Resumo: Este artigo propõe uma excursão pela obra de Walter Benjamin na perspectiva do fragmentarismo construtivo que a caracteriza. Procura-se capturar os princípios metodológicos e epistemológicos que subjazem à prática historiográfica em Benjamin, no que ela contém de radicalmente experimental, articulando-os quer com a sua condição de existência como investigador-arquivista ou escritor operante, quer com o seu fatídico destino pessoal. Examina-se um método focado no particular, na descontinuidade e na concretude dos teores coisais; a criação de um saber histórico monadológico, reticular e constelacional, que arranca imagens do passado à sequência contínua da história universal; o confronto do artesanato benjaminiano com as exigências teóricas do materialismo dialéctico perfilhado pelos seus amigos e contemporâneos; a montagem de um inesgotável dispositivo intertextual e, por fim, a defesa da figura do autor-produtor, arauto de um tempo por vir onde o texto se tornaria um “bem comum”.
Palavras-chave:Walter BenjaminWalter Benjamin,Metodologia da históriaMetodologia da história,Escrita da históriaEscrita da história.
Abstract: This article proposes a journey inside Walter Benjamin’s work from the perspective of its peculiar constructive fragmentarism. We set out to identify the methodological and epistemological principles that underpin Benjamin’s radically experimental brand of historiography, while relating them to the author’s existential status as an archivist-researcher or operative writer and to his own fateful destiny. The analysis focuses on a method grounded in the particular and based on the discontinuity and concreteness of material contents; the formation of a monadological, reticular and constellational type of historical knowledge that blasts images of the past out of the continuum of universal history; the collision between benjaminian craft and the theoretical demands of dialectical materialism espoused by his friends and contemporaries; the assemblage of a limitless intertextual mechanism and, finally, his advocacy of the author-producer figure, herald of an age to come where the text would become a “common good”.
Keywords: Walter Benjamin, Methodology of history, Writing of history.
Artigos
A oficina do fragmento: Método e processo historiográfico em Walter Benjamin
The workshop of fragments: Method and historiographical process in Walter Benjamin

Recepção: 17 Dezembro 2019
Aprovação: 08 Março 2020
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece estar a afastar-se de qualquer coisa que o olha fixamente. Tem olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante os nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos progresso é este vendaval (BENJAMIN 2010, p. 17-18).
Este conhecido fragmento, incluído no conjunto inacabado das teses “Sobre o conceito de história”, provavelmente datadas de 1940 – embora a primeira versão desse manuscrito remontasse ao início dos anos 1920 –, poderia valer como exemplo paradigmático do grande problema que subjaz à filosofia da história e à pratica historiográfica a que se entregou Walter Benjamin. Com efeito, e como adiante se procurará sustentar, foi um exercício continuado de fragmentarismo construtivo1, que funcionou como pano de fundo tanto da reflexão epistemológica como dos fundamentos metodológicos que viriam a caracterizar os seus grandes empreendimentos experimentais, todos eles permeados quer por uma prática de arquivamento continuado, quer por uma experiência analítica que se ia questionando a si mesma enquanto avançava. (BARRENTO 2010a, p. 147). Como se Benjamin nos quisesse dizer que talvez a obra não passe, também ela, de um exercício circunstancial de aquisição documental, um gesto de colecionador-indexador, por meio do qual seríamos levados ao desenvolvimento de um tipo de competência que nos tornasse mais capazes de explorar o sem fundo do discurso e da história. Benjamin introduz tessituras várias no seu pensamento em torno de massas cada vez mais volumosas de textos e imagens, as quais exigem um construtivismo que brote do seu próprio interior. Os seus trabalhos, tomados em perspectiva, permitem-nos vislumbrar as diferentes dimensões de uma escrita de passo a passo, de decomposição, de digressão, de transferência ou do ralenti. É o germinar e o estar-a-ser do texto, com os seus tempos, ritmos e ritornellos, que se impõe ao nosso entendimento. Este artigo procurará mostrar que todos os esforços teóricos de Benjamin estiveram sempre destinados a que mais “paciência, perseverança e reverência” crítica pudessem emergir perante os mistérios da obra historiográfica e da sua construção, como sublinhou Maria Filomena Molder (2011, p. 22). Ele mesmo entendia que a função da crítica era a de compreender “por meio da concentração profunda” (BENJAMIN 2010, p. 36).
Ao mesmo tempo que procuraremos aqui dar conta dos posicionamentos epistemológicos de Benjamin acerca do seu ofício de historiador, tentaremos integrá-los no seu próprio destino pessoal. As arriscadas e corajosas posições teóricas que tomou face à academia e a uma certa ortodoxia marxista do tempo determinaram em boa medida o seu destino de investigador. É o velho tema da vida como obra de arte que tentaremos fazer emergir. O projeto inacabado das Passagens, Das Passagenwerk, concebido para vir a ser uma filosofia material da história do século XIX – com a cidade de Paris tomada mitologicamente na qualidade de sua grande metrópole –, permanece ainda hoje como um grande exemplo de arrojo intelectual e ousadia metodológica da contemporaneidade. Se dele resultaram apenas dois exposés terminados, a montante encontra-se um banco de dados com 4.234 fragmentos, que pode ser entendido como o grande “dispositivo de historiografia polifónica” do século passado, em cujo interior se “imbricam os mais diversos modos de escrever a história”, como sublinha Willi Bolle (2007a, p. 1141), organizador da sua primeira edição em língua portuguesa.2 Há em Benjamin um revigorar permanente do texto, a possibilidade dialógica do seu recomeço radical e, ao mesmo tempo, uma compreensão agudíssima dos processos artesanais sobre que assenta a sua pluralidade, incompletude e abertura descontínua. É certamente uma das figuras que, mais próximo de nós no tempo, fez o possível para compreender até onde as “fulgurações de sentido” e a “exigência do fragmentário” no ato criativo nos podem transportar. Surge-nos como o pesquisador que está sempre disposto a pensar o seu objeto de trabalho – predominantemente de natureza literária e artística, mas também filosófica –, de “forma crítica e livre”, ou seja, a partir “do próprio campo cultural que o gera” (BARRENTO 2010b, p. 47 e 79).
As metáforas da floresta e do labirinto do texto e a operação que obriga a análise a deslocar-se até às origens reverberaram em Benjamin com a maior vivacidade. Via-se como alguém que trabalhava para construir as bases de um “cepticismo produtivo”. Rejeitava o “método dedutivo” na explicação dos fenómenos e valorizava a regra da “instância crítica” contra a “instância didática”; por isso, com ele vemos o pensamento a pulsar e a desdobrar-se na sua singularidade mesma, numa permanente articulação entre refletir e fazer, numa entrega “sem pressas e sem sinal de inibição ao exame minucioso dos pormenores” (BENJAMIN 2011, p. 33).
