Resumo: No presente artigo busco expor e desenvolver como a precarização do Sistema Único de Saúde (SUS) afeta os processos de subjetivação daqueles corpos que o compõem. Utilizando dados colhidos a partir de uma incursão etnográfica em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), em um município do interior paulista, o texto que se segue se organiza por uma elaboração dos impactos que grandes eventos epidemiológicos têm sobre a saúde mental das populações que afetam, particularmente no caso dos profissionais de saúde que seguem suas práticas profissionais sob estes contextos. Ademais, viso trabalhar a particularidade da pandemia de covid-19 a partir de uma análise das contingências políticas que tornam o caso brasileiro singular dentro do contexto global da pandemia. Em um segundo momento, conecto processos políticos macroestruturantes a micropolíticas cotidianas de cuidado e os afetos que elas engajam. Para demonstrar estes caminhos pelos quais grandes mudanças afetam trajetórias individuais, utilizo a base teórica desenvolvida pelo campo da antropologia das emoções. Para sustentar a argumentação, utilizei entrevistas e narrativas etnográficas que compuseram o meu material de campo durante a vigência de meu mestrado, que se deu integralmente durante a pandemia de covid-19.
Palavras-chave: Precarização, SUS, CAPS AD, Pandemia.
Abstract: In this article, I seek to expose and develop how the precariousness of the Unified Health System (SUS) affects the processes of subjectivation of those bodies that compose it. Using data collected from an ethnographic incursion in a Center for Psychosocial Care Alcohol and Drugs (CAPS AD), in a city in the interior of São Paulo, the text that follows is organized by an elaboration of the impacts that major epidemiological events have on the mental health of the populations they affect, particularly in the case of health professionals who conduct their professional practices under these contexts. Furthermore, I aim to work on the particularity of the pandemic of covid-19 from an examination of the political contingencies that make the Brazilian case unique within the global context of the pandemic. In a second moment, I connect macro-structural political processes to everyday micro-politics of care and the affections they engage. To demonstrate these ways in which major changes affect individual trajectories, I use the theoretical basis developed by the field of the anthropology of emotions. To support the argument, I used interviews and ethnographic narratives that were part of my field material during the course of my master’s degree which took place entirely during the covid-19 pandemic.
Keywords: Precarization, SUS, CAPS AD, Pandemic.
Dossiê
Duplamente letal: a destruição psíquica dos profissionais da saúde durante a pandemia de covid-19
Doubly lethal: the psychological havoc of health care workers during the covid-19 pandemic
Recepción: 15 Octubre 2021
Aprobación: 27 Abril 2022
Quando comecei a negociar minha entrada no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas Antônio Orlando (CAPS ADAO), em 14 de dezembro de 2020, registraram-se 520 mortes por covid, que, somadas ao total, contabilizavam 181.939 óbitos no Brasil. No dia 11 de janeiro de 2021, quando efetivamente me inseri no campo, registraram-se 480 mortes; total de 203.617 óbitos. Quando meu campo foi suspenso, no dia 16 de março de 2021, 2.841 mortes foram registradas. A média móvel beirava os 2000 óbitos diários – 1965 mortes na média móvel dos últimos sete dias – e totalizavam-se 282.400 óbitos desde o início da pandemia.
Durante uma segunda imersão, iniciada em 6 de outubro de 2021, foram registradas 543 mortes, média de 464 nos últimos 7 dias e total de 599.414 óbitos. Quando encerrei esta segunda imersão, em 30 de novembro de 2021, foram registradas 326 mortes – média de 231 mortes nos últimos sete dias. Ao momento em que escrevo a última versão deste artigo, os óbitos pela covid-19 no Brasil passam de 659.000.
Ao todo, foram 16 semanas de campo, divididas em duas porções de 8 semanas, nas quais acompanhei o cotidiano do CAPS ADAO, seus trabalhadores, usuários[1] e outros personagens que por ali circulavam: pessoas em situação de rua, vendedores ambulantes, ambulâncias, policiais da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e outros profissionais vinculados à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Este artigo é composto com material etnográfico de minha pesquisa de mestrado, que, quando foi concebida, esperava contar a história dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), seu funcionamento, suas contingências, suas possibilidades e potencialidades, o contexto legal e político que permitia que eles operassem da maneira como operavam, as relações que o permeavam. A todos estes fatores somaram-se as máscaras, o álcool em gel, o luto não elaborado, o medo de infectar e ser infectado. Essencialmente, este texto trata sobre as ecologias de cuidado (Das 2015, Das e Das 2006) e estratégias de cuidado direcionadas às pessoas que cometem abuso de Substâncias Psicoativas (SPAs) durante o período de pandemia. Ancorado neste processo histórico particular, espero expor e desenvolver os caminhos pelos quais a precarização da principal política pública do país afeta os processos de subjetivação daqueles corpos que a compõem.
A noção de “ecologia de cuidados” desenvolvida nos trabalhos de Veena Das (2015) e Veena Das e Ranendra Das (2006) produziu diálogos importantes para meu argumento, na medida que esta noção implica as lógicas de cuidado dentro das configurações locais onde elas se dão, assim como revelam as intrincadas redes relacionais entre profissionais, pacientes, domicílios que contingenciam o curso e o desenvolvimento de processos de adoecimento. No caso do artigo de Das e Das (2006), no qual se avaliam os usos de medicamentos e automedicação em bairros pobres de Nova Delhi, as causas e fenomenologias atribuídas às doenças e ao sofrimento encontram-se embutidas em um complexo mundo local onde seus significados estão entrelaçados com regimes laborais, casas e éticas profissionais distintas, que variam da indústria farmacêutica às terapias medicamentosas locais. É nessa amálgama de atores e agências, significados e significações, políticas federais e arranjos políticos locais que as ecologias de cuidado se formam e informam. Através dessa configuração teórica, foi possível abarcar as contingências pré-existentes, assim como as drásticas mudanças trazidas pela pandemia na elaboração da escrita deste artigo.
Nesse sentido, a pandemia insere-se como contingência fundamental nos processos de constituição das redes, práticas e ecologias de cuidado e, por consequência, apresenta-se ela também como um evento processual na medida em que os limites epidemiológicos eram constantemente negociados tanto em âmbito institucional quanto subjetivo. Assim, o cuidado e os agentes de produção do cuidado no CAPS ADAO mostraram-se, respectivamente, como categoria e atores centrais no meu campo. Além de serviço de saúde, era frequente que se ouvisse a denominação do CAPS ADAO como “espaço de cuidado” entre os profissionais. No CAPS ADAO, quando um usuário aciona a equipe, diz-se que “ofertava-se o cuidado”.
