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Encontros entre Paulo Freire e Amílcar Cabral: a Crítica Pós-colonial e Decolonial em Ato
The encounter of Paulo Freire and Amílcar Cabral: The postcolonial and decolonial criticism in act.
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 14, pp. 201-221, 2018
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 01 Agosto 2018

Aprovação: 15 Setembro 2018

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.417

Resumo: A contemporânea crítica pós-colonial converge com o atual “giro decolonial” latino-americano na revisão da narrativa da modernidade monolítica (eurocêntrica) de maneira a se propor o remapeamento dos “loci” de produção acadêmica no mundo. Busco demonstrar que a inspiração de um e outro movimento pode ser localizada numa excepcional rede intelectual que se potencializou com o exílio de estudiosos, professores e pesquisadores críticos que, nos anos 1960-70, fora m expulsos de seus países com a instalação das ditaduras militares. Elejo Paulo Freire em suas reflexões sobre educação e descolonização para visibilizar sua interlocução com o pensamento do “pedagogo revolucionário” Amílcar Cabral. Examino os aprendizados de Paulo Freire em Guiné-Bissau no empenho de colaborar na fundação de uma nova nação mediante a educação de um povo. A experiência revelaria ao educador brasileiro as contradições do colonialismo e a árdua tarefa de se “expurgar” do colonizado a sombra do colonizador.

Palavras-chave: Paulo Freire, Guiné-Bissau, Colonialismo, Descolonização.

Abstract: The contemporary post-colonial critique converges with the current Latin American “colonial spin” in the revision of the narrative of monolithic modernity (Eurocentric) In order to propose the remapping of the “loci” of academic production in the world. I seek to present that the inspiration of both movements can be found in an exceptional intellectual network that got enhanced with the exile of scholars, teachers and critical researchers who, in the 1960’s and 70’s, were purged from their countries with the placement of military dictatorships. I approach Paulo Freire in his reflections on education and decolonization to give visibility to his interlocution with the thought of the “revolutionary educator” Amílcar Cabral. I look upon the learning of Paulo Freire in Guinea Bissau in his effort to collaborate in the foundation of a nation through education of its people. The experience reveals to the Brazilian educator the contradictions of colonialism and the arduous task of “purging” the Colonizer’s shadow from the Colonized.

Keywords: Paulo Freire, Guiné-Bissau, Colonialism, Decolonization.

Apresentação

A crítica pós-colonial sabe que seu pós não significa a superação dos antigos colonialismos e dos traumas inscritos e reiterados nos neocolonialismos. Há na ideia de pós a pretensão, porém, de que tal elaboração crítica expresse um passo além no modo como víamos o mundo e que, agora, inclui o ponto de vista dos colonizados em luta por sua descolonização. Em sua aproximação com o pós-estruturalismo francês, a crítica pós-colonial descobriu, no jogo de palavras que o francês propicia, a noção de différance (“diferença”) de Jacques Derrida (1991), que recusa as bipatições e dicotomias entre um Eu e um Outro absolutamente opostos e as substitui por complexos emaranhados de diferenças e semelhanças que desalojam as identidades fixas e monolíticas. Desde então, proclama-se que não há uma única modernidade, se não múltiplas e entrelaçadas, hibridizadas e em permanente tensão, de modo que a configuração moderna que produziu a experiência do colonizador também produziu a do colonizado, assim como a riqueza de um pode ser explicada na miséria do outro, o privilégio do primeiro pela desumanização do segundo. Cultura/civilização e barbárie, em consonância com a assertiva de Walter Benjamin (1985), escrita em 1940, que não falava do colonialismo, porém do nazismo na Europa, se diluem numa única substância e nunca mais se separam.

O pós-colonial, marcadamente uma reflexão nascida na África e na Ásia na segunda metade do século XX, dialoga com o “giro decolonial”[1] latino-americano, que, por sua vez, se remete à “rica tradição cognoscitiva” no continente desde o século XIX, e mesmo antes. Um coletivo de intelectuais autodenominado Modernidade-Colonialidade-Decolonialidade reivindica tal passado e, mediante a produção do pensamento liminar[2], propõe o “reordenamento da geopolítica do conhecimento” a fim de que um mundo de histórias locais possa ser contemplado para redesenhar a história da modernidade, ou melhor, das modernidades. Não se trataria de uma “contracultura ‘bárbara’ perante o Primeiro Mundo”, mas da expressão de uma autodeterminação política, teórica e epistemológica dos loci ainda não inscritos dentre os produtores do conhecimento (MIGNOLO, 2003, p. 417-418).

Nomes e correntes como Waman Poma de Ayala, no século XVII[3]; José Carlos Mariátegui, Víctor Raúl Haya de la Torre, Caio Prado Jr., os dependentistas da década de sessenta, a teologia da libertação, a filosofia da libertação, a antropologia dialética de Darcy Ribeiro, o pensamento revolucionário de Florestan Fernandes, as tematizações do “colonialismo interno” por Pablo Gonzáles

Casanova, dentre tantos, compõem um acervo que se pode articular ao pós-colonial nascido na África e ao atual “decolonial” latino-americano.