Já a partir dos seus mais antigos escritos Benjamin demonstrara compreender de onde provinha esse jogo “fisionómico” por meio do qual as “frases isoladas, mesmo nos casos em que elas não têm autonomia”, se articulam umas com as outras, “numa sequência de pensamentos muitas vezes vacilante e vaga”. Como se aí, no traço único da frase, se começasse a esboçar “um desenho de ampla respiração”. “Assim também o próprio da escrita é, a cada frase, parar para recomeçar” – afirmou Benjamin na sua tese de habilitação, Origem do drama trágico alemão, que, em 1925, chocaria o júri da Universidade de Frankfurt, levando-o a rejeitá-la. Aí, a relação entre fragmento e totalidade foi assumida e trabalhada com a plena consciência do risco, numa posição de claro antagonismo com o que Benjamin já apelidava de “sistematicidade fechada” e de “universalismo raso”, que lhe pareciam, à época, dominar os estudos literários e filológicos na academia. Toda e qualquer representação da verdade “como unidade e singularidade”, e que se exibisse “sem saltos ou através da acumulação enciclopédica de conhecimentos”, enfermava, aos seus olhos, de um mesmo tipo de “incoerência metodológica”, a qual resultava sempre do desconhecimento da força instituinte que se encontra em cada singularidade, em cada fragmento, em cada partícula. Benjamin fazia, assim, a apologia da “descontinuidade do método” contra os “postulados filosóficos” e a “plenitude da positividade concentrada”. Todo o seu projeto de pesquisa posterior se dirigiria, nestes termos, para o particular, e não mais para a unidade; podia até falar de “conexão estrutural”, mas sabia que essa impunha a relação entre “conhecimentos isolados”, e não mais a mediação universal. Numa palavra, o trabalho sobre a ideia e a representação da verdade só encontraria forma de ser realizado através da empiria, isto é, da “organização dos elementos coisais no conceito”. Havia, portanto, que pôr em andamento uma filosofia artesanal das multiplicidades, tarefa que lhe surgia como sendo da ordem da configuração, da junção, da constelação, das trocas e das “compensações recíprocas”. Ao investigador cabia agrupar os fenómenos e assistir “à fragmentação que neles se opera por ação do entendimento analítico”; apenas desse modo a pesquisa podia ir muito além da simples confirmação de um qualquer a priori teórico global, como em seu entender sucedia na dialéctica de Hegel ou na relação entre estrutura e superestrutura em Marx. Em Benjamin, método passou a significar uma operação que se renova permanentemente a partir do seu próprio interior, “que não receia perder o seu ímpeto, tal como um mosaico não perde a sua majestade pelo facto de ser caprichosamente fragmentado” (BENJAMIN 2011, p. 17-18 e 20-23). Deixou a esse respeito escrito, no “Prólogo epistemológico-crítico”, que produziu aquando da publicação da Origem do drama trágico alemão, um conjunto de primeiras indicações sobre o que seria essa sua metodologia de tipo micrológico e fragmentário:
O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo da verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea do seu florescimento no Ocidente, pertencem à Idade Média; aquilo que permite a sua comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco” (BENJAMIN 2011, p. 17).
É crucial insistir que Benjamin se opôs, também e muito diretamente, à velha noção cartesiana de método3 e ao conceito oitocentista de sistema, seu correlato natural. Para tanto, sentiu necessidade de recuperar a herança escolástica anterior, sublinhando que o trabalho ininterrupto e constante de “citação da auctoritas” no período medieval constituíra uma operação intelectual decisiva que urgia replicar no presente, porquanto se mobilizava muito mais para a articulação e a sequenciação do texto do que propriamente para doutrinar o leitor. Diferentemente da retórica clássica, a escolástica não procurava “arrastar” o leitor pelo entusiasmo, mas antes “educá-lo”, convidando-o a deter-se nas várias “estações” do texto e a refletir demoradamente sobre elas. Para os académicos da Idade Média, “o objeto era então determinado pela necessidade de ser apropriado pela consciência”, decorrendo daí a sobriedade prosaica com que era sempre desenvolvido. Benjamin entendia que a imagem, tanto do sagrado quanto da verdade, nunca perdera a sua “majestade” na Idade Média pelo facto de ser “caprichosamente fragmentada”, composta de “elementos singulares e diferentes”. Ora, apoiando-se nessa velha prática de organização textual, também ele foi levado a proclamar com todas as letras: “Método é o caminho não direto”. Método seria o vocábulo a utilizar, portanto, sempre que quiséssemos exprimir a necessidade que o pensamento tem de voltar sempre ao princípio, de se manter firmemente disponível para seguir, “na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido”. Por isso defendeu também a “descontinuidade do método” e falou, outrossim, da “estrutura descontínua do mundo das ideias”. O testemunho de Benjamin é mais um, de entre muitos que podem ser recolhidos, a mostrar-nos que não precisamos da “conexão dedutiva cerrada da ciência” para pensar; que podemos trabalhar intensamente sobre o concreto. Só nesse mergulho vertical, sincrónico, estaremos em condições de compreender os ritmos e os “processos históricos do devir e do desaparecer” de alguma coisa; só por intermédio dessa operação havemos de conseguir articular o mais próximo com o mais distante. “O conhecimento é um haver”, avisa-nos Benjamin, e é por essa razão fundamental que ele permanece continuamente questionável (BENJAMIN 2011, p. 16-17, 21 e 33).
Essa defesa do conteúdo substancial do fenómeno particular esteve igualmente presente num outro texto muito centrado em questões metodológicas que data da mesma altura. Referimo-nos ao longo ensaio de Benjamin sobre as Afinidades eletivas de Goethe, dado à estampa pela primeira vez em 1924. Aí, demarcou-se dos filólogos seus contemporâneos e propugnou por uma prática analítica que fosse capaz de realizar um tipo diverso de regressão histórica. A que intentasse buscar tão-somente “o conteúdo material objetivo” de uma obra de arte e soubesse, além disso, encontrar apoios teóricos para se demarcar das interpretações correntes que viam na alma e na intenção do autor a origem da lei fundamental da própria criação. Nesses termos, o “crítico” que ele mesmo almejava ser – havendo já abandonado nessa altura qualquer plano de uma carreira académica – , apresentava-se-lhe ora como uma espécie de “paleógrafo” diante do pergaminho, preocupado em compreender a materialidade dos conteúdos de verdade, ora como o próprio “alquimista” que interroga a verdade, isto é, a “chama viva que continua a arder sobre as pesadas achas do passado e sobre as cinzas leves do vivido” (BENJAMIN 2016, p. 38-39). Em seu entender, Goethe pusera na realidade em evidência naquele romance, publicado pela primeira vez em 1809, as suas próprias investigações acerca do magnetismo, tanto no mundo da natureza como dos seres humanos. As personagens que compõem As afinidades eletivas exprimem, com efeito, formas de “atração” e “afinidades de espírito” tão puras quanto complexas e dinâmicas, num contexto de permanente e mútua afectação; tal como os alcaloides e os ácidos “em que os opostos se atraem ou se ligam de forma mais marcada, se modificam e, em conjunto, formam um novo corpo”, a ação narrativa flui ali entre separações e novas combinações de acordo com as afinidades de espírito ou de alma de cada um dos seus sujeitos (GOETHE 2016, p. 59-64).
Benjamin tomou para si a ideia goethiana do afim como encontro e entrecruzamento das substâncias para justificar uma opção de princípio – que se revelaria no futuro altamente polémica –, na qual os fenómenos, mesmo aqueles tidos como primordiais, não se podiam resumir num conceito único ou numa palavra só. Foi assim que, partindo da mesma concepção de que todos os casos ilustram, antes de tudo, a atração, a afinidade, o abandono e a reunião, numa permanente capacidade de sair da união antiga para iniciar uma outra nova, que se sentiu legitimado a sustentar uma metodologia que se dirigia apenas para os teores coisais. Benjamin focou-se, desde então, em atender às várias origens em que a verdade se vai desdobrando historicamente, o que de resto lhe permitiu escrever sobre temas os mais variados, mas sempre sob os mesmos princípios teóricos e os mesmos processos de montagem e análise do material empírico. Naquele mesmo ensaio sobre Goethe, demarcou-se explicitamente da investigação filológica contemporânea quando essa procurava encontrar “o devir da obra” na virtus do seu criador. Os aspectos da biografia pessoal do autor, assim como a sua entronização e canonização, contavam muito pouco para Benjamin. Em seu entender, só a “total incerteza acerca do resultado” da obra merecia ser assinalada. “Na verdade”, continuava no estudo sobre as Afinidades eletivas, “o artista é menos fundamento primeiro (Ursache) ou criador (Schöpfer) do que origem (Ursprung) e agente formador (Bildner), de onde decorre que a sua obra nunca poderá ser criatura (Geschöpf), mas sempre forma construída (Gebilde)”. Da mesma forma, havia que orientar e saber manter a investigação nos domínios relacionais, adentro dos vínculos que as “palavras e as coisas” vão estabelecendo entre si. Era aí, e somente nesse absoluto concreto, que se encontrava o fundamento primeiro das obras, a “essência da arte” e o “ideal do problema” que alimenta qualquer pesquisa (BENJAMIN 2016, p. 85 e 101-102).