Muitas vezes, durante a vigência do campo, as demandas de usuários que chegavam aos portões do espaço não podiam ser acolhidas. Em tempos não pandêmicos, os profissionais relataram-me ocasiões em que o grande pátio no térreo da casa onde o CAPS ADAO se localizava comportava cerca de 50 usuários. Contudo, no período em que estive junto do serviço, a permanência no espaço ficava restrita a 8 usuários inseridos em leitos, mais 5 usuários por período (manhã e tarde), em razão do protocolo recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Apesar da presença reduzida de usuários no serviço, as demandas aumentaram durante a pandemia. Em outros momentos, dinâmicas terapêuticas grupais eram realizadas diariamente no serviço. Em consonância com os princípios da metodologia psicossocial, a equipe buscava criar novos espaços de sociabilidade e lazer que não fossem construídos a partir do uso de substâncias. Os grupos eram parte fundamental do cotidiano dos serviços e com sua suspensão, os profissionais passaram a realizar somente atendimentos individuais. Com isso, suas agendas estavam permanentemente cheias.
A pandemia também impactou o funcionamento dos serviços da rede de saúde pública. Muito do trabalho realizado no CAPS ADAO, mas também em Centros de Saúde (CSs), Centros de Convivência (CECOs) e serviços da rede de assistência social baseiam-se metodologicamente no trabalho em equipe. Um profissional nunca gerenciava um grupo sozinho, e isso ajudava a compor os casos clínicos e Projetos Terapêuticos Singulares (PTS)[2] dos usuários. Contudo, com a chegada da pandemia, houve um processo continuado de individualização do processo de cuidar.
O matriciamento[3], outra prática fundamental na constituição das ecologias de cuidado, também foi suspenso durante o período pandêmico. As trocas entre serviços diferentes da rede são muito importantes, pois cada instrumento oferece um tipo de cuidado ou ação em saúde distinto. Era frequente que os usuários tivessem quadros clínicos graves devido ao uso continuado de álcool – os alcoolistas eram maioria no CAPS ADAO. Nem sempre o CAPS ADAO tinha condições de oferecer o cuidado clínico necessário a estes casos que precisam de atenção continuada. Da mesma forma, os CSs não possuíam equipe especializada em atenção de crises ou estavam preparados para um cuidado integral de casos que envolviam uso problemático de substâncias.
Essa suspensão dos matriciamentos, assim como a sobrecarga de serviços da atenção primária com casos de covid, fez com que a mesma lógica produzida internamente entre a equipe se reproduzisse na dinâmica da própria rede de saúde. Os serviços acabaram se atomizando e as trocas entre equipes de saúde se rareficaram. No CAPS ADAO, isso significou uma piora nos quadros clínicos dos usuários, assim como um contínuo processo de individualização dos processos de responsabilidade assumidos pelos profissionais. Com a sobrecarga gerada pela pandemia, o resultado foi este: profissionais exaustos e usuários desassistidos.
Não obstante, esse processo de precarização das possibilidades de cuidado não é algo que se inicia com a pandemia, apesar de se agravar drasticamente com ela. Não há nada de novo ou de original em afirmar a precarização e o desmonte do SUS como projeto político (Castro, Engel e Martins 2018). Há tempos sabemos das filas crônicas, da falta de recursos investidos, das desigualdades estruturais de acesso aos serviços, que se expressam nos territórios mais pobres e vulneráveis. Somado à pandemia, esse subfinanciamento – que tem a Emenda Constitucional (EC) 95 de 2016 como seu marco histórico inicial – contribuiu para uma intensificação das mortes evitáveis (Rutstein et al. 1976).
A pandemia de coronavírus no Brasil marca uma dobra, um agravamento, que não pode ser entendida como uma mera continuação do que se mostrava antes. É sua gestão desastrosa que provoca o esgarçamento das estruturas de desigualdades brasileiras. As taxas de mortalidades de covid reforçam a lógica colonial e mata principalmente pretos, pardos e indígenas, assim como trabalhadores informais, autônomos e mal remunerados. Esses corpos, que carregam marcadores sociais da desigualdade, dependem, em sua grande maioria, do Sistema Único de Saúde (SUS).
O extenuante trabalho de enfrentamento cotidiano da pandemia, combinado ao precário investimento na política pública, baixa remuneração, falta de materiais, medicamentos e espaços adequados para a realização plena de seu trabalho se combinam para a precarização da possibilidade de cuidado, tanto pela falta de materiais e estruturas básicas quanto pelas consequências que esta falta tem sobre as estruturas subjetivas dos trabalhadores que executam o trabalho de cuidar.
O texto que segue se organiza por uma elaboração dos impactos que grandes eventos epidemiológicos têm sobre a saúde mental das populações afetadas, particularmente no caso dos profissionais de saúde que seguem suas práticas profissionais sob estes contextos. Para tal me utilizo de entrevistas e narrativas etnográficas que compuseram o meu material de campo durante a vigência de meu mestrado. Ademais, viso trabalhar a particularidade da pandemia de covid-19 a partir de uma análise das contingências políticas que tornam o caso brasileiro singular dentro do contexto global da pandemia. Para tal, aproprio-me do aparato teórico desenvolvido por Stengers e Pignarre (2011), em especial da categoria de alternativas infernais. Em um segundo momento, conecto processos políticos macroestruturantes a micropolíticas cotidianas de cuidado e os afetos que elas engajam. Para demonstrar estes caminhos pelos quais grandes mudanças afetam trajetórias individuais, utilizo a base teórica desenvolvida pelo campo da antropologia das emoções.
Grandes eventos epidemiológicos são sabidamente eventos desencadeadores de maior sofrimento mental sobre suas populações. O exemplo mais recente em território brasileiro, a epidemia do zika vírus em 2015, desencadeou aumento de diagnósticos de depressão, ansiedade e estresse na população afetada, distúrbios estes que estão intimamente associados à falta de apoio social e desenvolvimento de políticas públicas (Kuper, Lopes et al. 2019). Durante outras epidemias de SARS, profissionais da saúde chineses relataram aumento de depressão, medo, ansiedade e frustração (Xiang et al. 2020).
No contexto que pude observar, houve ainda o agravamento de alta porcentagem de usuários que apresentam quadros de comorbidades, desenvolvidos concomitantes ao abuso de substâncias. Quadros graves de HIV/AIDS, tuberculose e distintos tipos de hepatite são frequentemente encontrados entre pessoas que cometem abuso de substâncias como cocaína – em suas diferentes formas – e álcool (Cruz et al. 2013, Martins 2011, Carvalho e Seibel 2009). A fala a seguir, proveniente de uma entrevista realizada com um médico residente, evidencia como estes quadros de comorbidades, que têm alta incidência entre a população atendida pelos CAPS AD, sofreram um processo de “descompensação” ao longo da pandemia.
