ARTIGOS
Recepção: 08 Junho 2022
Aprovação: 21 Setembro 2022
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.874
RESUMO: Este artigo apresenta os primeiros resultados de pesquisa mais ampla que propõe uma nova frente de investigação do memorialismo modernista mineiro e busca testar as possibilidades, alcances e limites de tratá-lo, sociologicamente, como uma experiência reflexiva da figuração do indivíduo, dos processos sociais de subjetivação e do conflito entre indivíduo e sociedade. Aqui nos concentraremos nas escritas autobiográficas de dois protagonistas centrais dessa prática literária e social: Balão cativo (1973), de Pedro Nava, e A idade do serrote (1968), de Murilo Mendes. Antes de concluir, fazemos ainda uma consideração intermediária sobre Menino sem passado (1936-1948), de Silviano Santiago (2021), como um dispositivo anacrônico de reescrita radical dos dois livros citados, que joga, teórica e ficcionalmente, com os modos, direções e intensidades de diferenciação de linhas de ação/individualização e com as relações de tensão entre elas.
Palavras-chave: memorialismo, modernismo, cosmopolitismo, individualismo, subjetividade.
ABSTRACT: This article presents the first results of a wider research on a new investigative front regarding the modernist memoirs from Minas Gerais. Its goal is to test the possibilities, extents and limits to which it can be considered, sociologically, as a reflexive experience of the individual’s figuration, the social processes of subjectification and the conflict between individual and society. We’ll focus on the autobiographical writings of two leading protagonists of this social and literary practice: Balão cativo (1973), by Pedro Nava, and A idade do serrote (1968), by Murilo Mendes. Before our conclusion, we also make an intermediate consideration about Menino sem passado (1936-1948), by Silviano Santiago (2021), as a radical anachronistic rewriting dispositive of those two books, which plays, theoretically and fictionally, with the modes, directions and intensities of the differentiation between lines of action/individualization and the tensions between them.
Keyword: memoirs, modernism, cosmopolitism, individualism, subjectivity.
Introdução
Este estudo apresenta os primeiros resultados de pesquisa mais ampla que propõe uma nova frente de investigação do memorialismo modernista mineiro e busca testar as possibilidades, alcances e limites de tratá-lo, sociologicamente, como uma experiência reflexiva da figuração do indivíduo, dos processos sociais de subjetivação e do conflito entre indivíduo e sociedade. Aqui nos concentramos nas escritas autobiográficas de dois protagonistas dessa prática literária e social: Balão cativo (1973), de Pedro Nava, e A idade do serrote (1968), de Murilo Mendes. Escrita autobiográfica crucial para a elaboração de subjetividades relacionadas ao projeto de self levado a cabo pelo modernismo brasileiro enquanto movimento cultural (Botelho & Hoelz, 2022). Ao lado de Carlos Drummond de Andrade, especialmente com seus Boitempo (1968) e Menino Antigo (1973), Pedro Nava e Murilo Mendes não apenas deram contribuições decisivas à recriação da memorialística no Brasil, mas, ao fazê-lo, acabaram por reposicionar o legado estético e político modernista na altura dos anos 1970.
O contato com o memorialismo modernista mineiro tem nos levado a uma série de perguntas que não têm recebido muita atenção na área do pensamento social brasileiro e que apontam para as questões da subjetividade individual como relação social e do cosmopolitismo da/na cultura brasileira. Chamamos a atenção para o conflito tênue, mas decisivo, entre indivíduo e sociedade nesses textos: uma subjetividade em busca dramática, não raro trágica, de individualização em meio à cultura objetiva representada pela família (a chamada “tradicional família mineira”) e pela sociedade e o Estado, inclementes estruturas de poder. O que nos remete à visão do social de Georg Simmel (1988, 2006) e, mais ainda, nos joga direto dentro do grande tema da sua sociologia. Na modernidade, o descompasso entre tudo aquilo que os indivíduos produzem fora de sua subjetividade, a “cultura objetiva”, e o cultivo pessoal, interior, da individualidade, alcança um nível extremamente assimétrico, gerando uma separação radical entre o indivíduo e seu potencial criativo, “a cultura subjetiva”. E essa cisão adquire sentido trágico justamente porque, em Simmel, a ação humana está sempre relacionada à ideia de criatividade originada da subjetividade.
O memorialismo, assim, tem se mostrado um campo fértil também para rediscutir, do ponto de vista teórico-metodológico, problemas perenes da relação entre literatura e sociedade. Que a literatura seja um fenômeno social não parece envolver muita controvérsia no momento. Mas as perguntas sobre se e como ela poderia, ou mesmo se teria o que, nos dizer sobre a vida social e a sociedade de um ponto de vista distintivamente sociológico e, mais ainda, por que deveríamos recorrer a ela para isso já configuram problemas mais resistentes.
Como mostram Hoelz e Botelho (2016), fazer “sociologia da literatura” pode significar coisas muito diferentes dependendo de como se concebe não apenas “literatura”, mas também “sociedade” e “sociologia”. Curiosamente, este último aspecto não tem merecido tanto a atenção dos especialistas, sejam eles críticos ou sociólogos que praticam a sociologia da literatura. A área parece carecer de uma reelaboração teórica que parta dos fundamentos da relação estudada para problematizá-la, a despeito da constatação praticamente generalizada na literatura especializada de que o desenvolvimento dos seus trabalhos está sendo acompanhado por uma maior pluralização de perspectivas e métodos, tornando a compreensão da literatura cada vez mais matizada e, mesmo, sofisticada. Por isso, é pertinente perguntar por que essa maior pluralização não tem concorrido na mesma medida para matizar as compreensões ou explicações da literatura, da sociedade e das relações que elas formam.
As figurações do indivíduo, das formas de subjetivação e do conflito entre indivíduo e sociedade no memorialismo ajudam a problematizar noções reificadas de sociedade. Nesse sentido, é importante levar em consideração o conceito de escrita de si (Foucault, 1994) segundo o qual a escritura é um ato de discurso implicado na elaboração de uma técnica de vida. A escrita é um ato de cuidado de si. Assim, não se presume uma subjetividade anterior ao texto que o produz, como um espelhamento de algo fora de sua fatura, mas lê-se a própria escrita como elaboração de um self.
Essa figuração do sujeito legível no texto é um dado da cultura objetiva, produzido na dinâmica de subjetivação, o qual, por meio da leitura, torna-se disponível à compreensão e crítica da governamentalidade e dos ideais de Eu em que, historicamente, se implica. É possível, assim, o exercício de interpretação das subjetividades em jogo em qualquer escrita, independentemente de sua classificação tradicional de gênero, percebendo-se o problema indivíduo-sociedade não mais apenas como tema do comentário mas, sobretudo, enquanto forma. Interessa-nos, dessa maneira, explorar a literatura como forma que codifica em termos próprios as ações, relações e processos sociais e que, por isso, problematiza noções reificadas de sociedade ao ler a produção de subjetividades a partir de formas intersubjetivamente construídas.
Essa é outra implicação importante e mais ampla da adoção da perspectiva de Michel Foucault aqui: não partimos da ideia pré-definida de memorialismo como “gênero literário”, pois nos interessa igualmente apreender os problemas relativos ao “gênero” a partir de relações de significado tecidas empiricamente, caso a caso, nos próprios textos. São as relações de significado mais ou menos cristalizadas nos textos que nos interessam como chaves de interpretação das sociedades que se figuram não simplesmente neles ou a partir deles, mas também com eles, com os textos e contextos.