Os trânsitos de ideias são materializados desde o deslocamento de corpos ao de instituições. As diásporas são verídicas assim como os exílios. É o caso de uma geração específica de intelectuais brasileiros que, após o Golpe Militar de 1964, se espraiou pela América Latina e pelo mundo, constituindo redes inéditas. Assim é que, inspirarados em Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres, aproximaram-se, também, dos ideais revolucionários das guerras de libertação na África, lendo, dentre outros, Frantz Fanon, Amílcar Cabral e Agostinho Neto, tendo sido tocados ainda por Malcom X e Eldridge Cleaver.

Elejo, neste artigo, Paulo Freire (1921-1997), a fim de explicitar a formulação de um pensamento educacional - referência, até hoje, em diversos países do mundo – que se construiu na descoberta e, sobretudo, no encontro das diferenças, nas experiências de desolação e de esperança, na mistura de influências ao sabor de um projeto ético-epistemológico-político.

Detenho-me, propositalmente, em seus aprendizados na África, quando lá se empenhou no esforço coletivo de fundação das novas nações, para elaborar a hipótese de que a pedagogia histórico-crítica de Paulo Freire, em sua intenção em “descolonizar mentes”, antecipa, jamais sozinha, o atual “giro decolonial” e o ponto de vista pós-colonial. Não se trata de dizer que se confundem, mas atestar que não há pensamento nascido no vácuo e o diálogo entre gerações e vertentes do pensamento pode potencializar a crítica ao se ampliar a “comunidade de fala”. Em Freire, estão contidos diversos outros intelectuais cujo pensamento é por ele revisitado de forma original. Também Freire está contido nas atualizações do pós-colonial e do decolonial. O processo de conhecimento requer a atenção aos confrontos e superações, não menos aos encontros que, tal como busco expor, ampliam e fortalecem a inteligibilidade do mundo e a intervenção humana nele.

1 Paulo Freire: um intelectual das margens

É curioso que se possa identificar no pensamento freiriano uma conjugação entre existencialismo cristão, fenomenologia e marxismo. Sua pedagogia tem como fontes de referência Emmanuel Mounier, filósofo da práxis, Gabriel Honoré Marcel e Karl Jaspers, este último de forte influência sobre Martin Heiddeger e Hannah Arendt. Há ainda o vínculo com a filosofia da educação de John Dewey, pragmatista. Combina, desse modo, uma “dialética de consciências” com o método fenomenológico existencial, de Marcel e Jaspers, de forma a perceber o diálogo como intimamente relacionado à práxis (o “aprender fazendo”), realizada no trabalho cooperativo, produtor e produzido da/pela linguagem. Como fenomenólogo, deduz, portanto, a “verdade” da relação entre sujeitos capazes de produzir uma “consciência do fenômeno”, na compreensão de seus sentidos/significados. A ontogênese da teoria freiriana apoia-se, assim, na formulação de que o mundo não é, o mundo está sendo (ZANELLA, 2010)

Freire tem sua condição intelectual forjada na efervescência intelectual dos anos 1920. Neste tempo, nomes destacados como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho empenham-se na formulação de um projeto de educação de caráter liberal, mas que, sob a bandeira escolanovista, também abarcavam a luta pela escola pública, gratuita, obrigatória e leiga no Brasil, em oposição à primazia do ensino clerical. Mas o recente conceito de “povo” como uma expressão política mais efetiva da “res”pública ainda precisaria amadurecer. Apenas nos anos 1950, entre períodos autoritários com “intervalos” democráticos, novas práticas e reflexões acerca da educação possibilitariam sua maior organicidade com as demandas de igualdade social (SAVIANI, 1984).

Numa peculiar “estrutura de sentimentos”, ou “estrutura prática de um tempo presente”, nos termos de Raymond Williams (2011), portanto, . que Paulo Freire pôde se engajar nas causas emancipatórias das classes populares. Tal é a ambiência que fez o pernambucano, nascido na cidade de Recife, o jovem bacharel em Direito deixar as leis e os tribunais para se dedicar à causa educacional concebida como projeto cultural revolucionário para o Brasil, capaz de produzir sujeitos (educandos e educadores num só tempo), protagonistas de sua existência.

Entre 1962 e 1963, Paulo Freire atuou em Angicos, no estado do Rio Grande do Norte, alfabetizando. Estimulava seus alunos e suas alunas à tomada de consciência de seu “lugar” no mundo, na observação de seu entorno, na valorização de seus saberes, convertendo cada um(a) deles(as) em pesquisador(a) do universo cultural (e vocabular) no qual estavam imersos. Seu método consistia nos grupos elencarem os termos do cotidiano que faziam real sentido em seu universo cognitivo, posto que os afetavam. Nasciam, assim, as palavras geradoras. O gesto de partir do que era valioso para o trabalhador e para a trabalhadora permitiu a Paulo Freire e seus colaboradores alfabetizar cerca de 300 homens e mulheres num prazo recorde de 45 dias.

Após esse feito, Paulo Freire teve sua proposta educacional conhecida na esfera federal e, por convite do Ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos, foi convocado para presidir a Comissão Nacional de Cultura Popular e coordenar o Plano Nacional de Educação do governo de João Goulart.

