Resumo: Este trabalho é um relato etnográfico sobre esse espaço que se autonomeia como Carreiras Típicas de Estado. O foco reside nas estratégias utilizadas por essas carreiras para construir a sua própria identidade, atribuindo sentidos específicos a ela. Também são exploradas algumas táticas empregadas por essas carreiras para lutar por causas que elas consideram legítimas. Ao final, mostra-se como os dados etnográficos revelam práticas que talvez possam ser interpretadas como maneiras pelas quais servidores públicos fazem Estado a partir da sua condição de sujeitos valorativos.
Palavras-chave:BurocraciaBurocracia,EstadoEstado,ElitesElites.
Abstract: This work is an ethnographic account on this space which calls itself as Typical Careers of State. I focus on the strategies used by those careers to build their own identity, attaching specific meanings to it. I also explore some tactics used by those careers to fight for causes considered as legitimate by them. In the end, I show how the ethnographic data reveal practices that might be interpreted as ways by which public workers make State from their condition as evaluative subjects.
Keywords: Bureaucracy, State, Elites.
Artigos
Servidores públicos como sujeitos valorativos: notas etnográficas sobre Carreiras Típicas de Estado
Public workers as evaluative subjects: Ethnographic notes on typical careers of State

Recepção: 02 Agosto 2018
Aprovação: 28 Outubro 2018
Atualmente, no Brasil, cerca de 180 mil gestores, planejadores, auditores, delegados, procuradores, defensores, diplomatas, fiscais, reguladores, entre outros, podem se considerar como membros de um agrupamento muito particular de carreiras públicas, denominado como Carreiras Típicas de Estado.
Essas carreiras percebem remunerações consideravelmente superiores aos ganhos do restante do funcionalismo público. Muitas delas possuem elevadas taxas de ocupação de cargos de confiança. E a maioria se mostra relativamente fechada a grupos historicamente excluídos, como as mulheres e os negros, sendo majoritariamente compostas, portanto, por homens brancos[2].
Como se desenrolam as práticas cotidianas dessas carreiras? Que valores elas buscam legitimar? Que noções de justiça elas valorizam? Que modelo ideal de Estado elas defendem? Que tipo de moral elas procuram construir? Que sentidos elas procuram atribuir à política? Que relações elas buscam estabelecer com o povo brasileiro?
O objetivo geral deste trabalho é contribuir para essa linha de questionamentos. Buscarei fazer isso a partir de um relato etnográfico sobre esse espaço que se autonomeia como Carreiras Típicas de Estado. Focarei aqui em como essas carreiras constroem a sua própria identidade e atribuem sentidos específicos a ela. Também buscarei explorar algumas táticas empregadas por elas para lutar por causas que consideram legítimas.
Na seção seguinte, procurarei apresentar os principais pontos que caracterizam as condições de execução desta pesquisa. Em seguida, farei o relato etnográfico, organizado em quatro seções. Por fim, concluirei o trabalho refletindo brevemente sobre como os dados apresentados revelam práticas que podem ser interpretadas como maneiras pelas quais servidores púbicos fazem Estado a partir da sua condição de sujeitos valorativos.
Caracterizo esse trabalho como sendo etnográfico porque procurei adotar aqui certos princípios que o afastam relativamente do modo de produção de conhecimento mainstream praticado nas ciências sociais em geral. Essa é uma discussão que tangencia disputas de poder no interior do campo científico, envolvendo questões sobre quem pode, de que forma e em que condições, produzir ciência. Apesar de ser difícil definir o que faz um trabalho ser etnográfico, buscarei aqui explicar brevemente os princípios que tentei seguir.
Um primeiro cuidado seria evitar o que Dorothy Smith (2005) chama de “ponto arquimediano”, um lugar imaginário de onde seria possível observar o mundo social de forma neutra, objetiva, imparcial. A autora argumenta que a ciência social mainstream leva o pesquisador a omitir, ignorar a sua própria existência, transportando-se para este ponto. No entanto, essa pretensão de objetividade se materializaria, para ela, mais como uma estilística discursiva do que como uma característica epistemológica propriamente dita, uma estilística a partir da qual o cientista social desapareceria ao fazer ciência.
Optei, assim, por distanciar-me da ideia de distanciamento, entendida, conforme Rabelo (2004), como um instrumento de combate aos equivalentes atuais dos ídolos antes preconizados por Francis Bacon, um posicionamento que cultiva certa proximidade à noção de objetividade das ciências naturais. Castilho, Lima e Teixeira (2014) consideram que recursos como o distanciamento foram desenvolvidos em outros tempos, em contextos etnográficos quase sempre coloniais, que eram bastante diferentes dos estudados atualmente, de modo que, hoje, pouco ajudariam na pesquisa etnográfica.
A partir da negação explícita do “ponto arquimediano”, é possível refletir sobre obstáculos que provavelmente enfrentarei, inclusive enquanto integrante de uma das carreiras que se considera como Carreira Típica de Estado,em relação a questões já adiantadas por Elizabeth Sheehan (1993), como a dificuldade de estudar comunidades que já antecipam más interpretações sobre elas mesmas, ou o risco de conflito pela possibilidade de alguns pesquisados acreditarem que o estudo vai contra a causa deles, seja lá qual for essa causa. Para quem escrevo? Como isso vai ser lido? Quem pode não gostar? Alguém pode ser prejudicado? É evidente que essas inquietudes provocam um grau não desprezível de autocensura.
Uma outra questão é a natureza do conhecimento produzido pelas ciências sociais. Talal Asad (1979) criticou o fato de haver nessas ciências a tendência de pensar que o pesquisador é capaz de descrever uma realidade sem mediações simbólicas. Para ele, a descoberta de significados seria em si uma produção discursiva, e não uma operação de objetivação de um universo simbólico. E é preciso estar atento aos efeitos da produção discursiva realizada pelas próprias ciências sociais.
Um desses efeitos seria o status universalizante que as teorias podem alcançar ao longo do tempo. Pierre Bourdieu (1996) já alertava que, sob a aparência de pensar o Estado, a maior parte dos estudos consagrados a esse objeto participa de sua construção e, portanto, de sua própria existência. Smith (2005) critica a tendência das ciências sociais de tentar simular as ciências naturais, em uma relação de dominação, e defende que as etnografias não se submetam a priori a categorias e conceitos preestabelecidos. Weeden (2010) também atenta para as repercussões de poder das disciplinas, sugerindo que os etnógrafos evitem construir modelos ou testar hipóteses.