Trazer à tona o problema da figuração do indivíduo e do conflito entre indivíduo e sociedade presente no memorialismo como prática de si e de subjetivação permite discutir a requalificação feita pela teoria contemporânea do problema sociológico clássico da relação entre indivíduo e sociedade, em especial por parte das sociologias do indivíduo. A relação entre indivíduo e sociedade é fundante da sociologia, como tão bem expressam os trabalhos de seus autores clássicos. Afinal, o indivíduo e a sociologia são criações históricas contemporâneas da modernidade. A individualização foi pensada, nesse sentido, como um fenômeno ligado às mudanças no padrão de relações sociais característico da modernidade. Atualmente, vemos emergir todo um campo identificado como “sociologias do indivíduo” por Danilo Martuccelli e François Singly (2012), Las sociologías del individuo, ou Bernard Lahire (2002, 2004), O homem plural e Retratos sociológicos: disposições e variações individuais, por exemplo.
Por individuação, na esteira do projeto de sociologia do indivíduo de Danilo Martuccelli (2007), entendemos o processo modelado pelo impacto das grandes transformações históricas e estruturais na experiência, construção e significação das trajetórias dos indivíduos. Sua dinâmica essencial “combina um eixo sincrônico com um diacrônico, interpretando no horizonte de uma vida – ou geração – as consequências das grandes transformações históricas” (Martuccelli, 2007, p. 30). A articulação desses eixos permite, então, tanto o estabelecimento de uma relação sui generis entre história social e biografia do ator (individual ou coletivo) quanto “a interrogação sobre o tipo de indivíduo que uma sociedade fabrica estruturalmente” (p. 30).
Já a subjetivação, em formulação do mesmo autor, inscreve-se na reflexão sobre os processos de racionalização e controle social modernos, diante dos quais se coloca uma pergunta fundamental: “como imaginar a possibilidade de uma emancipação humana?” (Martuccelli, 2007, p. 25, ênfase do original). Para esse processo, é fundamental que existam figurações sociais do sujeito aptas a serem encarnadas pelos indivíduos; por isso, para o autor, “na subjetivação, o indivíduo se converte em ator para se fabricar como sujeito” (p. 25). A história do desenvolvimento dessa perspectiva, assim, desdobra-se em dois planos concorrentes. No primeiro há, de um lado, o nível individual, do sujeito pessoal, e, de outro, o do sujeito coletivo; no segundo, um objetivo de libertação stricto sensu – a emancipação – e um processo crescente de controle social – a sujeição.
A partir do jogo de semelhanças e diferenças estabelecido pela análise, a abordagem comparativa dos livros de Nava e de Murilo Mendes toma como ponto de partida a codificação do conflito entre indivíduo e sociedade em cada texto e no uso que se faz dos dispositivos disponíveis para essas escritas de si em diferentes “gêneros” – a prosa, a prosa poética, o poema. Dessa forma, a partir de tópicas comuns que os atravessam, como a infância, a amizade, a sexualidade, é possível perceber na prática desses escritores modernistas a operação não apenas do comentário direto sobre aspectos da relação indivíduo-sociedade, mas também do gesto literário de reescrita – em tensão e submissão, repetição e subversão – de “gêneros” associados à narração de si.
Essas narrações e suas figurações dos conflitos no modernismo memorialista mineiro são, a nosso ver, indícios empírico-textuais de uma surpreendente construção social cosmopolita da diferença cultural brasileira. Cosmopolitismo relacionado à urbanização precoce de Minas Gerais, comparativamente ao restante do Brasil, a qual também ajuda a compreender o surgimento, no século XVIII, de uma literatura tão distintiva, com acentuado “cunho de universalidade” e um “gosto particular pela narrativa em primeira pessoa” – para lembrarmos “Poesia e ficção na autobiografia” (1989) de Antonio Candido. Mapear as camadas dessa reescrita cosmopolita e compor um repertório de formas de subjetivação, portanto, é a tarefa a que nos propomos, diante dessas duas obras, para qualificar na literatura percursos e sequências de problemas formais e sociológicos duradouros.
As narrativas modernistas de si parecem simultaneamente contrariar e reforçar a individuação numa sociedade em que, historicamente, tanto a categoria de indivíduo desempenha papel problemático nas identidades sociais (não tendo perdido inclusive sentido pejorativo no cotidiano), quanto são cada vez mais recorrentes as representações da família contra o indivíduo como unidade moral da sociedade. Nas páginas que seguem, após uma leitura detida das duas obras, que dá os subsídios para a interpretação proposta, encaminhamos a discussão nas considerações finais para a forma pela qual essas figurações do sujeito se relacionam com o paradigma da Bildung, expressa no que convencionalmente se chama de literatura de formação, ontem e hoje. Antes disso, porém, trazemos uma reescrita contemporânea do memorialismo modernista mineiro, não exatamente como um contraponto, mas, antes, talvez, para parafrasear livremente o título de texto clássico de Max Weber sobre a sociologia das religiões, como uma “consideração intermediária”: uma espécie de teoria dos graus e direções que tenta “dar conta de um fenômeno multifacetado, que compreende racionalizações divergentes tanto nas suas orientações como nas suas intensidades” (Waizbort, 1995, p. 29). Menino sem passado (1936-1948), de Silviano Santiago (2021), mais do que um dispositivo anacrônico de reescrita radical de Balão cativo (1973) e de A idade do serrote (1968), joga, teórica e ficcionalmente, com os modos, direções e intensidades de diferenciação de linhas de ação/individualização e com as relações de tensão entre elas, a partir de outros textos, inclusive do memorialismo mineiro. E, assim, afeta decisivamente o nosso repertório de formas de individuação e subjetivação.
O balão e o serrote
Balão cativo (1973), de Pedro Nava, e A idade do serrote (1968), de Murilo Mendes, são certamente textos diferentes do ponto de vista formal. O primeiro, segundo volume das Memórias do autor, é em geral associado à autobiografia enquanto gênero que oferece um pacto de leitura (Lejeune, 2014) afeito à reconstrução do vivido, pela combinação, no projeto do livro, entre o nome do autor, narrador e personagem, em poucos e longos capítulos de prosa corrida que “hospeda” a memória. Já o segundo é uma narrativa de fragmentos curtos, às vezes nomeada de prosa poética, em que a voz (narrativa?) elabora um sujeito sempre em interação com outros personagens, objetos e mesmo animais cujas agências colocam em xeque qualquer noção de gênero ou identidade mais acabada, fazendo do deslocamento e da subversão humorística e veloz do horizonte de expectativas do leitor um dos aspectos relevantes da forma. Haverá em comum entre ambos, no entanto, uma tópica fundamental do memorialismo modernista mineiro, que permite ler transversalmente a figuração de subjetividades em constante processo de descobrimento e aprendizado – do outro, do tempo, do espaço, em suma, do mundo: a infância.