Numa interlocução com vários isebianos, nacionalistas anticolonialistas (ORTIZ, 1995), dentre eles, Álvaro Vieira Pinto - que reencontrou no exílio chileno -, Paulo Freire iniciou, também, suas leituras de Frantz Fanon e Albert Memmi, na busca da compreensão do árduo e doloroso processo de “exorcismo” do opressor internalizado no oprimido que implicava a superação da brutal ansiedade que, no “dominado”, gera seu próprio medo da liberdade. Freire tomava, então, para si os conceitos fundamentais de “alienação” e de “situação colonial”. Em seu Pedagogia do Oprimido (1987), publicado uma década depois, em 1974, Paulo Freire citaria nominalmente ambos os textos fundantes do assim chamado pós-colonial:

[…] li em Sartre (prefácio a Os condenados da terra, de Frantz Fanon) [...] uma das expressões da “conivência” dos oprimidos com os opressores. […] Tudo isso os estimulava [os camponeses espanhóis] como a mim me estimulara a leitura de Fanon e de Memmi, feita quando de minhas releituras dos originais da Pedagogia. Possivelmente, ao estabelecerem sua convivência com a Pedagogia do oprimido, em referência à prática educativa que vinham tendo, devem ter sentido a mesma emoção que me tomou ao me adentrar nos Condenados da terra e no The colonizer and the colonized. Essa sensação gostosa que nos assalta quando confirmamos a razão de ser da segurança em que nos achamos (FREIRE, 1992, p. 141)

O Plano Nacional de Alfabetização de Adultos, lançado em janeiro de 1964, é, contudo, interrompido bruscamente com a deposição de João Goulart pelo golpe militar dois meses depois. Paulo Freire é preso e, depois, obrigado a buscar a Bolívia como primeiro asilo. Na complexa semântica do exílio, segundo Gasparini (2011), tem-se uma temporalidade em que o presente é colocado entre parênteses, dando lugar a uma outra realidade em que predomina o futuro, tornado o “espaço utópico”. Quando o exílio deixa de ser uma realidade individual e passa a marcar uma geração, como no caso estudado, temos fronteiras deslocadas e o surgimento de entrelugares (SANTIAGO, 2006). Das “margens”, o intelectual periférico, como propõe

Piglia, lança ao mundo sua “mirada estrábica” (PIGLIA, 2001), que se distingue diametralmente daquela do intelectual metropolitano. Podemos também falar de uma “desestabilização epistemológica”, necessária à reflexão crítica, capaz “de romper os pactos hegemônicos do uniforme e do conforme” (RICHARD, 2002, p. 169).

Quando a Bolívia também o expurga, Paulo Freire segue para o Chile, onde viveu por cinco anos em tempos da euforia em torno do governo Allende. Convivendo com diversos outros intelectuais também atraídos pelo “clima” chileno, tais como Álvaro Vieira Pinto, Francisco Weffort, José Luiz Fiore, Marcela Gajardo, Jacques Chonchol, Jorge Mellado, Juan Carlos Sampaio, Raúl Velozo, Paulo de Tarso, Plínio Sampaio, Almino Affonso, Maria Edy, Flávio Toledo, Wilson Cantoni, Ernani Fiori, João Zacariotti, Antonio Romanelli, Paulo Freire avançou em suas reflexões. Atuando como assessor do Instituto de Desarollo Agropecuario, do Ministério da Educação, e como consultor da UNESCO, junto ao Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria do Chile, coordenou um plano de alfabetização que deu àquele país o “Prêmio UNESCO de combate ao analfabetismo”. Foi também em Santiago que publicou Educação como Prática da Liberdade, no ano de 1967, inaugurando uma ininterrupta escrita que o tornou rapidamente um dos mais lidos pensadores mundiais da educação do século XX.

Com o Golpe de Pinochet contra Allende, Freire foi para os Estados Unidos, convidado para lecionar na Universidade de Harvard. Foi quando recebeu a proposta de para ser consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra. Mudou-se para a Suiça, lecionou na Universidade de Genebra e fundou, junto a outros brasileiros exilados - Miguel Darcy de Oliveira, Rosiska Darcy de Oliveira, Claudius Ceccon-, o Instituto de Ação Cultural (Idac)[4], cuja missão era desenvolver pesquisas visando à conscientização, libertação e transformação social.

Em 1975, como membro do CMI e do Idac, Paulo Freire com sua equipe, a convite do Ministro da Educação, Mário Cabral, do novo governo de Luís Cabral, sucessor de Amílcar Cabral, “abraçou” o intento de elaborar e executar um programa nacional de alfabetização em Guiné-Bissau que pudesse concorrer para a construção da nova nação.

2 “Descolonizando mentes” em torno de um projeto de nação: Amílcar e Freire

Amílcar Cabral (1924-1973) nasceu em Guiné-Bissau, filho de pais cabo-verdianos, líder da luta colonial guineense e do Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), a primeira organização de libertação das colônias portuguesas, fundada em 1956. Freire e Amílcar não se conheceram pessoalmente, mas o enfático compromisso com a descolonização das mentes do segundo marcou indelevelmente o pensamento freiriano. Acompanhando, de longe, os processos de libertação em África, o intelectual brasileiro sustentava, tal como o líder revolucionário, a convicção da urgência do combate ao sistema colonial, à superação da ideologia colonial. No contato com Os Condenados da Terra, de Fanon, Freire, sem ser, em absoluto, um apologista da violência, até mesmo por sua prévia aposta na Educação aliada à sua formação cristã, aceitou a luta armada como último recurso para a reconquista da liberdade. Distinguia, assim, a violência dos opressores daquela dos oprimidos revolucionários. A primeira garantia o prosseguimento da violência (a exploração e a desumanização do Outro), a segunda visava estancar e suprimir definitivamente a prática da violência (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 53).