Sim, teve bastante mudança, pois muitas das atividades não relacionadas a covid foram canceladas, então muitos ambulatórios foram cancelados. Então o que aconteceu, tipo assim, a gente tinha um ambulatório para atender pacientes com diabetes. E aí o pessoal fazia teleorientação, ligava, perguntava se tava tudo bem, e se tivesse tudo bem remarcava a consulta mais pra frente.Isso fez com que os pacientes fossem menos atendidos e chegassem cada vez mais descompensados pra gente. Então as doenças crônicas foram ficando cada vez mais descompensadas porque tinham menos atendimento médico. Então a gente teve menos contatos com estas pessoas, contatos mais limitados, sempre utilizando equipamentos e proteção, então isso meio que dificulta um pouco a relação médico-paciente. [...] Dificultou muito o seguimento próximo dos pacientes, que era uma coisa que a gente tinha que ter feito, mas não tinha como fazer, a gente tinha que remarcar os ambulatórios para evitar o contágio mesmo, não teve jeito.
O foco total do aparato público de saúde sobre a pandemia foi um fardo que atingiu tanto seus profissionais quanto seus usuários. A sobrecarga do SUS pela pandemia de covid-19 agravou tanto quadros de saúde que dependiam de um acompanhamento constante quanto atacou os processos de subjetivação de seus profissionais. Somado à ausência de posicionamento por parte de setores do governo federal, diversos profissionais foram empurrados, já exaustos, para uma maratona de “alternativas infernais” (Stengers e Pignarre 2011) que se reproduz cotidianamente.
A categoria “alternativas infernais”, proposta por Pignarret e Stengers, ajuda a dar contorno às situações que presenciei em campo. Os autores categorizam alternativas infernais como “o conjunto de situações que parecem não deixar escolha a não ser a resignação ou uma denúncia que soa um tanto quanto vazia” (Stengers e Pignarre 2011, 24, tradução própria)[4]. Apesar da elaboração dos autores sobre esta categoria se inspirar a partir das revoltas que ocorreram em resposta ao encontro da Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1999, em Seattle, ela pareceu-me um instrumento eficaz para pensar como a precarização do SUS associada ao processo de pandemia teve impactos diretos na produção de cuidado no CAPS AD.
Um dos pontos fundamentais na noção de categorias infernais que, a meu ver, torna possível sua transposição para um contexto tão distinto é o fato de elas serem construídas e não dadas. Como Stengers e Pignarre nos chamam atenção, "a máquina que produz alternativas infernais implica exércitos inteiros de especialistas engajados no processo de criação das condições de seu funcionamento” (Idem, 29)[5]. As alternativas infernais, o cansaço e a resignação que elas implicam, não são, portanto, um fenômeno natural, mas se produzem a partir do esfacelamento da política pública.
Elas são parte de um discurso, do qual certa classe política parece constantemente buscar nos convencer, de que nada pode ser feito contra essas amarras porque a mera oposição a elas agravaria a situação. Não há possibilidade de realização de isolamento social, ou lockdown, pois isso destruiria a economia e isso seria ainda pior do que a morte de centenas de milhares de brasileiros: esta é a lógica que produz alternativas infernais.
Nós agora encontramos essas alternativas em todos os lugares. Adaptar, “reformar” o estado de bem-estar social tornou-se uma obrigação ardente. Sacrifícios são necessários, caso contrário, o financiamento da aposentadoria não será mais garantido. Ou os pagamentos da previdência social se tornarão um poço sem fundo! Aceitar tornou-se um imperativo. (Idem, 24, tradução própria, grifo no original)[6].
A falta de protocolos claros de enfrentamento da pandemia e de uma direção centralizada a partir do Ministério da Saúde (MS) produziu uma lógica perversa de inversão das responsabilidades entre a política pública e as pessoas que a constroem. As múltiplas formas de mal-estar e angústia que palpitam nos profissionais da saúde, argumento, advêm, entre outras coisas, de uma terceirização subjetiva das responsabilidades da pandemia.
Parte da produção de alternativas infernais depende deste despejo do processo decisório coletivo sobre indivíduos. Na ausência de protocolos bem definidos sobre o manejo, caberia ao profissional de saúde avaliar qual paciente deveria receber sua atenção, seu cuidado. Como pode alguém decidir quem morre e quem vive? Qual quadro de saúde é mais urgente, o de um alcoolista com estágios iniciais de cirrose hepática, ou o usuário de crack HIV positivo, ou seria aquele em abstinência? Ou então, aquele usuário em situação de rua é ameaçado no território por causa de dívidas com o tráfico? Como pode uma pessoa ser amparada psicologicamente neste processo? Para essas questões ainda não possuímos respostas claras, e a mera reflexão sobre elas deveria provocar enjoo e angústia sobre qualquer um que esteja submetido a este processo.
A partir do que pude observar e construir com profissionais de saúde, entendo que a soma dos microeventos que emergem a partir deste contexto se conformam em um processo de séria ameaça das possibilidades subjetivas de existência do SUS. Os múltiplos relatos, entre profissionais da saúde, de exaustão, sentimento de culpa, cansaço crônico, aumento do número de síndromes de burnout, depressão e pânico são sintoma disso. Esse desgaste psíquico, que tem tirado diversos profissionais da linha de frente, não é simples resultado da pandemia, mas de sua combinação com a gestão desastrosa, em termos de vidas perdidas, por parte do governo federal.
Na pandemia, o agravamento da individualização do cuidado continuamente produzia situações nas quais os profissionais não possuíam recursos suficientes para efetivar o cuidado. A combinação de um processo de cuidar que progressivamente se tornava individual, associada à impossibilidade material de efetivar o cuidado, gerou sentimentos de cansaço e frustração entre os profissionais, que frequentemente se transformavam em esgotamento psíquico.
Acompanhei muitos profissionais exaustos que acabaram deixando a linha de frente na tentativa de salvar sua própria existência, sua saúde mental e sua presença, indispensável na esfera familiar, que há muito não podia ser conciliada com o trabalho nos hospitais, centros de saúde e serviços análogos. A precarização não é somente sobre as estruturas públicas, sobre os medicamentos necessários para se entubar uma pessoa e sobre os equipamentos necessários para manter um ser humano respirando quando seu pulmão não mais o pode fazê-lo sozinho. Durante a pandemia, foi possível dizer também que a precarização da política pública anda de mãos dadas com uma precarização das estruturas psíquicas necessárias para a produção do cuidado e a promoção de saúde.