Noutros trabalhos iniciados ainda nos anos 1920, e exercitando-se numa modalidade de pensamento sempre em processo de segmentação construtiva – um escrito podia ser retomado e dar origem a versões sucessivas durante períodos longos –, Benjamin fez a crítica da ideia de progresso e insistiu em defender a experiência histórica como constituindo o absoluto real, aquele extraordinário palco em que as investigações não conhecem quaisquer limites. A tarefa do estudioso do passado consistiria, assim, em produzir uma imagem completa do mundo, mas que se concretizava apenas num esboço abreviado. Essa restrição não constituía qualquer problema para Benjamin, uma vez que, segundo ele, cada ideia continha em si mesma a plenitude e a totalidade. No fragmento XIV das teses “Sobre o conceito da história”, está escrito: “A história é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogéneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit)”. Com Benjamin abre-se, efetivamente, a possibilidade de uma historiografia crítica dessa “imagem eterna” do passado, pensada e cultivada no “bordel do historicismo” (a alegoria da prostituta chamada “Era uma vez”), e narrada na forma de uma progressão sem limites. A exigente empreitada de “escovar a história a contrapelo” – compartilhada por todos aqueles que, de diferentes modos, pretenderam redigir uma “história do presente” –, implica não apenas contornar a linearidade do historicismo clássico, no qual aquilo que já sabemos é transportado ao longo da superfície que “fala” do passado, deslocando-se do pretérito para o presente como numa autêntica ordem de marcha, mas, também, circundar essa outra concepção dominante da disciplina histórica segundo a qual conhecer o passado significaria “reconhecê-lo «tal como ele foi»”, na sua mais radical alteridade ou na sua qualidade de refúgio estético dotado de poderes encantatórios (BENJAMIN 2010, p. 7-8, 11, 18-19). Sob esse ponto de vista, o Jetztzeit de Benjamin, essa noção de um tempo “preenchido pelo Agora” no qual cada geração encontra o passado de uma nova maneira em função de um compromisso crítico com a sua atualidade (“arrancar a tradição da esfera do conformismo”), pode articular-se, por exemplo, com a wirkliche Historie de Nietzsche, a genealogia em Foucault, ou a concepção de “contemporâneo” em Agamben.4 Todas essas perspectivas, embora diferentes entre si, utilizam a história como utensílio privilegiado para produzir uma heterocronia, um “tempo outro”, inatual ou extemporâneo, no qual o pretérito aparece atualizado no presente e o presente surge como que em ato, in actu, no passado (DELEUZE 2005, p. 93). Em vez de se pautar por uma lógica de reconhecimento, por um lado, ou de distanciação erudita, por outro, a história “inatual” corresponderia a um exercício crítico que consiste em estranharmo-nos na atualidade e em perscrutar no pretérito aquilo que pertence ao domínio do impensado no presente. Por outras palavras, trata-se para esses autores de extrair do continuum da história universal determinados objetos ou acontecimentos que recortam a contemporaneidade em diversos tempos, inscrevendo-lhe uma “cesura” ou “descontinuidade” que dilacera o tempo linear e edifica uma “relação especial” entre diferentes eras. Situando-se, segundo Agamben, no “ponto de quebra”, Paulo de Tarso faz da “fractura” que ele mesmo engendra “o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações”. Na perspectiva paulina, a história não corresponde ao avanço progressivo da razão humana, mas antes a um palco ou cenário onde se manifesta o “tempo-de-agora” messiânico, ho nyn kairos, tempo que, sendo “cronologicamente indeterminado”, tem também a “capacidade singular” de “colocar em relação consigo mesmo todo instante do passado” (AGAMBEN 2009, p. 58-59, 60, 65, 71-72).
Noutro fragmento que tem a data de 1920-21, Benjamin afirmaria que a verdade consiste no “Agora da possibilidade de conhecimento” e que, portanto, nos cabe dar conta desse contexto relacional “das partes entre si e na relação com o estado-do-mundo perfeito” (BENJAMIN 2015, p. 39). Amiúde insistiu que, mesmo a ciência filosófica, determinada em “constatar o devir dos fenómenos no seu ser” e em formar conceitos, precisa de absorver o momento presente, “a fim de dar à ideia a sua totalidade”. Segundo Benjamin, o que temos sempre diante de nós como historiadores é, pois, uma praxis originária; melhor dito, a unidade imediata e originária do teor coisal, Sachgehalt, e do teor de verdade, Wahrheitsgehalt, que se fixaram num determinado fragmento textual ou numa imagem. Chegava, desse modo, ao ponto central do seu raciocínio: o objeto do conhecimento histórico apresenta-se-nos como monadológico. A estrutura da ideia e a ideia mesma, “é uma mónada”, afirmaria repetidamente nos anos 1920 e 1930. E explicava: “O ser que penetra na ideia com a sua pré e pós-história mostra, oculta na sua própria, a figura abreviada e ensombrada do restante mundo das ideias”. E, tal como no Discurso sobre a metafísica de Leibniz, em cada uma das mónadas estariam presentes todas as demais. Na mónada “repousa, pré-estabelecida, a representação dos fenómenos como sua interpretação objetiva” (BENJAMIN 2011, p. 36).
Se cada ideia continha a forma do mundo em si mesma, então o concreto real poderia e deveria passar a ser visto como o problema a requerer a atenção do investigador. Benjamin defendia, assim, um tipo muito particular de interpretação do materialismo histórico que remetia para o isolamento dos fenómenos, e não já para o todo social. As relações contínuas do tempo, tratadas pela disciplina histórica, seriam substituídas por constelações. Essa sua posição ficou igualmente expressa com grande rigor noutro fragmento de “Sobre o conceito de história”:
O historicismo culmina, como tinha de ser, na história universal. A historiografia materialista demarca-se dela pelo seu método, de forma cada vez mais clara do que qualquer outra. A primeira concepção não dispõe de qualquer armadura teórica. O seu método é aditivo: oferece a massa dos factos acumulados para preencher o tempo vazio e homogéneo. A historiografia materialista, por seu lado, assenta sobre um princípio construtivo. Do pensar faz parte não apenas o movimento dos pensamentos, mas também a sua paragem. Quando o pensar se suspende subitamente, numa constelação carregada de tensões, provoca um choque através do qual ela cristaliza e se transforma numa mónada. O materialista histórico ocupa-se de um objeto histórico apenas quando este se lhe apresenta como uma tal mónada. Nesta estrutura, ele reconhece o sinal de uma paragem messiânica do acontecer ou, por outras palavras, o sinal de uma oportunidade revolucionária na luta pelo passado reprimido. E aproveita essa oportunidade para forçar uma determinada época a sair do fluxo homogéneo da história; assim, arranca uma determinada vida à sua época e uma determinada obra ao conjunto de uma oeuvre. O resultado produtivo deste seu método consiste em mostrar como na obra se contém e se supera a oeuvre, nesta época e na época de toda a evolução histórica. O fruto suculento do objeto historicamente compreendido tem, no seu interior, o tempo, como uma semente preciosa, mas destituída de gosto. (BENJAMIN 2010, p. 19).
Há algo nesse materialismo histórico de Benjamin, com uma certa raiz no pensamento messiânico, que, como vimos, se aproxima do “contemporâneo” em Agamben, mas que remete, além disso, para uma visão propriamente material do passado. Na ideia de haver uma “suspensão” do tempo, de esse se “cristalizar”, (podendo ser observado a partir de diferentes pontos de vista), de ser possível fixar uma “constelação” num determinado instante, arrancando uma “imagem espacial” ao progresso sequenciado da história, parece estar bem explícita essa sua singular praxis materialista. Como se Benjamin estivesse sempre a opor a imersão num objeto-imagem que, pela análise, se articula com outros objetos-imagem, à sequência teleológica da história universal, fosse na vertente positivista, fosse na do materialismo dialéctico. Tal sequência seria como uma longa-metragem cujo sentido último encobre e subordina todos os fragmentos ou imagens que a constituem.