Era o trabalho pedagógico de Amílcar Cabral, contudo, que mais poder de atração exercia sobre Freire. Para ambos, o êxito de qualquer operação militar dependia fundalmentalmente da “descolonização das mentes”, isto é, da capacidade dos guineenses militantes, conscientes de sua história, assumirem por que e por quem lutavam. Novamente, em sintonia com Amílcar, Paulo Freire entendia a “necessidade da libertação cognitiva, da superação da racionalidade imbricada pela colonialidade” (ROMÃO; GADOTTI, 2012, p. 15), no que a escola tem um papel fundamental.

A admiração pelo pedagogo da revolução é registrada por Paulo Freire na dedicatória de seu livro Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (1978), publicado pela primeira vez em 1977. Amílcar Cabral concebia a reafricanização da vida como exigência de um processo pedagógico que se quer libertador. Freire aceitou o pressuposto da descolonização das mentes, antecipando, conforme aqui defendido, os reclames do “pós-colonial” e do “giro decolonial” contemporâneos como requisito na formação de uma nação independente. Tratava-se de superar a ideologia colonialista e racista que convencia homens e mulheres no território de uma suposta “inferioridade humana” perante os colonizadores europeus, os quais impunham a assimilação e a consequente deculturação como única “salvação” para os que eram por eles chamados preconceituosamente de “pretos de alma branca”.

O PAIGC, sob a liderança de Amílcar Cabral, formou jovens em nível médio e superior. Nos dez anos de guerra pela libertação, nas chamadas “zonas libertadas”, teve acesso à educação um número maior de pessoas nativas do que nos 500 anos de sistema colonial. A guerra de libertação havia tido início com a brutal repressão pela PIDE (Polícia Internacional para a Defesa do Estado) aos trabalhadores portuários nas docas do cais de Pidjiguiti, no ano de 1959, em greve organizada pelo PAIGC. O episódio marcou a decisão histórica pela mobilização das massas camponesas e pelo esforço das organizações políticas nos meios urbanos de onde se desencadeou uma “onda” de intensas ações, como greves e manifestações, ao preço, porém, de muitíssimas vidas. Abandonavam-se, portanto, os métodos pacíficos em favor da luta armada.

Os pequenos grupos de guerrilha nas regiões de floresta multiplicaram-se e se transformaram em unidades importantes porque impossíveis de serem localizadas pelas forças coloniais, movimentando-se muito rapidamente em longas distâncias. Em 23 de janeiro de 1963, explodiu, ao sul do território, o ataque ao quartel de Tite, acirrando-se a luta armada que não mais tinha qualquer contenção até 1967. Na análise de Paulo Freire:

O que me parece fundamental – e sem pretender idealizar a revolução guineense, pois que ela vem sendo feita por homens e mulheres e não por anjos – é que valores que se vieram encarnando na dureza da luta, em que o PAIGC se forjou como vanguarda revolucionária do povo, continuam de pé (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 57).

Cabe dizer que o estrategista maior, Amílcar Cabral, jamais desprezou os caminhos da diplomacia. Antes de 1963, buscou incessantemente o diálogo com as autoridades portuguesas e, ao longo da luta, o reconhecimento da nova nação no estatuto jurídico internacional. A intransigência daqueles que não cediam aos clamores revoltosos com a iminente perda de tudo que havia sido conquistado durante o colonialismo prolongou o tempo de guerra. Enquanto isso, o líder desdobrova-se em viagens visando a angariar os apoios militares, financeiros e humanitários que, juntamente à mobilização da população, garantiram, enfim, a conquista da independência[5].

Após a libertação de Guiné-Bissau, o regime fascista de Salazar seguiu numa irrefreável perseguição aos líderes revolucionários. Atribui-se à PIDE a responsabilidade pelo assassinato, no dia 20 de janeiro de 1973, de Amílcar Cabral, considerado internacionalmente “o mais brilhante líder da luta por independência nos países africanos colonizados por Portugal” (PEREIRA; VITTORIA, 2012, p. 298). Pouco se pode dizer, porém, desta conspiração, exceto que o líder do PAIGC foi morto em Conacri por elementos infiltrados ou insatisfeitos, até hoje não nominados, em seu próprio Partido.

Em sua primeira visita ao país independente, Paulo Freire tomou imediato conhecimento do projeto das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), que garantia a alfabetização dos guerrilheiros em todas as unidades militares de Guiné-Bissau. Pôde constatar que, nos anos de organização das massas insurgentes, a educação esteve à frente das prioridades de Amílcar Cabral, como mencionado antes. Observou, também, que a unidade da luta, mesmo após o assassinato do líder revolucionário, ainda se dava a partir de seu carisma, reconhecido por Freire no contato com o povo:

E esta compreensão, que é geral na Guiné-Bissau e Cabo Verde, é o resultado da autenticidade do testemunho do grande líder, da maneira como intensamente se experimentou na comunhão com seu povo, sem a qual não poderia ter feito o que fez nem ter sido o que foi e continua a estar sendo. Ninguém é ou continua a estar sendo sozinho. Muito antes de ter sido considerado como “Pai da Nacionalidade”, Cabral se fez “Filho do Povo”, com ele aprendendo e a ele ensinando, na prática revolucionária (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 51).