O funcionamento do SUS depende, na mesma medida, de seus especialistas em logística e gestão e dos profissionais da linha de frente. Depende, fundamentalmente, da busca incansável de ampliação das fronteiras de governança da saúde. Depende, portanto, das redes sociotécnicas e de pactuações políticas para que estas se efetivem. Essas redes, como já destacado anteriormente, passam por um processo de deterioração, tanto a partir da EC 95 quanto pelos ataques diretos realizados ao cuidado de pessoas que cometem abuso de substâncias no âmbito da RAPS.
Destacar esse processo que se constitui, ao longo dos últimos dois governos (governo Temer 2016-2018 e governo Bolsonaro 2018 até o presente momento), a meu ver, ajuda na compreensão de como a restrição das possibilidades de cuidado de usuários de substâncias, no âmbito do SUS, constroem este universo de alternativas infernais. O vírus atinge um SUS já precarizado, e a decisão de deixá-lo circular livremente ataca não só estas estruturas legais, materiais e os recursos da saúde pública, mas também a carne que dá sustentação a esta vasta política pública: aqueles que trabalham cotidianamente para sua efetivação plena.
Muitos dos usuários com os quais tive contato durante minha imersão em campo também sofreram devido a esses impeditivos que a pandemia impôs sobre o cuidado psicossocial. O abuso continuado de substâncias acarreta, para além do sofrimento psíquico e da deterioração de relações sociais, a maior propensão para o desenvolvimento de comorbidades de difícil manejo, especialmente quando a presença em serviços de saúde representava um risco de infecção pelo vírus da covid-19.
Como me foi apontado diversas vezes em campo pelos meus interlocutores da saúde coletiva, o não acompanhamento de casos clínicos nos quais as doenças crônicas eram um importante fator fazia com que esses corpos ficassem "descompensados". Quando eu cheguei ao CAPS AD, em meados de janeiro de 2021, a equipe começava a retomar as visitas domiciliares e um acompanhamento mais próximo dos usuários do serviço. Essas atividades de retomada tornaram-se possíveis, em grande medida, devido ao início da vacinação dos profissionais do serviço. Contudo, ao iniciar este processo tornavam-se evidentes os impactos da ausência de acompanhamento continuado em casos em que doenças graves e comorbidades eram um fator de importância.
Casos de HIV positivo, contração e agravamento de quadros de tuberculose, piora no cuidado da diabetes e deterioração das funções hepáticas devido a hepatite não tratada foram temas constantes nas reuniões de equipe que ocorriam semanalmente. Esse agravamento, associado à frequente recusa dos usuários de procurar cuidado hospitalar, por causa do estigma associado aos corpos abjetos de pessoas que cometem abuso de substâncias (RUI, 2012) – muito presente na sociedade civil, mas que naturalmente se encontra também presente nas estruturas de saúde pública[7] – impunha novas contingências que dificultavam a oferta de cuidado a esses usuários. Frequentemente, e apesar da insistência dos profissionais que acompanhei, esta tentativa de cuidado traduzia-se em uma resignação exausta.
Para ilustrar este contexto ao qual me refiro, insiro a seguir uma narrativa colhida em campo que ajuda a tomar posse desta argumentação. O caso torna-se particularmente ilustrativo, a meu ver, por encontrar-se atravessado pelas múltiplas contingências até aqui trabalhadas: o agravamento de comorbidades pela impossibilidade de acesso a espaços hospitalares durante o período de pandemia; o preconceito associado a usuários de drogas que dificulta seu cuidado nos serviços de saúde; o foco total na pandemia, que deixou estes sujeitos à sua própria sorte; o esgotamento e o medo que emergem nestas situações; e, por fim, a resignação imposta pelas alternativas infernais.
O relato que se segue se deu a partir de uma visita domiciliar que realizei junto a um enfermeiro e uma agente de saúde a uma usuária de crack, vinculada ao CAPS ADAO. A usuária C.C. possuía um quadro extremamente preocupante de comorbidades que se associavam: HIV positivo, tuberculose ativa e hepatite C. Em momentos prévios à visita, já sabíamos que sua condição de saúde se agravara e atingira um ponto de difícil manejo. Ao sair, nosso objetivo era avaliar seu quadro de saúde e buscar convencê-la a uma internação em um hospital especializado em tuberculose, localizado em Campos do Jordão[8]. A narrativa é a que se segue:
Saio do CAPS AD para realizar uma visita domiciliar a uma usuária do serviço que preocupa a equipe. Relatos que chegaram à equipe, a partir de outros usuários, indicam que desde o início da pandemia, C.C. tem intensificado uso de crack e encontra-se em precária situação de saúde. O uso intensificado de crack e álcool agrava os quadros de comorbidades da paciente: anêmica, HIV +, hepatite C e tuberculose ativa. Esse quadro precário impossibilita a usuária de estar presente no CAPS AD. Seu precário sistema imunológico, se em contato com o SARS-COV-2, poderia colapsar, e o serviço não possui estrutura ambulatorial adequada para realizar sua internação. A paciente se recusa a procurar atendimento junto ao Pronto Atendimento após múltiplos casos de violência que sofreu por conta do “pré-conceito que tem com usuário de crack”, como ela mesma apontou em outras ocasiões. Dentre o escopo limitado de alternativas de cuidado, os profissionais de referência acabam decidindo por realizar visitas domiciliares na tentativa de convencer C.C. de buscar tratamento. Nesta visita, a principal preocupação era com os sintomas da tuberculose que se agravaram no último mês. Partimos para realizar uma visita semanal à casa de seu pai, onde ela reside, para verificar os sintomas vitais da usuária e oferecer a possibilidade de encaminhamento para um hospital especializado no tratamento da tuberculose em Campos do Jordão.
Nos paramentamos, eu, uma agente de saúde e um enfermeiro que são profissionais de referência de C.C., e fomos no carro de um enfermeiro – visto que o transporte do CAPS ADAO não estava disponível naquele dia – até a residência do pai de C.C. O portão é gradeado e na varanda da pequena casa encontra-se C.C., sentada em uma cadeira e com uma maçã na mão. A luz clara da manhã ilumina um corpo esquelético, evidente pela sombra dos ossos na pele de C.C. Ela pesava 37kg na última visita médica que havia realizado algumas semanas atrás, agora parecia ainda mais magra. Cada respiração demandava muito esforço e ouvia-se um sibilo ao fundo de seu peito. Cada passo até o portão ameaça um colapso do corpo. Os dois profissionais entram, conversam e tentam convencê-la mais uma vez de acessar o Pronto Atendimento, mas sem sucesso. O enfermeiro liga para o Centro de Saúde ao qual C.C. é vinculada, na tentativa de mobilizar outros profissionais da rede enquanto afere os sinais vitais.