Essa demarcação explícita e cortante dos dois historicismos encontrou no projeto das Passagens a possibilidade maior da sua concretização. No constante processo do seu fazer e refazer, interromper e retomar, ao longo de treze anos, Benjamin foi acometido de uma intenção que ousaria intersectar domínios do saber e do pensamento bem distintos, como assinala o organizador da edição alemã, Rolf Tiedemann (2007, p. 17): “Pôr à prova até que ponto se pode ser ‘concreto’ em contextos histórico-filosóficos.” Benjamin determinou-se de facto em apresentar a crónica do século XIX, não de maneira abstrata, e sim como um “comentário” da realidade. Estamos perante a possibilidade experimental de uma escrita se determinar em atravessar intensamente o ocorrido, como se de um sonho se tratasse, tendo a seu montante um tipo de arranjo metodológico que dispõe e interpreta os fenómenos histórico-sociais, tal qual fenómenos da história natural, dispersando-os quer num catálogo temático continuamente desdobrável, quer num mapa inconcluso de imagens. O arquivo das Passagens procurou ser, na realidade, um grande reservatório temático em andamento da memória colectiva parisiense de Oitocentos num período determinado. Um imenso ficheiro de citações e de reflexões retiradas e dirigidas ao quotidiano, à arte, à moda, à consciência que flutua entre a vigília e o sonho, nele se agregando vários tipos humanos (o flâneur, o dandy, o colecionador, a prostituta), múltiplos edifícios, ruas, praças, arcadas, boulevards, galerias, catacumbas), assim como os novos materiais construtivos da indústria da época (o aço e o vidro). Benjamin trabalhou arduamente na direção de uma nova escrita da história, de um estilo composicional de tipo ensaístico que efetivamente se adequasse às metáforas da “cidade-rede”, seus habitantes e produtos. Textos e imagens que se haveriam de montar uns sobre outros, consubstanciando uma escrita “reticular”, “espacial”, “cartográfica” e “constelacional”. Uma prática analítica própria do conceito heurístico de hipertexto e de uma escrita da imagem, diríamos hoje, conduzida conscientemente com o propósito estratégico de aproximar as coisas do passado da atualidade, de inserir no tempo remoto a textura mesma da vida do presente (BOLLE 2015, p. 85 e 97; 2007b, p. 71).
Para nós, o mais impressivo dessa verdadeira oficina de leitura-escrita que Benjamin instalou na Biblioteca Nacional de Paris a partir de 1934 – o exílio na capital francesa daria um segundo impulso às Passagens depois da fase inicial que decorrera entre 1927 e 1929 –, encontra-se em “Teoria do conhecimento/Teoria do progresso”, designação que identifica um dos 36 ficheiros temáticos da última fase que o projeto conheceu. A consciência sobre a essência da sua investigação, direccionada, como vimos, ao estabelecimento da unidade imediata e originária da verdade, foi-se aprofundando e correu em paralelo com a prática de acumular, amontoar e sequenciar citações e notas. Ao lermos as reflexões avulsas que ali foram dispostas, verificamos como a metodologia se fundiu, ela própria, com o objeto historiográfico que Benjamin estava a construir. Um isomorfismo que se diria absolutamente necessário para perceber exatamente o que significaria isso de defender a mónada como a harmonia pré-estabelecida de tudo o que acontece no interior dos dias; de encontrar forma, em cada caso particular, de passar da economia à técnica, da arte à literatura e dessa à vida pública. Reproduzimos de seguida alguns desses fragmentos-fichas a título de exemplos dos níveis de autoconsciência que Benjamin conseguiu alcançar no seu ofício. Refletia em simultâneo sobre as implicações teóricas, os processos construtivos e inclusive os riscos que a elaboração da sua obra maior trazia implicados:
Dizer algo sobre o próprio método da composição: como tudo em que estamos pensando durante um trabalho no qual estamos imersos deve ser-lhe incorporado a qualquer preço. Seja pelo facto de que sua intensidade aí se manifesta, seja porque os pensamentos de antemão carregam consigo um telos em relação a esse trabalho. É o caso também deste projeto, que deve caracterizar e preservar os intervalos da reflexão, os espaços entre as partes mais essenciais deste trabalho, voltadas com máxima intensidade para fora (BENJAMIN 2007, p. 499).
Dizer algo sobre o próprio método da composição: como tudo em que estamos pensando durante um trabalho no qual estamos imersos deve ser-lhe incorporado a qualquer preço. Seja pelo facto de que sua intensidade aí se manifesta, seja porque os pensamentos de antemão carregam consigo um telos em relação a esse trabalho. É o caso também deste projeto, que deve caracterizar e preservar os intervalos da reflexão, os espaços entre as partes mais essenciais deste trabalho, voltadas com máxima intensidade para fora (BENJAMIN 2007, p. 499).
Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem usar aspas. Sua teoria está intimamente ligada à montagem (BENJAMIN 2007, p. 500).
Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surripiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os (BENJAMIN 2007, p. 502).
Um método científico distingue-se pelo facto de, ao encontrar novos objetos, desenvolver novos métodos – exatamente como a forma na arte que, ao conduzir a novos conteúdos, desenvolve novas formas. Apenas exteriormente uma obra de arte tem uma e somente uma forma, e um tratado científico tem um e somente um método (BENJAMIN 2007, p. 515).
Nas Passagens empreendo também um estudo da origem. Na verdade, persigo a origem das formas e das passagens parisienses desde seu surgimento até seu ocaso, e a apreendo nos factos económicos. Estes factos, do ponto de vista da causalidade – ou seja, como causas –, não seriam fenómenos originários; tornam-se tais apenas quando, em seu próprio desenvolvimento – um termo mais adequado seria desdobramento –, fazem surgir a série das formas históricas concretas das passagens, assim como a folha, ao abrir-se, desvenda toda a riqueza do mundo das plantas (BENJAMIN 2007, p. 504).
O momento destrutivo ou crítico na historiografia materialista manifesta-se através do fazer explodir a continuidade histórica; é assim que se constitui o objeto histórico. De facto, dentro do curso contínuo da história não é possível visar um objeto histórico. Tanto assim que a historiografia, desde sempre, simplesmente selecionou um objeto desse curso contínuo. Mas isso ocorria sem um princípio, como expediente; e sua primeira preocupação sempre era a de reinserir o objeto no continuum que ela recriava através da empatia. A historiografia materialista não escolhe aleatoriamente os seus objetos. Ela não os toma, e sim os arranca, por uma explosão do curso da história. Seus procedimentos são mais abrangentes, seus acontecimentos mais essenciais (BENJAMIN 2007, p. 517).
Este estudo, que trata primeiramente do carácter expressivo dos primeiros produtos industriais, das primeiras construções industriais, das primeiras máquinas, mas também das primeiras lojas de departamento, reclames, etc., torna-se com isso duplamente importante para o marxismo. Primeiramente, o estudo apontará de que maneira o contexto no qual surgiu a doutrina de Marx teve influência sobre ela através do seu carácter expressivo, portanto, não só através de relações causais. Em segundo lugar, deverá mostrar sob que aspectos também o marxismo compartilha o carácter expressivo dos produtos materiais que lhe são contemporâneos (BENJAMIN 2007, p. 502).
É importante afastar-se resolutamente do conceito de ‘verdade atemporal’. No entanto, a verdade não é – como afirma o marxismo – apenas uma função temporal do conhecer, mas é ligada a um núcleo temporal que se encontra simultaneamente no que é conhecido e no que conhece. Isto é tão verdadeiro que o eterno, de qualquer forma, é muito mais um drapeado num vestido do que uma ideia (BENJAMIN 2007, p. 505).
O historiador hoje tem que construir uma estrutura – filosófica – subtil, porém resistente, para capturar na sua rede os aspectos mais atuais do passado. No entanto, assim como as magníficas vistas das cidades oferecidas pelas novas construções de ferro ficaram durante muito tempo reservadas exclusivamente aos operários e engenheiros, também o filósofo que deseja captar aqui suas primeiras visões deve ser um operário independente, livre de vertigens e, se necessário, solitário (BENJAMIN 2007, p. 501).