Quando da descolonização, pois, já se podiam contabilizar dez anos de experiências pedagógicas do PAIGC, a memória delas nas comunidades converteu-se na “matéria prima” para se seguir o projeto de educação nacional: “Numa perspectiva revolucionária, [...] impõe-se que os alfabetizandos percebam ou aprofundem a percepção de que o fundamental mesmo é fazer história e por ela serem feitos e refeitos e não ler estórias alienantes” (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 37). Paulo Freire, em consonância com o ethos revolucionário, propunha a educação como forma de conscientização ou politização visando à superação do colonialismo/colonialidade arraigado/a não somente no sistema social das colônias e ex-colônias, como, em grau máximo, nas subjetividades de sua gente. Por isso, é legítimo pensar que, embebido de Fanon, Freire comungava da crítica decolonial, anos depois, expressa pelo peruano Aníbal Quijano, ao expandir a percepção do quão o controle do colonizador interfere em todas as dimensões da vida do colonizado:

[...] o poder, nesta perspectiva, é uma malha de relações de exploração/dominação/conflito que se configuram entre as pessoas na disputa pelo controle do trabalho, da “natureza”, do sexo, da subjetividade e da autoridade. Portanto, o poder não se reduz às “relações de produção”, nem à “ordem e autoridade”, separadas ou juntas. E a classificação social refere-se aos lugares e aos papéis das gentes no controle do trabalho dos seus recursos (incluindo os da “natureza”) e seus produtos; do sexo e seus produtos; da subjetividade e dos seus produtos (antes de tudo o imaginário e o conhecimento); e da autoridade, dos recursos e dos seus produtos (QUIJANO, 2013, p. 46).

Presente no trabalho, no Estado e na produção do conhecimento, o colonizador “imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo” (QUIJANO, 2013, p. 135). A colonialidade do ser, nos termos do movimento intelectual Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, verifica-se, tal como em Memmi, na consciência colonizada (2007), incapaz da autonomia do pensamento, logo, da resistência. O sequestro das consciências mantém, assim, a hegemonia colonial.

A colonialidade do ser poderá vir a ser uma forma possível de teorizar as raízes essenciais das patologias do poder imperial e da persistência da colonialidade. Ela permitirá estabelecer relações entre Ser, espaço e história, que se encontram ausentes das explicações heideggerianas e que também se perderão se se associar o Ser ao Império (MALDONADO-TORRES, 2013, p. 44).

Resgatar sua subjetividade implica para homens e mulheres colonizados tomar consciência da usurpação e querê-la de volta. O propósito da decolonialidade (descolonialidade) do poder, do saber e do ser, bandeiras do giro decolonial latino-americano, já estava contido, como se percebe, na pedagogia freiriana sob a inspiração de Memmi e Fanon.

Não é, por isso, um episódio fortuito que a crítica decolonial Catherine Walsh (2013) reconheça, no método freiraino de alfabetização de adultos, uma pedagogia decolonial que se desenvolve a partir das categorias de humanização e de libertação e da maneira como estas se articulam em suas dimensões objetivas e subjetivas.

O intento da descolonização das mentes requer, portanto, a revolução permanente, ponto nevrálgico para Amílcar Cabral e que conduzia, também, a práxis de Paulo Freire na direção da reafricanização das mentalidades. Não havia dúvidas, para Freire, de que a autoconfiança de um povo se ligava, profundamente, à valorização de sua própria cultura e história e exigia o confronto com o modelo colonial de escola:

A educação colonial herdada, de que um dos principais objetivos era a “desafricanização” dos nacionais, discriminadora, mediocremente verbalista, em nada poderia concorrer no sentido da reconstrução nacional, pois para isto não fora constituída. A escola colonial, a primária, a liceal, a técnica, esta separada da anterior, antidemocrática nos seus objetivos, no seu conteúdo, nos seus métodos, divorciada da realidade do país, era, por isso mesmo, uma escola de poucos, para poucos e contra as grandes maiorias (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 24).

Tratava-se de caminhar na contramão do sistema educativo herdado do colonialismo, que levou não somente à formação de uma muito reduzida elite, como à formação de uma mentalidade individualista, indiferente socialmente e, ainda, do ponto de vista técnico e profissional, despreparada (MESQUIDA; PEROZA; AKARI, 2014).

Daí o descaso que essa escola [colonialista] necessariamente teria de ter por tudo o que dissesse de perto aos nacionais, chamados de “nativos”. Mais do que descaso, a negação de tudo o que fosse representação mais autêntica da forma de ser dos nacionais: sua história, sua cultura, sua língua. A história dos colonizados “começava” com a chegada dos colonizadores, com sua presença “civilizatória”; a cultura dos colonizados, expressão de sua forma bárbara de compreender o mundo. Cultura, só a dos colonizadores. A música dos colonizados, seu ritmo, sua dança, seus bailes, a ligeireza de movimentos de seu corpo, sua criatividade em geral, nada disto tinha valor. Tudo isto, quase sempre, tinha de ser reprimido e, em seu lugar posto o gosto da Metrópole, no fundo, o gosto das classes dominantes metropolitanas (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 25 – os colchetes são meus).