“Não sei se vocês ainda têm vínculo com ela, mas ela vai morrer em casa, se vocês não vierem ajudar!”.
78 de saturação. 35 de movimento respiratório por minuto. Frequência cardíaca de 150.
Acionamos o SAMU em uma última tentativa desesperada. C.C. neste processo reclama com a equipe dizendo que não vai ao hospital de jeito algum. Eu, D. (enfermeiro) e M. (agente de saúde) nos encontramos em uma silenciosa e inquieta agitação. A ambulância chega após 15 ou 20 minutos, ao abrirem as portas da ambulância, uma médica desce e pergunta para nós onde está a paciente. D., desesperado, aponta para C.C. e diz “é ela, ela tá dessaturando!”, afirmação que é prontamente respondida pela médica “paciente dessaturando comendo maçã eu nunca vi! Você realmente acionou o SAMU médico pra isso? Só pode estar de brincadeira. Eu tenho um monte de gente morrendo de covid, sufocando e você ainda me faz bater ponto aqui?”.
Ficamos completamente desmoralizados. Trocam-se farpas entre a médica e o enfermeiro D. Enquanto a médica expressa seu desgosto, reclamando que estamos no meio de uma pandemia e as pessoas estão morrendo, C.C. move-se lentamente até o interior da ambulância. Seus sinais não são aferidos e é entregue um termo para ela assinar que atesta que ela recusou socorros. Ela assina, a ambulância parte.
Ficamos os três nos entreolhando, C.C. volta à entrada da casa para sentar-se onde se encontrava. Volto com D. e M. para o carro. Ao chegarmos ao CAPS AD não conversamos e vamos para a sala dos profissionais. D. chora “ela (médica) nem olhou pra ela (C.C.)... nem olhou…”. Fui embora do CAPS AD com a certeza de que C.C. irá falecer nos próximos dias.
Escolhi este relato pela aglutinação de fatores que podemos destacar que tornaram possível que C.C. não recebesse seu cuidado: o abuso de substâncias e o preconceito que ela já havia sofrido que, combinados, fizeram com que C.C. recusasse cuidados hospitalares; a pandemia que demandava a totalidade dos recursos de saúde pública para ser combatida; a indignação da médica com o chamado da ambulância apesar da gravidade da situação; a desistência de oferecer cuidados que foi imposta aos profissionais por conta da combinação de todas estas contingências.
Se nos lembrarmos da construção feita anteriormente sobre o trabalho de Stengers e Pignarre, temos a noção de que estas escolhas, apesar de se darem nas microrrelações cotidianas, possuem como um de seus fatores articuladores políticas macroestruturais.
Estas dimensões políticas influenciam na construção de mundo e nas possibilidades de atuação dos profissionais de saúde dentro das estruturas disponíveis do SUS, assim como se expressam nas agências individuais de cada ator. Nesse sentido, podemos observar estas transversalidades na recusa da médica do SAMU em oferecer o cuidado tido como adequado pelo enfermeiro. A justificativa, dada pela médica em questão, para recusar colaborar com o pedido feito pela equipe não foi de que C.C. não precisava de cuidados. Mas que seu caso não era urgente como suposto e que não poderiam ajudar em razão das demandas impostas pela pandemia. Não fosse tal contexto, talvez o resultado desta história teria sido diferente. São estas atuações políticas que forçam a sobrecarga do aparato público de saúde e impactam a escolha individual de negar assistência a C.C., apesar da avaliação de um profissional que estava mais envolvido no caso.
Compreender como movimentos políticos – macroestruturantes – afetam as políticas cotidianas de cuidado – microestruturadas – de trabalhadores da saúde não é algo evidente. Alinho-me aqui à proposição de Veena Das (2015) no que tange à construção teórica pela qual nós – antropólogos – conseguimos nomear e trabalhar o sofrimento cotidiano, que é constitutivo de nossos campos e das vidas que cruzamos ao longo de nossas etnografias.
Narrativas que operam em níveis macroestruturantes – como é o caso da CPI da Covid no Senado Federal – ou que buscam construir teorias que operem em uma escala macroestruturada e generalizada – como realizei até aqui através de uma análise da noção de alternativas infernais – nos ajudam a compreender os processos que tornam quase-eventos (Povinelli, 2011) em grandes escândalos públicos, processos de midiatização das mortes provocadas pelo vírus e mobilizações de afetos distintos entre o público geral. Contudo, elas não nos ajudam a compreender o que leva um profissional da saúde a se render, sob a impossibilidade de cuidado, frente a um paciente, por falta de estrutura adequada, ou mesmo como uma jovem mulher é abandonada pelo sistema de saúde, como veremos mais tarde. Como nos lembra Veena Das,
a Justaposição de macro-eventos com micro-eventos não consegue demonstrar os caminhos pelos quais mudanças maiores são absorvidas nas trajetórias individuais. Em suma, a questão para mim se resume a se a etnografia se destina a ilustrar um argumento teórico ou se a teoria pode ser construída na própria etnografia (Das 2015, 15, tradução própria)[9].
Sigo meu argumento agora realizando o caminho proposto. Para tal, utilizo-me de entrevistas com profissionais da saúde que atuaram durante o período pandêmico, de modo a compor dados qualitativos que nos ajudem a compreender e significar os – poucos, diga-se de passagem – dados quantitativos que conseguimos reunir sobre a saúde mental dos profissionais da saúde pública no Brasil. Espero que, assim, seja possível compreender melhor como a pandemia infectou também os processos de subjetivação desses profissionais e o impacto que isso representa para o funcionamento da política pública como um todo.
Na próxima seção, busco desenvolver melhor como estas transversalidades se desenvolveram a partir do contexto pandêmico e as influências deste no trabalho dos profissionais da saúde, assim como em seus processos singulares de subjetivação. Para tal, apropriei-me da bibliografia pertinente ao campo da antropologia das emoções como forma de expor as consequências e os constrangimentos que fazem com que a pandemia afete processos de subjetivação. Especialmente para aqueles que atuaram sob a sombra do vírus.