Se as Memórias de Pedro Nava podem ser lidas, numa dimensão, como a história da sua formação, Balão Cativo é certamente o volume mais emblemático a esse respeito. Por vários motivos. A começar pelo fato de este segundo volume das memórias ser inteiramente dedicado à recuperação da infância do autor, que se fez hábil narrador, e sua transição do ambiente doméstico para o mais público dos colégios. Compreendendo os anos de 1911, ano da morte do pai, a 1916, ano de seu ingresso no mais renomado colégio brasileiro do Império e da Primeira República, o Pedro II, no Rio de Janeiro, Balão Cativo dá continuidade à ação interrompida ao final do primeiro volume das Memórias, o Baú de Ossos. A impressão de que os livros, ou ao menos partes deles, formam um conjunto relativamente coeso para a leitura não é inteiramente fortuita.
Como Nava anota ao final do datiloscrito de Baú de Ossos e no início do de Balão Cativo, depositados no Arquivo que leva seu nome na Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro, seu plano inicial era publicar os dois primeiros capítulos do segundo volume ainda em Baú de Ossos. Por isso a numeração das páginas dos datiloscritos de Balão Cativo segue duas ordens diferentes: uma que dá continuidade ao primeiro volume, outra que inicia o segundo. A decisão de deixar os dois capítulos já escritos (intitulados “Morro do Imperador” e “Serra do Curral”) para iniciar Balão Cativo, cuja redação integral levou ainda praticamente mais três anos até as vésperas da sua publicação em 1973 deveu-se, como o autor também fez questão de anotar em ambos os originais, ao “bom conselho” de Fernando Sabino. O prosador era seu editor na Sabiá, selo pelo qual havia lançado suas memórias no ano anterior, 1972, mesmo ano em que ela era incorporada à Editora José Olympio, que publica Balão Cativo.
Assim, o primeiro capítulo de Balão Cativo, “Morro do Imperador”, narra o período em que, após a morte do pai e os anos iniciais vividos no Rio de Janeiro, Nava, seus irmãos mais novos e a mãe, Diva Mariana Jaguaribe Nava, se veem obrigados a voltar para Juiz de Fora. São anos difíceis os passados no sobrado nada acolhedor da avó materna, Inhá Luiza. “Serra do Curral” compreende os anos 1914-15, quando a família Nava se muda para Belo Horizonte na companhia do avô materno, Joaquim José Nogueira Jaguaribe, ou simplesmente Major, após a morte da avó. Neste capítulo aparece também a narrativa do ginásio Anglo-mineiro, de que foi aluno, e que contrastará em mais de um sentido com o Pedro II. “Engenho Velho”, o terceiro capítulo, se passa no ano de 1916, e é dedicado à vivência de Nava com seus tios Alice e Antonio Salles, no Rio de Janeiro, para onde viera sozinho para ingressar no Pedro II – uma experiência afetivamente intensa e também decisiva do ponto de vista intelectual. “Morro do Barro vermelho”, narra sua história no internato deste colégio, tema que ao mesmo tempo se ampliará e detalhará nos três primeiros capítulos do volume seguinte, Chão de Ferro, publicado em 1976.
A intenção inicial do autor, porém, não desapareceu simplesmente com este plano de capítulos ao fim e ao cabo adotado por sugestão do editor do livro. Afinal, ainda é rentável do ponto de vista da leitura dividir Balão Cativo em duas partes, sendo o divisor delas justamente a morte da avó, Inhá Luiza. Assim, na primeira parte, mais próxima do tema de Baú de Ossos, quase em sua totalidade voltado à narrativa sobre a família e os antepassados, prevalecem o espaço, as relações, a sociabilidade e os costumes domésticos patriarcais (e suas arbitrariedades características). Aqui vale observar o contraste na convivência da família nuclear de Pedro Nava com, de um lado, seus parentes paternos no Rio de Janeiro, idealizada como um verdadeiro idílio no último capítulo de Baú de Ossos; e, de outro, com a família materna em Juiz de Fora, marcada por relações extremamente autoritárias, excessivas e violentas, especialmente por parte da avó Inhá Luiza, de quem o narrador não parece ter merecido senão a indiferença.
Essa oposição entre as famílias paterna e materna do escritor repõe a oposição crucial entre positivo e negativo que estrutura as Memórias de Pedro Nava como um todo. É verdade que a tradicional família mineira já vinha sendo objeto de críticas de muitas narrativas memorialísticas produzidas pela própria geração de Pedro Nava, e dele próprio já em Baú de Ossos. E alguns dos seus melhores amigos de toda a vida contribuíram para a ampliação dos seus significados sociológicos e propriamente estéticos, como Carlos Drummond de Andrade com Boitempo (1968) e Menino Antigo (1973) e Murilo Mendes com A idade do Serrote (1968), que leremos a seguir. Todos eles mineiros, ligados ao movimento modernista daquele estado, como mineiro é ainda Cyro dos Anjos que com suas memórias Explorações no tempo (1963) também recria lembranças da infância refletindo sobre a estrutura patriarcal mineira e suas violências características.
Em Balão cativo (1973), portanto, Pedro Nava reconstitui período decisivo de sua formação ao narrar a transição da criança entre o ambiente familiar e o espaço público, da casa à rua. Ao final dos anos de tutela da avó materna Inhá Luiza, o menino presencia a morte da matriarca como um divisor de águas, narrado de forma dramática (e antológica) ao fim do primeiro capítulo (“Morro do Imperador”) que abre, assim, uma segunda parte do livro. É possível observar, então, um movimento de fragmentação da família ampla, que se divide em diferentes núcleos, mesmo que sua rede de reconhecimento e de favores continue a pleno vapor. A passagem que essa fragmentação abre a um universo social cada vez mais amplo se materializa, na forma literária, pela evocação dos passeios de bicicleta feitas pelo menino Nava. Passeios que ampliam significativamente sua sensibilidade, conhecimento e impressão do “mundo”: começando pela cidade que existe para além da família, da parentela, da vizinhança. E, mesmo que se trate apenas de uma “aventura” de criança, permite-lhe também dar vazão ao exercício de todo o complexo de reconhecimento, estranhamento, alteridade, que vai ampliando sua sensibilidade. Como diz numa das passagens:
O menino que ainda não sai de casa sozinho tem a impressão de que está no centro do mundo e que os outros vivem, como planetas, em torno de sua personalidade solar. Depois é que vê seu nada quando se compara às galáxias que vislumbra. Minhas saídas no resto de bicicleta que me coube, minhas idas e vindas ao Machado Sobrinho, as longas explorações feitas durante as gazetas às aulas deram-me noção do universo de Juiz de Fora e da necessidade de explorá-lo.
Antes das grandes viagens – a mudança da família para Belo Horizonte após a morte da avó e a sua volta para o Rio de Janeiro – as pequenas incursões de Nava pelas redondezas da casa da avó vão permitindo o deslocamento da geografia, da sensibilidade e da autoridade da vida familiar patriarcal. As enumerações feitas nesses percursos, em que se acumulam casas, pessoas, bichos e coisas evocadas da memória infantil, vão criando uma espécie de topografia a um tempo histórica e sentimental, caracterizada não pela racionalização e redução gráfica do espaço, típica dos mapas, mas por uma deriva e alargamento do olhar, mediados pela rede de relações sociais em que o sujeito se insere, sem falar da reflexividade implicada na escrita madura de um passado remoto de si. O sentido de deriva, simultaneidade e sequência narrativa em longos parágrafos, com grande riqueza de detalhes e encadeamentos por vezes surpreendentes, lembra uma escrita em plano-sequência em que os elementos coexistem num continuum.