A pedagogia pós-colonial de Paulo Freire refutava a colonização cognitiva, promovendo as vozes e os saberes emudecidos ao longo do colonialismo. Educador e educando passavam a se reconhecer, ambos, como aprendizes numa relação dialógica em que saberes diversos se encontram. Tal princípio converge com o mais caro na crítica decolonial ao eurocentrismo que, conforme destacou Walter Mignolo (2003), criou arbitrariamente a bipartição entre centros produtores e receptores de conhecimento, sujeitos e objetos do conhecimento. Combatendo a reificação do Outro desde a experiência da alfabetização, Freire preconizava o empenho ainda necessário hoje de desconstrução dos estereótipos que “objetificam” populações inteiras.

Paulo Freire e sua equipe acompanharam o Ministro Mário Cabral em seu intento de fazer desdobrar as mudanças revolucionárias nos planos material e subjetivo. A primeira campanha de alfabetização, planejada em 1975 e iniciada em 1976, com mais de 200 alfabetizadores, organizou os chamados círculos culturais nas áreas rurais, vilarejos e na capital. Se Guiné-Bissau trazia, dos tempos das guerrilhas, o investimento na educação de seus militantes, agora, tratava-se de expandir a educação para todos(as), em prol da reorganização política de uma sociedade recém liberta do jugo colonial.

3 A língua portuguesa e a reafricanização: paradoxos

Paulo Freire divergiu de Amílcar, pela primeira vez, em nome de Fanon, quanto à importância da linguagem de um povo. Para o educador brasileiro, mais do que deter uma função instrumental, a “língua da alfabetização” confundia-se com a constituição mesma da identidade daquele que se alfabetiza: “um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito” (FANON, 2008, p. 34). Amílcar Cabral defendia, porém, desde o tempo da revolução, o português como a língua da unidade nacional:

[...] o português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros: é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo (CABRAL, 1974, p. 60-61).

Paulo Freire, na prática da alfabetização, constatou, contudo, o paradoxo de se reafricanizar o povo utilizando a língua que os havia desafricanizado. Desde a Pedagogia do Oprimido (1987), o educador vinculava a libertação à capacidade de se enunciar a própria palavra, na sua língua, pois, aquela que se conhece/sente/expressa. Na experiência em Guiné-Bissau, o tema mostrou-se excepcionalmente espinhoso. Paulo Freire, que jamais se pretendeu o autor da campanha de alfabetização em Guiné, mas alguém que vinha “assessorar”, ajudar, no processo protagonizado pelos guineenses, sabia dos desafios a ser enfrentados.

Durante a guerra de libertação conduzida por Amílcar Cabral, é verdadeiro que a alfabetização em português dos militantes serviu eficazmente ao imperativo da mais ágil comunicação. Após a morte do líder, o governo não ousou outro caminho, de modo que não se optou pelo “crioulo” (língua exclusivamente oral), ainda que falado por 45% dos guineenses. Também, o governo não poderia escolher uma entre as mais de 30 línguas das diversas etnias em Guiné. O fato era que as escolas-piloto de Amílcar Cabral alfabetizavam, desde os inícios de 1960, em português no consenso de que não se queria, tal como anunciado anteriormente, isolar a nação no plano internacional. Talvez, seja prudente assinalar que até mesmo os líderes, em que pese seu intento de descolonizar mentes, haviam sido eles próprios colonizados no idioma português que seguia como a língua oficial do país:

[...] Por que nós, a alfabetização, estávamos a fazê-la em português. Além de ser uma língua desconhecida pela grande maioria da população, as pessoas não entendiam muito bem a razão. Lembro-me de que, uma vez, me disseram: “Mas, afinal, os colonialistas estiveram cá quinhentos anos e não nos fizeram aprender a língua deles. Como é que agora o PAIGC, que lutou contra o colonialismo, vai-nos ensinar o português?!” Eu disse: “Olha, é tão simples como isso: eu sou agrônomo. Estamos a tentar melhorar a nossa agricultura. Nós temos que recorrer a instrumentos, sementes melhoradas, adubos etc., mas também vamos recorrer a tratores. Não fomos nós que inventamos o trator. Nós vamos utilizá-lo para abrir os caminhos do desenvolvimento. Ora, a alfabetização é isso mesmo. As nossas línguas são muitas, uma trintena, e não temos a capacidade de fazer a alfabetização em todas as línguas. Vamos utilizar o português (CABRAL apud FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 214)

Paulo Freire e sua equipe podiam discordar da opção, mas o país não era deles. Não lhes cabia a decisão. Freire aprendia com os dilemas enfrentados e antecipava, na prática, os desafios pós-coloniais.

Nos círculos de cultura tornou-se evidente que os progressos em português [...] como língua do programa de alfabetização era extremamente lento. Essa lentidão deixava claro que o português era completamente alheio às práticas sociais diárias do vilarejo. Os vilarejos não conheciam o português, mesmo na sua forma oral. Os grupos étnicos falam sua língua nativa africana e muitas pessoas, mas não todas, falam crioulo [...]. Para os camponeses, por outro lado, é meramente uma língua estrangeira que não conhecem. Uma forma de código linguístico que é impossível decifrar, e que seria inútil aprender, não tendo aplicação no contexto de suas vidas.