Será agora bem mais fácil compreender como Benjamin se exercitou na tarefa de interpolação no infinitamente pequeno e pôde de facto circular, com idêntico à-vontade, entre a teoria e a pesquisa material, as citações e as interpretações. Como se viu, esse seu empirismo delicado, suportado tanto nos planos da filosofia como da historiografia, conduziu-o a um tipo de marxismo “não dogmático, mas de natureza heurística e experimental”, ao qual não eram também alheias “ideias metafísicas ou mesmo teológicas”, como notou o seu amigo e correspondente de juventude Gershom Scholem (2008, p. 206). Benjamin recusou conscientemente o dualismo materialista. Não reconhecia a separação orgânico/inorgânico no desenvolvimento da cognição e do aparelho perceptivo individual, assim como não tomou isoladamente o espaço da produção fabril daquele em que se viria a dar o seu consumo. Esse posicionamento empático em busca da alma dos objetos e das mercadorias custar-lhe-ia um altíssimo preço, desta feita junto de colegas muito próximos que então se valiam, como ele, da herança de Marx para a análise das mercadorias e da fantasmagoria industrial, cultural e artística do capitalismo. Aos olhos desses seus críticos, os princípios da disciplina ascética da montagem minimal benjaminiana não teriam a fundamentação teórica suficiente e não passariam, nesses termos, de mais uma versão inconsequente do materialismo vulgar. E se acrescentarmos que, nos seus cinco últimos anos de vida, os parcos rendimentos de Benjamin estiveram em larga medida dependentes de encomendas de artigos do Instituto para a Pesquisa Social, ficarão então mais evidentes as reais dificuldades que o seu pensamento heterodoxo teve de suportar. Através de Theodor Wiesengrund Adorno e Max Horkheimer, seus amigos pessoais, aquele organismo – fundado em 1923 por investigadores marxistas em Frankfurt e que, com a subida de Hitler ao poder dez anos mais tarde, se mudaria primeiro para Genebra e, em seguida, para Nova Iorque –, mostrou interesse em apoiar financeiramente o projeto das Passagens. Horkheimer pedira-lhe diretamente, em 1937, um artigo materialista sobre Baudelaire. Quem ler a correspondência trocada entre Benjamin e Adorno, de 1928 até 1940, perceberá exatamente como o não aplicar “à risca” do marxismo, mas antes o “trabalhar” e “pelejar” com ele, se transformaria num problema concreto e numa divergência insanável. Esta viria a traduzir-se na recusa, pela mão daqueles mesmos dois investigadores – e também por Leo Lowenthal –, em finais de 1938, de publicar o manuscrito de Benjamin, A Paris do Segundo Império em Baudelaire, que fora concebido especificamente como “prelúdio” para a concretização do projeto das Passagens e deveria sair na revista do Instituto para a Pesquisa Social, Zeitschrift für Sozialforschung (ADORNO, BENJAMIN 2012, p. 57).
Desde pelo menos o início de 1934 que Adorno evidenciara um genuíno interesse pelo andamento deste trabalho. Em abril daquele ano, incitou diretamente Benjamin a escrever, a rematar e a ultimar as Passagens “a todo o custo”. Numa outra carta, escrita em novembro seguinte, e ante a possibilidade já mais real de receber um ensaio terminado do amigo, Adorno exultou com a notícia: “Você sabe que realmente vejo nesse trabalho parte da nossa predestinada contribuição à prima philosophia, e não há nada que eu mais deseje senão vê-lo capaz, após longa e dolorosa hesitação, de levar a cabo essa obra, fazendo jus a tema tão prodigioso”. Ora, foi porventura aqui, neste expresso desejo de receber mais uma obra de cunho teórico do que uma investigação histórico-sociológica, que o equívoco de Adorno se terá adensado e conduzido ao desenlace que referimos. O texto seria apenas remetido por Benjamin no outono de 1938 e, após tê-lo lido, poucas semanas depois, Adorno respondeu numa missiva tão ponderada quanto cortante. Invocou “razões de natureza objetiva” para justificar “a decepção” que o conteúdo do manuscrito lhe causara. Entendia que os temas eram na realidade “reunidos”, mas não efetivamente “elaborados” por Benjamin. Por isso interrogava-o nestes termos: “Panorama e vestígios, flâneur e passagens, modernidade e sempre-igual, tudo isso sem interpretação teórica – será esse um ‘material’ que pode aguardar paciente por interpretação sem que seja consumido em sua própria aura?” As objeções viriam logo de seguida, e Adorno era de parecer que tinha diante de si apenas uma visão sem profundidade teórica, concretizada num objeto esférico que oscilava entre “história e magia” e no qual a anunciada “ascese” de Benjamin funcionava contra a sua própria interpretação. Sentia que faltava “mediação” ao trabalho, nele reinando antes “a soberana tendência de relacionar os conteúdos programáticos de Baudelaire diretamente aos traços contíguos da história social do seu tempo, e tanto quanto possível aos de natureza económica”. Entendia inclusivamente que a escusa deliberada à teoria afectava o próprio “material empírico” de modo duplo: por um lado, conferia-lhe “um carácter ilusoriamente épico” e, por outro, privava os fenómenos “do seu verdadeiro peso histórico-filosófico”, experimentados que eram “de forma meramente subjetiva”. Essa abstenção conduzira a um tipo de “concretude” que causava a Adorno enorme “aversão”. Talvez por isso não se tenha coibido de fazer uma interpretação de cariz paternalista, apoucando propositadamente Benjamin e caracterizando o seu gesto como ingénuo: “A impressão que passa todo o seu trabalho, e não só para mim com minha ortodoxia das Passagens, é que nela você se violentou a si mesmo; sua solidariedade com o Instituto, com a qual ninguém se alegra mais do que eu próprio, induziu-o a pagar ao marxismo tributos que não fazem jus nem a ele nem a você” (ADORNO, BENJAMIN 2012, p. 79, 94, 149, 398-404).
Tais afirmações vibraram em Benjamin como um rude golpe. Ainda assim, na carta de resposta que enviou a Adorno, aproveitou para reiterar o modelo teórico e o processo de análise empírica que perseguia. Assumiu sem problemas que trilhava caminhos de pensamento que iam muito além da “solidariedade com o Instituto ou da mera fidelidade ao materialismo dialéctico”. Benjamin não podia “violentar” os “seus interesses mais próprios”, o que o conduzia diretamente ao centro da contenda. “Creio que a especulação”, começou então por explicar, “só ascende ao seu voo necessariamente audaz com alguma perspectiva de sucesso se, em vez de vestir as asas de cera do esoterismo, buscar a fonte da sua força unicamente na construção”. Para ele, realmente, era tudo uma “questão de disposição metodológica”. Apenas no interior do edifício construtivo, os resultados do exame de qualquer fragmento de texto se podiam sedimentar. E recordava como o estranhamento da sua posição de partida era afinal um problema do destinatário, porquanto a sua posição de princípio fora, havia muitos anos, explicitada. Reafirmou, então, a sua tese: “Na mónada ganha vida tudo aquilo que jaz em rigidez mítica na condição de texto”. O aparente fechamento no interior dos factos, de que era acusado, desapareceria à medida que o objeto se ia constituindo numa “perspectiva histórica”; e acrescentava de imediato que “as linhas de fuga dessa construção convergem na nossa própria experiência histórica”. O objeto de estudo é uma mónada e só esta nos pode devolver, mesmo à distância e na diferença temporal, uma percepção do nosso presente. Na mónada escutavam-se os rumores e os acordes do tempo (ADORNO, BENJAMIN 2012, p. 413- 414).