Durante o período em que estive inserido em campo, um dos principais sentimentos que se expressavam cotidianamente no serviço era o medo. Medo da infecção pelo vírus, medo de transmitir a doença para algum ente querido ou para os usuários do serviço, medo de não conseguir os recursos necessários para o cuidado do usuário do serviço por causa da sobrecarga do sistema de saúde com a pandemia de coronavírus.
Uma pesquisa realizada pela Fiocruz durante o período que estive em campo corrobora a afirmação feita acima. Em média, 87,6% dos profissionais da saúde sentiram medo da covid em algum momento da pandemia (Lotta et al. 2021). A emergência do medo como tônica emocional da vida dos profissionais de saúde – tanto da atenção básica quanto especializada e hospitalar – encontra-se intimamente associada com uma carga emocional e psicológica que sobrecarrega os profissionais, algo presente inclusive em momentos em que eles se encontram fora do expediente de trabalho.
Esse esgotamento psíquico, contudo, tem como espaço de emergência fundamental o corpo, transbordando, assim, para um esgotamento físico profundo. Alinho-me aqui a certas perspectivas nas ciências sociais (Csordas 2008, Rezende e Coelho 2010) de que o lócus privilegiado para suportar, processar e tornar possível a expressão das emoções é, portanto, o corpo. A tristeza que, muitas vezes, tornou-se explícita em meu campo, pelo transbordamento de lágrimas e pelos sons dos soluços; a ansiedade, que se expressava pela falta de ar, os olhos cansados da insônia e o “aperto no estômago”; e, por fim, o medo, suas palpitações e inquietações que eram relatadas pelos profissionais, especialmente quando a suspeita da infecção era levantada.
As diversas emoções que descrevi anteriormente, o esgotamento individual que elas produziram, não se encerram, contudo, nos distintos corpos onde elas emergem. Muito se discutiu na bibliografia da Antropologia das emoções sobre essa aparente qualidade fundamental das emoções (Lutz 2011, Abu-Lughod e Lutz 1990, Coelho e Durão 2017, Coelho 2010): seriam elas expressões individuais do sujeito, ou seriam culturalmente constituídas e portanto possuiriam uma propriedade essencialmente social?
O campo da Antropologia das emoções desenvolveu-se precisamente a partir desse debate. A partir dos anos 1980, especialmente nos Estados Unidos, algumas discussões foram formalizadas respondendo esta questão a partir do que foi posteriormente denominado como “perspectiva relativista". A questão norteadora e disparadora deste campo de estudos era compreender como as emoções possuem dinâmicas distintas em diferentes contextos culturais. A maior referência sobre a qual podemos nos debruçar neste sentido é o trabalho de Lutz (2011 [1988]) e sua análise da concepção euroamericana sobre as emoções e como elas são construídas.
Mais adiante, contudo, desenvolveu-se o viés contextualista, que não mais buscava compreender as diferentes significações dadas às emoções (por um exercício comparativo). Mas sim compreendê-las, de modo a perceber as dinâmicas micropolíticas que se desenvolviam no campo das emoções de um mesmo grupo (Abu-Lughod e Lutz 1990).
Lutz & Abu-Lughod elaboram, contra o pano de fundo deste mapa, a proposta que batizam de perspectiva contextualista, cuja inspiração teórica é a noção de discurso de Foucault, entendido como uma fala que forma aquilo sobre o que fala, ao invés de manter com ele uma relação de referência, como algo que lhe seria externo. Esta perspectiva permite às autoras adentrarem a dimensão micropolítica dos sentimentos, mostrando como as emoções são tributárias de relações de poder entre grupos sociais, servindo simultaneamente para expressar e reforçar tais relações (Coelho e Durão 2017, 268).
Essa construção teórica, que se alinha, em grande medida, à noção foucaultiana de discurso, embebe a análise das emoções nas relações micropolíticas que constituem o cotidiano. Assim como as dimensões tomadas pela epidemia de coronavírus não podem estar estritamente relacionadas às propriedades do vírus, as emoções também devem ser entendidas em um contexto social e cultural dinâmico, que implica relações de poder.
A problematização que busco colocar refere-se a como podemos perceber a relação entre as emoções – emergentes no cotidiano de trabalho de profissionais da saúde – e a gestão pública da pandemia de coronavírus no Brasil. Tomei a alternativa metodológica de olhar para as emoções suscitadas em situações específicas de difícil atuação por profissionais da saúde por meio da vertente contextualista. Embora o exemplo dado neste artigo seja particular, esta micropolítica emocional do esgotamento se expressava também nas atividades cotidianas. O relato a seguir, que colhi com um médico residente em contexto hospitalar, corrobora como este esgotamento era perene. Quando perguntado sobre sua avaliação da gestão da pandemia em nível federal ele atenta para como se sentia impotente em seu trabalho quando assistia à TV que ficava na “sala vermelha”, para onde os pacientes com quadros graves de covid eram levados.
Como você avalia a qualidade da gestão pública da pandemia no nível federal?
Eu acho que com toda essa turbulência que a gente teve de troca de ministros no início da pandemia (Mandetta por Teich, Teich por Pazuello), e todas as medidas que haviam sido adotadas por um ministro trocadas, e o próprio governo não ter investido direito na compra de vacinas, não ter investido em medidas de isolamento social acabou que, no quesito federal, o Brasil deixou muito a desejar. Tanto que já passamos aí de mais de meio milhão de mortos. E mortes que poderiam ter sido evitadas com medidas simples. Deixou bastante a desejar.
E como que esta gestão te fazia sentir? Era uma coisa que passava na sua cabeça durante seu trabalho? Você mencionou estas “mortes que poderiam ter sido evitadas”, teve alguma situação que isso te pegou? Como que é essa sensação? Essa situação era incorporada na sua atuação profissional? No seu cotidiano?
