos. La de las almas en quanto en creencia. La de los cuerpos en quanto en buena vida. (…) E por estas dos se gobierna todo el mundo: ca en estas yace gualardon de los bienes á cada uno según debe haber, e escarmiento de los males.59
E destas dos espadas fablo nuestro Señor Jesu Christo el Jueues de la Cena, quando pregunto a sus Discipulos, prouandolos: Si auian armas, con que lo amparassen de aquellos que lo auian de traer; e ellos dixeron que auian dos cuchillos (…). Ca sin falla esto abonda, pues aquí se encierra el castigo del ome, también en lo espiritual, como en lo temporal. E por ende estos dos poderes se ayuntan a la Fe de nuestro Señor Jesu Christo, por dar justicia complidamente al alma, e al Cuerpo. Onde conuiene que por razón derecha, que estos dos poderes sean siempre acordados, assi que cada vno dello ayude de su poder al otro: ca el que desacordasse, vernia contra el mandamiento de Dios, e auria por fuerça de menguar la Fe, e la Justicia, e non podría luengamente durar la tierra en buen estado, ni en paz, si esto se fiziesse.60
Talvez por essa razão não há menção direta à Lua ou ao Sol para se referir aos poderes espiritual e temporal. Pelo menos não se encontrou nenhuma passagem em que isso esteja explicitado. Caso haja, solicita-se complacência: é culpa da extensão das Siete Partidas. Mas a referência à espada espiritual, como justiceira dos males escondidos, pode remeter indiretamente à Lua, astro misterioso, com uma parte iluminada e outra escondida na sombra. A associação do casamento com o Sol, no entanto, remete essa imagem ao poder temporal, que talha os males manifestos. Como? Bem, a associação do poder monárquico com ambas as imagens era já corrente no período de composição das Partidas. Além disso, afirma-se no prólogo da IV Partida que no coração está o espírito do homem, que leva a vida a todos os membros. Dissera-se, em outras passagens das Siete Partidas, que o rei era cabeça, coração e alma do seu reino. Nessa idéia, a cabeça, desde a sua posição superior, transmite seu comando aos membros através do coração. A lei do rei, a sua justiça, é entendida como aquilo que a cabeça deve transmitir aos membros para cumprir a sua função, que é a de ordená-los corretamente, provocando entre eles a união e a paz. Esta é, em última instância, a função do monarca. A alma, que como o sangue residiria no coração e traria vida ao corpo, era entendida, no tocante ao corpo social, como a própria lei, que dizia a justiça. Essa possuía o dever de atuar na união e manutenção do mundo, tal como o casamento. Tal como o Rei. Este, ao atuar nessa função, estaria garantindo tal concórdia: “Vicarios de Dios son los Reyes, cada vno en su Reyno, puestos sobre las gentes, para mantenerlas en justicia, e en verdad (…). Esto se muestra complidamente en dos maneras. La primera dellas es espiritual (…). La otra es segund natura (…).”61 Como seu vicário direto, o Rei teria sido colocado na terra pela própria divindade, para que ali atuasse em seu lugar com justiça e dando a cada qual o seu direito. Donde, no exercício da função, passara a ser chamado de “corazón del ome, e alma del pueblo.” 62 Pois, “assi como yaze el alma en el corazon del ome, e por ella biue el cuerpo, e se mantiene, assi en el Rey yaze la justicia, que es vida e mantenimiento del pueblo de su Señorio.”
É importante lembrar a materialização do corpo do rei – e, logo, do corpo do reino – no seu livro de justiça. Como bem lembrou Aline Dias da Silveira, cada um dos livros das Siete Partidas é iniciado com uma letra do nome de Afonso (Alfonso em castelhano, com sete letras), formando, assim, quando em conjunto ordenado, o nome do rei. Desta forma, o primeiro livro se inicia com A, o segundo com L, o terceiro com F, o quarto com O e assim em diante, até o sétimo, que se inicia também com a letra O. Como se no corpo de leis estivesse o próprio corpo do monarca. “A e O também representam a primeira e a última letra do Alfabeto grego, Alfa e Omega. Ou seja, Afonso está presente na obra do princípio ao fim, uma simbiose construída entre obra e artífice”.63 Está presente na sua obra, tal como o Criador na sua criação. Diversas vezes, ao longo das Partidas, fala-se em Deus como o começo, meio e fim de todas as coisas, notadamente na frase que abre o prólogo geral: “Dios es comienzo, e medio, e acabamiento de todas las cosas, e sin el ninguna cosa puede ser: ca por el su poder son fechas, e por el su saber son gouernadas, e por la su bondad son mantenidas”.64 O casamento encontra-se no quarto livro, é a outra letra O, que representa o meio do corpo, o coração do Rei. Esse coração através do qual se transmite o saber do monarca, na forma de leis e justiça para governar os membros. Se através do coração o conhecimento é transmitido, logo ele é gerado na cabeça, nesse membro solar. Se o quarto livro é o coração, a cabeça está acima dele, nos dois primeiros livros (o terceiro trata do aparato de justiça do Rei – ou, melhor dizendo, da Alma do reino que, através do coração, no quarto livro, será conduzida aos membros - o quinto, sexto e sétimo livros). Pode se considerar que há duas cabeças: uma espiritual, e outra temporal. A primeira, no entanto, embora tenha o primado espiritual, por se ocupar do que está escondido nas sombras, é Lua. Cabe então à segunda, a temporal, ser Sol. O que subjetivamente fica expresso no quarto livro. Mas também o sacramento matrimonial, e o quarto livro, se assemelham ao Sol. Pois o matrimônio dá origem, dele sai a vida. O topo é assim também o centro, o meio original entre início e fim. Entende-se como a ordenação do casamento – Sol e coração – confere brilho ao Rei. Com poder para fazer, sabedoria para governar e – portanto – bondade para preservar. Da cabeça iluminada ao coração espiritual, a vida flui pros membros do corpo. No casamento está a alma do reino, e também a alma do Rei. Esse responde ao poder do Papa apenas no que ele tem de espiritual:
Ca el Señor al quien Dios tal honrra da, es Rey, e Emperador, e a el pertenesce, segund derecho, el otorgamiento que le fizieron las gentes antiguamente, de governar, e mantener el imperio en justicia. E por esso es llamado Emperador, que quiere tanto decir, como Mandador, porque al su mandamiento deuen obedescer todos los del Imperio, e el non es tenudo de obedescer a ninguno, fueras ende al Papa, en las cosas espirituales.65
Haveria de obedecer tão somente nas coisas espirituais, mas não nas temporais, pois essas seriam domínio de Imperadores e Reis. Agora, o coração matrimonial pelo qual se faz a justiça do Rei, morada da alma, funciona como um mecanismo de convencimento também da dimensão sacralizada do poder régio, tão bem estudada por autores como Marc Bloch, no seu célebre Os Reis Taumaturgos, ou José Manuel Nieto Soria nos seus estudos sobre a realeza castelhana. O poder temporal é, assim, também espiritual. O casamento, assunto caro à normativa canônica, é reivindicado pelo rei na sua prerrogativa legislativa. A IV Partida acata as regras canônicas sobre o assunto, reconhece-lhe autoridade nessa questão, tanto que copia literalmente a sua disposição.
O rei responde ao Papa nos assuntos espirituais. Mas a IV Partida vai além, de forma que, antes de qualquer coisa, afirma também a sacralidade régia, delimita o espaço legislativo monárquico e sua proeminência na ordenação da cristandade que está sob o seu poder.
As analogias da centralidade do casamento servem também para o próprio livro da IV Partida e sua centralidade no conjunto da obra, que conteria o essencial das regras e normas pelas quais se deveria reger e organizar as diferentes instâncias da vida dos homens. A quarta parte seria o centro de onde derivariam todas as outras regras e normas, de forma que da boa condução das uniões matrimoniais viria a boa condução dos homens, cada qual segundo o espaço de vivência, atuação e relações que lhes coubessem. Isso porque da boa condução da vida matrimonial viria a correta criação das descendências. Quando o rei, na sua função legislativa, ordenava corretamente a ordem matrimonial, ainda que indiretamente estava ordenando o bom funcionamento da ordem social e organizando com justiça a sua manutenção. Atuava, assim, plenamente na sua função governante e sacralizada. Desempenhava com louvor a tarefa que lhe fora outorgada por Deus como seu vigário direto.
Embora as maiores referências para a elaboração da IV Partida derivem do direito canônico, as disposições sobre a capacidade preservadora da hierarquia social, dada ao casamento, e, por extensão, ao rei que o ordena, foi ali significada de forma a defender os interesses monárquicos. O rei toma para si a prerrogativa de legalizar o casamento e, assim, a prerrogativa de organizar a sociedade e ditar suas leis, uma vez que a sua boa condução dependeria da correta observância das normas matrimoniais. Percebe-se a grande dimensão política do casamento. No século XIII, era um dos principais pontos de inflexão da atuação legislativa daqueles que aventavam para si a tarefa de governar a sociedade, fossem eles senhores espirituais ou temporais. Ao tomar para si a prerrogativa de regralizar o matrimônio, Afonso X o transforma num assunto central do seu fazer legislativo, a partir do qual embasa uma série de concepções sobre a função régia que serviam à sua legitimação frente a outras instâncias poderosas de sua época. Ao ditar as leis que compõem a obra, apresenta-se dando ordem ao mundo dos homens e atuando com justiça na sua manutenção. Age como vigário de Deus. A obra se orienta em direção à criação de uma imagem idealizada do rei, cabeça, coração e alma de um corpo social e político funcionalmente hierarquizado. As imagens construídas a respeito do casamento eram, antes de tudo, imagens régias. Natureza e naturalidade, Sol e coração... Ou seja, um poder superior e central, legítimo porque Deus, ao dar ordem ao mundo, assim o quisera, e lhe dera aquele lugar por nascimento. Por natura, por Criação. Pode-se questionar se por acaso tanta harmonia discursiva não seria resposta à desarmonia na vida social e política de então. Tanto no tocante aos eventos que marcaram o reinado de Afonso X, como também no tocante à própria organização social feudal.
A intenção principal é justamente esta: harmonizar, e a alegação de superioridade e de centralidade não supunha a idéia de poder único. Esse pertenceria a Deus, tão somente. E, mesmo assim, do alto de sua vontade e magnanimidade, o Criador colocara na terra os governantes humanos que, devendo-lhe serviço, comandavam o mundo com Ele e para Ele. A sua intenção não é suprimir os demais senhores. E, sim, a de não se colocar em inferioridade relativamente a nenhum deles, e delimitar claramente o espaço de atuação do seu domínio. No tocante às coisas espirituais (e o rei, sacralizado, também possui poderio espiritual) reconhece a grandeza da prerrogativa papal, reconhece-lhe a primazia no campo espiritual, mas não se subordina a ele. Antes, pretende que governem juntos pelo bem da cristandade.
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