Teixeira e Lobo (2018) defendem inversões hierárquicas entre conhecimentos locais/ingênuos e universais/científicos, o que significa levar o ponto de vista “nativo”[3] a sério, não o submetendo de partida a verdades universalizantes pré-construídas. Não se trata de abrir mão do conhecimento teórico e prático do etnógrafo, mas sim de não posicionar esse conhecimento prévio como organizador ou estruturador do conhecimento nativo.
Tentei, na medida do possível, seguir essa orientação, empregando mais esforços em construir um sistema de relevâncias a partir do ponto de vista nativo e menos em ajustar esse ponto de vista a preconcepções teóricas. Organizei e nomeei as seções deste trabalho a partir de termos nativos encontrados no próprio material de pesquisa e procurei, na conclusão, costurar relações teóricas sem subordinar o ponto de vista nativo às teorias.
Um outro efeito da produção discursiva das ciências sociais diz respeito às possibilidades de apropriação do conhecimento gerado. Susan Wright (1994) chamou atenção para isso quando advertiu que, sob certas condições, etnografias podem ajudar a sustentar relações de poder, oferecendo aos dominantes um conhecimento valioso sobre os dominados. A autora defende que se estudem também as práticas das elites para tentar explicar como funciona a cultura do poder.
Laura Nader (1972) já falava na urgência de se estudar o poder para entender aqueles que controlam instituições e moldam atitudes. A autora justifica seu argumento tanto pela pertinência científica quanto pela relevância democrática, questionando o porquê de se estudar os colonizados e não os colonizadores, ou o porquê de se focar nos crimes dos vulneráveis e não nos crimes de colarinho branco, por exemplo.
O presente trabalho é um estudo sobre elites. Elites não só porque vou tratar do funcionalismo público[4], mas também porque vou tratar da elite do funcionalismo público. Max Weber já argumentava que para entender as religiões é preciso estudar os produtores das mensagens religiosas, os sacerdotes, algo semelhante ao que pensava Friedrich Engels, para quem seria preciso interessar-se pelos juristas para entender o Direito (BOURDIEU, 1996). Nesta mesma linha, sugiro que, para compreender a ideia de Estado, é preciso estudar os produtores das mensagens estatais.
Teixeira e Lobo (2018) observam ainda que em trabalhos etnográficos é comum que haja redirecionamentos de pesquisa conforme aquilo que vai se apreendendo dos sujeitos pesquisados. Frente aos projetos de pesquisa mainstream, com passos de pesquisas muito bem detalhados já com antecedência, essa lógica pode parecer falta de planejamento ou desorganização, mas ela é simplesmente uma consequência do princípio de levar o ponto de vista do nativo a sério. Em certa medida, esses redirecionamentos já aconteceram na minha pesquisa em dois momentos, e é importante relatar esse processo para explicar como eu cheguei nesse recorte atual.
O atual trabalho corresponde aos resultados do que se pode chamar de segunda fase de uma pesquisa mais ampla. Na fase anterior, relatada em Ventura (2018), os esforços de pesquisa não estavam organizados a partir da categoria Carreiras Típicas de Estado. Ali, eu apenas organizei dados quantitativos sobre dezenas de carreiras do Poder Executivo Federal, mostrando que carreiras ligadas a certos papéis e saberes (como economia, gestão, finanças e controle) percebem remunerações mais generosas, ocupam mais cargos de confiança e são compostas em sua maioria por homens brancos, ao contrário de carreiras ligadas a outras áreas (como saúde, educação e assistência social), menos valorizadas e mais acessíveis para grupos historicamente excluídos, como as mulheres e os negros.
A partir desses achados, passei a pensar em estratégias para investigar os processos que produzem a elitização de certas carreiras. Comecei então a pesquisar na internet os sítios das associações das carreiras mais valorizadas, já pensando em coletar material. Eis que em um desses sítios eu me deparo com um link[5] para uma organização da qual eu já até tinha conhecimento da existência, mas que até aquele momento não havia surgido na minha mente enquanto objeto de pesquisa: o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). Cliquei imediatamente no link e observei que as carreiras que a fase anterior da pesquisa havia apontado como valorizadas e restritas estavam ali listadas como afiliadas ao Fonacate, além de muitas outras fora do Executivo, um bônus importante nessa nova fase da pesquisa.
O Fonacate é uma associação de associações. Atualmente ele conta com 27 associações afiliadas que juntas representam cerca de 180 mil gestores, planejadores, auditores, delegados, procuradores, defensores, diplomatas, fiscais, reguladores, entre outros. O caráter elitizado e pouco diverso da entidade pode ser verificado já no seu conselho executivo, composto por presidentes das associações afiliadas, que cumprem mandato de três anos. A chapa que venceu as eleições para o período entre 2016 e 2018 é composta integralmente por homens. A galeria de ex-presidentes do Fonacate também só lista homens, brancos em sua maioria.
Decidi naquele momento que o meu recorte passaria a ser as Carreiras Típicas de Estado, o que corresponde ao primeiro redirecionamento que vivenciei na pesquisa. Passei então a investigar o sítio do Fonacate em busca de material. Fiz isso sem uma pergunta específica como guia. Inspirei-me mais pela noção de problematizar o cotidiano (SMITH, 2005) dessas carreiras e pela máxima de que “nunca há nada acontecendo” (WEEDEN, 2010).
Encontrei muita coisa útil. Examinei dezenas de documentos, a partir dos quais selecionei alguns artefatos a serem empregados mais à frente para caracterizar o discurso geral das Carreiras Típicas de Estado sobre elas mesmas, o que eu considero como a dimensão macro deste trabalho.
Em um segundo momento, inspirei-me pela noção de etnografia multissituada de Marcus (1999) e voltei a visitar sítios de carreiras afiliadas ao Fonacate para tentar entender como circulam na dimensão micro os sentidos e identidades que eu encontrei no discurso macro, e esse foi o segundo redirecionamento. Acabei coletando uma quantidade significativa de material também nos sítios das associações de carreira, tendo selecionado alguns destes artefatos para compor o presente relato etnográfico.
O material utilizado aqui é, portanto, todo documental. Esse é um ponto importante a ser enfatizado. É muito comum que se espere de uma etnografia a predominância da técnica da observação participante. Laura Nader (1972) já enxergava certa mística em relação à observação participante, alertando que este método pode não ser adequado a certos tipos de etnografia, e sugerindo como alternativa uma abordagem mais eclética, que pode incluir aplicação de entrevistas e análise documental, por exemplo. James Fergunson (2011) também defende a importância de outros métodos que não a observação participante em trabalhos etnográficos.
Etnografia não precisa ser encarada como sinônimo de observação participante, portanto. Etnografia é um modo de produção de conhecimento (TEIXEIRA; LOBO, 2018) que pode ou não empregar o método da observação participante. Kathryn Tomlinson (2011) reforça esse ponto ao defender que há projetos etnográficos em que a observação participante não seria central ou sequer presente.
