Resumo: Este artigo analisa as maneiras de fazer o crime de um grupo reconhecido como a Família do Norte (FDN). Observa como a FDN conquistou espaço e reconhecimento entre pessoas envolvidas em práticas ilegais, reivindicando para si o controle social do crime no Norte do País. Discute os conflitos e as lutas simbólicas em torno da ideia de uma família que centraliza e estabelece o comando do crime dentro e fora das prisões no Amazonas. Demonstra ainda as nuances de alianças e disputas com o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Os resultados apresentados são frutos de pesquisas qualitativas feitas no Estado do Amazonas, em regiões de fronteira, cidades e dentro do sistema prisional. Eles revelam as dinâmicas de um grupo que se consolidou no cenário brasileiro, construindo ações políticas e morais que repercutiram nas maneiras de fazer o crime no Norte do País.
Palavras-chave:CrimeCrime,FacçãoFacção,PrisãoPrisão.
Abstract: This paper analyses the ways of making crime of a group known as the Northern Family (NF). It observes how the NF conquered space and recognition among people involved in illegal practices, claiming for themselves the social control of crime in the North of the Country. It discusses the conflicts and symbolic struggles around the idea of a family that centralizes and establishes the crime command inside and outside the prisons in the Amazon. It also shows the nuances of alliances and disputes with the Red Command (RC) and the First Command of the Capital (FCC). The problematizations presented are the result of qualitative research carried out in the State of Amazonas, border regions, cities and within the prison system. The results reveal the dynamics of a group that has consolidated in the Brazilian scenario constructing policies and goals that have repercussions in the ways of making crime in the North of the Country.
Keywords: Crime, Faction, Prision.
Artigos
“No Norte, tem Comando”: as maneiras de fazer o crime, a guerra e o domínio das prisões do Amazonas*
“North has Command”: the ways of making crime, war and domination of the Amazon’s prisons.
Recepção: 19 Março 2019
Aprovação: 15 Agosto 2019
Os estudos sobre grupos estruturados por pessoas que fazem o crime prosperaram nas Ciências Sociais brasileiras, possibilitando a compreensão da complexidade deste fenômeno que envolve múltiplas causalidades e efeitos na vida de moradores das mais diversas regiões do País[1]. Foi possível observar que as dinâmicas da prisão, sobretudo com a aposta política da expansão do encarceramento, ajudaram a criar sinergias e trocas em uma economia política e simbólica do crime para que grupos, como o Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC), criassem um modus operandi que impactou nas dinâmicas criminais de vários Estados brasileiros[2]. Certamente, os impactos sociais das políticas de controle adotadas por governos brasileiros tiveram consequências diversas na geração de contextos de insegurança tanto nas prisões quanto em territórios urbanos fortemente impactados pela violência, crime e disputas pelo controle de mercados ilícitos.
Assim, parte-se do pressuposto de que a confluência de múltiplos processos foi fundamental para a invenção de maneiras de fazer[3] o crime em coletivos cujas ações são dotadas de sentido, moralidades e estratégias políticas[4]. Isso foi fundamental para mobilizar pessoas em torno da ideia de fazer parte de um conjunto, um grupo, um coletivo ou, como é popularmente conhecida essa forma de organização, uma facção[5].
A Família do Norte (FDN) é um dos grupos que emergiram no cenário brasileiro, mobilizando pessoas, desde os presídios, para atuarem em ações criminosas que alcançaram as periferias urbanas do Amazonas, as cidades do interior e as fronteiras do Arco Norte (CANDOTTI, MELO e SIQUEIRA, 2017; SIQUEIRA, PAIVA, 2017; SIQUEIRA, 2017; PAIVA, 2019). Neste artigo, analisamos de um ponto de vista sociológico aspectos peculiares desse grupo, buscando compreender como ele conseguiu existir e resistir a outros em uma conjuntura extremamente conflituosa que, entre outras coisas, envolve o domínio de prisões, periferias e esquemas transnacionais de tráfico de drogas. Observamos que a hegemonia do crime, no Amazonas, exigiu da FDN invenções e ações sociais para o controle simbólico e prático de esquemas que envolvem centenas de pessoas executando funções para atender aos interesses de um grupo em constante movimento de transformação.
Comparativamente, exploramos ainda a ideia de que fazer o crime é importante para a FDN, mas, similarmente como os outros grupos, a facção amazonense criou laços sociais em uma espécie de comunidade moral e política[6] que mobiliza afetos constitutivos de quem se sente parte de um movimento, em determinados casos, substantivado como “o crime”. Não existe possibilidade de as facções existirem fundamentadas apenas na ideia de juntar pessoas para praticar crimes. Em torno delas, existe o cultivo de sentimentos de indignação frente a realidades que elas tratam como injustas, criando possibilidades e projetos de vida alternativos e que têm um efeito simbólico importante na vida das pessoas. Seguramente, boa parte dos jovens que se sentem parte da FDN jamais ficarão ricos ou vão compartilhar das conquistas de supostos líderes ou das pessoas que são próximas aos que movimentam o dinheiro de esquemas criminosos importantes como o tráfico internacional de cocaína. As pessoas que fazem as pichações da FDN, por exemplo, não necessariamente conhecem os maiores esquemas de movimentação de drogas da facção, mas, mesmo assim, insistem em expor os sinais da facção porque, de algum modo, se sentem, efetivamente, parte dela, integrando um grupo que se sente “o crime” em uma região do País.
Para os fins deste trabalho, utilizamos vasto material etnográfico decorrente de pesquisas realizadas na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia[7], no Alto Solimões e pesquisa de campo no sistema prisional do Amazonas e na cidade de Manaus[8]. Ao pesquisar na tríplice fronteira e nas prisões, encontramos diversas discussões sobre como a FDN passou a ter a pretensão ao comando do crime nas periferias urbanas e unidades prisionais superlotadas do Norte, expandindo sua influência, também, para o Nordeste do País. Em trabalhos de pesquisa sobre o fenômeno das lutas entre facções, no Ceará, a FDN emergiu como grupo presente nesse processo e isso nos permitiu outros acessos à informação sobre o trabalho dessa facção[9]. Ao longo desses processos, coletamos evidências sobre como a FDN se tornou uma referência importante em esquemas criminosos que mobilizam pessoas, no Norte e Nordeste, valendo-se, em determinados momentos, de um discurso regionalista que sustenta, publicamente, o argumento de que, no “Norte, tem comando”. Colaboraram para a feitura deste artigo, também, a análise de matérias jornalísticas, relatórios de investigações policiais e comunicações disponíveis em redes sociais sobre a FDN. A reunião dos nossos acervos de pesquisa ajudou a construir uma análise sociológica[10] sobre o trabalho da FDN na mobilização de pessoas para fazer parte de um grupo que, em tese, não pode ser compreendido apenas pela sua capacidade em coordenar esquemas criminosos, mas, igualmente, pela sua capacidade em reunir agentes e produzir sentimentos de pertença a uma “família” que, em tese, está integrada e comprometida com a hegemonia do crime no Norte do País, resistindo à influência de outros grupos como o PCC.