Então, às vezes a gente tava lá trabalhando, lá na sala vermelha, e a gente via na TV o presidente saindo sem máscara, o presidente aglomerando, o presidente deixando de comprar as vacinas, e cometendo todas estas infrações assim, na minha opinião, que ele cometeu, e eu sentia raiva. Porque assim, se ele tivesse aqui, até teve uma época que ele chegou a estimular as pessoas a entrar nos hospitais pra verem como os pacientes tavam, dava vontade de falar “entra aqui pra você ver, pra você passar um tempo aqui, pra você ver o desespero destas pessoas”. E muitos casos de pacientes que chegavam lá muito graves, pacientes que, por exemplo, tinham tomado uma dose só da vacina. E assim, se a campanha tivesse sido adiantada um pouco, teria tomado a segunda dose e provavelmente não estaria grave. Então pacientes com idade, por exemplo, entre 40 e 50 anos, que tinham recebido ou uma, ou nenhuma dose da vacina, previamente saudáveis, e que chegavam muito graves já pra gente. E eu pensava “nossa, se o Brasil tivesse mobilizado mais dinheiro pra comprar mais vacina em menos tempo, isso teria gerado muito menos custos para saúde e muito menos mortes“. Então era uma coisa que era muito discrepante, o que você via na TV, a forma como o presidente estava agindo frente a esta situação e a forma como as coisas estavam acontecendo dentro do hospital. Era uma coisa muito discrepante. Uma sensação de raiva mesmo, de injustiça, de “por que que eu estou trabalhando se a pessoa que me representa no país está fazendo tudo ao contrário?”. Já tem pouca coisa que eu posso fazer, e o governo federal não ajuda, pra que que eu vou trabalhar se eu não vou conseguir resolver o problema? Vai ser só uma bola de neve cada vez chegando mais gente. A principal sensação era de medo, de impotência.
Alinho-me aqui à fala de Susana Durão e Maria Claudia Coelho no sentido de que as emoções não são uma dimensão da vida que se relega ao domínio do individual e do íntimo, mas encontram-se imbricadas nas relações do mundo e por ele são condicionadas na mesma medida que ele as constitui. Corroboro aqui, portanto, o argumento das pesquisadoras de que
as emoções, assim, parecem fazer coisas. Agimos ao sentir, bem como ao não sentir, ou ao controlar as demonstrações do que sentimos, ou até a natureza mesma daquilo que sentimos. E esses sentires são regidos, como de há muito a antropologia das emoções advoga, não pelas flutuações do íntimo, não de maneira idiossincrática, mas por formas codificadas e perpassadas por códigos morais e convicções ético-politicas, que prescrevem, avaliam, condenam, exigem e até mesmo proscrevem reações emocionais (Coelho e Durão 2017, 59).
Alinho-me aqui a este segundo aparato teórico para compreender as dinâmicas do cotidiano que se desdobram a partir do estabelecimento de alternativas infernais no contexto da saúde pública. Associado a estes sentimentos de estresse, ansiedade e medo, o processo de tomada de decisões e de cálculo de riscos epidemiológicos muitas vezes foi despejado nos profissionais na ausência de protocolos claros de enfrentamento da pandemia.
No contexto que pude observar, houve ainda o agravamento de alta porcentagem de usuários que apresentam quadros de comorbidades, desenvolvidos em decorrência do abuso de substâncias. Quadros graves de HIV/AIDS, tuberculose e distintos tipos de hepatite são frequentemente encontrados entre pessoas que cometem abuso de substâncias como cocaína – em suas diferentes formas; sendo o crack uma destas formas – e álcool (Cruz et al. 2013, Martins 2011, Carvalho e Seibel 2009). A fala a seguir, proveniente da mesma entrevista citada anteriormente, evidencia como esses quadros de comorbidades, que têm alta incidência entre a população atendida pelos CAPS AD, sofreram um processo de “descompensação” ao longo da pandemia.
Sim, teve bastante mudança, pois muitas das atividades não relacionadas a covid foram canceladas, então muitos ambulatórios foram cancelados. Então o que acontecia, tipo assim, a gente tinha um ambulatório para atender pacientes com diabetes. E aí o pessoal fazia teleorientação, ligava, perguntava se tava tudo bem, e se tivesse tudo bem remarcava a consulta mais pra frente. Isso fez com que os pacientes fossem menos atendidos e chegassem cada vez mais descompensados pra gente. Então as doenças crônicas foram ficando cada vez mais descompensadas porque tinham menos atendimento médico. Então a gente teve menos contatos com estas pessoas, contatos mais limitados, sempre utilizando equipamentos e proteção, então isso meio que dificulta um pouco a relação médico paciente. [...] Dificultou muito o seguimento próximo dos pacientes, que era uma coisa que a gente tinha que ter feito, mas não tinha como fazer, a gente tinha que remarcar os ambulatórios para evitar o contágio mesmo, não teve jeito.
O foco total do aparato público de saúde sobre a pandemia foi um fardo que atingiu tanto seus profissionais quanto seus usuários. A sobrecarga do SUS pela pandemia de covid-19 agravou tanto quadros de saúde que dependiam de um acompanhamento constante quanto atacou os processos de subjetivação de seus profissionais. Somado à ausência de posicionamento por parte de setores do governo federal, diversos profissionais foram empurrados, já exaustos, para uma maratona de alternativas infernais que se reproduz cotidianamente.
Destaco aqui uma última fala antes de me encaminhar para o encerramento do texto. Tive oportunidade de coletar esta fala em uma reunião pública referente ao conselho de saúde mental do município onde realizei trabalho de campo. A reunião, realizada em março de 2021, buscava dar encaminhamentos a questões urgentes, tanto políticas quanto epidemiológicas, no que tangia à manutenção e ao funcionamento da RAPS municipal durante o período pandêmico. Uma gestora de serviço de saúde da RAPS realizou uma análise que me pareceu profundamente assertiva quanto às possibilidades de existência do cuidado psicossocial no SUS no contexto político e epidemiológico que busquei desenhar ao longo deste artigo.
A coisa da pandemia tá tão pesada e tem efeitos diretos na questão da saúde mental. Há um agravamento da saúde mental, o agravamento da pandemia, a atenção básica tendo que se voltar totalmente para essa questão, aí o sofrimento psíquico, aquilo que se refere à saúde mental, vai ficando muito num limbo. Acho que isso tudo vai reverberar bastante pra dentro do serviço. Como que a atenção básica nesse momento tem se organizado em relação a estes sofrimentos subjetivos e como a gente lida com isso. O CAPS (onde trabalho) suspendeu matriciamentos presenciais, apesar de sustentar atendimentos conjuntos. Agora as coisas estão muito mais graves, também do ponto de vista econômico e social, as pessoas tão morrendo de covid, ou tão morrendo de fome, ou tão morrendo de violência. Como a gente junta com isso essa ameaça de um governo que usa o contexto da pandemia pra fazer desmonte daquilo que já existia, já estava sendo sucateado. A gente tem que ser uma rede mais solidária, senão a gente não vai sobreviver, e muito menos os usuários do serviço (Caderno de campo, 19/03/2021).
O esgotamento psíquico e corporal, descrito entre profissionais da saúde durante o período de pandemia, tem como consequência, para além da destruição das possibilidades de resistência desses profissionais, o esgotamento do próprio sistema de saúde. O SUS depende da máquina política e de financiamento na mesma medida em que depende dos trabalhadores que lhe dão corpo. O primeiro destes fatores já se encontrava sob ataque antes da pandemia. O segundo, sob a sombra de alternativas infernais, sufoca agora tanto pelo vírus quanto pela falta de ar de ataques de pânico e crises de ansiedade.