É nesse espaço que se pode ler uma sutil mas contundente política da memória, em que monumentos da cidade têm sua legitimidade questionada diante da lembrança de pessoas cujos serviços para o bem comum são mais reconhecidos pelo narrador, por exemplo, ou em que episódios de violência de toda ordem são reconstituídos de forma aguda e crítica. Está encenado aí algo da ideia de formação abordada por essa prosa. Ela se baseia não apenas no desenvolvimento gradativo das predisposições do indivíduo, mas também na sua socialização, isto é, no aprendizado sistemático dos papéis sociais que lhe foram prescritos pelo sistema social e que, de acordo com as prerrogativas de seu grupo de origem, cumpre-lhe desempenhar.
Isso para não falar da integração do indivíduo à sociedade por meio da aprendizagem escolar, entre o Nava do Anglo-mineiro e aquele do Pedro II; o papel da educação propriamente literária no processo sentimental e intelectual do narrador; o impacto mágico do cinema; ou os exercícios de fixação dos conteúdos didáticos na sua reflexão sobre as técnicas da memória, seja por meio de métodos mais tradicionais voltados à destreza mental, seja também por meio das experiências modernas que então surgiam e que passavam a comportar os sentidos e os exercícios manuais, o uso de imagens, do corpo etc. Há nessas passagens uma ênfase no papel da memória no processo de aprendizado, que acaba por revelar toda uma educação do olhar e dos outros sentidos, em curso na infância e início da juventude do narrador, que, certamente, são de importância capital para a definição do memorialista que ele se tornou. Os anos de aprendizagem de Pedro Nava são também os anos de formação do narrador das Memórias. Assim sendo, as questões levantadas acima se exprimem na escrita autobiográfica não apenas como tema, mas como forma numa narração que, dotada do repertório analisado, se volta sobre a construção de suas próprias condições de possibilidade.
A idade do serrote (1968), de Murilo Mendes, por sua vez, divide-se em quarenta e um capítulos curtos cujos títulos lançam os motes das interações experimentadas pela voz em primeira pessoa. Os nomes vão de referências a pessoas do convívio doméstico e familiar do narrador (“Etelvina”, “Dona Coló” e “Meu pai”) até enquadramentos situacionais e temáticos (“Religião”, “Confissões”) e espaços públicos (“A rua Halfeld”), passando por bichos (“A lagartixa”) e personagens mais ou menos anônimos da cidade (“A rainha do sabão”). A enunciação, sempre em movimento entre esses encontros, vai construindo aos poucos um horizonte sempre em alargamento, em que as descobertas da infância ganham sabor pela observação das diferenças entre personalidades, trajetórias e posições sociais, no que toca às pessoas.
Seu percurso geográfico, não linear como tudo o mais no livro – em que os fragmentos parecem existir em simultâneo e comportar dentro de si múltiplas temporalidades – compreende pomares, praças e cidades onde bichos, plantas e coisas interpelam o sujeito, o qual se elabora em meio a uma rede que, assim, supera o humano. Como uma espécie de parâmetro do deslocamento do olhar (o livro se encerra com o capítulo “O olho precoce”), a cultura objetiva cosmopolita aparece, subjetivada, como chave de abertura para o mundo na interpretação dos acontecimentos locais. Ao contar a história de sua prima em segundo grau, Hortênsia, que passara a vida reclusa em quartos solitários, na casa da própria mãe e, após sua morte, na de outros parentes, conclui: “Foi ela para mim a anunciadora de certos personagens de Dostoiévski e Kafka.”
O que se lê, portanto, é a mobilização de um lugar “entre” as interações na construção literária de um “eu” em movimento de abertura para a dúvida e a desconstrução da unidade. Nesse sentido, mesmo a presença da religião no texto faz parte de uma configuração muito particular de um catolicismo que sacraliza o cotidiano na forma dos prazeres alimentares e sexuais do corpo, e que serve como ponto de contato com um universo supra-humano, vencendo o provincianismo com uma perspectiva universal da eternidade e das “questões formidáveis” que a teologia coloca. A ideia de salvação em jogo, importante para a análise de um gesto de deslocamento sobre si implicado numa cultura religiosa como a referida, parece ser a dos pequenos gestos preservados na memória. Nela, em processo contínuo de reflexão e aprendizagem, convivem passado e futuro; Minas e o mundo.
Em “Duas lições de cartografia fantástica”, Marília Rothier Cardoso parte do dado histórico da participação de Jorge de Lima e Murilo Mendes na Comissão de Literatura Infantil do Ministério da Educação, em 1936 e 1937, para ressaltar o tema da infância como uma das chaves da imaginação poética dos autores, em contraponto às “orientações autoritárias da modernização nacionalista” brasileira (Cardoso, 2015, p. 43). A esse aspecto segregador da cultura política, a crítica opõe um cosmopolitismo fantástico implicado na cartografia dinâmica das brincadeiras de recordação e enunciação infantis.
Tratando de A idade do serrote, Cardoso considera, em diálogo indireto com as proposições de José Guilherme Merquior (2016), que aquela escrita se dá num tempo em devir e num espaço de intensidades: a viagem do menino seria, então, um empreendimento de Orfeu moderno. A partir da conhecida tese de Walter Benjamin sobre o surrealismo, atribui-se à interpenetração entre som e imagem na inteligência o efeito de uma redução do espaço do sentido na enunciação. A infância, desde o seu radical etimológico infans, é interpretada enquanto instância da experiência aquém da linguagem, lugar impessoal e pré-objetivo da fratura entre ambas.
Seria possível pensar, portanto, com Cardoso, nesse menino sem passado elaborado no texto como uma figura da primeiridade e liberdade diante das tradições e da cultura com que convive. O deslocamento espaço-temporal do narrador, simultaneamente infantil e maduro, seria assim uma estratégia de reelaboração da experiência em chave cosmopolita, furando as determinações do contexto de origem. Uma resubjetivação que conta com a experiência do passado e a reflexão do futuro.
Mas será Fernando Fábio Fiorese Furtado quem, pela leitura integrada do feminino com o maternal, especificamente em A idade do serrote, dará maior concreção à análise crítica de um móvel importante daquela cena escritural. Em “Desdobramentos da figura materna na prosa memorialística de Murilo Mendes” (Furtado, 2001), o crítico enuncia o regressus ad uterum como uma tópica tradicional do memorialismo, retomada no caso concreto, apoiado ainda nas imagens da água – rios e mar, amamentação – como manifestação de uma vitalidade primeva. O impulso de “ver, rever, ver, rever” (Mendes, 2018, p. 149) seria uma maneira de elaborar, pela repetição (e o serrote ganha aí mais uma conotação), o trauma da morte precoce da mãe do narrador. Essa ausência da figura estilhaçada e distribuída pelas muitas meninas e mulheres que habitam a memória ganha, no contato com a ama-de-leite Etelvina, uma formulação própria: o corpo negro e o leite branco são índices “da própria infância do homem e do cosmos. A noite, o dia.” (Furtado, 2001, p. 120).