Nos últimos 30 anos, são visíveis as consequências do aumento da violência e dos conflitos decorrentes das disputas por hegemonia e controle dos mercados ilegais de drogas, na região Norte do Brasil. O caso do Estado do Amazonas é emblemático, pois sua localização, em uma região de fronteira com países produtores de cocaína, o tornou território de ação de grupos envolvidos em múltiplos esquemas de produção, distribuição e comercialização de cocaína. Na década de 2010, a FDN colaborou para consolidar a expansão dos mercados de drogas ilícitas e se adaptou às políticas de controle social e repressão policial em diversos territórios do Norte do País, criando redes entre pessoas e grupos interessados em fazer o crime e se proteger da ação de outras pessoas e grupos. Algumas pessoas se juntaram ao grupo interessadas em disputar os mercados, fazer dinheiro, ascender socialmente ou, simplesmente, ser parte de algo especial como uma “família”. Existem ainda os agentes de Estado, com diversas colaborações com o crime por um lado ou simplesmente se omitindo de atrapalhar esquemas que favoreciam a FDN. A proteção[11] se tornou importante e cumpre um papel fundamental nos laços sociais entre quem faz o crime, sobretudo, quando estas pessoas estão presas. A exemplo do que aconteceu em outros estados brasileiros, no Amazonas, as prisões também se tornaram os espaços de encontro, negociação, troca de ideias e disputas entre as facções.
Em linhas gerais, o artigo analisa três peculiaridades que julgamos importantes para a consolidação do domínio da FDN no Norte do País: a) o caráter de família, com união entre membros e um modelo patriarcal de controle social por meio de lideranças consolidadas; b) a unificação de pessoas que fazem o crime em torno da resistência a grupos exógenos; d) o domínio das prisões, com a eliminação de inimigos dentro do sistema prisional amazonense.
Ao se originar como uma família e não um comando, a FDN traz em sua formação algumas características entre as facções brasileiras, a máfia italiana e os cartéis colombianos. Segundo interlocutores, a FDN guarda essa ideia de ser um grupo que atua preservando um jeito “mafioso” em determinados momentos, preferindo não despertar atenção. Essa impressão muda ao longo do tempo, quando a facção também busca consolidar seu domínio e recorre a salves para grandes ações contra outros grupos e o próprio Estado. Ela se movimenta entre o segredo e a afirmação, exigindo dos seus membros descrição em determinados esquemas e ações públicas ousadas em outros. Durante a pesquisa, considerando poucos exemplos, observamos que a FDN atuou em segredo no deslocamento de toneladas de drogas em barcos de empresas de transporte de pessoas pelo Rio Solimões, usou aviões de pequeno porte para enviar carregamentos para a Venezuela, além de se beneficiar de aeroportos e rodovias a fim de abastecer importantes mercados, como o disputado Estado do Ceará. Ao mesmo tempo, exigiu publicamente a cabeça de integrantes do PCC presos no sistema prisional amazonense, buscando concentrar armamentos e pistoleiros[12] em sua organização.
Seus líderes foram traficantes e assaltantes de renome, no Estado do Amazonas, e figuras carismáticas em uma organização de modelo patriarcal. Se todos são unidos em torno da família, o pai é a figura que exerce o poder de mando e a obediência é prestada como parte de um laço social que determinada comunidade política julga importante preservar (WEBER, 2000). Apesar de ser possível observar a presença de lideranças importantes no CV e PCC, ousamos dizer que, na FDN, essas figuras têm um papel central na maneira como o grupo se organizou e mobilizou seus aliados para compor uma espécie de comunidade moral e política. Se o PCC se constituiu como uma espécie de maçonaria do crime, da mesma maneira que defende Gabriel Feltran (2018), a FDN é uma família que buscou estender seu domínio como comunidade de pessoas aliadas para o crime e interessadas em defender seu status social diante de outros grupos. Segundo Weber (2000, p. 151), a dominação patriarcal, “apesar de constituir um direito pessoal e tradicional do senhor, exerce-se materialmente como direito preeminente dos associados e, por isso, no interesse destes, não havendo, portanto, apropriação livre desse direito por parte do senhor”. Nesse tipo de dominação, o senhor não depende de um quadro administrativo, mas da vontade dos associados em obedecer. Isso faz com que os associados se reconheçam como companheiros e não súditos, o que, na nossa análise, ilustra muito bem a maneira como a FDN se constituiu tendo suas figuras de liderança como proeminentes, nos lugares de mando, sem sujeitar seus associados a uma posição irremediável de subalternidade. Comparado a outras organizações, o discurso de igualdade entre os seus membros é presente, mas, também, rituais de respeito a lideranças, como beijar a mão e baixar a cabeça em sinal de reverência, são parte das celebrações do grupo.
As figuras de grande traficante e bandido de alta periculosidade compõem o imaginário em torno das lideranças da FDN. É comum que seus líderes reivindiquem um lugar de poder anterior à ascensão da facção, sobretudo, de dentro dos presídios amazonenses, com poder de “decretar” a morte de inimigos e organizar ações importantes e dignas de respeito de outras pessoas que faziam o crime no Amazonas. Ações de coordenação do tráfico de drogas e armas no Estado, lavagem de dinheiro, conexões internacionais, grandes assaltos e sequestros são alguns dos crimes atribuídos a essas lideranças. Eles, também, aparecem como líderes de grupos extremamente violentos, realizadores de assassinatos de inimigos e crimes de tortura contra os que contrariam seus interesses. Grupos de pistolagem, como o “Equipe Potência Máxima” e “Bonde do Holandês”, atuaram na prática para o estabelecimento de proibições e interdições entre as pessoas envolvidas com outras facções dentro e fora das prisões, ritualizando as mortes por meio de práticas de crueldade. Historicamente, a violência nas prisões do Amazonas envolve o esquartejamento dos corpos, a degola e a decapitação. Nas ruas, além dos velozes atentados promovidos por motociclistas e carros de fuga, os pistoleiros mais importantes empreendem sequestros, grave tortura psicológica e física, e esquartejam suas vítimas para depositarem em malas de viagem. Essas práticas guardavam certo segredo no período anterior à emergência das facções, atualmente são amplamente utilizadas como exemplo das consequências dos “conspiradores” acusados de agir contra a família ou o comando.
Entre as figuras importantes da FDN, também, estão lideranças que tinham acordos e esquemas com o CV, contribuindo com redes nacionais e internacionais de tráfico de drogas. Esse fato garantiu aos líderes tradicionais da FDN um lugar de poder em função das redes que conectam produtores, atravessadores e traficantes os quais comandam mercados de drogas de alto valor. A união entre esses grandes traficantes amazonenses serviu de pano de fundo para a criação da FDN, como uma família associada por interesses em comum e capacidade real de mobilizar grandes esquemas internacionais de tráfico de drogas. Em torno dessas lideranças, existe uma narrativa de que elas aprenderam como as facções do Sudeste do país funcionavam a partir do cumprimento de penas de privação de liberdade em presídios federais, sobretudo a partir de 2006. A ideia dos líderes da FDN foi, inicialmente, replicar no Amazonas experiências de sucesso como as do CV e do PCC, considerando ainda especificidades locais e criando um discurso regionalista que pudesse fazer outros traficantes amazonenses se aliarem ao grupo local e não a outros de fora. Ocorre que essa trama acompanhou o movimento de grandes traficantes que, em alguns esquemas, tinham relações tanto com o CV quanto com o PCC, exigindo deles acordos que moldaram um arranjo que incorporou o CV como aliado enquanto o PCC foi sendo colocado na posição de grande inimigo do grupo do Norte.