Como é comum em análises etnográficas baseadas em documentos[6], e em consonância ao que já foi discutido nesta seção, não adotei uma sistematização analítica a priori, nem em relação à seleção de documentos, nem em relação à seleção de conteúdos em documentos. O fazer etnográfico se deu com base nos princípios já mencionados, especialmente na noção de problematizar o cotidiano (SMITH, 2005) e na máxima de que “nunca há nada acontecendo” (WEEDEN, 2010).
O conjunto de documentos é bastante heterogêneo, de modo que cada documento é acionado conforme suas especificidades. São notas oficiais, cartas abertas, notícias, documentos normativos, seções de sítios de internet, postagens em redes sociais, imagens, vídeos, entre outros, que vão aparecendo (e às vezes reaparecendo) ao longo do texto conforme a sua pertinência para o relato etnográfico. Além disso, disponibilizei, ao fim do trabalho, antes das referências bibliográficas, uma lista resumida que relaciona cada um dos documentos aqui empregados, em ordem de aparição no trabalho.
Enfim, esclarecidos os principais pontos sobre as condições nas quais esta pesquisa foi realizada, passo agora ao relato etnográfico[7] sobre as Carreiras Típicas de Estado, organizado em quatro seções batizadas com termos nativos, seguidas por uma última seção que encerra o trabalho.
Procurarei discutir nesta seção as táticas pelas quais os agentes do espaço pesquisado buscam conferir sentido às formas como são percebidos coletivamente, ou, nos termos deles, ao seu bom nome enquanto grupo de carreiras. O título da seção foi inspirado no artigo 9º do estatuto do Fonacate[8], que atribui às entidades afiliadas o dever de “zelar pelos princípios e valores da entidade, da Administração Pública e pelo bom nome das Carreiras Típicas de Estado e do Fonacate”.
Será analisado aqui como a denominação Carreiras Típicas de Estado surge como produto de uma operação de entrelaçamento entre atividades exclusivas de Estado e um grupo de carreiras que reivindica para si essas atividades, permitindo atribuir sentidos específicos a esse bom nome. Também mostrarei como um pequeno grupo de carreiras busca oficializar a sua relação com esse bom nome.
No sítio do Fonacate há um curtíssimo texto[9] intitulado “O que são Carreiras Típicas de Estado?”, que sintetiza bem um discurso recorrente em muitos outros documentos produzidos pela entidade. Procurarei reconstruir esse discurso tomando como base este pequeno texto e usando trechos de outras fontes documentais de forma complementar.
O texto começa afirmando que as Carreiras Típicas de Estado são aquelas que “exercem atribuições relacionadas à expressão do Poder Estatal”. A próxima seção deste trabalho é inspirada pelo termo expressão do Poder Estatal, que nela será discutido com mais profundidade. Cabe aqui apenas ter em mente o sentido explicitamente declarado pelas Carreiras Típicas de Estado sobre as suas atribuições: a expressão de um tipo específico de poder.
Na continuação, o texto define essas carreiras como sendo aquelas sem “correspondência no setor privado”, conferindo a elas certa exclusividade, uma noção que aparece mais clara em outros documentos, como no estatuto do Fonacate. O caput do artigo 1º do estatuto diz que essas carreiras seriam as que desenvolvem “atividades essenciais e exclusivas do Estado brasileiro”. As Carreiras Típicas de Estado não exerceriam atividades apenas exclusivas, mas também essenciais: a sua produção seria então a essência do Estado.
O termo “típicas., parte importante do bom nome dessas carreiras, aparece no parágrafo 1º do mesmo artigo citado acima, que as descreve como “típicas, exclusivas e permanentes”. Segundo a ferramenta etimológica do Google, originalmente, ser típico de algo significa, na etimologia latina (typcus., ser simbólico ou figurativo de algo ou, na etimologia grega (tupikós., ser representante ou alegórico de algo. Neste sentido original, as Carreiras Típicas de Estado seriam, portanto, o símbolo, a figura ou a alegoria do Estado.
Voltando ao pequeno texto, vem a definição de que as Carreiras Típicas de Estado “integram o núcleo estratégico do Estado”. O termo faz parte da concepção de Estado que Luiz Carlos Bresser-Pereira tinha em 1995, quando coordenou como Ministro de Estado a elaboração do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado[10].
O Plano define o núcleo estratégico como sendo o próprio “governo, constituído pela cúpula dos três poderes”. Ao se declararem como integrantes do núcleo estratégico do Estado, as Carreiras Típicas de Estado estariam se posicionando, portanto, na cúpula dos três poderes. Aqui vale destacar que, na seção de links[11] do sítio do Fonacate, há uma lista de sítios relacionados ao serviço público, todos impessoais ou institucionais, à exceção de apenas um: a página pessoal de Bresser-Pereira.
O texto continua dizendo que, por integrarem o núcleo estratégico, as Carreiras Típicas de Estado requerem “maior capacitação e responsabilidade”, remetendo à noção da importância que essas carreiras teriam, dadas essas exigências de capacitação e responsabilidade.
Essa é uma noção que aparece em muitos documentos assinados pelo Fonacate. Em uma carta[12] publicada em novembro de 2009, o Fonacate clamou aos governos que reconhecessem a “importância das carreiras típicas de Estado para o desenvolvimento econômico e social” do país. Em outra carta[13] publicada em abril de 2011, o Fonacate defendeu a valorização das Carreiras Típicas de Estado como “forma de se buscar a excelência na qualidade dos serviços públicos prestados à população”. Em uma terceira carta[14] publicada em junho de 2012, foi defendida a “necessidade da valorização das Carreiras Típicas de Estado para que o país possa realizar um efetivo combate à ineficiência, à corrupção e aos mecanismos de captura do Estado”.
Em seguida, o pequeno texto afirma que as Carreiras Típicas de Estado estariam “previstas no artigo 247 da Constituição Federal e no artigo 4º, inciso III, da Lei nº 11.079, de 2004”, conferindo um status oficial de legalidade a esse agrupamento de carreiras, e finaliza listando as atividades cujas carreiras executoras seriam consideradas como Carreiras Típicas de Estado.
Vale, neste momento, ler o pequeno texto, na íntegra, sem as minhas interrupções:
O que são Carreiras Típicas de Estado?
As Carreiras Típicas de Estado são aquelas que exercem atribuições relacionadas à expressão do Poder Estatal, não possuindo, portanto, correspondência no setor privado. Integram o núcleo estratégico do Estado, requerendo, por isso, maior capacitação e responsabilidade. Estão previstas no artigo 247 da Constituição Federal e no artigo 4º, inciso III, da Lei nº 11.079, de 2004.