A articulação de uma permanente tensão entre tempo absoluto, da ordem do cosmos e da eternidade, literatura e cultura de forma geral, e experiência primeira da infância (ou entre Eros, Logos e Chronos) será o que, para Furtado (2001, p.123, grifos do original), permite ao autor “escavar passagens entre a infância vivida e a infância sonhada, entre o eu biográfico e o eu lírico”. Lembrando o radical comum de passado e passagem, considera ainda que a erótica aliada à instabilidade temporal compõe no texto uma cronologia absurda, descentrada e labiríntica, na qual se dá a transição da infância à adolescência, ou do mito ao logos. A repetição daquela cena inicial, portanto, na tentativa de capturar seu movimento em direção à idade adulta (ou seu percurso formativo) pode ser entendida como uma tentativa de produção de diferença, ou, no mínimo, de diferenciação do sujeito em relação ao passado marcado pela dor da perda da mãe, suporte fundamental do indivíduo, especialmente em culturas católicas e patriarcais como a de que aqui se trata. Novamente, uma resubjetivação, que só pode acontecer pelo deslocamento – no tempo, no espaço, na cultura – do olhar sobre si (implicado também na condição de “duplo exílio”, da infância e do país, que circundam essas memórias (p. 117).
Assim, parece possível interpretar o gesto escritural de retorno à infância, em A idade do serrote, como exploração da possibilidade de criação de uma perspectiva crítica e transformadora do próprio passado, tanto pessoal quanto histórico. Esse retorno, no caso estudado, dar-se-ia poeticamente pela potencialização da experiência sobre o discurso, num desvio pelo corpo em relação a uma cultura objetiva inculcadora e autoritária (desvio capaz, por sua vez, de torcer as regras do discurso e produzir figurações divergentes do indivíduo). A poesia apareceria, portanto, como técnica de si e abertura para o mundo na Juiz de Fora fantasmagórica (Candido, 1989) inventada pelo texto, bem como para seus personagens e alteridades em geral: livros, bichos, estórias.
A ordem legível no texto, para além da constatação de Antonio Candido (1989) sobre a fixidez do tema no livro, pode ser atribuída à figuração do feminino ou maternal – entre material e transcendente (Neves, 2006) ou presença e ausência (Furtado, 2001) –, da família – entre tradição e loucura (prima Hortênsia, tio Lucas) – e da religião – entre sagrado e profano ou consagração e colaboração do pecado (Andrade, 1974a, 2012). A relação entre indivíduo e sociedade, portanto, mediada por essas estruturas, elabora-se numa dinâmica entre transgressora e continuadora que não faz a apologia nem da adequação (como um Joaquim Nabuco de Minha Formação) nem do conflito aberto pelo qual ambos os polos se batem (como um Mário de Andrade de O movimento modernista).
O texto marca uma descontinuidade, não há dúvida, em relação à ideologia do progresso e da racionalização das relações de dominação entre pessoas e coisas; seu movimento de repetição e reelaboração é, sim, capaz de produzir diferenças em relação às representações tradicionais da família e religião. Mas caberia perguntar, dado o seu caráter ambíguo – “conciliador de contrários/ incorporador do eterno ao contingente”, como na trova de amizade dedicada a Murilo Mendes por Manuel Bandeira –, até que ponto sua valorização das diferenças e de uma ética da convivência – numa comunidade mítica, cosmopolita e imaginada da Juiz de Fora da infância – implica o apagamento de desigualdades.
Nesse sentido, pode ser que estejamos diante de um limite da técnica e processos de subjetivação mobilizados nesse caso concreto. Mesmo porque, dentro do memorialismo modernista mineiro, há outras formulações da infância muito mais ciosas dos choques e contrastes sociais, como a do próprio Pedro Nava em Balão cativo. Mas essa é apenas uma das diferenças entre os livros, como se procurou demonstrar. Para um último ponto de comparação entre essas escritas de si – e as sinapses que elas criam desde o problema da relação entre indivíduo e sociedade – vale mencionar ainda um tema transversal a ambas: o aprendizado. Topos comum nas figurações modernas da infância e especialmente nas narrativas de formação, nesses textos ele também será motivo de alguma diferenciação.
Como mencionamos anteriormente, os anos de aprendizagem de Pedro Nava são também os anos de formação do narrador de suas Memórias. Não apenas porque parte importante da elaboração da problemática integração do indivíduo à sociedade pelo aprendizado escolar acontece em suas páginas, em especial as dedicadas ao ginásio Anglo-mineiro e ao Colégio Pedro II, mas porque ali também são adquiridas técnicas mnemônicas que serão fundamentais para a realização do projeto literário de recuperação do tempo perdido, de restituição da vida em sua total significação, cuja atenção ao detalhe e epicidade narrativa já foram destacadas. Como um desses dispositivos, citado no texto e usado documentalmente para a fabulação do autor, estão cartas escritas no Anglo-mineiro à sua família. Prescritas pela disciplina escolar, eram preenchidas pelo jovem Nava com relatos do cotidiano, por “falta de assunto”:
Por morte de minha Mãe e de tia Alice, chegaram-me às mãos lembranças guardadas por elas: as cartas que lhes escrevi entre 14 e 15, do Anglo. Assim, as que em vida me deram vida e convivência, mortas, legaram de volta minha infância. É por estas folhas amareladas que posso reconstituir o internato dos ingleses. Escrever para a família era cortesia a que nos obrigavam os professores. À falta de assunto, eu fazia sempre uma espécie de relato do meu dia a dia e é neles que encontro nossas atividades e horários
(2012, p. 168).O que se narra, portanto, é o processo de aquisição de técnicas que serão decisivas para o resultado final das memórias e da versão de self modernista apresentada nelas. Outros exemplos poderiam ser apresentados, como o estímulo à leitura encontrado pelo personagem como contraponto à sua inabilidade para o esporte, por sua vez um dos pilares do projeto pedagógico do Anglo-mineiro (cujo lema era mens sana in corpore sano). Ou as aulas de desenho e trabalhos manuais em que se aprende a projetar e executar obras com diferentes andamentos e durações de composição e fruição. Mas o que há em comum entre todas essas evidências e que interessa especialmente a esta análise é a relação que elas guardam com uma experiência institucional. Por mais que a inadequação entre os costumes, a língua, o sotaque dos ingleses e a paisagem local seja motivo constante de piada entre Nava e seus colegas – o que rende passagens realmente cômicas, e até críticas, sobre aquela institucionalidade – não é possível deixar de notar certa admiração pelo estilo anticlerical, organização apolínea e vocação cosmopolita do colégio. Isso para não mencionar o efeito capacitante das técnicas enumeradas acima para a construção do livro que o leitor finalmente acessa.