As adesões à FDN foram e são de qualidade diferenciada, com vários grupos locais respeitando seu comando, mas sem uma ligação orgânica que os vincule à direção do grupo. Seria uma tarefa bastante difícil medir a amplitude da influência que a família exerceu, e ainda exerce, sobre territórios bastante diversificados, seja em pavilhões ou nas “bocas de fumo” de Manaus. Seguindo a trilha das grandes lideranças, é possível mapear diversas etapas de consolidação do poder de mando. Ainda faz parte do imaginário popular de Manaus as “bocas de fumo” que, na década de 1990, eram as referências de um mercado ilegal de drogas fragmentado e pulverizado por lideranças locais. Bairros importantes como o Mauazinho, Compensa, Praça 14, Colônia Oliveira Machado, Bairro da União, Coroado, entre outros, são bastante associados a ações policiais de repressão aos chefes do tráfico na região, apresentando certa regularidade do fenômeno ao longo do tempo. São ligações constituídas ao longo de décadas, perpassando desde as relações entre bairros e prisões ao cotidiano mais ordinário de moradores. Em linhas gerais, era uma característica desses mercados as associações de parentesco em que uma família aparecia como a referência local do crime em determinada comunidade. Nomeado pela polícia civil como período do “tráfico doméstico”, essa fase foi marcada pela associação do nome de traficantes aos bairros de atuação, concentrando pequenas operações que poderiam envolver familiares e alguns poucos seguranças com reduzido poder de fogo. A integração dessas bocas foi uma tarefa que a FDN realizou não apenas pela força, mas a partir de amplas negociações para adesão à proposta de uma família no “comando” do crime no Norte do país.
A estrutura básica da FDN foi constituída a partir do domínio de três grandes traficantes reconhecidos por sua história no crime amazonense. São figuras respeitadas e que deveriam ter a palavra final na definição das ações do grupo. O reconhecimento do mérito desses sujeitos foi fundamental para criar certa coesão em torno deles, fazendo com que suas ordens tivessem eficácia simbólica na formação do grupo. Os grandes conflitos internos à FDN, inclusive, passam pela capacidade desse núcleo concordar ou divergir quanto à orientação política e moral do grupo. Acusações de traições entre os três e mortes de lideranças ligadas a cada um constituíram a história da FDN, sobretudo, quando os três terminaram presos dentro do sistema prisional amazonense, necessitando da atuação de “homens de confiança” ligados a cada um fora da prisão. Além dos três, formou-se um conselho com mais dez pessoas que compuseram o “Conselho” da FDN. Esse Conselho elaborou um documento chamado “Doutrina da Família”[13] que é composto por quinze artigos os quais definem comportamentos e punições para os membros da FDN. O lema da FDN é “paz, justiça e liberdade”, replicando os elementos consagrados pelo CV e adotados, também, pelo PCC. O documento define, entre outras coisas, que “o Conselho é formado pelos de mais alto grau”; “a organização está acima de qualquer membro”; “cada integrante terá o valor que merece de acordo com suas ações, boas intenções e responsabilidade”. Todos os membros podem recorrer ao Conselho quando se sentirem prejudicados por outros integrantes, independentemente da posição e antiguidade no grupo. As punições vão da advertência verbal ao óbito do acusado de violar as regras do grupo.
Obviamente, como acontece nas outras facções que atuam no Brasil, existem diversos tipos de envolvimento em camadas distintas e até sem uma conexão evidente com o grupo. Duas situações etnográficas são interessantes para explicar esse fenômeno. A primeira ocorreu em 2016, quando foi observada uma pichação de grande destaque na Avenida Grande Circular, uma das principais ruas da Zona Leste de Manaus, movimentada diariamente por milhares de pessoas, anunciando “NO NORTE TEM COMANDO: E O COMANDO É A FDN”. A segunda aconteceu na cidade de Tabatinga, em 2017. Depois de três anos de pesquisa sem nenhum registro visual da presença da FDN na cidade amazonense, observamos o início de uma série de pichações vinculadas à facção. Entre as mais emblemáticas, uma na Avenida da Amizade, a principal de Tabatinga, que dizia: “FDN, A FRONTEIRA É NOSSA”. No segundo caso, recorremos aos moradores da cidade para entender essas pichações. Os interlocutores demonstraram ceticismo em relação à presença de envolvidos com a FDN, em Tabatinga. Muitos atribuíram as pichações a jovens locais conhecidos como galerosos[14] - voltaremos a esse personagem no tópico seguinte, explorando as mudanças do perfil de quem faz o crime no Amazonas. Segundo eles, eram jovens que “queriam se amostrar”, ou seja, chamar a atenção para si como integrantes de um grupo importante de bandidos do Amazonas. Independentemente da veracidade dessa narrativa, ela colabora com outras que demonstram que a FDN se tornou uma referência para todas as pessoas que não apenas fazem o crime como ambicionam um dia ser parte dessa comunidade moral e política. Assim, sentir-se parte da FDN pode significar uma disposição que, por um período, é mantida pela expectativa de ser integrado, ou seja, batizado como um membro que goza dos direitos e deveres instituídos por essa família.
Quando as lideranças da FDN iniciaram a mobilização de pessoas para construir um grupo semelhante ao que era o PCC e CV, nacionalmente, foi importante elaborar um discurso regional articulado a elementos que já faziam sentido para outros agentes envolvidos na prática de diversos tipos de crime. O domínio das dinâmicas locais em relação aos grupos de fora apresentou-se como outro fator importante para o êxito da FDN. Foi importante, por exemplo, convencer pessoas identificadas como galerosos, dispersas em pequenos grupos, nas diversas periferias urbanas do Amazonas, que era possível ambicionar novos horizontes e maiores rendimentos, atuando com profissionalismo e como “verdadeiros bandidos” associados para ter o controle do crime no Norte.
É importante destacar que as primeiras lideranças da FDN faziam questão de se diferenciar da ideia tradicional de galeroso, reivindicando o status de “bandido” em detrimento ao outro. Os galerosos são pessoas sobre as quais recai profunda desconfiança no universo do crime. Um exemplo desta distinção constitui a fala de uma das supostas lideranças da FDN, na ocasião de sua transferência para o Sistema Penitenciário Federal, em 2013, quando chamou a atenção dos repórteres que a cercavam para o seguinte: “vai desandar mesmo, quem tava segurando era a gente. Ninguém é polícia pra segurar bandido. Deixa lá na mão dos galerosos lá, que vocês vão ver”, (Entrevista ao programa televisivo Alô Amazonas, da TV Acrítica, março de 2013). Assim, as diferenças sociais entre bandidos e galerosos se constituem pelo respeito que os envolvidos da FDN parecem atribuir a um e não ao outro, considerando o bandido a figura digna de uma confiança que não pode ser depositada no galeroso. Isso faz parte do universo simbólico dos envolvidos nas dinâmicas de uma comunidade moral e política que, grosso modo, se faz por meio de valores compartilhados e o reconhecimento social atribuído a sujeitos que sustentam sua visão de mundo.