As carreiras consideradas típicas de Estado são as relacionadas às atividades de Fiscalização Agropecuária, Tributária e de Relação de Trabalho, Arrecadação, Finanças e Controle, Gestão Pública, Comércio Exterior, Segurança Pública, Diplomacia, Advocacia Pública, Defensoria Pública, Regulação, Política Monetária, Inteligência de Estado, Planejamento e Orçamento Federal, Magistratura e o Ministério Público.
Essa é a síntese do discurso das Carreiras Típicas de Estado sobre elas mesmas. Passo agora para os dispositivos legais nos quais elas afirmam estarem previstas. O primeiro é o artigo 247 da Constituição Federal[15], que menciona apenas “atividades exclusivas de Estado”, não falando em carreiras, muito menos em Carreiras Típicas de Estado. O outro dispositivo é o artigo 4º da Lei 11.079/2004[16], que também fala tão somente em “atividades exclusivas de Estado”. Isso torna mais clara a escolha de palavras em trechos como “são aquelas que exercem atribuições relacionadas à” ou “são as relacionadas às atividades de”, ambos extraídos do pequeno texto acima.
O bom nome das Carreiras Típicas de Estado parece não ter lastro em lei, mas sim nelas mesmas. As Carreiras Típicas de Estado se autobatizaram, à sua própria imagem e semelhança, com um bom nome que carrega os sentidos utilizados por elas para se definirem: expressão de poder, exclusivas, essenciais, típicas, permanentes, estratégicas, de cúpula, capazes, responsáveis, importantes.
Não se trata aqui de adotar uma interpretação que os juristas chamariam de literal. Não se trata de afirmar que, uma vez não previsto em lei, esse agrupamento de carreiras não poderia agir como grupo. Trata-se, sim, de chamar atenção para o fato de que, se a lei não ofereceu uma denominação coletiva para essas carreiras, elas acabaram construindo a sua própria identidade de grupo, a começar pelo bom nome. Mas será que isso basta?
Um grupo formado por quatro carreiras afiliadas ao Fonacate parece almejar um pouco mais. Este grupo, costumeiramente conhecido como Ciclo de Gestão, é composto pelas carreiras de Planejamento e Orçamento, Políticas Públicas e Gestão Governamental, Comércio Exterior, e Planejamento e Pesquisa, todas consideradas Carreiras Típicas de Estado por elas mesmas.
O Ciclo de Gestão iniciou em 2016 um movimento que busca oficializar em lei a sua existência, unificando as suas carreiras sob uma única denominação. Segundo uma nota[17] publicada em maio de 2016 no sítio da associação de uma carreira do Ciclo de Gestão, o nome proposto para a nova carreira seria Gestor Federal, pela vantagem de “dar mais segurança ao uso da denominação de ‘Gestor’ para os servidores do Ciclo de Gestão que possuem o maior nível remuneratório, o que gera impacto imediato na comunicação sobre a categoria”.
A proposta do Ciclo de Gestão ainda inclui “menção explícita de que as carreiras no Projeto de Lei são de Estado”. Isso demonstra a estima à noção de Carreira Típica de Estado cultivada pelos membros dessas carreiras. Mas também mostra que parece não ser suficiente para elas o fato de serem conhecidas como Carreiras Típicas de Estado, é preciso ainda serem reconhecidas oficialmente como tal, a partir de um ato de nomeação do Estado.
Buscarei mostrar nesta seção como as Carreiras Típicas de Estado tentam reservar para si a expressão de um tipo de poder específico que as diferencia de agentes associados a outras formas de poder, garantindo a elas um espaço privilegiado. Mostrarei também como uma Carreira Típica de Estado específica luta para oficializar o seu pleno exercício desse poder.
Chamarei aqui esse tipo de poder de Poder Estatal, aproveitando um termo extraído do texto discutido na seção anterior, no qual essas carreiras se definem como “aquelas que exercem atribuições relacionadas à expressão do Poder Estatal”. Procurarei mostrar aqui que esse poder desejado pelas Carreiras Típicas de Estado vai um pouco mais além da ideia geral de autonomia, tão presente em estudos sobre servidores públicos, apesar de incorporar uma versão da ideia de autonomia como um de seus atributos.
Em uma nota oficial[18] intitulada “Autonomia institucional, urgente!”, sem data, o Fonacate usa expressões tão sombrias quanto “tempos absolutistas” e “regimes ditatoriais” para desqualificar “esse regime administrativo que confere aos governantes da hora esse poder absoluto para nomear e exonerar”. A expressão governantes da hora parece ser empregada para ressaltar a transitoriedade dos governos eleitos frente à estabilidade das Carreiras Típicas de Estado.
Em outra nota oficial[19] publicada em setembro de 2009 e intitulada “A sua presença faz a diferença!”, o Fonacate afirma que as instituições nas quais os membros das Carreiras Típicas de Estado trabalham “não dependem de políticas governamentais para agir, pois têm sua responsabilidade definida em lei e programação de trabalho definida internamente”, reforçando esse atributo de estabilidade do Poder Estatal frente ao caráter transitório dos governos eleitos. Os governantes da hora vão, o Poder Estatal fica.
Nessa mesma nota, o Fonacate conclama os membros das Carreiras Típicas de Estado a participarem de um evento organizado por ele que pretendia “dar uma demonstração pública da identidade política que há entre todas as carreiras vinculadas às atividades exclusivas de Estado”. Haveria, portanto, uma identidade política assumida explicitamente pelas carreiras que definem suas atribuições como sendo a expressão do Poder Estatal.
Dois meses depois, o Fonacate divulgou uma carta[20] relatando brevemente este mesmo evento, na qual afirma que as Carreiras Típicas de Estado, “assim como os representantes eleitos, integram o Estado e possuem papel político inescusável”. Então, essa identidade política estaria associada a um papel político que não parece querer se posicionar abaixo dos governantes da hora, mas sim em paridade, ou seja, assim como eles.
Essa ideia de paridade é reforçada em outra carta[21] publicada em agosto de 2015, em que o Fonacate afirma que as Carreiras Típicas de Estado “são fundamentais para garantir o desenvolvimento sustentável, em conjunto com os segmentos políticos e econômicos”. Nem acima, nem abaixo, mas em conjunto. Poder Estatal, poder político e poder econômico.
Mas, paridade em relação a quê? Para “disputar ideias e propostas” pode ser uma resposta para essa pergunta. Extraída da carta que conclama os servidores para o evento organizado pelo Fonacate, essa expressão é o assunto central da próxima seção. Entretanto, julgo mais adequado discutir aqui a disposição das Carreiras Típicas de Estado para disputar ideias e propostas sobre mais um atributo do Poder Estatal: a autonomia institucional.