Vejamos, por outro lado, a primeira menção à instituição educacional em A idade do serrote. No capítulo “Amanajós”, dedicado a um notório alcoólatra juiz-forano que participa da mitologia local, Murilo escreve:
Suplente do demônio segundo o professor Alípio Peres diretor do Ginásio Santa Cruz onde estudo e desestudo, namoro e desnamoro, onde Amanajós é discutido admirado odiado divide os alunos puxa vida! Diz: morrerei bêbado, assim não sentirei quando a bicha vier. Tem sempre o nada ao alcance da mão. Como de resto quase todos
(2018, p. 27).Perceba-se não apenas o nome do Ginásio, em tudo contrário ao perfil laico da educação inglesa de Nava, mas o plano de igualdade em que se situam estudo e desestudo; namoro e desnamoro. Conforme já observamos anteriormente, o sentido da escavação da memória muriliana é de aproveitamento da primeiridade da experiência infantil como uma força vital contrária à objetivação e até mesmo a certa racionalização dos interesses e de outros aspectos da vida social. Resgatando o tema do pecado como objeto de elaboração estética e quebra relativa do ideal de autoaperfeiçoamento da Bildung, o autor termina o trecho numa exploração sobre o caráter demoníaco do personagem que dá título à seção, respondendo à sua qualificação feita pelo “professor Alípio Peres diretor do Ginásio Santa Cruz”:
Não sei se era suplente do demônio; de qualquer forma encarnou para mim a primeira imagem de um demônio menor, talvez de quinta classe, reduzido, provinciano, ajustado à minha dimensão da época: julgando-o um anarquista, admirava-o secretamente. De resto, antes de crer na ideia ordenadora de Deus, acreditei na ideia desordenadora do demônio. Isto me parece mais racional do que irracional, mormente no contexto do nosso tempo de campos de concentração, genocídio, fornos crematórios e bomba atômica, construídos pela inteligência humana, mas com a sutil e oculta colaboração daquele que a justo título foi crismado de príncipe das trevas – o único príncipe que até hoje me despertou admiração, terror, espanto
(Mendes, 2018, p. 28).A “ideia desordenadora do demônio” não só guarda anterioridade em relação à ordem divina – o que deve ser levado a sério num projeto tão apoiado na noção de “origem”1 quanto este – mas é ambiguamente posicionada como fator de uma racionalidade do sujeito em tempos de campos de concentração e fornos crematórios (métodos de racionalização da limpeza étnica nazista [Löwy, 2002]). A educação de Murilo, para além de abrir mão da institucionalidade como seu suporte, preferindo a interação com pessoas, situações, bichos e coisas de outras extrações, é a do estudo como do desestudo, do namoro como do desnamoro. E o demônio, em especial na raiz greco-latina do termo daimon ou daemon, é uma figura que habita um espaço entre o terrenal e o sagrado pela interioridade dos humanos (em oposição à exterioridade dos angelus, outro tipo de figuras liminares-mensageiras da mesma cultura).
Em suma, o que em Nava é recordação, lembrança e formação, em Murilo é primeiridade, esquecimento e deseducação. Mesmo sua interação com certa institucionalidade católica é largamente mediada por sua interpretação muito própria do fenômeno religioso, pela “fusão do catolicismo primitivo com a mentalidade moderna” (Mendes, 2018, p. 42) e sobretudo pela “colaboração do pecado”. A segunda (e breve) menção ao colégio feita no livro, aliás, vem no capítulo “Religião” – e está associada a práticas que “aborrecem”, como a das missas em ritos incompreensíveis (p. 47). A seguinte, em “Cláudia”, vem em referência à personagem que dá nome ao trecho, “sobrinha do diretor do colégio..., onde eu estudava. (Por quantos colégios andei!)” (p. 54).
Não só a instituição deixa explicitamente de ser nomeada, ao contrário da moça, como é só uma instituição entre outras, fato de pouca importância para o narrador diante do acontecimento erótico. Isso se repete no capítulo “Margui”, em que o personagem se matricula na Escola de Farmácia, interrompendo os estudos de ginásio, porque o que “interessava era estar perto de Margui: sua família morava ao lado da Escola” (p. 74). Após cursar o primeiro ano com boas notas, abandona as aulas quando a personagem se muda e deixa de responder suas cartas, o que acontece na página seguinte à da citação anterior. A forma da enunciação é simples. “não tornei à Escola.” Nas estratégias formais de subjetivação e individuação, o passado é “recuperado” em Pedro Nava e antes “transformado” em Murilo Mendes. Mas o que ocorreria se um narrador não mais dispusesse de um passado seu?
Menino sem passado: consideração intermediária
A leitura comparada dos dois livros até aqui abordados permite a análise das aproximações e diferenças nas maneiras pelas quais ambos formalizam uma tópica fundamental do memorialismo (presente em especial, mas não apenas, no memorialismo modernista mineiro): a infância. Por essa mediação, é possível ler transversalmente a figuração de subjetividades em constante processo de descobrimento e aprendizado – de si, do outro, do tempo, do espaço, do mundo. E, num plano mais geral, pensar como cada um dos textos afeta o repertório de formas de subjetivação figuradas no memorialismo brasileiro em geral.
Em Menino sem passado (1936-1948) [2021], Silviano Santiago revisita essa mesma tópica movido por uma técnica de escrita em que o corpo desempenha mediação fundamental na relação homológica entre “grafia-de-vida” (e não mais autobiografia) e “composição literária”. Nesse (entre-)lugar da cena escritural, ganha destaque no projeto a noção de “hospedagem”, segundo a qual tanto os textos se situam uns nos outros como, entre autor e leitor, possibilita-se um pacto pelo qual as memórias do segundo se hospedam na escritura do primeiro. Assim, no sentido político da escrita de si, o que se percebe naquelas memórias é uma urgência da comunicação, a necessidade da reescrita e o trabalho de automonitoramento reflexivo sobre a questão central da repetição com diferença.
Menino sem passado, por um lado, apresenta-se como se estivesse e se oferecesse em campo aberto, abre-se para “fora” num registro que pode até assumir um sentido conflituoso, ao incluir e fomentar improváveis comunicações com o leitor. Ao mesmo tempo, faz parte de um trabalho árduo de composição – em mais de um aspecto, no sentido de “chamado”/“vocação”, segundo a acepção calvinista de trabalho, universalizada na modernidade tal como destrinchada por Max Weber. Trabalho metódico, cotidiano, repetitivo, portanto. No caso de Silviano, trabalho estético consciente da contingência e refratário a essencialismos. Assim, o ponto a que ele nos convida é, antes, o de relacionar as mediações – sociais – que todo trabalho de arte também pressupõe, sem as quais, na verdade, a abertura da obra para o outro – da literatura para o leitor – não constituiria uma ampliação significativa do campo da experiência.
Paradoxalmente, nesse caso, um artista-pensador também da memória e das memórias, dos modos de subjetivação e das práticas de si, a que poderíamos chamar de “pós-moderno”, vem se dedicando de modo sistemático e vocacional (aqui o aparente paradoxo) a cruzar, experimentar, problematizar e, também, a diluir fronteiras da literatura, recusando a ideia de gêneros, ampliando a prática e o alcance estético e político da autoficção etc. Por que retomar a escritura de suas memórias? Parece que nelas há um sentido de “projeto”: estamos diante apenas de um primeiro volume? É isso, ao menos, que sugere a delimitação temporal da narrativa indicada no título – “(1936-1948)”. Isso, apesar de todo o fluxo da memória que, obviamente, não se deixa domesticar inteiramente pela cronologia; e, também, apesar de o narrador de Menino sem passado ser um homem idoso e muito, muito experiente no presente – como são, no livro, a dupla de anciãos de outros tempos Vovô Amarante e Nhô Campeiro que tanto fascinam o menino Vaninho.
Acontece que Menino sem passado (1936-1948) se hospeda em muitos textos. A começar pela poesia de Murilo Mendes, que dá título ao livro, e no memorialismo mineiro de Pedro Nava, especialmente Baú de ossos (1972) e Balão cativo (1973) e novamente de Murilo Mendes, agora de A idade do serrote (1968). Mas também, de modo muito especial, em Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, livro de poemas de 1978 do próprio Silviano em que é especialmente legível o trabalho sobre a questão do aprimoramento da subjetividade individual nos quadros da discussão da crise do ideal de Bildung – que a Segunda Guerra Mundial terminou por evidenciar tragicamente – e no qual, justamente por isso, a precariedade e a incompletude que restam ganham nos poemas do livro um sentido dialógico muito próprio com o leitor.
Ambos os aspectos passarão por incessante reescritura na obra de Silviano desde Crescendo durante a guerra, e até antes dele. Mas a discussão ganha relevo porque é essa fratura no ideal de Bildung que ressignifica o próprio horizonte do cuidado de si que como que se “desencanta” (no sentido weberiano), tornando-se cada vez mais e apenas uma “prática”.
O que se coloca em causa, assim, é o debate sobre até que ponto o trabalho árduo da memória permite mesmo curar-se do tempo. Com o Michel Foucault (2019) de A hermenêutica do sujeito, é possível pensar que na reminiscência, que é uma prática de si, não se encontra uma verdade escondida. Não estamos mais, portanto, no horizonte utópico em que se permitiria equacionar reminiscência do passado e busca da felicidade. Niestzscheanamente, o narrador deve assumir os riscos envolvidos no confronto direto do seu infortúnio, deve se convencer de que os desafios e a alteridade aí implicados é que permitirão o seu autoaperfeiçoamento subjetivo.
A narrativa memorialística de Silviano explora e nos convida com clareza às possibilidades de resubjetivação, apontando também os limites e os riscos impostos a cada um de nós pelo domínio da “cultura objetiva” (no sentido de Simmel) no mundo em que o ideal de Bildung já desapareceu. A memória é uma apropriação, processo em permanente transformação. Por isso, paradoxalmente, talvez, não seja pequena a sensação de liberdade que a percepção do esquecimento experimentada na leitura de Menino sem passado acaba por nos trazer.
Num contexto em que a ideia (e sensação) de liberdade se torna central para o debate político, e no qual os efeitos de um certo tipo de individualismo parecem determinantes para o significado dessa ideia em discursos públicos, isso não é pouco. Se o passado abandonado jamais se torna passado; se é preciso lembrar para esquecer com liberdade; e se a memória pode ser lida e escrita como solidariedade, reconhecimento e integridade ou fragmentação do “eu”, interessa por fim situar o memorialismo modernista mineiro aqui analisado em perspectiva com o problema colocado pela obra de Silviano Santiago e com questões sociológicas duradouras, como a da Bildung e seu desencantamento na mediação da relação indivíduo-sociedade. É o que gostaríamos de fazer nas considerações finais a seguir, ensaiando não uma conclusão, mas também novos encaminhamentos que o percurso aqui realizado, enfim, agora permite.
Formas da relação indivíduo e sociedade
Se em Menino sem passado o que se lê é a figura de uma subjetivação desencantada, prática de um (con)texto pós-Bildung, hospedada em textos de outras temporalidades, parece-nos que as Memórias de Pedro Nava são o seu contraponto no memorialismo modernista mineiro. Não meramente recordar, mas recuperar o tempo perdido, restituir a vida em sua total significação. Esse o empenho a que se lançou, proustianamente, aquele autor, especialmente em Balão cativo, como vimos, no qual a experiência da criança ganha destaque como matéria da prosa depois dos arquivos e histórias passadas por gerações na família extensa em Baú de Ossos. Daí não ser exagero falar em formação nesse caso, com realce para o volume analisado. O continuum da prosa com suas longas enumerações e evocações sensoriais, a que se fez referência na leitura acima como a um olhar em plano-sequência, dá, na forma, esse sentido do autoaperfeiçoamento crítico pela reminiscência e deslocamento sobre si, combinando reflexão madura e experiência infantil.
Se essa aliança entre os tempos do sujeito também existe em A idade do serrote, as técnicas literárias mobilizadas, no entanto, são outras, o que termina por produzir um resultado bastante diferente naquele caso. O que em Nava é continuidade e consistência em Murilo se torna fragmentação e diluição. O inacabamento do sujeito, sempre “entre” interações, e a repetição do trauma da perda da mãe, estilhaçada e projetada nas muitas figuras femininas do livro, servem como índice daquele desencantamento que lemos também em Menino sem passado, ainda que com outra intensidade.
As técnicas mobilizadas pelos autores determinam relações diferidas com o tempo; elas configuram gramáticas de lembrança e esquecimento em rememorações que produzem sujeitos diferentes, ou orientações diversas para o desenvolvimento das individualidades numa experiência histórica comum (e ainda inacabada). Essas expressões do memorialismo, para repetir a citação feita na introdução, compõem um “fenômeno multifacetado, que compreende racionalizações divergentes tanto nas suas orientações como nas suas intensidades” (Waizbort, 1995, p. 29). E o fazem produzindo experiências de leitura, mediadas por textualidades que se abrem possibilitando a comunicação entre as práticas de si de quem lê e de quem escreve.
Tratando do tema na narratividade antiga, continuamente reposta na história da literatura ocidental, Adorno e Horkheimer interpretam a elaboração da temporalidade na poesia homérica como “forma de organização interna da individualidade” (1985, p. 49). Nas epopeias clássicas, o esquema temporal atua no sentido da formação do herói por oposição ao tempo mítico das aventuras, pelas quais o personagem passa sem se perder. Segundo os autores, é a narração desses movimentos de passagem, em sua temporalidade difusa e externa ao indivíduo, que paradoxalmente constituirá a unidade do sujeito. Enquanto a prosa formativa de Nava, localizando a aventura em episódios como os passeios de bicicleta já citados, opera um movimento semelhante àquele da poesia homérica, em A idade do serrote o tempo desagregado é o do próprio sujeito, na medida em que é o tempo da experiência do mundo que o constitui enquanto cotidiano místico (ainda que incorporando o eterno ao contingente, naquela Juiz de Fora fantasmagórica).
O problema do autoaperfeiçoamento em sua versão iluminista – que orienta o ideal de Bildung – é, assim, o que está em jogo na análise comparada dos textos. A diferença entre os seus fluxos de apresentação e desenvolvimento e, portanto, de suas relações com os princípios da continuidade e descontinuidade é ilustrativo a esse respeito. Ela retoma, nesse aspecto, uma distinção possível entre prosa e poesia baseada no corte dos enunciados. Enquanto a segunda impõe pausas, quebras e retomadas constantes à leitura dos versos, a primeira se desdobra limitada apenas pela margem do objeto-livro, recusando até mesmo quebras de parágrafo (que podem se estender por páginas a fio): como um rio que corre contornando as pedras no caminho. Mesmo os trechos em “prosa poética” de Murilo têm uma dinâmica de pontuação (e, portanto, de ritmo) bem menos usual que a prosa escorreita de Nava. Na poesia narrativa do Serrote, a pedra é o caminho (que se faz pela escavação – passado, passagens) mesmo quando é impossível aperfeiçoá-lo, e cuja insistência em fazê-lo reforça o caráter trágico do projeto.
Aqui, e ainda na nota das imagens aquáticas, é necessário marcar uma diferença desta interpretação em relação àquela de Furtado (2001), citada acima, sobre a tópica do regressus ad uterum. A prática da memória em A idade do serrote não parece ser, a nosso ver, de caráter curativo. A repetição do trauma figurada em suas linhas (ou versos) aponta para o aspecto trágico e pós-utópico da dinâmica do sujeito diante da vida desencantada. Nesse sentido é que se interpreta, também, a relação do autor com o catolicismo. A quebra relativa do ideal de autoaperfeiçoamento da Bildung se relaciona com a religião, nesse caso, pela colaboração do pecado, categoria crítica empregada por Mário de Andrade desde a sua primeira recepção da poesia do mineiro (1974, 2012).
Não será à toa, portanto, que a crítica de Silviano Santiago sobre o poeta se debruçará sobre a sua “fusão do catolicismo primitivo com a mentalidade moderna”, em que ganham destaque a “forma inspirada na tradição do penitente medieval e no ideário político-social de São Francisco de Assis” (2017, p. 577). Afirmando, com Alceu de Amoroso Lima, em carta de 1970, que a conversão de Murilo foi informada pela preocupação estética (e não teológica), lista a cortesia do santo italiano para com os desfavorecidos como um dos móveis de sua adesão à Igreja. Mas, mais do que esse aspecto, valorizado sobretudo por seu amigo e conversor Ismael Nery, o que ganha destaque na interpretação muriliana do franciscanismo é a relação com o pecado. A estética mística, que afasta a pureza de uma disciplina exclusivamente repressiva do corpo e seus impulsos em favor de uma relação mais mundana com a experiência e a própria religião, será o fator decisivo para essa poética e sua frustração de uma Bildung do autoaperfeiçoamento orientado à transcendência.
Esta estética religiosa se materializa, no discurso apropriado pelo escritor, sobretudo na narrativa de conversão de Santa Ângela de Foligno. Considerada uma das primeiras místicas católicas, a santa teria abandonado uma vida aristocrática para se juntar à Ordem Terceira de São Francisco na Itália do século XIII. As muitas imagens de contraste entre o corpo profano, da outrora vaidosa e pecadora convertida, e a carne dilacerada do Cristo presentes naquele discurso são localizadas pelo crítico na poética de Murilo Mendes. “O rosto mundano e maquiado de Ângela, que visava ao favor dos homens, se reflete no rosto santo de Cristo, escarrado, desfigurado e socado pelos homens. Os olhos vaidosos de Ângela contrastam com os olhos de Cristo” e assim por diante (Santiago, 2017, p. 591, grifos do original).
Além desse aspecto, gostaríamos de chamar atenção para o cosmopolitismo, cuja existência, em Mendes como em Nava, já fora apontada de certa forma por Antonio Candido em relação estreita com a precoce urbanização de Minas Gerais (1989). Objetivamente, ele aparece como parâmetro do deslocamento, ampliando o horizonte dos indivíduos e dando a eles novos suportes para além daqueles situados no polo “tradicional” da socialização pela família e religião. Os quadrinhos, a literatura, o cinema, a boemia e sociabilidade modernistas são fartos em ideais de “eu” mobilizados pelas enunciações em sua luta por liberdade e, em alguns casos, esquecimento.
Na primeira parte deste estudo, trouxemos diversos elementos dos textos como maneira de adensar o ponto sobre as orientações divergentes na elaboração da relação indivíduo-sociedade nos autores. Mas nem por isso queremos deixar de sublinhar o que eles têm em comum. Há o pertencimento geracional, que os posiciona enquanto aprendizes do modernismo e, ao mesmo tempo, atores que defendem o legado do movimento num momento crucial para a definição dos seus sentidos (como são as décadas de 1960 e 1970). Mas há, igualmente, e apesar das diferenças enumeradas, um gesto cosmopolita comum do memorialismo mineiro como pensamento que complexifica a universalidade de um individualismo problematicamente inscrito, sobretudo na esfera jurídica, numa realidade colonial e dependente. Não para negar a figura do indivíduo – muito pelo contrário – mas para afirmá-la em suas contradições e paradoxos específicos, que permitam situá-la social e politicamente, qualificando suas diferenças. E iluminando, com isso, aspectos da diferença cultural brasileira como um todo.
Um desses momentos da comparação, propositalmente posicionado ao final da seção que trata mais imediatamente da fatura das obras, diz respeito ao caráter mais ou menos institucional dos processos de aprendizado dos sujeitos discursivos. Esse é um ponto que parece merecer maior desenvolvimento, e que procuraremos perseguir na pesquisa. A relevância do tema está, primeiramente, no seu potencial de problematização teórica de formulações em que a institucionalidade é fator fundamental da individuação – de Foucault às contribuições mais recentes das teorias da governamentalidade – ou daquelas em que a maior ou menor presença das instituições na vida social chega a definir tipos de individualismo atribuíveis a experiências geopoliticamente diferentes e desiguais (com destaque para a distinção entre individualismo institucional e agêntico, associados respectivamente às experiências europeia e latino-americana em Martuccelli, 2019).
Além disso, o tema oferece a observação de contradições mais específicas do modernismo e da sociedade brasileira, associadas àquilo que Mário de Andrade citou como uma das características problemáticas do movimento: o “aristocracismo” de seus atores (1974b). Se a trajetória de Nava dá relevo a aspectos igualitários da instituição, que quebram com a hierarquia tradicional entre os pequenos representantes de famílias mineiras desigualmente posicionadas, o acesso a essa instituição é, por si só, uma espécie de privilégio econômico, e mesmo de status, repartido entre essas famílias. A aparente recusa à institucionalidade em Murilo Mendes, por outro lado, ao mesmo tempo em que desafia a dimensão racionalizadora e de controle social da experiência escolar, deixa o sujeito dependente de relações familiares e locais para subsidiar seu processo de aprendizado, o que reproduz desigualdades baseadas em fatores como seu grupo e socialização de origem.
Um dos aspectos comuns, e talvez trágicos, da cosmopolítica da memória (modernista) mineira aqui visitada é que ela parece tornar o indivíduo mais indivíduo. Sua trajetória de conflito e relativa emancipação das estruturas de dominação já descritas se faz por um incremento da pressão por singularização; pela aquisição e mobilização de um repertório cosmopolita de práticas e representações de si que o diferenciam cada vez mais em relação ao grupo familiar, religioso e, talvez, até em relação ao próprio movimento. Se, por um lado, isso pode ser lido como uma ação tática, de reenquadramento da arena do conflito para um espaço de agência disponível – num momento de fechamento do horizonte político, ou de determinada configuração do processo de individuação mais geral daquela experiência social –, por outro, é impossível não perguntar quais são as consequências desses modos de singularização para uma noção de solidariedade capaz de coordenar (ou não) a ação dos atores na medida em que fazem parte de um movimento.
Se Minas terminou por produzir a memória do modernismo não só como “vanguarda” mas, sobretudo, como movimento cultural, são os repertórios que tentamos analisar que se oferecem ao projeto inacabado de intervenção social pela cultura, para o qual o enlace geracional é de fundamental importância. Se, em muitos sentidos, o passado não passou, cabe a uma sociologia política da cultura de caráter histórico-comparado reconstituir os projetos vencidos – ao menos pela recepção em clichês da indústria cultural – num instante de perigo. Está aí algo da cosmopolítica da memória mineira que ensaiamos, com estas proposições, colocar em debate.
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Notas
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