Posto isso, boa parte do sucesso da FDN se deu nos primeiros anos de seu anúncio como facção hegemônica. Ao mesmo tempo em que disseminou o terror e o silêncio, a produção de grande entusiasmo e adesão à ideia de ter um comando próprio, na região Norte, foi bastante significativa em diferentes esferas sociais, muito além das margens urbanas e da associação das bocas de fumo de Manaus. O impacto da FDN foi significativo no Amazonas, mobilizando pessoas de vários segmentos sociais, envolvidas ou não em práticas de crime, mas interessadas nas promessas de um grupo influente e capaz de grandes ações com altos rendimentos financeiros. Foi possível evidenciar o sucesso do grupo na circulação de diferentes signos expostos em cortes de cabelo, pacotes personalizados de drogas ilícitas no varejo, músicas, imagens, e outros recursos, como a realização de festas dentro e fora das prisões, alcançando inclusive setores médios da sociedade. As músicas do estilo beatbox, improvisadas e gravadas por telefones móveis dentro das prisões, foram amplamente divulgadas em portais como o Youtube.com, em canais como o extinto “Potência Máxima”, alcançando mais de 2.850.003 visualizações distribuídas em 48 vídeos especializados em cânticos sobre a FDN (SIQUEIRA, ACCIOLY, 2018).
Com cânticos que dizem que a “humildade prevalece e nós somos a união”, a FDN arregimentou “irmãos” que constituem uma família e são apadrinhados pelas lideranças. Essa família uniu pessoas de diferentes grupos para criar uma iniciativa conjunta, com suas orientações morais e políticas semelhantes ao “proceder” e ao “andar pelo certo” constitutivos de coletivos que organizam relações de proteção, realizam crimes e movimentam mercados ilegais (MARQUES, 2009; TELLES e HIRATA, 2010; GRILLO, 2013; HIRATA, 2018). Diversos meios foram utilizados para a divulgação dos valores defendidos pela FDN. O uso intensivo da internet para a divulgação de sua mensagem e estética foi fundamental. Por meio de redes sociais e dispositivos de comunicação, foram enviadas suas regras, salves, manuais, além de imagens de exaltação das lideranças, do comando e das práticas de ostentação por meio do consumo de bens e serviços de luxo. As músicas divulgadas, na internet, permitem a livre circulação de ideias e maneiras de fazer do grupo, com bastante sucesso de divulgação e alcance. A música “FDN é o Comando”, por exemplo, oferece o relato sobre as formas de pertencimento ao coletivo criminal, exaltando o grupo Equipe Potência Máxima como notório por suas ações de organização do tráfico de drogas ilícitas, execuções sumárias e cruéis contra os considerados inimigos da FDN dentro e fora das prisões do Amazonas.
[...] Boladão, tô na pista, junto com meus irmãos. De 762, Ponto 30, AK trovão. É o Comando Vermelho, conspirou, nós te explode. Equipe Potência Máxima é a Família do Norte. Na voz, [...], fortalecendo a Família. E de quebrada em quebrada, é só moleque terrorista [...] O lema é respeitar pra poder ser respeitado. No crime pisou em falso, o certo é ser cobrado. Mando o salve pros irmãos que tão na profissão perigo. Em busca dos malotes, se quiser troca até tiro. [...] Equipe Potência Máxima, FDN é o comando. Porque é só bandido louco que não falha na missão. Em uma só sintonia, o de menor tá em ação. E no possante com som alto, curtindo a brisa do skunk. [...] Porque é o crime organizado, então não marca bobeira. [...] E no artigo do assalto, não pode ficar pra trás. Vai pegando as metrancas, faz a contenção por trás. Porque o comando é da Família. Conspirou, arrumou treta, correu pelo errado é caixão e vela preta. [...] (Música beatbox FDN é o Comando, mídia criada em 22 de julho de 2016).
A FDN construiu seu domínio de “quebrada em quebrada”, juntando grupos outrora identificados como galerosos e lhe atribuindo status social de bandido, armando essas pessoas, organizando suas ações, filiando-os a uma família e conscientizando-os do respeito necessário ao “comando do Norte”. Além disso, ambicionou estabelecer gerentes do tráfico em todas as regiões administrativas de Manaus, buscando concentrar o tráfico de drogas armado e não armado, influenciando os setores médios e elitizados da sociedade amazonense. Assim, o grupo criou sistemas digitais de cadastro dos seus membros, cobrou “caixinhas” de contribuições financeiras e distribuiu orientações políticas e morais sobre como praticar o crime e se relacionar com os irmãos. Como em outros Estados brasileiros, o CV, no Amazonas, era mais um símbolo de união entre pessoas que praticavam o crime e respeitavam os princípios tradicionais da facção carioca do que, realmente, um grupo organizado e dotado de uma estrutura mínima para articulação das pessoas que faziam crimes em territórios amazonenses. Isso não significa que essa ideia não tivesse força e, em determinados momentos, fosse usada para articular grupos dispersos em torno de interesses comuns. Então, não pareceu problemático para a FDN considerar a aliança com o CV, no início, em função de os traficantes locais não serem parte de uma organização bem estruturada para o crime. Nesse processo, no entanto, o PCC representou algo diferente, pois guardava características de um grupo exógeno, poderoso, organizado e capaz de exercer o controle do crime, privilegiando interesses de lideranças de São Paulo em detrimento das lideranças amazonenses. É importante destacar que, no período de consolidação da FDN, no início dos anos de 2010, existiam importantes lideranças locais do PCC, no Amazonas. Pessoas conectadas à facção e responsáveis por negócios que envolviam os mercados ilegais transfronteiriços. Esse grupo se tornou o alvo da FDN, considerado como ameaça, apesar de, em alguns momentos, terem negociado e articulado ações em comum.
Historicamente, a relação da FDN com o PCC é bastante controversa. É sabido que, no início dos anos 2010, os grandes traficantes dos dois grupos chegaram a confraternizar nas unidades prisionais do Amazonas, como divulgado pela imprensa em 2012, na Unidade Prisional do Puraquequara[15]. Esses momentos seriam reuniões entre “patrões” do crime no Amazonas. Porém, ainda em 2012, a imprensa noticiou a formação do “consórcio do crime”, embrião de uma maior estruturação em torno da FDN, contra o PCC. Em linhas gerais, o PCC, no Amazonas, buscou se diferenciar das maneiras de fazer o crime da FDN ao destacar que seu modo de organização seria mais igualitário entre irmãos, além de proibirem assaltos contra mercados de bairros e opressões contra moradores das periferias[16]. Existem vários relatos sobre o controle social de roubos, nas periferias de Manaus, com a presença da FDN, CV e PCC, resultando na execução, tortura ou expulsão de pequenos assaltantes. Porém, o PCC acusa membros da FDN de promoverem assaltos contra pequenos comerciantes e terem relações com as polícias, como é possível constatar na seguinte música:
Outro dia, tavam me perguntando. Os caras falaram aqui ó, uma organização criminosa mandou parar a cidade. Que organização é essa? Tal de FDN, que eu nunca ouvi falar. Pra tá batendo e oprimindo os morador? Ou então tá saqueando os mercadinhos. Vou falar pra tu como é o PCC, o Primeiro Comando. Se oprimir nossos irmãos lá dentro do Cadeião, na rua meu parceiro, vai ser bala nos vermezão. É só bala neles, que é pra recuar, Ronda do Bairro e ROCAM de traçante vão voltar. Nós é o terror, meu parceiro, eu vou te lembrar. Lá em São Paulo, meu parceiro, [inaudível], cinco dias de pânico, muito terror, a terceira metrópole do mundo parou. Parou na bala, meu parceiro, em cima dos polícias. Os buzões tudo queimado e nós tá nas estatísticas, na mídia. Parceiro, então pode falar. 27 Estados, as cadeias vão lombrar. É desse jeito a nossa organização. [...] Onde tiver amazonense, CV e FDN, vai ser foder porque o PCC descarrega os pentes. Os bicos tudo afiado. [...] (Música beatbox PCC é o Comando de Manaus, 1533, mídia criada em 9 de novembro de 2016).