A partir da já mencionada nota intitulada “Autonomia institucional, urgente!”, é possível compreender como as Carreiras Típicas de Estado disputam a sua autonomia. Em primeiro lugar, elas repudiam o “poder absoluto dos Governos” para “nomear e afastar dirigentes”, alegando que isso “dá oportunidade a que razões pessoais ou interesses inconfessáveis de partidos políticos imperem em detrimento do interesse público”.
Propõem, então, que os afastamentos e as nomeações sejam “precedidas de adequada justificação” a ser submetida ao Poder Legislativo. Sugerem ainda que tal rito ocorra em audiência pública, o “fórum mais apropriado para dar transparência e fundamentação aceitável para as nomeações e afastamentos”.
Também deixam implícita a sua preferência por um perfil mais técnico em seus dirigentes, defendendo que “o provimento dos seus dirigentes seja conduzido de modo a assegurar a rigorosa observância de todos os valores de uma administração pública bem qualificada” e que “os nomeados apresentem o programa de trabalho para o exercício do mandato”.
Em uma carta[22] publicada em novembro de 2009, deixam essa preferência mais explícita ao sugerir que “funções de direção e assessoramento sejam exercidas exclusivamente por servidores de carreira”.
Em suma, as Carreiras Típicas de Estado propõem que o poder dos governos para nomear dirigentes seja submetido ao Poder Legislativo ao mesmo tempo em que sugerem ser elas mesmas as mais adequadas para ocupar esses cargos. A proposta das Carreiras Típicas de Estado para a sua autonomia institucional parece ter um forte componente de disputa de cargos de alto escalão com os governantes da hora, um atributo relevante do Poder Estatal, e que pode ser observado mais localmente nas práticas das carreiras que buscam exercem esse poder.
A associação de carreira dos delegados federais, afiliada ao Fonacate, mantém um sítio com uma campanha permanente[23] chamada PEC da autonomia, com o slogan “Diga aos deputados e deputadas que você quer a autonomia completa da Polícia Federal!”. A proposta iniciada em 2009 é de autoria do deputado Alexandre Silveira de Oliveira, filiado ao Partido Social Democrático. Delegado de carreira, o deputado também foi secretário estadual em Minas Gerais durante o governo de Antônio Anastasia, sendo hoje seu primeiro suplente no mandato de senador obtido nas eleições de 2014.
Os delegados argumentam no sítio da campanha que o atual arranjo deixa a Polícia Federal “vulnerável a interferências políticas de governantes de ocasião”, o que a impediria de “combater o crime organizado e a corrupção de forma mais efetiva”. Como solução, defendem o estabelecimento de “normas para que a corporação tenha autonomia funcional, administrativa e orçamentária”, proposta materializada na PEC da autonomia.
A campanha também administra uma página[24] no Facebook que já ostenta mais de 100 mil curtidas. Por este canal, os delegados pedem aos seguidores que cobrem mais agilidade, na tramitação da PEC da autonomia, dos deputados membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Esses pedidos são feitos em postagens individualizadas por parlamentar, com um texto motivador seguido do link do perfil do deputado no Facebook. Reproduzo abaixo alguns exemplos:
“A deputada Cristiane Brasil é membro da CCJ da Câmara dos Deputados, em que tramita a #PEC412. Entre no perfil dela e cobre a aprovação da #PECdaAutonomia. É rápido e fácil. #PECdaPF #VotaDeputado”
“Quer ajudar na aprovação da #PEC412? Então, entre em contato com o deputado Fausto Pinato, membro da CCJ da Câmara dos Deputados, e peça a votação da #PECdaAutonomia. É rápido e fácil. #VotaDeputado #PECdaPF”
“Você já pediu ao deputado Rogério Rosso, membro da CCJ da Câmara dos Deputados, para ele apoiar e votar a #PEC412? Entre no perfil do parlamentar e peça: #VotaDeputado Só com autonomia, a Polícia Federal - PF avançará no combate à corrupção.
#PECdaAutonomia #PECdaPF”
Há ainda uma loja virtual[25] mantida pelos delegados que comercializa produtos como canecas e camisetas estampadas com dizeres favoráveis à causa; seguem alguns exemplos:
“Polícia Federal
✔ Credibilidade
✔ Confiança
✔ Segurança
☐ Autonomia”
“Polícia Federal
Orgulho nacional #euapoioapf”
“Lava Jato &
Zelotes &
Castelo de Areia &
Hurricane &
Polícia Federal”
Os dizeres deste último exemplo merecem destaque. As palavras formam uma paródia da clássica camiseta com o nome dos integrantes dos Beatles (John & Paul & Ringo & George). Só que, nesta versão, os delegados substituíram os músicos por operações emblemáticas conduzidas pela Polícia Federal.
Uma última iniciativa que vale a pena mencionar é uma carta[26] de março de 2016 dirigida pelos delegados ao Congresso Nacional, mas escrita “em nome” do povo brasileiro, de modo que qualquer cidadão pode assinar a carta redigida pelos delegados, se assim desejar.
A estratégia de escrever a carta em nome do povo mostra como os delegados buscam se aproximar dele, sentindo-se à vontade inclusive para falar em nome dele. Na chamada “Carta do povo brasileiro ao Congresso Nacional”, é possível encontrar reivindicações claras sobre os atributos do Poder Estatal.
A reivindicação pela estabilidade frente à transitoriedade dos governantes da hora se revela quando os delegados afirmam que, “diante desse cenário de instabilidade, não podemos confiar que a autonomia da Polícia Federal esteja nas mãos do Ministro da Justiça, qualquer que seja ele”.
A paridade com o poder político é reivindicada no trecho em que os delegados dizem que a “Polícia Federal ainda não possui a garantia institucional necessária para continuar investigando e combatendo o crime organizado e a corrupção, principalmente quando os alvos fazem parte do alto escalão do poder político da República”.
E a disputa por cargos de alto escalão, um dos principais pontos da PEC da autonomia, aparece explicitamente na carta, em que os delegados afirmam que “a constante ameaça de substituição do Diretor-Geral da Polícia Federal também torna evidente a necessidade de previsão constitucional de um mandato”.
Continuarei a tratar nesta seção das estratégias empregadas pelas Carreiras Típicas de Estado para disputar ideias e propostas, em moldes semelhantes à campanha pela PEC da autonomia. Procurarei discutir como as Carreiras Típicas de Estado lutam em arenas essencialmente políticas. Mostrarei que elas têm propostas para alterar o funcionamento do poder político e esboçam até um projeto de país em que elas figuram como protagonistas. Também discutirei o ativismo de uma carreira específica para mudar as leis que disciplinam o seu próprio trabalho.