As escolhas infernais, como descritas por Stengers e Pignarre, teriam sua raiz nas dinâmicas próprias do neoliberalismo. Poderíamos pensar ser estranha a mobilização dessas fontes no âmbito de uma política pública e universal e nas escolhas infernais que nela emergiram. Mas se nos lembrarmos, foi justamente esta a justificativa utilizada pelo governo federal para resistir às práticas de isolamento social durante o início deste regime de brutalidade.
Vimos também como os sentimentos de desprezo em relação às mortes da pandemia enunciados pelo governo afetaram diretamente o cotidiano micropolítico das emoções dos trabalhadores da saúde, fator que deve ser incluído na conta dos danos psicológicos infligidos a estes profissionais durante o contexto pandêmico.
Não inimigo, mas aliado da plataforma de governo bolsonarista, o vírus torna-se duplamente letal: letal aos pulmões, sim, mas também letal às estruturas psíquicas daqueles cujo trabalho é realizar a manutenção das ecologias de cuidado que partem do SUS.
A estas questões somam-se outras prévias à emergência da pandemia. Marcadores sociais de gênero, raça e classe dão carne a este corpo múltiplo que está sendo atacado: majoritariamente feminino, negro e pobre. Nesse contexto tornam-se escassas as possibilidades de atuação que não se traduzam em uma “resignação ou uma denúncia que soa um tanto quanto vazia” (Stengers e Pignarre 2011, 24, tradução própria). Frente ao descaso político com a pandemia e a falta de protocolos de manejo e controle da situação, o Brasil já soma mais de meio milhão de óbitos, mas não só. Matam-se também as possibilidades subjetivas de existência do SUS.
Foucault demonstrou como a gestão da lepra e a gestão da peste foram eventos fundamentalmente processuais na medida em que, a partir deles, desenvolveram-se estratégias de gestão de corpos, assim como mudanças cabais nos modos de expressão do poder. Se a lepra era gerida apenas através de medidas de cerceamento e de exclusão dos corpos doentes, a peste inventa as formas de gestão disciplinares e a inclusão excludente: segmentação do espaço urbano, criação de fronteiras, zonas de controle.
Essa mesma técnica de gestão da peste foi aplicada em muito do mundo ocidental como medida profilática à pandemia. Contudo, podemos perceber, desde já, novas técnicas de gestão destes problemas, ressaltando o caráter processual da pandemia de covid, pelo menos no que tange às formas de controle e poder, de gestão de populações e biopolíticas. As experiências do Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Japão, Israel já indicam uma nova gestão, com base em técnicas farmacopornográficas de biovigilância (Preciado 2020), através do tracking individual dos doentes a partir de seus telefones celulares[10].
O que acompanhamos aqui, no que tange ao cuidado a pessoas que cometem abuso de SPAs, e as dificuldades particulares da efetivação deste cuidado no contexto pandêmico brasileiro, se dá na medida em que a gestão do dispositivo “droga” (Fiore 2020) comporta uma sobreposição das técnicas que foram criadas a partir do conjunto destas experiências. O encarceramento em massa que se desenvolveu a partir da guerra às drogas e a exclusão de populações periféricas por sua associação com a coisa droga – seja seu consumo ou seu comércio – são expressões de uma lógica necropolítica de exclusão. As técnicas segregatórias, às quais as pessoas em circulação de rua são submetidas sob o pressuposto da saúde e da higiene, impressas em nossas subjetividades são dispositivos que temos da herança de gestão da peste.
A população acompanhada pelo CAPS ADAO, portanto, encontra-se em permanente escrutínio de ambas estas lógicas e veem-se espremidas por entre estas forças, o que por muitas vezes impede que seus corpos sejam tidos como dignos de atenção e cuidado. As falas e narrativas etnográficas que dão corpo a este artigo são um retrato deste processo, ainda extremamente inicial, de tentativa de se adaptar às novas formas de gestão biopolíticas e farmacopornográficas de biovigilância.
Não obstante, nas dobras deste processo ainda incompleto, encontram-se outras ferramentas de cuidado, sendo a principal a tentativa permanente da ampliação das ecologias de cuidado (Das 2015, Das e Das 2006). A pandemia, nesse sentido, extrapola sua dimensão processual macroestruturante e infiltra-se nos processos de vida cotidianos, microestruturados, dos corpos que acompanhamos, assim como altera profundamente os projetos de cuidado mesorrelacionais que antes eram articulados através do matriciamento.
Durante o período de pandemia, quando algum usuário apontava sintomas respiratórios durante sua permanência em leito no CAPS ADAO, a solução possível era encaminhamento para abrigo de sintomáticos, organizado pela prefeitura municipal de Campinas. Foram organizados dois abrigos emergenciais para população em situação de rua com sintomas gripais, que em conjunto tinham capacidade para acolher 80 pessoas[11]. Apesar de estar inserida na rede pública de saúde, a RAPS de Campinas não possuía testes de covid para avaliar o caso a caso. Dessa forma, assim que sintomas gripais eram percebidos pelos usuários ou profissionais, era realizado o encaminhamento para estes abrigos.
Esses novos instrumentos de gestão dos casos de covid compunham as ecologias de cuidado (Das 2015, Das e Das 2006), estas que não deixaram de existir, apesar das novas formas farmacopornográficas de biovigilância dos corpos (Preciado 2020). Igualmente, o papel central dos profissionais na articulação, construção e manutenção destas ecologias, seja articulando familiares dos usuários, alianças medicamentosas ou parcerias institucionais – formais ou não – é reiterado em contextos como o da pandemia e reiteram os múltiplos processos que atravessam a particularidade deste momento histórico.
O que se destaca, portanto, é o fato de que as possibilidades de existência do cuidado permanecem, apesar dos múltiplos ataques desenvolvidos às políticas públicas. As redes de afeto, relacionais e políticas agenciadas a partir do, e também para além do SUS, continuam a se desenvolver, apesar do enfraquecimento material e concreto da política pública.
Torna-se evidente, contudo, como esse desamparo afeta os processos subjetivos de cuidado. Técnicas e recursos tornam-se mais rarefeitos e, consequentemente, há um agravamento da vulnerabilidade das populações que são atendidas por estes instrumentos. Fragilizam-se, portanto, as ecologias de cuidado pré-existentes, algo que é refletido nos profissionais a partir de sentimentos de frustração e cansaço.