Constatamos que a relação entre os grupos sofreu vários momentos de inflexão, com acusações mútuas de quebra de confiança e ações que ferem os códigos estabelecidos entre pessoas que fazem o crime. Diante do aumento das tensões, a FDN passou a mobilizar a seu favor a ideia de o PCC ser uma “facção de fora” ao mesmo tempo em que celebrou alianças com CV. Como o PCC tem um comando centralizado em um sistema de sintonias que se desdobra desde São Paulo (DIAS, 2013a), enquanto o CV tinha uma maior autonomia quanto ao comando estadual das suas ações, foi possível a FDN situar o grupo paulista em lugar diferente do grupo carioca, atacando-os como seus “verdadeiros inimigos”. A FDN, também, trabalhou com a ideia de que seria um perigo para os negócios locais o fato de o PCC controlar as rotas de cocaína desde a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Emerge, no cenário amazonense, a ideia de que o controle do PCC das rotas do Rio Solimões resultaria em prejuízos financeiros para os traficantes que atuavam em esquemas ilegais que conectavam o Norte e Nordeste, com vendas de cocaína para comércio na África e na Europa[17].
Em relação ao CV, a situação, inclusive, nem sempre foi tranquila. No ano de 2015, um grupo interno da FDN, os “300 Espartanos FDN-CV-RJ”, formado a partir de gerentes do tráfico dos bairros do Coroado, da União e do Parque 10 de Novembro, buscou capitalizar um acordo diretamente com um grupo do CV, no Rio de Janeiro. Eles viajaram para a capital carioca, com o objetivo de encontrar lideranças nacionais do CV. Os 300 Espartanos passaram a ser acusados de um complô interno que envolvia a recusa do grupo ao pagamento da “caixinha” imposta pelo Conselho da FDN, com acusações de que a prática era uma extorsão feita pelas lideranças.
Autoproclamado 300 Espartanos FDN-CV-RJ, o grupo passou a vender maconha e cocaína em suas bocas de fumo, com embalagens representando os signos do agrupamento. O CV, no Rio de Janeiro, indicou que os líderes dos 300 Espartanos FDN-CV-RJ não deveriam sofrer represálias, demonstrando a intenção de manter as negociações com o grupo. Essa indicação foi rejeitada por dois líderes da FDN que mobilizaram outros subgrupos e matadores para eliminar as lideranças dos 300 Espartanos FDN-CV-RJ, acusados de traidores gananciosos. Para lideranças da FDN, a tentativa do CV em proteger liderança dos 300 Espartanos evidenciou uma tentativa de o grupo carioca aumentar sua influência no Norte, garantido adesões que poderiam prejudicar os negócios locais a exemplo do que temiam ser feito pelo PCC. Na ocasião da prisão de integrantes do grupo potencialmente dissente, no Rio de Janeiro, ainda em 2015, foi divulgada a seguinte música na internet:
[...] Relato no funk agora. É Família do Norte, a Potência já tá de volta. Pensou do jeito errado, cresceu o olho na Família, o aviso já foi dado, vai pegar de Ponto 30. Vacilou, errou com nós, te falo como é que foi. Esse é golpe de estado, retorno da parte dois. É vagabundo, tá pensando o quê? A Potência Máxima é a Família do Norte, caralho. Se liga na ideia, essa é a disciplina, a nossa voz tem o poder, se liga na minha rotina. Aqui é o certo pelo certo. Com nós não tem perdão. Vacilou, tu moscou, [...] seu cuzão. Tentou pagar de esperto, mas olha que absurdo, correu pelo errado agora tá no Seguro. O teu golpe de estado, agora caiu o castelo, o aviso tá sendo dado, a cobrança é pelo certo. Aqui do Fechado, eu vou te falar agora, se o bonde te pega, vai descarregar as pistolas. General bateu o martelo, eu não posso conspirar, mandou fazer um funk e eu vim representar. Tu tentou o teu plano, acabou foi se fodendo. Haha, o bagulho é doido. Vai ser sal aí de dentro. Porque é assim, o bonde é Potência Máxima, só lamento presuntão, vai pega-lhe só de rajada. Sabe o que aconteceu? Tentou enganar os irmãos, e com nós, não admite a falha e também não tem perdão. Nós pensava que era amigo, mas eu vou te dizer, tá com sede da tua alma é meu mano [...]. Tu vacilou, pediu Seguro. Nem tentar fugir, nem pular o muro. Agora é tarde, vou te falar, ele também quer tua cabeça, é meu mano [...]. Ô seu safado, pensou que tava de boa. Caiu a tua casa e perdeu a tua boca. Esse é o aviso que eu vim relatar. É o bonde Potência Máxima, valeu [...] O bonde é do [...] e com nós não tem perdão. Tu se ligou safado não se envolve. Porque esse é o proceder da nossa Família do Norte. Não adianta, nós tem o poder. Na sequência FDN, conspirou vai se foder.
É desse jeito, eu vou representando, do Norte, FDN é o bonde do [...].
Não adianta, nós é o poder…. [Título desconhecido]
Em 2018, os relatos de pessoas que fazem o crime, no Amazonas, acusavam a separação definitiva entre CV e FDN. Além da separação entre os dois grupos, a situação deixou evidente, no discurso público sobre a FDN, que grupos internos, como Potência Máxima e 300 Espartanos, carregavam as tensões entre lideranças que, no início, reivindicaram esse lugar comum e familiar como meio de conseguir efetuar o comando do crime no Amazonas.
A desestruturação do grupo, ademais, se tornou objetos de novos cânticos. “CV do Amazonas, tá tudo monitorado, intimado, com certeza. CV do Ceará, tá tudo dois em Fortaleza. Mas é só menor bolado, se brota te arrebenta. Tropa do [...] é bala nos Potência”, anunciou a música funk Bota a cara FDN, destacando que a conexão exitosa da FDN com outros grupos, no Ceará, estaria interrompida. Na prática, esse acontecimento resultou no incremento da violência em Manaus, mobilizando pessoas leais aos grupos dominantes em ações bélicas que confirmam uma nova fase da criminalidade local. Dentre vários sintomas, observamos o aumento da disposição de enfrentamentos contra o Estado durante as ações criminosas, anteriormente evitados com a ação não violenta da polícia durante a possível rendição.
A partir de 2017, foi possível observar a ocorrência de eventos importantes nessa nova configuração de disputa por territórios, envolvendo a FDN, CV e PCC, no Amazonas. Em dezembro de 2017, a população do bairro da Compensa testemunhou, em uma ação que teria contado com o uso de um pequeno drone de espionagem, o fuzilamento de seis pessoas dos times de futebol amador Compensão e T5 Jamaica, no campo do Centro Social Urbano (CSU). Esses dois times teriam ligações afetivas e econômicas com pessoas identificadas com a FDN. O bairro é considerado histórico para a organização. Em 2018, os bairros populares do Mutirão e da União, localizados respectivamente na Zona Leste e Sul de Manaus, historicamente marcados pela violência urbana e desigualdades, foram transformados em cenários de diversos confrontos atribuídos a facções, tribunais do crime e confrontos com as polícias. A capilaridade desse fenômeno é exemplar.