Em agosto de 2013, as Carreiras Típicas de Estado divulgaram a sua visão[27] sobre como deve funcionar o poder dos governantes da hora. Na proposta dessas carreiras para a reforma política, o financiamento de campanha deveria ser majoritariamente público, com possibilidade de doações privadas de até três salários mínimos por pessoa física. Os senadores deveriam ser eleitos sem suplente, assumindo o mais votado em sequência em eventual vacância. Os mandatos pertenceriam aos partidos. E o voto passaria a ser facultativo a partir de 2022.
As Carreiras Típicas de Estado também são capazes de disputar ideias e propostas tão grandiosas quanto um projeto de país. Em uma carta[28] de junho de 2012 que divulga as discussões travadas em um evento promovido pelo Fonacate, a entidade diagnostica que “nossas instituições ainda sofrem com o peso da herança política clientelista e patrimonialista”, reclamando do “aparelhamento do Executivo Federal” e da “dificuldade de se conscientizar os líderes políticos do país”.
Essas carreiras defendem, então, a “implementação de um Projeto de País Desenvolvimentista” a partir da “constituição de uma máquina pública eficiente”, que valorize os “servidores de carreira como a chave do processo de desenvolvimento e construção de um País rico e justo”. Com essa proposta, as Carreiras Típicas de Estado dizem acreditar estar “contribuindo para a realização do objetivo comum a todos os brasileiros: a construção de um país mais justo que atenda às necessidades de todos os cidadãos, independente de cor, sexo, credo ou posição social”.
Esse projeto de país parece opor um modelo patrimonialista e aparelhado a um modelo desenvolvimentista e eficiente. O primeiro, dominado por indicados políticos e associado à ideia de clientelismo. O segundo, protagonizado pelas Carreiras Típicas de Estado e descrito como a chave para a construção de um país rico e justo.
Uma campanha de grande envergadura promovida por uma Carreira Típica de Estado específica parece se relacionar também com um ideal de país. Em 2014, ano de campanha presidencial, procuradores federais integrantes da força-tarefa da operação Lava-Jato em Curitiba começaram a desenvolver propostas para alterar as leis que regem o seu trabalho. No ano seguinte, o procurador-geral da República estabeleceu grupos de trabalho para revisar as propostas. Em seguida, elas foram divulgadas nacionalmente por meio do lançamento da campanha 10 medidas contra a Corrupção.
A campanha consistiu em comunicar o conteúdo das 10 medidas em escala nacional para coletar assinaturas favoráveis à causa. O objetivo era possibilitar que as propostas pudessem ser apresentadas ao Congresso Nacional no formato de projeto de iniciativa popular. Muitas táticas foram empregadas para divulgar as propostas e conseguir as assinaturas.
Uma delas foi a construção de uma identidade visual para a campanha. Em todos os seus meios de divulgação é possível notar a predominância das cores amarelo e azul, inclusive na logomarca da campanha, uma lâmpada acesa e estampada com o número 10, ao lado do texto “medidas contra a corrupção”, conforme abaixo:

No evento de lançamento nacional das 10 medidas, divulgado[29] no próprio sítio do Ministério Público Federal, o coordenador da força-tarefa da operação Lava-Jato em Curitiba explicou que “existe uma luz - e aí uma referência à lâmpada nas dez medidas de combate à corrupção - e que cada um de nós, a imprensa, o Ministério Público, os órgãos públicos e a sociedade têm um grande poder e uma grande responsabilidade na implementação dessas mudanças”.
Outra iniciativa foi a criação de uma página[30] de divulgação na internet hospedada dentro do próprio sítio do Ministério Público Federal, indicativo de um grau de institucionalização maior do que a PEC da autonomia, discutida na seção anterior e promovida pela associação de carreira dos delegados, e não pela Polícia Federal em si.
A página das 10 medidas disponibiliza um vasto material gráfico da campanha, no intuito de fomentar a divulgação voluntária das propostas por outras entidades. A página sugere que o material seja aplicado de diversas formas: adesivos para carros, camisetas, outdoors, anúncios de revista, entre outros. Seguem a reprodução de alguns desses materiais:
“10 medidas contra a corrupção EU APOIO”
“10 medidas contra a corrupção
Apoie essa ideia!”
“Com a sua assinatura é possível ter um futuro melhor para todos”
A página também disponibiliza postagens prontas a serem espalhadas por apoiadores em redes sociais, como Facebook e Whatsapp. Reproduzo abaixo alguns exemplos:
“❤ Em um relacionamento sério com as #DezMedidas”
“Já conseguimos 188.000 assinaturas e continuamos crescendo, junte-se a nós”
“Você acha que por causa de um furo no encanamento...
... o prédio inteiro deveria ser derrubado?
Revisão do sistema de nulidades processuais penais”
O primeiro exemplo faz uma referência ao costume de se divulgar relacionamentos (namoros, noivados, casamentos, por exemplo) nas redes sociais. A postagem seria uma paródia, significando que a pessoa estaria “apaixonada” pelas 10 medidas. O segundo exemplo serve para divulgar os resultados parciais da coleta de assinaturas. Já o último toca num dos pontos mais polêmicos das propostas, que é tentativa dos procuradores de evitar que processos penais sejam anulados caso contenham certas irregularidades, como a utilização de provas ilícitas.
Outra iniciativa dos procuradores é oferecer na página das 10 medidas um conjunto de documentos a serem carregados nas mãos pelos voluntários apoiadores da causa em suas ações presenciais pelo Brasil afora. Para a divulgação das medidas, estão disponibilizadas as alterações legislativas efetivamente propostas por eles, um documento bem técnico, juntamente com dois outros documentos que ajudam a explicá-lo: um sumário executivo e um resumo. Para a coleta de assinaturas e de declarações de apoio, estão disponibilizados modelos de ficha de assinaturas e de carta de apoio.
Os resultados da campanha foram sendo divulgados na própria página por meio de ferramentas que possibilitaram acompanhar a evolução das assinaturas e dos apoios declarados. O assinômetro[31] é basicamente uma planilha pública que consolida o número de assinaturas por estado e região. A ferramenta mostra que, depois de São Paulo, estado mais populoso do país, lideram o número de assinaturas o Paraná e o Distrito Federal, sedes da força-tarefa da operação Lava-Jato e do Ministério Público Federal, respectivamente.
Os apoios declarados também foram divulgados[32], esses em formato de lista de apoiadores. Há uma lista de personalidades e outra lista organizada por categorias. Na lista de personalidades, há pouco menos de 30 pessoas, dentre elas: Arnaldo Jabor, Ricardo Boechat, Glória Pires, Preta Gil e Danilo Gentilli. Já na lista por categorias há centenas de entidades: igrejas, maçonarias, associações, órgãos públicos e até shopping centers, entre outras categorias.