Mas um fenômeno que nos animou ocorreu nos círculos de cultura de Sedengal. Apesar das dificuldades que emergiram na aprendizagem em português, vários participantes gradualmente conseguiram entender e registrar o processo de dividir as palavras em sílabas e de reconstruí-las e aplicaram esta técnica em crioulo. Espontaneamente e inesperadamente, alguns grupos construíram breves histórias em crioulo [...] e escreveram frases na linguagem étnica deles (FREIRE, 1978, p. 41-2. Os colchetes são meus)

Em verdade, a questão nacional posta em xeque pela crítica pós-colonial a desnuda, revelando que a narrativa nacional não podia encontrar validação na realidade na medida em que se dava num “tempo homogêneo vazio” (CHATERJEE, 2004, p. 71), logo, irreal. Se, no exame da formação dos Estados nacionais na Europa, a nação como metarelato fazia sentido, na medida em que a história remetia à ideia de contrato social, criação iluminista, que suporia um acordo entre os cidadãos - também, havia, como para Herder (1995), aquelas nações nascidas sob a inspiração do Volksgeist-, nas ex-colônias, os conflitos eram de outra ordem.

A ideia-força de solidariedade nacional entendia a substituição, dada a extensão do território, das interações face a face pelo desenvolvimento de uma imaginação que irmanaria aqueles e aquelas que sequer se conhecem, nas palavras de Benedict Anderson (1998), por uma comunidade imaginada. Nas ex-colônias, por sua vez, esta teoria era posta em xeque diante do dilema do que poderia unir, como compatriotas, grupos de existências material e subjetiva, reconhecimentos e status tão díspares, como negros, negros “assimilados”, brancos, os membros de múltiplas e, às vezes, antagônicas tribos, a população rural e os citadinos, os muçulmanos, os cristãos e aqueles de inúmeras outras religiões.

Os territórios forjados em países, ora independentes, nasciam, na África, da violência do colonialismo, das lutas sangrentas e dos massacres que expulsaram os colonos e seus herdeiros apenas na segunda metade do século XX. Nos longos anos de guerrilhas, a população nativa se dividiu nas estratégias de enfrentamento e foram criadas hierarquias e não menos oposições entre os revolucionários. Após a independência, as negociações em torno de um projeto nacional se viram interrogadas pelos sentidos em disputa de questões como a modernidade, a modernização, o progresso e o desenvolvimento. Tais ideias-força estiveram, até então, a serviço do colonialismo e traziam as memórias dos etnocídios e da deculturação. Também, implicavam o consenso acerca do “novo homem”, que seja este angolano, moçambicano, guineense. Quaisquer tentativas de se “essencializar” a nação esbarravam com as tensões e hibridismos de um mundo “pós-moderno”, a saber, em que todas as identidades fixas haviam sido desalojadas. O projeto nacional parecia, assim, anunciar uma espécie de violência que negligenciava as temporalidades heterogêneas e conflituosas nascidas dos contatos em diferentes níveis e dimensões entre a diversidade das tradições locais e o “mundo”, quer o bloco socialista, quer o capitalismo transnacional tornado hegemônico.

Mais uma vez, Paulo Freire vivencia a questão pós-colonial somente alguns anos depois sitematizada e nominada: a proliferação de modernidades alternativas que não se submetiam a uma narrativa monolítica da modernidade. Os híbridos pós-coloniais, África e Guiné-Bissau, serviram a Freire de “professores” no desterro dotando-lhe, nos termos de Theodor Adorno, em Mínima Moralia (2008), de uma “perspectiva alterada”. Conforme Paz, “[...] só o desenraizamento permitiu-nos recobrar nossa porção de realidade. A distância foi a condição da descoberta” (1976, p. 129).

Freire descobriu, na África, que a alfabetização requeria a negociação entre as temporalidades multidimensionais ou modernidades entrelaçadas, nos termos pós-coloniais. Nessa perspectiva, requeria a quebra de qualquer suposto universalista (ainda que este fosse uma língua nacional) mediante esforços de tradução. Seu método, radicalmente afetivo, requeria a identificação de alfabetizadores e alfabetizandos com o “mundo cultural” contido em cada vocábulo a ser conhecido.

Na tradução, os significados somente se delineiam provisória e temporariamente, performaticamente, na medida em que respondem às interpelações históricas e socioculturais (ARROJO, 1995). Alfabetizar sem “colonizar mentes” em Guiné-Bissau implicava o engajamento com a reafricanização da África. O problema enfrentado na campanha de alfabetização nacional não deve ser identificado no método freiriano que seguia a diretriz da construção escrita da “palavra desalienadora”. O nó górdio encontrado era precisamente o desafio das epistemologias pós-coloniais (e decoloniais) em torno das quais alguns intelectuais contemporâneos produzem suas reflexões. Mas, dificilmente, tais reflexões se dariam da forma como se dão se não pelo acúmulo de conhecimento gerado nas redes que enlaçaram os intelectuais diaspóricos e periféricos no mundo, dentre eles Paulo Freire, Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Albert Memmi.

Considerações Finais

Stuart Hall, no capítulo “Quando foi o ‘pós-colonial’?”, de Da Diáspora (2009), sabe que o pós-colonial diz respeito a uma longa transição que se inicia com o colonialismo, logo, com as lutas anticoloniais. Os conflitos entre colonizadores e colonizados produzem algo como um terceiro espaço (MIGNOLO, 2003; BHABHA, 2007), de maneira que a experiência colonial inaugura novos mundos, quer nos territórios que sofreram as invasões quer nos locais de onde partiram os invasores, impondo, como se tentou demonstrar ao longo do artigo, as temporalidades distintas, todas elas presentes e concretas, reunidas arbitrariamente no metarelato da modernidade hegemônica. Nada há, contudo, de fixo nesses novos mundos. O pós-colonial enxergaria, enfim, no lugar da modernidade monolítica, uma pluralidade de possibilidades de existência sobredeterminadas, suturadas, suplementares, contraditórias.