Em fevereiro de 2018, vinte pessoas que seriam da Equipe Potência Máxima, considerada por seus membros como a “FDN PURA”, foram presas com armas do sistema de segurança brasileiro e dois fuzis de fabricação russa, enquanto conspiravam ataques contra o CV, no Amazonas. Em junho do mesmo ano, a FDN PURA, seguindo na ofensiva, teria promovido um atentando contra uma suposta base do CV, no bairro Lírio do Vale II, em ação que envolveu cerca de dez homens fortemente armados. A ação foi filmada por câmeras de segurança. Entre os protagonistas, um suposto fugitivo do Centro de Detenção Provisória II, inaugurado em setembro de 2017 e transformado rapidamente em cenário de fugas em massas de bandidos de alta periculosidade . grandes traficantes do CV, antigos membros da FDN. No mês seguinte, em julho, no bairro do São Jorge, Zona Oeste, pelo menos, cinco pessoas foram mortas em confronto com a polícia e outras seis foram presas, em ação que tencionava vitimar pessoas no bairro da Compensa e Vila da Prata, na mesma zona do local do confronto. Segundo a imprensa, apenas em junho e julho de 2018, foram registrados mais de 180 homicídios, em Manaus.
A ideia de uma família que integra a todos em uma comunidade política e moral liderada por figuras respeitadas e que, em tese, representam os interesses de seus diversos integrantes foi, sem dúvida, uma ótima ideia que criou laços sociais significativos. O problema é que como todas as ideias que criam certa “ordem social”, as facções são invenções efêmeras cuja reprodução ou mudança depende de equilíbrios tênues e resoluções de conflitos que envolvem a suspeita, a qualquer momento, de que o outro possa estar levando qualquer tipo de vantagem na relação. A lealdade é exigida a um alto preço, e conflitos, aparentemente, muito sérios podem ser contornados enquanto outros muitos simples podem levar ao rompimento definitivo. A partir da separação, grupos internos iniciaram o seu processo de autoafirmação em busca de outros arranjos e adesões para seguirem em seus projetos de acordo e alianças.
Por fim, não é possível entender certos desdobramentos de todo esse processo sem compreender ainda a maneira como a FDN se estruturou nas prisões amazonenses, consolidando seu domínio frente ao Estado e outras facções atuantes no Amazonas.
As prisões, no Amazonas, são parte de mecanismos de governo de grandes populações (GODOI, 2017) reinventados em sua dinâmica interna, reconfigurados pela ação de múltiplos agentes e mobilizados para interesses convergentes e divergentes de pessoas que compartilham desse espaço social extremamente complexo. O sistema penitenciário do Amazonas emerge como espaço de gestão e recrutamento para redes e movimentos criminais, com forte ascendência de atacadistas de drogas, historicamente identificados como “xerifes” das unidades prisionais (SIQUEIRA, 2016). Ao considerar as prisões como locais de múltiplas relações sociais[18] - não redutíveis aos dispositivos normativos que definem posições de acordo com normas consagradas no direito -, nós buscamos evidenciar os investimentos sociais feitos pela FDN na gestão de ações do lado de dentro e do lado de fora do sistema.
O lado de dentro compreende as ruas e os pavilhões das prisões amazonenses. Espaços, preferencialmente, organizados pelas pessoas que compartilham de relações cotidianas dentro do sistema prisional. “Daqui pra dentro, quem manda é nós”, disse um xerife da centenária e extinta Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa a um interlocutor, ex-morador de sua cela. Por sua vez, o lado de fora compreende os espaços fora das carceragens, como o setor administrativo e o contexto extramuros. Um ex-agente penitenciário, que cumpria serviço na Cadeia Pública (notória por ter sido uma zona de tolerância da tortura e da crueldade), em seus dias finais, experimentou a quase completa insegurança, quando cumpriu serviço sozinho nos pavilhões ocupados por mais de mil detentos, desrespeitadas todas as recomendações mundiais de segurança. Recorrendo sem sucesso ao seu sindicato, afirmou que, do lado de dentro, “eles têm os negócios deles lá, sua própria economia”. Preferencialmente, sempre foi importante não se envolver com o lado de dentro. Apesar de bastante conhecidos pela população carcerária, funcionários evitaram o estabelecimento de relações mais próximas com integrantes e lideranças da FDN. Como observado, em pesquisa de campo, cada unidade prisional apresentou particularidades próprias em sua rotina e possibilidades referentes às ações da “massa carcerária”. Porém, desconhecemos o impacto real das vitimizações desencadeadas pelas dinâmicas das prisões e do crime.
As posições de mando dentro do sistema prisional, também, foi objeto de disputas intensas da FDN e fundamentais para que o grupo se consolidasse como a principal força do crime no estado do Amazonas. Segundo relatos de ex-presos e funcionários, os xerifes e patrões de cada unidade prisional foram aderindo ao controle social da FDN, distribuídos em grupos de afinidades formados por pessoas dispostas ao enfrentamento contra grupos concorrentes, contando ainda com certa capacidade de arregimentar lealdades e iniciar eventos, como rebeliões e motins. Não obstante, como largamente documentado pela imprensa local, desde a emergência da FDN, a relação dos xerifes com a administração penitenciária impactou fortemente na gestão do sistema prisional, agenciando as formas de cooperação entre o staff responsável pelas prisões e as lideranças ascendentes da população carcerária. Ações judiciais, operações de segurança e estratégias políticas elaboradas por operadores de segurança pública e justiça, no Amazonas, dificilmente, aconteceram sem considerar o peso da FDN no contexto local a partir de 2013. Acreditamos que é possível afirmar a existência de um frágil equilíbrio mediado por segredos, omissões ou conversas efetivas com xerifes considerados “bandidos de alta periculosidade”, mas, talvez pelo seu status elevado no mundo do crime, capazes de exercer um controle sobre outros, favorecendo a regularidade de administrações penitenciárias interessadas em “manter as prisões tranquilas”.
É importante destacar que a posição social dos xerifes teve um papel importante na consolidação do domínio da FDN. Pensando nas maneiras de fazer o sistema prisional do Amazonas, os protagonistas das prisões encontraram meios, táticas[19], de realização de seus próprios usos das experiências, rotinas e símbolos em contextos permeados por limites para as suas ações (SIQUEIRA, ACCIOLY, 2018). Verificamos que os primeiros líderes da FDN usaram como tática a identificação dos xerifes dentro do sistema e o agenciamento da sua força para a realização dos seus interesses. Ao buscar assegurar a hegemonia no sistema penitenciário, a formação inicial da FDN partiu de uma importante aliança com xerifes, criando uma rede colaborativa para o funcionamento estável de atividades do grupo dentro do sistema.