A divulgação das 10 medidas também conta com uma lista de 14 vídeos[33] produzidos especificamente para a campanha. Destes, 8 vídeos consistem em depoimentos dos próprios procuradores, e os outros 6 são animações de cerca de um minuto cada, todas de qualidade profissional, com narrador, música e efeitos sonoros.
Uma dessas animações afirma que o Brasil perde anualmente R$ 200 bilhões por causa da corrupção, sem revelar como esse número foi calculado, e dá exemplos de como esse dinheiro poderia ser empregado para construir hospitais, sugerindo que mais controle pode significar mais serviços públicos para a população.
Nessas animações, os políticos são representados como senhores brancos, carecas, com bigode, vestindo terno e cartola. Uma delas mostra estes políticos tendo sacos de dinheiro arrancados de suas mãos por uma máquina e suas roupas sendo trocadas por uniformes de presidiários. Outra animação mostra políticos sendo engaiolados. Interessante ressaltar que nessas animações o político surge sempre personificado, mas quem o pune não aparece, é a máquina estatal, sem face, impessoal. Seguem exemplos:

Vale mencionar também a seção “Perguntas Frequentes”[34] da página das 10 medidas, que, sob a roupagem de oferecer explicações didáticas sobre o conteúdo da proposta, parece mais ser um recurso utilizado pelos procuradores para tentar suavizar os pontos polêmicos das medidas. Reproduzo abaixo algumas das perguntas que julguei estarem carregadas de tensão e conflito:
“As 10 Medidas vão piorar a situação dos réus pobres?”
“As 10 Medidas autorizam o uso de prova ilícita?”
“Adotou-se a máxima de que os fins justificam os meios?”
“Os testes de integridade são imorais por estimularem um comportamento criminoso?”
“A criminalização do enriquecimento ilícito inverte o ônus da prova?”
“A população que assinou as 10 Medidas (...) não sabia o que assinava?”
Além de todas essas iniciativas, a página também menciona que os procuradores realizaram eventos e encontros de divulgação com representantes de ONGs, universidades, escolas, entidades religiosas, associações, sindicatos e outras instituições, mas não divulga maiores detalhes sobre esses eventos, nem sequer uma lista deles.
Em março de 2016, os procuradores já haviam coletado mais de 2 milhões de assinaturas. O Ministério Público Federal promoveu então uma cerimônia em sua sede, seguida de uma caminhada simbólica até o Congresso Nacional, onde as 10 medidas, iniciativa dos procuradores, foram protocoladas como iniciativa popular.
O Fonacate organizou em 2009 a primeira Conferência Nacional das Carreiras Típicas de Estado, em que assumiu o compromisso de realizar o evento anualmente, o que foi parcialmente cumprido, com a segunda edição realizada em 2011, a terceira em 2012, a quarta em 2015, e a quinta em 2018.
Os membros das Carreiras Típicas de Estado foram conclamados a participar da primeira conferência por uma nota oficial[35], em que o Fonacate afirma ser o “instrumento dos servidores que representa para dar mais altura à nossa voz” e defende que uma conferência com uma “grande presença dos servidores demonstrará nossa crescente união e a necessidade de esses servidores serem respeitados e ouvidos”.
A vontade de serem ouvidos é, portanto, a ideia que inspira esta seção.
Mostrarei aqui não só as táticas que as Carreiras Típicas de Estado empregam para dar mais altura à sua voz, mas também os seus principais interlocutores. Também discutirei como uma carreira específica busca dar altura à sua voz ao premiar aqueles que compartilham a sua visão de mundo.
Voltando às conferências, vale registrar que elas são frequentadas não só por membros das Carreiras Típicas de Estado, mas também por parlamentares, estudiosos e dirigentes de órgãos públicos. Esses atores não participam apenas como ouvintes, mas muitas vezes ministram palestras e discutem em mesas de debate. As conferências geram, por si só, portanto, oportunidades interessantes para que essas carreiras sejam ouvidas por alguns de seus interlocutores.
O povo, em geral, não é mencionado como participante em nenhuma das conferências, nem mesmo em termos mais institucionalizados, como “representantes da sociedade civil organizada” ou algo do gênero. Entretanto, após a realização das conferências, o Fonacate publica cartas divulgando os debates realizados nos eventos, apresentadas como no exemplo abaixo, extraído da carta[36] referente à terceira conferência:
(...) o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado – FONACATE (...) apresenta à sociedade brasileira este documento, em que faz um balanço das discussões realizadas durante o evento e suas conclusões.
O ponto que merece destaque aqui é que as cartas são dirigidas à sociedade brasileira. Essa parece ter sido a forma encontrada pelas Carreiras Típicas de Estado para associarem as suas discussões ao povo.
Outra estratégia dessas carreiras para dar mais altura à sua voz foi colocada em prática durante a campanha eleitoral de 2010, quando um documento[37] a ser entregue aos candidatos à presidência da República foi redigido pelo Fonacate. No documento, as Carreiras Típicas de Estado conclamam os candidatos a assumirem certos “compromissos com a Administração Pública”.
Essas carreiras pedem aos candidatos que assumam um total de 11 compromissos. Alguns deles estão associados a uma ideia discutida em uma seção anterior neste trabalho, o Poder Estatal, tais como “defender o princípio da autonomia institucional e funcional” e “propor a transformação dos cargos de livre nomeação (...) em funções exclusivas de servidores de carreira”.
Outros estão relacionados à disposição dessas carreiras para disputar ideias e propostas, como “incluir representantes do FONACATE no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, dentre outros que definam as políticas públicas” e “assegurar interlocução ao FONACATE para a proposição de políticas públicas”.
O Fonacate contatou a coordenação de campanha dos principais candidatos da disputa presidencial de 2010 para que pudesse entregar em mãos o documento. Pelo que pude perceber pelas notícias publicadas pela entidade na época, apenas o coordenador da campanha de José Serra respondeu. Na notícia que divulga esse fato, o Fonacate também lamenta o silêncio das outras duas candidatas, dizendo que “aguarda a oportunidade de entregar a carta às candidatas Dilma Rousseff e Marina Silva”.
Também é mantida pelas Carreiras Típicas de Estado uma iniciativa que parece ser uma tentativa de interlocução com os membros do poder legislativo. Trata-se de uma ferramenta[38] hospedada na página do Fonacate chamada de “acompanhamento parlamentar”, pela qual é possível visualizar, por estado, aqueles parlamentares que “apoiam o serviço e os servidores públicos”.