A questão pós-colonial invalidou as dicotomias que, na racionalidade cartesiana, organizaram a vida (alma/corpo; razão/emoção; homem/mulher; civilização/barbárie; Eu/Outro). Coube aos produtores de conhecimento a partir das colônias ou da periferia desafiar com argumentos concretos e mais potentes o que os pós-modernos europeus haviam anunciado sob a influência do pós-estruturalismo derridiano: as diferenças não são absolutas nem estáticas, mas se realizam processual e relacionalmente, sobretudo, na invenção da linguagem, que, por sua vez, inscreve-se no mundo real. Eis que os colonizados digeriram antrofagicamente o “espólio” do colonizador (também, sua língua), ao mesmo tempo em que os colonizados foram coautores da história dos colonizadores, a começar por suas riquezas e muitos “inventos”, trazidos mediante a violência da usurpação.

O pós-colonial nasce, assim, do entrelaçamento tenso das histórias e das culturas e propõe o entre-lugar (SANTIAGO, 2006; BHABHA, 2007), que é processo, movimento, acontecimento. Cada pessoa é tornada, no entre-lugar, um “tradutor”. Homi Bhabha (2007) sugere a mímeses, ironia e paródia como ato de tradução/transgressão. Portanto, se a alfabetização pós-colonial é aquela a produzir tradutores descolonizados e competentes, falamos, também, da produção da “rebeldia” e da desobediência epistêmica. Efetivamente, nenhuma língua corre o risco de ser assimilada completa e acriticamente porque ela não existe em “substância”, mas é relação e movimento, deslocamentos e trânsitos, entrelugares, viva que está.

Paulo Freire, o alfabetizador da palavra-vida, da letra-luta, da leitura que ressignifica o mundo, pôde ser, em nossa argumentação, antes do nome existir, um pensador decolonial (descolonizador). Talvez, revisitá-lo à luz das questões contemporâneas ajude-nos a facilitar a “tradução” e criar “pontes” entre interpretações do mundo. Em tempos de comunicação violenta (ou não-comunicação), parece relevante refazer caminhos que levaram o pensamento, noutras “estruturas de sentimentos”, a se refazer cotidiana e teimosamente, avistando chances de reconhecimento e de inclusão das diferenças num “universal” de novo tipo, ampliado, diverso, quiçá, como pensou Edward Said (2007), de um humanismo crítico e ético.

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Notas

[1] Uso indistintamente “giro decolonial” e “giro de.colonial” (com “s”), em que pesem alguns pesquisadores como Catherine Walsh operar com a distinção entre ambos os conceitos. O giro “descolonial”, para ela, refere-se, sobretudo, às lutas independentistas que marcaram, no século XIX, as nações latino-americanas. Enquanto o “giro decolonial” fala não de uma superação in toten, datada historicamente, mas de movimentos ininterruptos de resistência que se passam, também, nas dimensões subjetivas. Cf. Walsh, 2013.
[2] O pensamento liminar é a “enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia territorial e hegemônica” (MIGNOLO, 2003, p. 11). Abarca assim tudo que não foi narrado quando se inventaram o ocidentalismo e o orientalismo, estereótipos que serviram à redução, logo, ao falseamento do Outro. Nesse sentido, destaca, também, as críticas aos Estudos de Área, que manipularam povos, territórios e conhecimentos, ao capturá-los tão somente sob as lentes do 1º. Mundo, que inventou, vale lembrar, o terceiro-mundismo, ao mesmo tempo em que o descaracterizava.
[3] Nas lutas de contestação colonial e na independência do Haiti, mais especialmente, Felipe Guama Poma de Ayala escreveu, em 1615, Nueva crónica y buen gobierno. A obra, alentada, analisa o desastre da colonização espanhola sobre o Império Inca, ao mesmo tempo em que discorre sobre um possível bom governo espanhol a partir da cosmologia incaica. O “giro decolonial” contemporâneo aponta tal estudo como comparável aos textos de Hobbes, Locke e Rousseau que também se voltam às formas de governo desejáveis numa sociedade, exceto que negligenciado numa pré-definida “geopolítica do conhecimento”. Vale conferir Guaman Poma de Ayala, 1980.
[4] Freire foi eleito imediatamente presidente do Idac. Nos anos seguintes, o Instituto alcançou inédito nível de popularidade, com os pedidos de colaboração incessantes para realizar seminários e oficinas por todo o mundo. Preocupado com o fato de o instituto quase se tornar um “guru” de uma comunidade intelectual, o que contrariaria seus princípios pautados na vivência, Paulo Freire chegou até mesmo a parar de usar o termo “conscientização” (GERHARDT, 1996, p. 163).
[5] Marcos importantes foram a audiência com o Papa Paulo VI, em 1970, e, em 1972, sua intervenção no Conselho de Segurança reunido em Adis-Abeda, quando este apela à ONU para enviar uma missão de visita às regiões libertadas, o que se deu entre 2 e 8 de abril de 1972, contribuindo firmemente para o reconhecimento internacional do PAIGC como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde (Cf. LOPES, 1983).


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