No ano de 2012, a imprensa local divulgou que a polícia civil sabia da existência desta conspiração, chamada naquele momento de “consórcio do crime”. As rebeliões, motins e sinistros, em 2013, evidenciaram que as unidades prisionais eram territórios de lutas de eliminação pelo controle social do crime no Amazonas. Os líderes da FDN associados aos xerifes assumiram, taticamente, as reivindicações crescentes da população carcerária, mobilizando os sentimentos de indignação e revolta que brotavam contra as violências e torturas promovidas por agentes contratados pelo Estado. Cada agressão contra os corpos de presos se tornou combustível de um discurso moral a respeito das injustiças produzidas por um sistema que, em sua fantasia mais refinada, deveria existir para promover uma suposta ressocialização de pessoas. Os “cantos” de promoção da “casseterapia”[20] e as humilhações públicas de presos e seus familiares, também, ajudaram a consolidar a ideia de que os presos precisavam se unir, convergir e atuar em conjunto contra o Estado.
Além do enfrentamento ao Estado, a FDN criou outras ideias para minar a influência do PCC nas prisões do Amazonas, no início dos anos de 2010. Em meio ao conflito, o abrigo das facções criou uma economia da proteção, com apostas e adesões que funcionaram como mercadorias políticas[21] entre presos que precisavam fazer escolhas e trabalhar para enfrentar as consequências dela. O preço da associação a um grupo ou outro poderia variar de acordo com golpes e contragolpes deferidos dentro e fora das prisões. A FDN garantiu vantagem ao colocar na praça algumas mercadorias políticas de teor regional, oferecendo proteção em um arranjo entre criminosos que reivindicavam respeito e reconhecimento como um comando do Norte.
A consolidação do poder de mando da FDN, um poder simbólico para consolidação de um domínio[22], foi acompanhada por transformações significativas no contexto prisional, com a criação de regimes morais de conduta e organização interna. Diversos relatos de ex-presidiários de Manaus dão conta de que, antes da FDN, situações de violência no sistema prisional poderiam ocorrer por razões banais em virtude da ação arbitrária, cruel ou desprovida de sentido de determinados presos. Como aconteceu em outros Estados, a FDN criou normas e pretendeu, entre a população carcerária, obter o monopólio da violência nas prisões, buscando não apenas pacificar conflitos como comprometer, política e moralmente, pessoas presas com a sua “causa”. No caso da FDN, a adesão ao grupo foi chamada de “novo sistema”, que poderia compreender o pagamento de uma contribuição financeira mensal, com variação de valor para o tipo de crime praticado.
Observamos que essa adesão garantia vantagens significativas, sobretudo, para recém-ingressos, pois iniciavam sua vida no sistema prisional gozando de acesso à proteção, advogados e melhores condições de encarceramento. Conhecer um xerife poderia significar sair dos fundos insalubres e escuros das carceragens, para ter acesso a ventiladores, comida e proteção. Assim, assumir a caminhada da FDN é se comprometer com sua missão e visão de mundo. Significava, por exemplo, reconhecer que existiam inimigos e pessoas indignas de viver, consideradas “vermes”. Além dos “PCCs” e traidores da FDN, “gente acusada de fazer maldade e covardia”, como estupradores e molestadores de crianças, eram vermes. Entrar para a FDN significava, em determinados casos, eliminar vermes como uma forma de batismo e reconhecimento do comprometimento com o grupo. A promoção do extermínio de acusados de estupro, delatores, policiais presos, e todas as pessoas isoladas da população carcerária, foi mobilizada por essa representação de pureza do espaço e morte ritualizada.
Certamente, a capacidade de estabelecer o mando e iniciar eventos no maior número possível de unidades prisionais demonstrou vitalidade da FDN como uma família capaz de exercer o comando do crime no Norte. Convém salientar que o Sistema Penitenciário Estadual do Amazonas concentra a maior parte das unidades prisionais em Manaus. Em 2019, com pelo menos quatro unidades provisórias masculinas, um centro de detenção provisória feminino, duas unidades de regime fechado (masculino e feminino), um centro de recebimento e triagem, uma unidade prisional semiaberto feminino e uma casa do albergado. A partir de 9 março de 2015, o sistema passou a ser administrado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP). A gestão de unidades prisionais, com índices de superlotação de 98%, é, desde 2006, compartilhada por um sistema de cogestão com empresas privadas. Dessa forma, a gestão das prisões, no Amazonas, envolve a integração de um grupo que buscou a hegemonia dentro de um sistema público-privado não apenas incapaz de exercer resistência ao seu domínio como passou a ser pautado por ele. De fato, o sistema de cogestão precisou considerar o domínio dos xerifes e comandos nas prisões.
Conforme foi possível observar, a FDN dispôs de ações importantes para gestão da vida e da morte de presos. O ano de 2013 foi emblemático e consideramos um marco nas lutas pelo controle das unidades prisionais amazonenses. A situação, outrossim, reverberou nas ruas, com execuções sumárias sendo coordenadas desde as prisões. Observamos ainda que ocorreu uma intensificação nas tensões entre xerifes, com lutas pelo controle de pavilhão a pavilhão. Seguindo uma série de conflitos, que incluiu rebeliões promovidas na extinta e degradante unidade feminina anexada na Cadeia Pública de Manaus, no dia 9 de julho de 2013, uma rebelião foi iniciada no pavilhão C do Instituto Penal Antônio Trindade (IPAT), controlado pelo PCC. Os presos exigiam a volta de um detento transferido para a Unidade Prisional do Puraquequara (UPP), pois ele se encontrava marcado para morrer pela FDN. Na ocasião, segundo as narrativas de testemunhas dos eventos, presos do pavilhão A e B se posicionaram contra a “bagunça” feita pelos membros do PCC e, no meio da “lombra”[23], pelo menos 176 presos fugiram pelos fundos do IPAT. A imprensa noticiou que um líder da FDN comandou os eventos classificados como “a maior fuga em massa do sistema”. Esse foi capturado dois dias depois nas matas em torno da BR-174 que acessa Manaus a Boa Vista e, depois, a fronteira com a Venezuela.
Em agosto de 2013, os integrantes do PCC, que continuavam no pavilhão C do IPAT, mobilizaram outra rebelião para exigir melhores condições e segurança para eles. Acusavam o sistema de conivência com o assédio e ameaças de integrantes da FDN, exigindo providências para não serem assassinados por seus inimigos nas perigosas unidades prisionais do Amazonas. Os integrantes do PCC improvisaram bandeiras e as desfraldaram em sinal de alerta em diversos locais do presídio. O discurso público sobre esses eventos ressaltou que os presos dos pavilhões A e B, em especial lideranças da FDN, tomaram a frente das negociações para transferência dos presos do Pavilhão C. As bagunças promovidas pelo PCC tinham que acabar. O resultado desses eventos pôde ser constatado na transferência de 108 presos que moravam no Pavilhão C do IPAT, na madrugada do dia 25 de agosto de 2013, horas depois do início da lombra. As pessoas identificadas com integrantes do PCC foram transferidas para o Seguro/Inclusão, segregados nas unidades prisionais do Amazonas, resultando na afirmação da FDN como grupo hegemônico. Essa medida foi interpretada como uma forma de reconhecimento da hegemonia da FDN. Convém salientar que, em linhas gerais, a questão prisional sempre flutuou entre repressão e conivência com as facções. Como citado anteriormente, não significou grande novidade a atuação de agentes do Estado em busca da “paz nas cadeias” por meio de acordos tácitos entre governos do poder executivo e os governos das pessoas presas.