Ao clicar no Distrito Federal, por exemplo, aparece uma lista de parlamentares de vários partidos. Ao clicar na primeira integrante da lista, Erika Kokay (PT), visualizei as razões pelas quais a deputada é listada, reproduzidas abaixo:
“Votou contra o PL 1992/2007 na Câmara dos Deputados - Previdência
Complementar dos Servidores”
“Votou pela aprovação da PEC 270/2008”
A lógica parece ser o mapeamento de projetos legislativos favoráveis ou contrários aos interesses dos servidores públicos, bem como o acompanhamento do comportamento dos parlamentares em relação a esses projetos. Essa ferramenta permite, então, que as Carreiras Típicas de Estado monitorem a atuação dos parlamentares em relação aos seus assuntos de interesse, algo muito próximo a uma lista de “amigos” dessas carreiras.
Certa Carreira Típica de Estado em particular deu um passo além disso. Não só monitora agentes públicos que compartilham a sua visão, como também os premia. Em 1990, a associação de carreira dos auditores do Tribunal de Contas da União passou a distribuir o Prêmio Alfredo Valladão, prática que durou poucos anos, sendo interrompida em 1993. Em 2016, o prêmio foi reinstituído pelos auditores.
Conforme divulgação[39] no sítio da associação dos auditores, a reinstituição do prêmio é justificada por um de seus dirigentes da seguinte maneira:
Nunca foi tão importante coroar as boas práticas e valores como no momento em que vivemos atualmente, enquanto crimes hediondos e escândalos de corrupção estampam diariamente as capas dos jornais.
Outro dirigente revela o seu desejo por uma nova identidade nacional ao descrever o objetivo do prêmio:
é estimular novos cidadãos e entidades a se engajarem na luta pela criação de uma identidade nacional caracterizada pela integridade e pela intolerância com a corrupção sob todas as formas.
O processo de seleção do vencedor da edição de 2016 ocorreu em dois turnos. Primeiramente, cada auditor indicava três nomes de sua livre escolha como candidatos ao prêmio. No segundo turno, cada auditor votava em um dos candidatos indicados por todos na primeira etapa.
O candidato mais votado foi o juiz Sérgio Moro, seguido pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira, pelo auditor Rainério Rodrigues Leite, pelo procurador Deltan Dallagnol, pelo Senador Reguffe e por um candidato institucional, o Departamento de Polícia Federal.
Os auditores foram até Curitiba entregar o prêmio ao juiz Sérgio Moro. O premiado fez “agradecimentos a toda a classe por essa honraria” e ressaltou ainda a importância do Tribunal de Contas da União, que, segundo ele, “tem contribuído como órgão auxiliar nessas apurações na chamada Operação Lava Jato”.
A forma como as Carreiras Típicas de Estado constroem a sua identidade e atribuem sentido a ela, especialmente em sua relação com aqueles que elas chamam de governantes da hora, demonstra que os modos de ação dos servidores públicos podem se dar de formas que não remontam a uma mera lógica hierárquica piramidal. Além disso, as táticas empregadas por essas carreiras para lutar por causas que elas consideram legítimas demonstram como os conteúdos da ação dos servidores públicos podem estar recheados de elementos que não se confundem com meras prescrições regimentais.
De certa maneira, essas duas contribuições associam este trabalho a um esforço amplo já existente na sociologia, na antropologia, na ciência política e em outros campos, que busca chamar atenção para a insuficiência teórica dos tradicionais modelos unicamente centrados na ideia de racionalização, muitos deles baseados no tipo ideal racional-legal de Max Weber (1999), o que nos remete ao diálogo com outras perspectivas conceituais.
Castilho, Lima e Teixeira (2014), ao analisar um conjunto heterogêneo de produções etnográficas recentes sobre o funcionalismo público brasileiro, sistematizam algo como uma teoria do Estado, que, segundo eles, residiria nas entrelinhas destes trabalhos:
[...] poderes estatais [...] encarnam-se em pessoas que, sob certa mirada, constituem-se em tipos sociais (são ‘burocratas’, ‘políticos profissionais’, ‘marqueteiros’, entre outros), mas cuja condição de sujeitos morais dá vida às instituições em que se inserem e é fundamental à sua compreensão. (CASTILHO; LIMA; TEIXEIRA, 2014, p. 22).
Os autores ressaltam que, sob esse ponto de vista, o que chamamos de Estado nunca estaria pronto ou finalizado. Ele seria continuamente (re)construído e (trans)formado pelas práticas encarnadas por pessoas que constituem certos tipos sociais, incluídos aí os servidores públicos, cuja condição de sujeitos morais contribuiria para essa contínua (re)construção e (trans) formação estatal.
Podemos encontrar noções semelhantes na literatura nacional e internacional, tanto em relação à visão construtivista sobre o Estado, quanto na abordagem desse construtivismo a partir da dimensão moral ou valorativa dos agentes estatais, inclusos os servidores públicos. Alguns exemplos disso seriam Bourdieu (1996), Lipsky (2010) ou Abers (2015), que, respectivamente, nos inspiram a pensar no servidor público como alguém que luta para universalizar valores a partir da palavra oficial, ou como alguém com algum espaço para agir a partir de valores, ou como alguém que pratica ativismo institucional.
Alinhados a essa linha geral de raciocínio, Castilho, Lima e Teixeira (2014) sugerem, portanto, que, a partir do estudo e da compreensão dessas pessoas, dos tipos sociais constituídos por elas, das suas práticas e da sua condição de sujeitos morais, poderíamos então apreender como se faz Estado.
Neste sentido, o presente trabalho talvez tenha o potencial de contribuir para o avanço de uma compreensão não normativa do funcionalismo público, salientando algumas formas pelas quais servidores públicos podem construir sua identidade e se engajar em determinadas causas a partir de valores.
Vimos como o significado do bom nome das Carreiras Típicas de Estado pode ser cuidadosamente construído a partir de valores. Vimos como elas podem tentar se impor frente a transitoriedade dos governantes da hora. Vimos como elas podem atribuir a si próprias um papel político inescusável. Vimos como elas podem homenagear determinadas visões de mundo com prêmios e honrarias. Vimos, enfim, como elas podem se engajar em causas e compromissos amplos, considerados por elas como legítimos.
Tudo isso reforça a importância de se pensar o Estado a partir de um construtivismo que considere a dimensão moral ou valorativa dos agentes estatais, incluídos aí os servidores públicos, como sugerem Castilho, Lima e Teixeira (2014), Bourdieu (1996), Lipsky (2010), ou Abers (2015), entre outros. Pensar nos servidores públicos, portanto, como sujeitos valorativos.