Na correspondência trocada em seguida, e que terminaria a 25 de setembro de 1940, quando Benjamin anunciou a Henny Gurland e Adorno a decisão de pôr termo à sua vida, as questões teóricas foram passando para segundo plano e a conversa ficou circunscrita a possíveis alterações no texto sobre Baudelaire, sobretudo durante o mês de fevereiro de 1939. Ainda assim, Benjamin manteve-se firme no tratamento da figura do flâneur “dentro do contexto global das Passagens” e na sua “costumeira forma monográfica” de tratar os assuntos. Reiterou nessa altura a “confiança” nas enormes potencialidades do “arquivo” que estava a constituir e prometia para breve “dar voz a esses excêntricos que em meados do século construíram a cidade de Paris como uma série de galerias envidraçadas, de jardins de inverno, por assim dizer”, acrescentando que o nome do Cabaré Berlinense daria bem “uma ideia de como deveria ser a vida nessa cidade dos sonhos”. O tom das cartas permaneceu amistoso e sabemos por elas que, em julho de 1940, Adorno estava “a fazer de tudo” para apressar a saída de Benjamin, a partir de Marselha, com destino a Nova Iorque, no quadro das ameaças e da mais que precária situação que os judeus alemães conheciam sob o regime de Vichy (ADORNO, BENJAMIN 2012, p. 424, 435, 438). Volvida uma década e meia do seu suicídio, Adorno traçaria o perfil de Benjamin na revista Prismen: Kultukritik und gesellschaft. Este influente intelectual da chamada Escola de Frankfurt já não dava, nessa altura, mostras das anteriores reservas relativamente à renúncia, tantas vezes expressa pelo seu amigo, ao materialismo dialéctico. Dir-se-ia que, nesse ínterim, o mundo científico das letras, artes e ciências sociais do pós-guerra se tornara, senão inteiramente benjaminiano, pelo menos capaz de perceber muito dessa sua visão da história marcada pela rejeição da ideia de progresso e pela denúncia de toda a interpretação manifesta a priori. A afeição a objetos singulares, esse aproximar-se microscópico da coisa, a desmedida entrega ao objeto e aos labirintos que se poderiam formar no seu interior, fazendo com que o conhecimento resultasse apenas do material coligido, parecia recolher os maiores favores e a admiração de investigadores em número cada vez mais crescente. Em 1955, dir-se-ia ter chegado o momento de Adorno mostrar que não só compreendia a densidade e o alcance do trabalho de Benjamin como também a coragem intelectual que esse tivera em não se submeter às correntes de pensamento dominantes, às tradições manifestas na filosofia e na história, de que ele próprio era naquele momento, ironias do destino, um destacado representante. Logo a abrir o seu texto, Adorno faz um retrato em que Benjamin surge como o autor intertextual por excelência, aquele cujo trabalho conseguiu permanecer em estado de fragmento, exprimindo-se sobre o mundo a partir de singularidades; e que ocupou unicamente o lugar do ensaísta, isto é, de alguém que vai treinando a agilidade do mergulho em profundidade nos seus escritos, que não esgota nunca uma metodologia destinada a articular e a reconfigurar elementos distantes e até estranhos aos regimes prevalecentes de significação e de verdade. Inscreve-se, por essa via, na longa tradição dos que se aventuraram nesse estilo “assistemático” e experimental, definido por Ortega y Gasset como uma ciência “sem prova explícita”, que desde Montaigne (essayer: tentar, testar, experimentar) e Bacon vinha despontando na cultura ocidental como alternativa à rigidez da tratadística. No ensaio, podemos identificar a ousadia de escrever à margem de certas balizas, disciplinas ou áreas de especialização, frequentando-as e interpelando-as quando necessário, mas prosseguindo mais por relação com o que elas enunciam do que no interior delas, numa lógica de filiação. O modelo ensaístico seria, portanto, o refúgio do investigador na sua vertente de figura que existe apenas no exercício da escrita e que, nessa circunstância, não fala por cima ou em nome de um saber já acabado e consagrado, mas antes dentro e a partir daquilo que experimenta, in medias res, numa persistente referência às suas escolhas metodológicas, conceptuais ou empíricas. Para Benjamin, de facto, o fundamental encontra-se na solidez das conexões, mais do que na majestade do produto final, no processo de edificação do objeto, mais do que no valor intrínseco do “resultado”, esse “cadáver que deixou para trás a tendência [a vida]” e que “já se acha estagnado” (HEIDEGGER 2009, p. 51). Como investigadores, revemo-nos nas linhas que se seguem, mesmo sabendo que, no caso de Adorno, elas escondiam divergências e rivalidades antigas; quem sabe se até mesmo um grande mal-estar anterior:
O nome do filósofo cuja vida se extinguiu durante a fuga aos polícias hitlerianos foi adquirindo uma auréola nos 15 anos que decorreram desde a sua morte, apesar do carácter esotérico dos seus primeiros trabalhos e do carácter fragmentário dos últimos. O fascínio pela sua pessoa e oeuvre levam inevitavelmente a uma atração magnética ou a uma defesa estremecida. Sob o olhar das suas palavras tudo se transforma como se se tornasse radioativo. Mas a sua capacidade de distinguir constantemente novos aspectos das coisas – não tanto pelo processo que consiste em romper criticamente as convenções como pelo relacionar-se com o objeto de acordo com a sua organização interna como se a convenção nenhum poder tivesse sobre ele – não pode apreender-se seriamente através do conceito de originalidade. Nenhum pensamento original desse homem inesgotável se assemelha a algo sem mistura (...). Não dava a impressão de ser uma pessoa que conquistasse a verdade citando-a e pensando-a, antes a citava através do pensamento, como se este fosse um supremo instrumento no qual a verdade deixara o seu sentimento. Benjamin nada possuía de filósofo no sentido tradicional e de acordo com os critérios tradicionais. O que caracterizou as suas descobertas não foi sequer uma disposição viva e orgânica: nenhuma imagem pode errar tão completamente o seu ser como a metáfora do criador. A subjetividade do seu pensamento era exagerada até à caricatura, até à diferença específica; o momento idiossincrático do seu próprio espírito, o que era singular nele (...) era um recurso constritivo. A frase de acordo com a qual o conhecimento individual é o mais universal parece ter sido feita a pensar nele (ADORNO 1992, p. 9-10, grifos nossos).
Ao materialismo marxista, com as suas tábuas de leis e proibições transcendentais, Benjamin terá deixado a herança heterodoxa de uma “dialéctica imóvel” e, com ela, a possibilidade da “facticidade da obra” ser “restituída à vida”, como sublinha Giorgio Agamben (2008, p. 148-149). As suas teses não determinísticas permitem-nos de facto idear outras formas de sentido e de duração do tempo – aquelas que se inscrevem sob a sincronia, que podem até proceder diacronicamente, mas que encontram forma de aceitar a descontinuidade como outro seu operador constituinte. Uma historiografia assente sobre objetos cristalizados, imóveis e imediatos, que verdadeiramente possa romper o cerco do abstracionismo do tempo linear e progressivo, causal e contínuo, permitindo-nos aceder a outros interiores do nosso presente – eis um enorme desafio que continuamos a ter pela frente.
À medida que o olhar vai circulando por entre as notas e materiais que Benjamin foi dispersando naquele grande arquivo das Passagens, fica-se com a sensação de que estava em preparação, e mesmo em vias de acontecer, uma grande festa, tantas são as sequências que esses fragmentos e respetivas citações comentadas permitem imaginar. É até como se nós próprios estivéssemos a ser convidados a participar nesse acontecimento, a deixar a nossa condição de leitores para navegar, agir e jogar com a gigantesca massa textual e iconográfica que ali se encontra depositada. Na realidade, o conceito de mónada, o elemento coisal e o fragmento não nos colocam apenas face a novas perspectivas do conhecimento histórico. Conduzem-nos, igualmente, em direção a numa nova dimensão escritural caracterizada pelo infinito das relações entre os materiais armazenados. É também por aqui que Benjamin captura a nossa atenção e nos encanta. Afirmar-se que a obra é feita de citações, e de citações sobre citações, é admitir que toda a interpretação manifesta que incida sobre a intenção da figura autoral tenha de ser substituída pelas significações que a montagem do material consegue desenvolver. Que cada texto concluído seja visto apenas como o momento e a manhã em que se deve iniciar um novo trabalho construtivo. Em Benjamin, teoria e empiria permaneceram em estado de fragmento e de perpétua fragmentação. O arquivo das Passagens constituiu um programa e um dispositivo no qual se multiplicaram as categorias construtivas, assim como os circuitos de circulação de um livro ainda por vir. À medida que o trabalho crescia, Benjamin sentiu que esse imenso ficheiro deveria ser organizado alfanumericamente, ao mesmo tempo que começou a colocar siglas de várias cores à margem dos fragmentos e anotações. Tais anotações funcionavam como um autêntico sistema de “hieróglifos modernos” ou “signos de transferência” categorial, permitindo que os materiais fossem deslocados à medida das necessidades para a planta de construção desse autêntico livro-modelo que deveria intitular-se Baudelaire – o poeta na era do capitalismo avançado. Então, já na segunda metade dos anos 1930, trabalhava como um verdadeiro arquivista-escritor. Willi Bolle, por isso mesmo, defende que a palavra ‘passagem’ teve nele a conotação do que é “transitório, mutável, modificável”. Com esse fundo e essa rede de relações inesgotável no interior dos próprios materiais que ia coligindo, Benjamin terá superado o princípio de redução a que é conduzido todo aquele que se sente obrigado a produzir uma narrativa de tipo sequencial-cronológico em cima dos documentos reunidos. Nesse seu dispositivo diagramático espacial, próximo da montagem cinematográfica, do esboço pictográfico e do ensaio escrito, não parecia haver perda ou desperdício. As Passagens, bem feitas as contas, correspondiam a uma autêntica caixa de construção a partir da qual a “história era concebida como um tecido”, engendrado por “múltiplas ramificações”, em que o todo apenas podia ser percebido adequadamente de forma “espacial-visual” (BOLLE 2015, p. 91 e 97; 2008, p. 42-43).