Em 2014, a FDN emergiu como um grupo importante e poderoso dentro e fora do sistema prisional. O grupo passou a ser apontado como um dos principais responsáveis pelo assassinato de pessoas ligadas ao PCC, no Amazonas. Outras ações importantes passaram a compor a reputação da facção acusada, ainda assim, de executar o delegado da Polícia Civil, Oscar Cardoso. A morte foi atribuída à Equipe Potência Máxima, em suposta retaliação promovida por presos fugitivos do sistema prisional. Em 2015, a FDN gozava de uma reputação significativa e seu reconhecimento social descansava na supervalorização de que o grupo tinha o controle absoluto dentro e fora das prisões[24]. A promoção de festas nas prisões, com consumo de bebidas alcoólicas e até mesmo uso de piscinas improvisadas em caixas d’Água, reforma de celas e quadras de esportes, distribuição de maconha e cocaína dentro das prisões, entre outras ações, ajudou na consolidação da imagem social de um grupo amazonense classificado, publicamente, como “a terceira maior facção do Brasil”. Vários grupos que ainda não haviam aderido a FDN e desconfiavam de que suas lideranças cederam a ideia de fazer parte da família que exercia o comando no Norte. O “novo sistema” alcançou os grandes e pequenos esquemas de tráfico, com o pagamento do caixinha coletivo em troca do status social de ser parte da FDN. Inúmeras músicas e festas, como grandes queimas de fogos por ocasião de aniversário de suas lideranças, celebraram o domínio da FDN. Seu estatuto passou a ser lido e considerado, garantindo aos associados o poder de gravar as letras do grupo em seus territórios por meio de pichações e camisas dos times de futebol identificados com o grupo.
Entre as consequências prováveis das ligações perigosas entre o Estado e a FDN, sustentadas pelas pequenas negociações, está o evento conhecido como “massacre do COMPAJ” (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), quando ocorreu a destruição do Seguro do regime fechado da referida unidade prisional. A intenção de extinção do Seguro é um dos objetivos da FDN para assegurar o domínio absoluto nas carceragens do Amazonas. É importante destacar que esses espaços foram criados para proteger os integrantes de facções menores presos dentro do sistema, assim como policiais, estupradores, entre outros criminosos que sofrem a discriminação dos bandidos que “andam pelo certo”, do lado de dentro, em geral, vinculados à FDN. Em meados de 2014, chegou a circular a ideia de que o governo do Amazonas extinguiria as áreas de Seguro nas prisões do Estado. Após a operação La Muralla da Polícia Federal, realizada em 2015, várias pessoas consideradas lideranças da FDN foram transferidas para presídios federais. A insatisfação prosperou no sistema e teria sido uma das motivações para a realização do massacre, supostamente realizado depois do retorno de um xerife para as carceragens do Amazonas[25]. Recai sobre a FDN a responsabilidade do massacre do COMPAJ e das consequências de seus atos sentidas em retaliações e conflitos violentos em outros Estados brasileiros.
No dia primeiro de janeiro de 2017, a população da cidade de Manaus acompanhou quase em tempo real, por meio de fotos, áudios e vídeos, o desenrolar da série de eventos constituintes do massacre do COMPAJ. As ações da FDN resultaram no extermínio de pelo menos 56 pessoas, 12 reféns, além de fugas em massa e um número desconhecido de pessoas vitimadas fora da unidade. A ação contou com o uso de pistolas, armas de grosso calibre, granadas e um arsenal de facas e facões. Os eventos aconteceram no semiaberto e regime fechado masculino do COMPAJ. Celebrada pela FDN, a ação evidenciou sua disposição para enfrentar o Estado e qualquer tipo de inimigo. Os protagonistas da ação divulgaram, por meio de seus telefones móveis, o terror e a crueldade promovida contra seus alvos, queimados e esquartejados vivos após intenso sofrimento físico e psicológico. As cenas daquele dia foram transformadas em um Vídeo DVD intitulado “FDN VS PCC – MASSACRE”, vendido dias depois nos comércios informais de Manaus. Alvo de uma grande procura e esgotado rapidamente em pontos de venda no Centro de Manaus, o vídeo mostra detalhes do massacre e traz um menu personalizado com o cântico divulgado pela FDN em que é possível escutar um relato macabro sobre o acontecimento. A capa do material, também personalizada, contém aviso sobre “os melhores momentos” de um dos dias mais violentos vividos nas prisões do Amazonas.
A FDN, como todas as outras fações brasileiras, é um fenômeno social possível em uma sociedade que inventou para si maneiras peculiares de lidar como problema social do crime e da violência. As prisões ofereceram as condições para existências de pessoas que viram nas injustiças perpetradas pelo sistema uma oportunidade de criar laços sociais. A FDN não existe como um grupo estruturado para fazer o crime, ela existe como uma comunidade moral e política de pessoas integradas por meio de lideranças que reproduzem modelos patriarcais de dominação. A força de suas lideranças não consiste na sujeição de pessoas, mas na sua capacidade de agregar essas pessoas em torno de interesses comuns, fazendo-as se sentirem parte integral do grupo ainda que obedientes a um mando o qual emana de uma posição de poder. Consideramos, obviamente, que a FDN não é um todo homogêneo, nem existe apenas em torno de suas lideranças nem por causa de seu Conselho de notáveis. Ela é uma invenção que percorreu o Norte do país, mobilizando jovens e responsáveis por esquemas domésticos de tráfico que, em linhas gerais, sentem-se motivados ou mesmo não veem como problema fazer parte de algo tão grandioso como a “terceira maior facção do país”.
Como em todas as outras facções, a mercadoria política da FDN consiste no suporte material e simbólico a diversas pessoas engajadas em diferentes atividades, aproveitando-se das privações e severas desigualdades intensificadas pelo sistema prisional. Ser bandido tem um valor diferenciado para os integrantes da FDN em relação à peculiar figura do galeroso. O bandido faz o crime, mas é o sujeito que anda pelo certo, respeita a família e o seu comando. Ser portadora desse status social tornou a FDN dona de uma mercadoria política que interessa a diversos sujeitos que praticam atividades ilícitas, garantindo-lhes um diferencial frente a aliados e inimigos. O sentimento de pertença a uma comunidade política e moral como a FDN permite acessos a esquemas vantajosos econômica e politicamente. Verificamos, no entanto, que o engajamento tem custos relativos ao comprometimento com algo que você precisa realmente observar. Erros, descuidos e incompetências podem custar muito caro na economia simbólica do crime.
O Comando do Norte foi componente importante para um grupo que arregimentou as indignações e revoltas contra o Estado, mas, também, contra o maior rival dos primeiros anos, o PCC. Ao mesmo tempo, a FDN alcançou parte do seu poder, trabalhando em cooperação com o CV, arregimentando sua simbologia no mundo do crime. Pelos últimos eventos de que temos conhecimento, em 2018, a fragmentação da FDN passa pela manutenção de um grupo originário afeito à ideia de que o Norte tem comando frente a outro que se abrigou sobre o manto do CV. Esse segundo grupo encontrou no reconhecimento social do CV no Norte um meio de enfrentar o discurso regionalista da FDN criando outro para si, como um CV do Amazonas, da cidade de Manaus. É cedo para pressuposições sobre o destino do projeto originário da FDN como a família detentora do comando do Norte, mas acreditamos que a sua experiência tem uma repercussão importante no surgimento de outros grupos que passaram a se organizar e pretender o controle do crime em seus respectivos Estados.