Entendemos ter sido esta rigorosa e permanente alternância entre o gesto de acumular-classificar e o de escrever que lhe permitiu cultivar e aperfeiçoar uma eficácia textual que desejava situar-se muito para lá da bidimensionalidade tão própria da página impressa. Quem percorrer a coleção de aforismos depositada no livro Rua de sentido único, assumido como acabado em dezembro de 1924 e dado à estampa pouco mais de três anos depois, deparará com um pequeno texto com o improvável título “Revisor tipográfico ajuramentado”, mas que de imediato surpreende por começar com esta afirmação: “O nosso tempo, a antítese perfeita do Renascimento, opõe-se particularmente à situação que viu nascer a invenção da imprensa”. Tal diagnóstico sobre a conjuntura do presente levava Benjamin a uma tese que parece saída de conversas tornadas banais na atualidade sobre o mundo digital. Todos os sinais lhe pareciam efetivamente indicar que “o livro, nesta sua forma tradicional”, tinha “os dias contados”. Os novos tempos eram os de uma escrita da imagem, embora essa representação do futuro a já tivessem anteriormente contemplado figuras como Mallarmé, com as tensões gráficas que marcavam a sua poética, bem como os dadaístas, que faziam dispor no interior dos seus quadros objetos retirados do dia-a-dia – bilhetes, beatas de cigarros, etc. – e que eram ligados através de elementos pictóricos. Se, havia séculos, a escrita “encontrara o seu refúgio no livro impresso, onde levava uma existência autónoma”, estava então a ser irremediavelmente trazida para a rua “pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos económico”; levantava-se do chão, da cama que era o livro impresso, e encontrava a sua “verticalidade ditatorial” no jornal, no cinema e no reclame. Ora, Benjamin entendia que o trabalho de investigador deveria passar a integrar também, e por inteiro, “esse turbilhão das letras em movimento, coloridas, concorrentes”. Mas como se daria esse alinhamento da prática textual com os novos tempos vividos nas metrópoles? A resposta saltava-lhe da ponta da caneta como um gafanhoto e não havia nela nenhuma excentricidade: “O catálogo de fichas significa a conquista da escrita tridimensional, um contraponto surpreendente para a tridimensionalidade da escrita nas suas origens, como runa ou escrita de nós”. “E já hoje, como ensinam os modos de produção científica atuais”, afirmaria em seguida, “o livro é uma mediação antiquada entre dois sistemas de fichagem, porque tudo o que é essencial se encontra no ficheiro do investigador que o organizou, e o erudito que por ele estuda assimila-o ao seu próprio ficheiro”. A grande e suprema novidade da escrita estaria, assim, na reunião, classificação, disposição e interpretação dos conteúdos que o investigador considerasse apropriados para si, numa obra em andamento e constitutivamente fragmentada. E no texto seguinte de Rua de sentido único, que não por acaso intitulou “Material didático: princípios dos calhamaços ou a arte de livros grossos”, concluiu o argumento e deixou uma interrogação que não pode deixar de abalar uma das grandes fronteiras que ainda enclausura a prática da escrita: “A obra típica do erudito atual pede para ser lida como um catálogo; mas quando chegaremos a escrever livros como catálogos?” (2004, p. 26-27; grifos nossos). Materiais e notas em processo de acumulação numa imensa oficina de leitura e escrita – tais eram as novas condições exigíveis ao investigador por Walter Benjamin, e que ele mesmo iria começar a materializar com o subsequente projeto das Passagens.
As “condições técnicas” da atualidade levaram-no a pensar no que seria essa outra figura do “escritor operante”; alguém que, por si mesmo, soubesse corporizar a ultrapassagem do que classificava como “a infrutífera controvérsia entre forma e conteúdo” e, também, encontrasse maneira de ir para além da missão de informar, representar ou pastorear o leitor. Refletir acerca das condições e das modalidades técnicas de massificação da expressão escrita foi outra das tarefas a que Benjamin se propôs nas décadas de 1920 e 1930. A nova amplitude dos horizontes de então trazia consigo a necessidade, própria de um tempo de crise revolucionária, de pôr um ponto final também na “distinção entre autor e público”. Essa triste figura que continuava a irromper na “imprensa burguesa” – o homem de letras, o intelectual, o jornalista, o colunista, o comentador como alguém que “escreve, descreve e prescreve” ao mesmo tempo, seria, a breve trecho, persuadia-se Benjamin, substituída pela tomada da palavra pública como um “bem comum”. Via o “autor enquanto produtor”, e esse foi aliás o título que deu a uma conferência proferida a 27 de abril de 1934. No intenso processo de “refundição” das antinomias, o ativismo dos movimentos político-literários começava a dirigir-se a fim de tornar evidente que não tinha qualquer interesse alguém pensar pela cabeça de outro, e que o escritor não era a figura que dominava o pensamento com o seu intelecto, mas apenas um “experimentador” como qualquer produtor. Benjamin tomava o caso do teatro do seu grande amigo Bertolt Brecht, de par com as experiências surrealistas, como exemplos de comportamentos indicativos da imperiosa necessidade de “atribuir a produção ao consumidor”, ou seja, “de transformar os leitores ou espectadores em participantes”. O que definia e se exigia ao escritor do futuro era que espelhasse e explicitasse, mais do que “as tendências”, sobretudo as “funções organizativas” do texto, dando, assim, conta de um comportamento simultaneamente “indicativo e instrutivo” à comunidade. Declararia a esse respeito e com o maior desassombro: “Um autor que não ensina os escritores não ensina ninguém” (BENJAMIN 1992, p. 140-142).
Naquele que viria a tornar-se seguramente o seu ensaio mais conhecido e referenciado, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, iniciado em 1936 e apenas publicado em 1955, reiterou a mesma crença na adaptação dos meios de produção cultural e artística ao crescimento exponencial da indústria. O texto abria, aliás, com uma citação de Paul Valéry em que se anunciavam mudanças próximas e muito profundas nos regimes de conhecimento e de invenção artística. Todos ouvimos falar das ideias que Benjamin teceu sobre os avanços das técnicas de reprodução da fotografia ou o aqui e agora da obra de arte, a sua aura, a relação da cópia com o velho culto da expressão original. Passam-nos talvez mais ao largo as considerações que ali também teve oportunidade de fazer acerca “da situação histórica da escrita contemporânea”, da sua relação com a sociedade e o estado da escolarização. Era-lhe dado observar como a cada dia o leitor estava sempre pronto “a tornar-se um escritor”. No seu entender, essa grande conquista da civilização estava em marcha sobretudo na União Soviética – “com a crescente especialização do trabalho, todos os indivíduos tiveram ali de se tornar, voluntária ou involuntariamente, especialistas numa dada área, ainda que num sentido menor, assim tendo acesso à condição de autor” –, mas também a reconhecia no mundo ocidental, posto que não devia haver “nenhum europeu, inserido no mundo do trabalho”, que não tivesse já vivido a “possibilidade de publicar uma experiência laboral, uma reclamação, uma reportagem”. “Assim”, concluía novamente, “a diferença entre autor e público está prestes a perder o seu carácter fundamental”. O passo derradeiro dar-se-ia no momento em que “a competência literária” deixasse de se alicerçar no dom individual ou ser apenas cultivada em academias e escolas especializadas, para se realocar em instituições educativas de tipo politécnico. Falar das ligações entre a escola e a escrita seria falar da generalização de um saber profissional tornado acessível a todos. Só assim o texto se tornaria “um bem comum”, uma prática artesanal partilhada por toda a comunidade. A sua aprendizagem e domínio, como se de um ofício se tratasse, rapidamente imporia a evidência de acordo com a qual em cada homem reside um escritor (BENJAMIN 1992, p. 97).
Não cremos exagerar, ao afirmar que Benjamin se tomava como mais um trabalhador e que era apenas nessa condição de igual, de contínuo produtor-consumidor de traços escritos, que ia acedendo à condição de autor. Por isso nos parece que essas suas últimas considerações, refletindo evidentemente o sonho de um tipo de sociedade perfeita em que todos podem compreender e fazer-se compreender, têm menos importância do que a exigência de uma ética de si que delas emanava. O combate à ortodoxia do pensamento, à ordem explicadora escolar, ao grande corpo do saber acabado e à arte da distância cultivada pela figura do autor-génio, fazia-se através de uma prática quotidiana, e propriamente política, de fragmentação experiencial do Todo. A possibilidade de viver a materialidade da linguagem, de pôr o pensamento em palavras e as palavras em pensamento, supunha nele a dessacralização absoluta e radical do ato da escrita. Benjamin aplicou-se de alma e coração a exercer e a pensar o que seria isso do infinito da escrita, explicitando essa dupla necessidade com uma clareza assombrosa, quando afirmou, em certo momento, “que o ser verdade” (que, enquanto tal, é naturalmente não conhecível) se “relaciona com o dom da tarefa infinita”, e que “a condição de verdade de um estado de coisas é função da constelação do ser verdade de todos os outros estados de coisas” (BENJAMIN 2015, p. 38). Como qualquer outro tipo de atividade, escrever era dar corpo à necessidade, em si mesma inesgotável, de configuração do ser-em-conjunto. Disse-o do seguinte modo:
Para os grandes, as obras acabadas têm menos peso do que aqueles fragmentos ao fio dos quais o trabalho atravessa as suas vidas. Só os mais fracos, os mais distraídos, sentem uma alegria incomparável ao terminar alguma coisa, sentindo-se, com isso, restituídos à sua vida. Para o génio, toda e qualquer cesura, os pesados golpes do destino, e também o sono sereno, são parte diligente da sua oficina. O campo de ação desta traça-o ele no fragmento. ‘Génio é o trabalho diligente’ (BENJAMIN 2004, p. 12).
Linhas, excertos, notas, comentários, cadernos, recortes, fotografias, ensaios, artigos que não passavam de outra modalidade da fraternidade e da redistribuição da riqueza. Benjamin considerava muito justamente que esse espólio em crescimento punha em movimento um tipo não ortodoxo, mas igualmente real, de comunismo, no qual a palavra e a representação da palavra mais não eram que um trabalho. Como acabamos de ler, essa sua erudição ampliava-se, irradiando por todos os lados, porque estava ciente de não haver nunca forma de se desobrigar da atividade de compreender. Sentindo embora na pele as privações do mundo, participava ativamente da lógica comunitária. O seu ponto de partida foi sempre o de supor que a inteligência está presente e em ação nas várias produções humanas. Todos podem perceber as palavras de todos, relacionando qualquer coisa com tudo o resto, como sucedia na sua concepção da mónada e no trabalho da citação que desenvolvia. Tudo está em tudo. Jacques Rancière (2014, p. 101) oferece-nos algumas pistas adicionais para identificar o gesto de Walter Benjamin: “É o querer-dizer que postula a comunidade, ao pressupor o entendimento sobre uma forma específica, a da obrigação de entender.” Em resposta a uma “pergunta retórica” do amigo Gershom Scholem sobre o que seria exatamente a sua profissão de fé comunista, Benjamin afirmou noutra carta enviada a partir de Paris, com a data de 6 de maio de 1934:
Mas que novidade ela [a resposta] poderia trazer-lhe? Que o meu comunismo, entre todas as formas e tipos de expressão, jamais assumiu a de um credo? Que ele, às custas da sua ortodoxia, não é mais do que a expressão de certas experiências que fiz em minha vida e em meu pensamento; que é uma expressão drástica, mas não infrutífera, da impossibilidade atual de uma produção científica, impossibilidade de oferecer um espaço ao meu pensamento e à minha existência, diante da atual forma económica; que ele representa a única tentativa racional, para alguém completamente privado dos meios de produção, de proclamar os direitos a isso em seu pensamento bem como em sua vida; que ele é tudo isso e muito mais e em cada aspecto nada além do mal menor” (BENJAMIN, SCHOLEM 1993, p. 158-159).
A grande transgressão correspondia tão-somente ao continuar-se a fazer o que se faz e assinalar o seu modo de produção, afim de se continuar a fazer. Benjamin convida a insistir diligentemente nesse método de acaso virtuoso que consiste em alguém narrar uma história, ao mesmo tempo que consegue explicitar e fornecer os meios de verificação dessa realidade contada. Levar o texto à cena e, com ele, revisitar o acontecimento que o conduz para além de si mesmo. Com ele, a invenção comunitária origina-se na entrega à experiência-limite, a esse estado de exceção que consiste em perseverar como viajante do espírito, em contínua vigília sobre o que é preciso encontrar a partir do que já se conhece.
Em Benjamin, há sempre uma força narrativa que se afirma na rejeição da ideia de que o argumento é um todo que cobre o todo da realidade. Instalou um descontínuo e a ausência de um sentido final aos seus textos. Deu, assim, corpo a uma escrita que procedia por desmultiplicação, por unidades curtas ou cristalizadas, e cuja audácia estilística ou novidade analítica não decorria de um qualquer universal, mas unicamente de problemas suscitados no seu interior. Por essa via, Benjamin oferece-nos a possibilidade de avançarmos através do sentido sem todavia o fecharmos. É a hipótese de nos constituirmos como o historiador-ensaísta que, “no caleidoscópio do seu texto, faz fulgurar sempre novas conexões”, na feliz expressão de João Barrento (2010b, p. 15). É justamente aqui que entrevemos a hipótese de avançarmos para fora de qualquer lógica unificadora, totalizante e planetária do trabalho de produção do conhecimento do passado; a possibilidade de, como historiadores, participarmos no jogo da compreensão do mundo através da criação de objetos parciais, num aturado trabalho de correlação, minúcia e consistência, rejeitando qualquer metanarrativa sobre a sua origem ou destino. Desse devir ainda se poderia afirmar o que Deleuze declarou sobre Maurice Blanchot: “Dizer e pensar o objeto parcial enquanto ele não pressupõe totalidade alguma passada da qual derivaria, mas, ao contrário, deixar o fragmento derivar por ele mesmo e pelos outros fragmentos, fazendo da distância, da divergência e do descentramento, que tanto os separam quanto os misturam, uma afirmação como “«nova relação com o fora», irredutível à unidade” (DELEUZE 2006, p. 205). Do nosso ponto de vista, é nessa importantíssima quebra com a tradição da linearidade e da progressividade do sentido que estão hoje depositadas as tonalidades afectivas mais intensas desse ser no mundo que é o texto historiográfico. A fala incessante do fragmento ou do pedaço – eis uma definição bastante precisa da investigação que o autor das reflexões “Sobre o conceito de história” legou para a posteridade.
Este trabalho recebeu financiamento de Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT