Resumo: Frente à ausência de uma política nacional de combate à pandemia de covid-19 foram sendo articuladas, nas periferias brasileiras, campanhas de solidariedade popular, a partir de redes que desde há muito combinam formas de cuidado e por meio de um modo de vida baseado na convivialidade e na consubstancialidade. Essas campanhas entendem a vida e a sobrevivência como indissociáveis: manter-se vivo, nessa conjuntura, é se alimentar bem, cuidar da saúde, cuidar de si e do outro e viver na luta em comunidade – driblando o confinamento à precariedade que o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) produz. A partir da história e da experiência dos agentes populares de saúde de uma campanha de solidariedade, proponho reconhecer um vínculo entre convivialidade, consubstancialidade e a brincadeira com a legibilidade estatal por meio do cuidado, a partir do que os militantes reivindicam como saúde popular. Como a pesquisa se deu com ativistas envolvidos em distintos territórios nacionais em torno da campanha e em distintas instâncias organizativas, o método encontrado para torná-la inteligível à leitora foi uma experimentação etnográfica criando uma família composta pelas muitas famílias e pelos muitos ativistas com os quais conversei ao longo de 2020 e 2021.
Palavras-chave: Etnografia, Covid-19, Saúde popular, Consubstancialidade, Convivialidade, Cuidado, Periferia.
Abstract: Due to the absence of a national policy against covid-19 pandemic, popular solidarity campaigns were articulated in Brazilian peripheries, based on networks that have long articulated forms of care and through a way of life that merges conviviality and consubstantiality. These campaigns understand life and survival as inseparable: to stay alive, in this context, is to eat well, to take care of your health, to take care of yourself and others and to live in the struggle in community – dribbling the confinement to the precarity that the dismantle of the Unified Health System (SUS) produces. Based on the history and the experience of popular health agents of a solidarity campaign, I propose to recognize a link between conviviality, consubstantiality and the playing with state legibility through care, based on what activists claim as popular health. As the research was carried out with activists involved in different national territories around the campaign and in different organizational instances, the method found to make it intelligible to the reader was an ethnographic experimentation, creating a family composed by the many families and the many activists with whom I spoke throughout 2020 and 2021.
Keywords: Ethnography, Covid-19, Popular health, Consubstantiality, Conviviality, Care, Periphery.
Dossiê
Driblando o desmonte: um experimento etnográfico com agentes populares de saúde frente à pandemia de covid-19
Dribbling the dismantle: an ethnographic experiment with popular health agents due to the covid-19 pandemic
Recepción: 15 Octubre 2021
Aprobación: 10 Mayo 2022
Desde março de 2020, quando a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, circularam nas redes sociais e nas mesas de jantar considerações de que o vírus seria democrático, por contaminar qualquer pessoa, independentemente de sua classe social, raça ou gênero. Essa impressão rasteira foi cedendo lugar a análises, conforme a contaminação foi se alastrando, sobre como o vírus aprofundava e desmascarava ainda mais as desigualdades no nosso país, revelando uma geopolítica da pandemia que impactava desigualmente territórios e pessoas atravessadas por condições sociais históricas de negação de acesso à saúde (Goes, Ramos e Ferreira 2020, Castro 2021, Santos et al. 2020). Um elemento revelador dessa geopolítica diz respeito à diferente letalidade do vírus e sua relação com territórios e populações – a pandemia concentrou suas vítimas nas periferias urbanas, negras e indígenas[1].
É importante observar que a maior letalidade e o maior contágio por covid-19 nas periferias urbanas, às quais este trabalho está circunscrito, vincularam-se não às condições de suas moradias, mas sim, à falta de política de enfrentamento à pandemia pensada a partir das especificidades de cada território (Marino et al. 2020). Com alto número de pessoas moradoras trabalhando como empregadas domésticas que seguiram pegando metrô para chegar às casas de suas patroas; técnicas de enfermagem que seguiram se deslocando para o trabalho, e muitas vezes trabalhando sem EPIs (Sudré 2020a); e entregadores de aplicativos rodando a cidade em bicicletas alugadas e ganhando, muitas vezes, menos de R$5,00 por dia de trabalho, os deslocamentos se intensificaram e asseguraram o isolamento e distanciamento social dos setores médios e altos da sociedade. Com o deslocamento, essas pessoas foram ainda mais expostas ao vírus e, voltando para casa, se deparavam com a precariedade da rede pública de saúde nas regiões onde moravam: os maiores tempos de espera por uma consulta e os menores números de leitos hospitalares por habitantes (Marino et al. 2020, Souza 2020).
Não obstante, este texto parte de uma perspectiva que recusa o confinamento de tais territórios à definição pela ausência, pela pobreza, pela degradação, pela precariedade, e recusa também o confinamento das pessoas que neles vivem à ação reativa, e jamais criativa (Borges 2009). Tais periferias aqui são entendidas sobretudo como regiões e pessoas tornadas vulnerabilizadas por condições produtivas estruturais e conjunturais e que, no entanto, produzem suas vidas e seus modos de conhecer e de estar no mundo para além das urgências e da miséria do presente e do possível, articulando a vida na luta em três dimensões: a da resistência a projetos estabilizadores de corpos, pessoas e casas sob a racionalidade da economia política da urbanização; a de reivindicações de dignidade via políticas públicas; e a da prefiguração de modos de vida, preenchendo o presente de futuro (Paterniani 2018). Sobretudo a dimensão da prefiguração aqui nos interessa, “a capacidade de forjar, no próprio processo de luta, as formas sociais a que se aspira” (Ortellado 2016, 13), isto é, uma temporalidade que torna o presente prenhe de futuro, e não confina as existências de grupos específicos de pessoas a um presentismo constrangido pela urgência.
Ao longo do ano de 2020, diante da ausência de políticas de saúde estatais sólidas de enfrentamento à pandemia e aos seus efeitos, como o desemprego, a ausência de renda, a insegurança alimentar e a fome (Blanco e Sacramento 2021), ações e campanhas de solidariedade foram despontando e sendo organizadas nas periferias. Por um lado, essas ações de solidariedade partem de redes que desde há muito articulam experiências e formas de cuidado e tradições e organizações de luta, como mostraram recentemente os trabalhos de Oliveira e Carmo (2020) e de Eilbaum et al. (2020), sobre as redes de articulação criadas, respectivamente, nas periferias de São Paulo e nas favelas e periferias do Rio de Janeiro para o enfrentamento da pandemia de covid-19.
Por outro lado, essas ações de solidariedade também nos revelam ontologias, epistemologias e mundos em conflito, como nos mostra Olivar (2020) em uma de suas fabulações:
Quando o pessoal da CasaNem ou as prostitutas do Brasil ou as mulheres indígenas no rio Negro ou os solitários e desarraigados urbanos, ou as minhas alunas negras, ou xs moradorxs de rua ou de determinadas periferias urbanas dizem “não vamos morrer!”, dizem “vamos nos cuidar, galera”, as forças cosmopolíticas que se ativam não são as mesmas que quando eu, professor universitário e funcionário público, digo a mesma coisa. O mundo e o curso da pandemia agem tendo a morte delxs como efeito previsível, disponível ou desejado, não a minha. O grito de guerra delxs deveria ser o marco novo para qualquer ação, política e escola de saúde pública. Não o meu. A nossa aliança suprema deveria ser com esse grito, e essa aliança nova deveria ser nossa orientação para atravessar a tormenta e para refundar o mundo depois. Não a aliança com nós mesmos. O melhor remédio é, ainda, a solidariedade e a luta, a partilha do risco, como poderia dizer Juma Santos; as formas de vida social (logo nem prolongadamente isoladas nem intensamente distanciadas) de quem já viu seu mundo acabar muitas vezes e continuou a andar. Essas pessoas encontrarão outro mundo porque habitam outro mundo porque praticam outro mundo (Olivar 2020).
Essas forças cosmopolíticas que se ativam quando as pessoas de periferias urbanas e outros grupos sociais subalternizados reivindicam cuidar-se e não morrer operam uma equivocação controlada (Viveiros de Castro 2004) no cuidado. Esse cuidado inerente a praticar o mundo, habitar o mundo, encontrar o mundo e produzir-se como pessoa no mundo, desde essa perspectiva, sugere-nos um modo de vida que opera muito mais pela consubstancialidade do que pela propriedade na relação entre corpos, pessoas e casas (Borges 2021). Quando, aqui, trato de consubstancialidade, refiro-me à oposição ao paradigma do indivíduo (Povinelli 2011) e de quaisquer divisórias de sujeitos e substâncias afins a esse paradigma que se retroalimenta pela produção de fronteiras e de escaninhos coloniais onde é preciso delimitar e separar uns e outros (Trouillot 2016). Sigo a proposição de Borges (2020) acerca dos corpos dotados de composição-terra em oposição à composição-plantation, sendo a primeira, operando na consubstancialidade, a fuga da segunda e, não obstante, sendo ambos modos coetâneos de produção de corpo, sentido e legibilidade. Embora não tenha trabalhado explicitamente com a noção de consubstancialidade, Pierobon (2022), ao mostrar como a política pública de saúde produz tanto o corpo da filha cuidadora como o de sua mãe adoentada, também nos sugere que tais corpos partilham de substância e são dotados de alguma contiguidade.
Este texto tratará da experiência de uma campanha nacional de solidariedade nas periferias urbanas brasileiras, organizada por movimentos populares e que reuniu militantes, moradores, lideranças comunitárias e voluntários em torno de três eixos de funcionamento, a partir da bandeira da solidariedade: a organização para recebimento de doações (de alimentos, máscaras e produtos de higiene); o protagonismo popular na organização dos territórios; e a formação de agentes populares de saúde. Buscarei argumentar como sobretudo a criação dos agentes populares de saúde operou um drible com relação ao “desmonte do SUS”, e como esse drible está vinculado a um modo de vida orientado pela consubstancialidade (Noguera 2013, Borges 2021).
Este texto é oriundo de pesquisa realizada durante a pandemia de covid-19, entre os anos de 2020 e 2021. A pandemia impôs desafios metodológicos à pesquisa etnográfica, sobretudo quando a antropóloga não pode mais ir a campo como costumava fazer – saindo de casa, deslocando-se na cidade, chegando a outro bairro, visitando casas, cruzando ruas e becos e frequentando estabelecimentos comerciais – e ir a campo torna-se ligar o computador, conectar-se a um aplicativo de comunicação síncrona por videoconferência, ou conduzir entrevistas assíncronas, por meio do envio e recebimento de mensagens de voz por outro serviço de comunicação, nesse caso via aparelho celular[2].
É também por isso que, metodologicamente, quem nos acompanhará neste texto serão Mara, sua família e vizinhança: fabulações etnográficas a partir da pesquisa possível durante a pandemia. A criação de Mara, sua família e vizinhança corporifica textualmente as informações, as narrativas, os números e as histórias com as quais a pesquisa foi se encontrando. Além de entrevistas com ativistas e lideranças comunitárias realizadas ao longo dos anos de 2020 e 2021, a pesquisa também incluiu análise de dados disponibilizados pelas Secretarias Estaduais de Saúde;; acompanhamento de notícias da mídia; levantamento bibliográfico e pesquisa em dissertações e teses sobre os movimentos populares de saúde e a formação dos agentes comunitários de saúde e o SUS; e acompanhamento de reuniões da campanha de solidariedade em formato remoto.
Parto do entendimento de que as vidas das pessoas com quem faço pesquisa borram as fronteiras entre a resistência e a prefiguração; a vida no registro da urgência e a criatividade (Paterniani 2019). Por isso, isto é, por levar a sério a fabulação, o engajamento e a produção de conhecimento por parte de meus companheiros de pesquisa, que borram fronteiras conceituais e revelam suas insuficiências, optei pelo recurso metodológico de borrar também as fronteiras entre ficção e realidade, ou, melhor dizendo, de não entender como “real” o que se opõe à ficção.
Ficcionalizar não é novidade na antropologia. Pelo menos desde Malinowski, esse recurso está disponível ao ofício do etnógrafo, que nunca presenciou todas as etapas de construção de uma canoa kula, embora em sua monografia sobre os habitantes das Ilhas Trobriand nos sugira que o tenha feito. No entanto, o recurso de fabulação como experimentado aqui é inspirado também na metodologia de brincadeira de Belisário (2021), esse fruto do encontro etnográfico entre o antropólogo e os sem-terrinha, que desestabilizam os conceitos pré-definidos do primeiro acerca de ser adulto e ser criança e que os inspira a implodir a cisão entre ser sério e ser faz-de-conta na etnografia; e na ficção etnográfica de Cruz (2017), que elegeu uma personagem e relatos coletados em campo com mulheres brasileiras, moçambicanas e angolana e os reúne em uma única história passada em Maputo e Brasília, composta também por suas experiências pessoais. Em ambos os casos, trata-se também de um experimento narrativo que visa borrar a fronteira entre sujeito e objeto, ao mesmo tempo que uma estratégia narrativa para manter certa reserva à intimidade das pessoas envolvidas.
Aqui, o experimento etnográfico implica a criação de personagens de uma família e sua vizinhança como personagens-compósitas de muitas pessoas, histórias, experiências, dados estatísticos, conversas, notícias de jornal e entrevistas. A motivação é múltipla: se, por um lado, busca tornar inteligível à leitora uma pesquisa realizada com as limitações técnicas impostas pela pandemia, por outro, busca reforçar a defesa de que a etnografia prescinde da definição de um objeto de pesquisa estável e, por fim, busca também, considerando a atual conjuntura política brasileira, preservar as pessoas envolvidas na pesquisa. Não menos importante, busca, como o fazem as experiências de Belisário (2021) e Cruz (2017) supracitadas, mimetizar na experiência da escrita algo semelhante que meus companheiros de pesquisa fazem: cuidar e viver bem, tornar-se legíveis ao Estado, driblando a precariedade do acesso à saúde. Tentarei torná-los inteligíveis às antropólogas, driblando a precariedade como categoria totalizante de suas vidas.
Essas personagens-compósitas, assim, são também atravessadas pelas técnicas de pesquisa à disposição, o que envolve precário acesso à internet, dificuldades de conexão e pouco tempo disponível para a pesquisa, com a troca de mensagens possível apenas durante o deslocamento para o trabalho. Se, por um lado, essas precariedades impactavam o andamento de uma conversa, por outro, permitiam à interlocutora retomar o assunto ou trazer outro assunto horas ou dias depois, por meio de uma mensagem de texto ou envio de imagem. A precariedade das conexões técnicas por meio das quais eu acessava as pessoas com quem fiz pesquisa era também driblada pelas pessoas o tempo todo. Foi exemplar disso a primeira entrevista feita por meio de troca de mensagens de voz por um aplicativo de mensagens de celular, depois de tentativas frustradas de uma entrevista via videoconferência. Foi a própria pessoa entrevistada que sugeriu esse formato, e a entrevista seguiu caminhos inesperados. Portanto, ainda que as técnicas de pesquisa e as idas a campo tenham sido impactadas pela pandemia, a etnografia segue possível, e não precisa divergir de uma “vida em estado de campo” (Biondi 2014) – que contempla, ainda, desigualdades radicalmente reveladas em aspectos como trabalho, já que a antropóloga esteve confinada em sua casa, em regime de trabalho home office, como cerca de apenas 11% da população economicamente ativa em 2020 (dados da PNAD-Covid).
Moradora da periferia leste da cidade de São Paulo, Mara trabalha fazendo faxina em casa de uma família branca. Uma de suas filhas, Janaína, é técnica em enfermagem e a primeira da família a entrar na Universidade – cursa a graduação em Enfermagem, mas precisou trancar o curso na pandemia por conta das dificuldades em seguir trabalhando, dividir com a prima os cuidados com a filha pequena e acompanhar as aulas remotas. Mara mora com seu esposo e o filho caçula, que trabalha como entregador de aplicativo. O filho do meio estava encarcerado, contraiu covid-19 na prisão e faleceu em novembro de 2020. O marido de Mara foi demitido da empresa onde trabalhara nos últimos treze anos e, desde a morte do filho e o desemprego, tem enfrentado dificuldades com depressão e dependência de álcool. O maior suporte que o marido de Mara tem encontrado vem de Geni e de Ângela, agentes populares de saúde formadas, junto com Janaína, no bairro onde vivem.
Era um final de tarde quente do início de março de 2020. Janaína ainda se recuperava, no sofá da casa de sua mãe, da carnavalite que costuma abater os jovens que se aglomeram nos bloquinhos de carnaval nas ruas do centro da cidade e, enquanto seu irmão preparava o jantar, o âncora do telejornal noticiava com preocupação que o novo coronavírus extrapolava as fronteiras nacionais. Havia casos suspeitos no Brasil, particularmente em São Paulo. Menos de duas semanas depois, o chefe de Janaína a avisaria, por uma mensagem de texto enviada a seu celular, que o paciente internado na unidade em que ela trabalha no esquema de rodízio com outras funcionárias era a primeira morte por covid-19 confirmada no Brasil.
Janaína trabalha como técnica de enfermagem em um grande hospital da rede privada, o que traz a ela algum alívio, pois um dos benefícios do trabalho é um abatimento no valor da mensalidade do plano de saúde para a família. Ela não queria que sua mãe passasse pelo que passara sua avó na velhice: a demora da fila do SUS para o tratamento e a cirurgia que, sempre que pode, repete Janaína, se tivesse sido feita pelo convênio, poderia ter sido agilizada. Para Janaína, foi a fila de espera do SUS que encurtou a vida de sua avó: “ela morreu de agonia, nessa terra que é nossa bênção e nossa maldição”.
Esse duplo bênção-maldição da terra a que Janaína se refere tem em um de seus termos, a bênção, a casa fruto da luta de sua avó, onde moram sua mãe, Mara, seu pai, Elias, e seu irmão mais novo, Felipe. A unidade habitacional foi a bênção-conquista depois de meses a fio de tempo de acampamento (Loera 2014), sob os códigos da forma acampamento, esse modo de apresentar e reivindicar demandas ao Estado a partir de uma gramática da ocupação de territórios com barracos de lona preta (Sigaud 2000). O bairro onde moram hoje foi por muito tempo ocupação, cujos barracos foram destruídos pela prefeitura tantas vezes que a avó perdera a conta, até conquistarem as casas de bloco. O asfalto veio substituir o barro muito depois; a iluminação pública, a água encanada e o sistema de esgoto, depois ainda. Heranças do tempo da ocupação são a solidariedade e a camaradagem entre vizinhos, a vida cotidiana compartilhada, a igreja – uma das primeiras construções, primeiro católica e hoje evangélica – e alguns espaços de terreno de terra batida, sobre os quais nunca se subiu nenhuma edificação.
O segundo termo do duplo, a maldição, conecta-se intimamente à agonia vivida pela avó de Janaína e reflete o racismo fundiário (Dias Gomes 2019) na conformação do que hoje conhecemos por sociedade brasileira. Desde a Lei de Terras de 1850, o padrão fundiário brasileiro tem articulado terra e raça na medida que se tornar proprietário é também embranquecer, e os processos de despossessão são racialmente informados, o que Roy (2017) chama de banimento racial. Voltando ainda mais na narrativa, o racismo fundiário remonta à plantation e à permanência e atualização da lógica-plantation sob a forma da branquidade, da desumanização da pessoa e do corpo negro (Wynter 2021, Ferreira da Silva 2019), ou da composição-plantation como a “existência predadora de um Outro constituído para fins de perpetuação dos próprios meios de produção — que se tornam inquestionáveis – e sua principal mercadoria” (Borges 2020, 3), a qual, para os propósitos deste texto, podemos entender tanto como a casa discreta, o corpo invólucro, a precariedade como categoria englobante ou a noção de saúde estritamente biomédica.
A cidade de São Paulo, que Jaime Alves (2018) mostra, a partir de sua pesquisa com mães de jovens que foram esquartejados e tiveram pedaços de seus corpos espalhados pela cidade, como uma cidade sob uma governança racializada que produz, a todo o tempo, suas topografias de morte, foi o grande epicentro da pandemia no Brasil. Apesar do alto número de casos, a letalidade na cidade, de 3,9%, fica pouco acima da média nacional, de 2,8%. Essa diferença mínima manteve-se ao longo de todo o ano de 2020. Esse número, no entanto, mascara a desigualdade da distribuição de mortes na maior e mais populosa cidade do Brasil: concentradas em bairros periféricos com uma população de pessoas autodeclaradas negras (isto é, autodeclaradas pretas ou pardas) muito maior que a média do município de São Paulo (32,1%). Em um deles, a Brasilândia, a proporção de leitos hospitalares é de 0,01 para cada 1 mil habitantes – inferior à recomendada pela Organização Mundial da Saúde (2,5 a 3,0). O tempo de espera para uma consulta com um médico clínico geral é o segundo maior da cidade (Simões 2020).
Depois de quase um ano de pandemia, em janeiro de 2021, iniciou-se a vacinação contra covid-19 no Brasil. Isso exigiu a elaboração de um plano de vacinação, com a criação de categorias de pessoas e sua organização em uma ordem de prioridade para a vacina. A estratégia de vacinação consistiu em um escalonamento de vulnerabilidades. Foram priorizados idosos, pessoas com comorbidades e trabalhadores de serviços entendidos como essenciais. Essa estratégia de vacinação nos diz sobre o funcionamento do Estado, a todo tempo criando populações geríveis e legíveis via categorias de trabalhadores. Além disso, a produção e a priorização de categorias de trabalhadores revelaram, por um lado, a primazia dos conselhos profissionais e dos diplomas para a legibilidade da produção desses trabalhadores e, por outro, a branquidade do Estado (Paterniani 2016), na medida em que, finda a vacinação dos grupos prioritários, tínhamos vacinada uma população idosa, branca e rica, moradora dos enclaves brancos da cidade, como também afirmou o epidemiologista Paulo Lotufo (Alegretti 2021).
A vacina não chegou para a família de Mara, composta, segundo as categorias de suas ocupações, por uma empregada doméstica, um homem negro desempregado, uma técnica em enfermagem, um entregador de aplicativo e um encarcerado. Todas essas categorias de trabalhadores foram excluídas da lista de prioridades da vacinação. Muito depois de psicólogos e fonoaudiólogos em trabalho remoto, foram vacinados os motoristas de ônibus. Como já argumentei em outro lugar (Paterniani 2019), trabalhador, aqui, é uma categoria acionada como equivocação controlada (De la Cadena 2010). Quando Janaína, Mara e Felipe se dizem trabalhadores, não dizem a mesma coisa que o Estado quando este usa o mesmo termo. Esse trabalhador reconhecido pelo Estado é o trabalhador fe(i)tiche (Latour 2002), embranquecido por meio de um trabalho no qual não há lugar para o corpo negro desumanizado.
O conjunto desses dados revela-nos que, se a covid-19 tem na sua alta transmissibilidade um dos motivos de sua alta letalidade, a qualidade do atendimento médico e o acesso à saúde tornam-se dois dos fatores que amenizam o número de mortes. Embora a covid-19 tenha chegado ao Brasil de avião, pelos bairros elitizados e corpos brancos, em regiões mais brancas e com mais infraestrutura, o percentual de mortes é menor do que nas periferias negras. Como teria dito Mara: “não é o vírus que gosta de uma melanina, é o verme [referindo-se ao atual governo] que odeia preto e trabalhador”.
Mara teria dito isso em reunião pela plataforma Zoom da campanha de solidariedade, como poderia ter bradado ao ver seu esposo chegar em casa mais cedo, as costas encurvadas, o uso da máscara fazendo o rosto suar mais do que de costume. Não foram muitos meses entre os primeiros casos de covid-19 em São Paulo e a sua demissão, depois de anos a fio trabalhando na mesma empresa, junto com mais dezenas de colegas de trabalho. O Boletim 17 da Rede Pesquisa Solidária (2020), pesquisa feita com mais de 70 lideranças comunitárias em seis regiões metropolitanas do país, apontou, em maio de 2020, o desemprego, a redução do salário e a ausência de renda como o segundo efeito já então sentido da pandemia nas periferias, seguindo de perto o primeiro: a fome.
Apesar da alta de desemprego, há um setor de trabalhadores informais que tem crescido durante a coronacrise e chamado atenção da mídia e da população em geral: os entregadores de aplicativos. Só em março de 2020, o Ifood recebeu 175 mil novos pedidos de cadastros (G1, 1º abr. 2020). Um deles foi o do filho caçula de Marta, que já havia desistido dos estudos antes mesmo da pandemia, sem ter concluído o Ensino Médio. Com a pandemia, antes da demissão do pai, Felipe cadastrou-se na plataforma. Seu primo já rodava como entregador de aplicativos havia meses, mas se acidentara, não conseguia dirigir e sugeriu emprestar a moto. Os entregadores de aplicativos são, em grande maioria, jovens e negros das periferias (Núcleo de Estudos Conjunturais, 2020, Central Única dos Trabalhadores 2021) que estão trabalhando mais e ganhando menos na pandemia (Abílio et al. 2020). Felipe nunca nos precisou o quanto ganhava por mês, mas vez ou outra ajudava com as contas da casa e, quando dava, trazia algum industrializado para compor as refeições – bolachas, macarrão instantâneo ou molho de tomate.
As panelas das casas de Mara e de sua irmã não se esvaziaram, mas o mesmo não aconteceu com seus vizinhos. Nas cozinhas do bairro onde moram, a carne começou a rarear. Logo depois, foi o gás, cujo preço aumentou, o que levou as famílias a improvisarem fogões a lenha e a revezar os usos das cozinhas: a cada dia da semana, as refeições para mais de uma casa eram feitas em apenas uma cozinha, o que reunia moradores de casas diferentes. Em razão da pandemia, os moradores também se revezavam para baixar suas máscaras e se alimentar: embora sob o mesmo teto, o ritmo das refeições era organizado casa a casa. Às vezes, parentes que moravam em casas diferentes montavam seus pratos e subiam para a laje, o local mais ventilado, para juntos baixarem as máscaras e fazerem suas refeições.
A sugestão inicial do rodízio de cozinhas veio de Geni, pastora de uma das igrejas evangélicas do bairro, cujos cultos acontecem ora na garagem de sua casa, ora no espaço da igreja edificado desde o início da ocupação, que rotaciona cultos das várias igrejas evangélicas. Desde antes da pandemia, as igrejas evangélicas começaram a se multiplicar no bairro de Mara, e hoje já passam de dez. Foi na igreja de Geni que Felipe conheceu sua namorada. Os dois participam do grupo de jovens e organizam atividades para entreter as crianças menores durante os cultos dominicais. Foi na mesma igreja que conheceu Lurdes, cabeleireira de mão cheia, e com ela tomou algumas aulas: o suficiente para que Mara conseguisse auxiliar Lurdes em seu salão nos dias de folga do trabalho na casa de sua patroa. Janaína participava do coral quando adolescente, mas depois que entrou na faculdade e começou a namorar Adriana, saiu do coral; o casal se reveza entre os cultos evangélicos e as giras de candomblé no terreiro que fica a poucos metros da igreja de Geni.
Quando o avô de um vizinho começou a tossir, foi Janaína quem teve a ideia de transferir a cama do senhor para um puxadinho construído em cima da casa de Mara, num espaço entre a sua laje e a do vizinho. Seu Naldo foi carregado nos braços da vizinhança e ficou lá por duas semanas. Janaína sabia o que fazer: emprestou um oxímetro do hospital e orientou seu Naldo a medir a oxigenação três vezes por dia. A irmã de Mara e outras vizinhas revezavam-se para subir café, sucos, chás, frutas e, toda noite, uma sopa grossa para seu Naldo. Depois de duas semanas, sem tosse mas ainda cansado para levantar-se, sua cama foi transferida de volta à sua casa.
A salvação de seu Naldo não veio do plano de saúde privado com abatimento na mensalidade nem da política pública de saúde, mas da vizinhança como modo de existência e de conhecer baseado no compartilhamento de espaço, tempo e substância (Borges 2021). A salvação de seu Naldo é também a salvação da avó de Janaína. Numa espécie de redenção do duplo bênção-maldição da terra, Janaína produziu um desvio na repetição da história de sua avó como a repetição fadada à morte na plantation. Em combate com a lógica plantation e a orientação para aniquilação das vidas no bairro-quilombo pela ausência de vacina, isto é, em combate com a lógica estatal de produção e escalonamento de categorias de pessoas-trabalhadores para serem vacinadas que não contempla as vidas de Mara, Felipe e seu Naldo, a vida no bairro-quilombo se autopreservou. Podemos também entender essas vidas como ontologias combativas (Mafeje 2008), isto é, em combate com a ontologização-plantation que as quer corpos estáveis, terceirizados, discretos e operando como indivíduos em suas casas discretas, separadas por muros, onde a consubstancialidade é a todo o tempo barrada – como preveem projetos de urbanização de favelas e suas cartesianas construções de casas (Paterniani 2019).
Janaína e a vizinhança recusam a narrativa da fortificação da civilização da branquidade e do massacre da vida negra. Lembremos aqui de pensadores que recusam a narrativa da fortificação da nação e do massacre dos quilombos e que insistem que essa nação imaginada e executada estava e está, a todo o tempo, cercada por quilombos, como nos lembra Pinho (2014) em seu prefácio ao texto de Moten e Harney (2004) sobre o undercommons, os subcomuns, as rupturas e os planos de fuga e a vida prefigurativa no espaço do quilombo como futuro imaginado-vivido (McKittrick 2013). O episódio com seu Naldo também prefigura o que viria a acontecer em seguida: a formação de agentes populares de saúde.
As décadas de 1970 e 1980 guardam a gestação e a história do movimento popular de saúde nas periferias de São Paulo, principalmente na Zona Leste, com a pioneira criação do Conselho de Saúde do Jardim Nordeste em 1979, com o objetivo de fiscalizar a atuação das unidades de saúde, e a criação do Movimento de Saúde da Zona Leste (MSZL) em 1983, que passou a organizar lutas até então dispersas nos bairros e conduzidas por grupos, pastorais e comissões de saúde (Sader 1988, Jacobi e Nunes 1981, Cardoso 1988, Doimo 1995, Neder 2001, Palma 2013, Silva 2014). A criação do MSZL mobiliza um debate exemplar na literatura específica sobre movimentos sociais e nos debates entre movimentos populares: aquele entre a autonomia dos movimentos e suas lutas com relação ao Estado e a institucionalização das lutas em formas de demandas e políticas públicas (Alonso 2009, Tatagiba e Teixeira 2016). No caso do movimento de saúde, esse debate torna-se cada vez menos polarizado, e as contradições e possibilidades envolvidas nessas duas percepções de relação entre movimento social e Estado materializam-se na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com seus conselhos populares de saúde e a regulamentação e prática da participação institucional (Neder 2001).
Em 1991, uma medida importante de consolidação da capilaridade do SUS, da participação da comunidade na atenção à saúde e da estratégia centrada na saúde da família foi a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), no âmbito do Ministério da Saúde, visando contribuir para melhor qualidade de vida da população (Levy et al. 2004, Marzari et al. 2011). “O agente comunitário de saúde atua como um elo entre as necessidades de saúde das pessoas e o que pode ser feito para a melhoria das condições de vida da comunidade” (Levy et al. 2004, 197). A regulamentação da profissão ocorreu em 2002 e os agentes “devem estar comprometidos com sua realidade local e capacitados para contribuírem na minimização dos fatores que respondem pelos indicadores sociossanitários [negativos]” (Marzari et al. 2011, 874). Nesse movimento de criação dos agentes comunitários de saúde, é a família a unidade de ação programática da saúde, e não o indivíduo, e a prática dos agentes também converge com diferentes arranjos familiares, além de compreensões ampliadas do processo saúde-doença (Santos et al. 2011), considerando também a coexistência dos diversos sistemas de atenção à saúde operando nas comunidades (Langdon e Wiik 2010).
O agente comunitário de saúde funciona, assim, como um mediador entre saberes e sistemas de atenção à saúde e um facilitador do trabalho de atenção básica em saúde. Na equipe de saúde do SUS, nas palavras de Bornstein e Stotz (2008), o agente comunitário de saúde
é o trabalhador que se caracteriza por ter o maior conhecimento empírico da área onde atua: a dinâmica social, os valores, as formas de organização e o conhecimento que circula entre os moradores. Esse conhecimento pode facilitar o trânsito da equipe, as parcerias e articulações locais. O reconhecimento destas características quer pelos profissionais, quer pelos moradores traduz-se em diferentes expectativas. De um lado, pela inserção nos serviços de saúde, espera-se dele o exercício de um papel de controle da situação de saúde da população; de outro, os moradores esperam que o agente facilite seu acesso ao serviço de saúde (Bornstein e Stotz 2008, s/n).
Em 2020, a ausência de ações específicas de prevenção e cuidado de acordo com a necessidade de cada território por parte do Estado e dos governos durante a pandemia de covid-19 fez, emprestando a expressão de Eder Sader (1988), novos atores entrarem em cena: os agentes populares de saúde. Esses agentes são formados em uma relação de continuidade e contraponto com os agentes comunitários de saúde. Continuidade, por seguirem reivindicando uma noção de protagonismo do território; contraponto, por surgirem em regiões que os agentes comunitários não alcançavam. Mara nos conta como o início do sonho dos agentes populares de saúde nasce da necessidade da conjuntura e do trabalho de educação popular, e quando ele se inicia, são as pessoas que estão muito envolvidas no SUS que ajudam na formação dos agentes populares. Ainda no sonho, cada agente comunitário de saúde coordenaria uma turma de formação de agentes populares de saúde, em parceria com universidades e institutos de pesquisa. No entanto, os agentes não chegam. A periferia de Recife, por exemplo, tem uma cobertura de menos de 56% dos agentes comunitários de saúde, contou-me Geni. Dessa forma, os agentes populares passaram a, de alguma forma, também cumprir o papel dos agentes comunitários, levantando demandas e fazendo determinados encaminhamentos para os postos de saúde ou para a unidade básica de família.
No bairro de Mara, a gestação dos agentes populares de saúde vincula-se a outro projeto: um cursinho comunitário pré-vestibular. Com a pandemia, a suspensão das aulas e os impactos sentidos na comunidade, jovens que participavam do cursinho tanto como estudantes quanto como professores, junto com, principalmente, suas mães e avós, começaram a organizar campanhas de arrecadação de doações. Como o cursinho acontecia nas dependências de uma escola municipal no contraturno das aulas, moradores puderam contar com a infraestrutura da escola para organizar as arrecadações e doações. Ângela, professora do cursinho, disponibilizou sua conta bancária para receber doações em dinheiro. Gil, morador que estava trabalhando como Uber, disponibilizou seu carro – às vezes era Felipe quem dirigia – para o transporte de cestas básicas, máscaras e produtos de higiene, que foram chegando aos quilos, junto com quilos de alimentos agroecológicos que chegavam por kombis dos assentamentos do MST.
Reunidas as doações, era preciso distribuí-las. Os primeiros momentos de distribuição geraram muita apreensão a todos os envolvidos, sobretudo com a preocupação acerca de como realizar a entrega das cestas sem aglomerar. Janaína criou um grupo de WhatsApp para pensar dinâmicas de distribuição espaçadas no tempo e no espaço das famílias. Posteriormente, os moradores foram percebendo que a distribuição de cestas fechadas e prontas não era a melhor maneira de sanar suas demandas: Gil não precisava de tanto açúcar; Geni desejava mais bananas; Mara ainda tinha óleo sobrando da última sexta; Ângela precisava de mais farinha. Pelo grupo de WhatsApp, os moradores decidiram realizar uma Feirinha popular, abrindo as cestas e organizando os alimentos como se fosse uma feira: cada pessoa ia passando pelas barracas e pegando os itens que precisava ou desejava. O formato da feira não promoveu aglomeração, atendeu melhor às necessidades das famílias e promoveu também a autonomia de quem recebe a cesta: “só porque recebe doação, não pode escolher o que vai comer?”, provoca Geni.
Garantir alimentação saudável é fundamental, conta-nos Geni, e com o avanço das doações, os militantes passam a refletir sobre o que fazer a partir das cestas. Havia uma angústia acerca do que fazer para se diferenciar do que identificavam como solidariedade S.A, a solidariedade que funciona como a caridade: vertical, a partir de uma relação entre quem tem e escolhe doar e quem não tem e só pode receber, como conceitua Keli Maffort (Sudré 2020b). Essa relação entende as pessoas que recebem as doações como meros receptáculos da benevolência de quem doa. É um modo de produzir um Outro destituído de capacidade de criação, situá-lo, estabilizá-lo e reduzi-lo à situação de vulnerabilidade. Os ativistas críticos à solidariedade S.A. aproximam tal prática ao que Paulo Freire (1970) chama de educação bancária, e também enfatizam como, no caso das grandes corporações, as doações funcionam como propaganda, que poderão estimular ainda mais os lucros das empresas num futuro próximo (Sodré 2020b).
À solidariedade S.A. ativistas e militantes da campanha de solidariedade contrapõem a solidariedade popular, protagonizada por coletivos de cultura, movimentos populares, movimentos negros, associações de bairro, torcidas antifascistas de times de futebol, e grupos de amigos e familiares. Nessa concepção, quem recebe a cesta básica, os alimentos, os produtos de higiene ou as máscaras não é um mero receptáculo de doações, mas também faz parte da campanha. Isso não significa que essa pessoa deverá posteriormente se incorporar à campanha porque em dívida por ter recebido uma doação; não: a pessoa, ao receber a doação, já faz parte da campanha. Essa solidariedade popular funciona a partir de uma relação orgânica, próxima ao que Paulo Freire denomina educação popular, e entende a solidariedade, ela mesma, como uma relação na qual todos os envolvidos participam e todos têm algo a partilhar e receber. Podemos pensar aqui numa lógica da dádiva (Maus 2003), na qual não há diferente valoração entre quem doa e quem recebe, que partilham, inclusive, do mesmo nome: participante da campanha de solidariedade.
E foram os participantes das campanhas de solidariedade que viam a fome se avizinhar em suas panelas e casas e que recebiam as cestas, compartilhavam com os vizinhos e organizavam o recebimento das doações que se tornaram agentes populares de saúde. A criação dos agentes populares de saúde parte, assim, de uma avaliação por parte dos movimentos acerca da insuficiência do alcance dos agentes comunitários de saúde e da ausência de uma campanha de educação em saúde conduzida pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento da pandemia de covid-19, no contexto de desmonte do SUS. Ao mesmo tempo, os agentes populares de saúde são uma forma de tentar formular em termos legíveis para o Estado a experiência da existência consubstancial no bairro-quilombo.
A formação[3] dos agentes populares de saúde no bairro de Mara consistiu em seis encontros, organizados pelos movimentos populares da campanha de solidariedade, que aconteceram ao longo de tardes de sábado. Nesses encontros, mesclavam-se aulas expositivas e discussões envolvendo noções básicas de biologia e epidemiologia – o que é um vírus, como ele se comporta, o que o novo coronavírus causa em nossos corpos, como ele é transmitido –, educação em saúde e prevenção – como manusear uma máscara, como lavar corretamente as mãos, quais plantas medicinais utilizar em benefício da saúde, por que evitar aglomerações, a importância da vacinação, como identificar sintomáticos de covid-19 e orientações de cuidados individuais e coletivos –, e conhecimento sobre o funcionamento do SUS e o que significa o direito à saúde.
Durante os encontros, alguém sugeriu transformar a escola em centro de acolhimento para infectados poderem ficar em quarentena de maneira segura, o que foi vetado por outros, afinal, a escola era onde as pessoas se reuniam para organizar as doações que chegavam e que seriam distribuídas, ou para abrir as cestas e reorganizar os produtos para fazer a feirinha popular. Tudo isso exigia espaço, máscaras, álcool gel e uma logística que levasse em consideração a convivência com o vírus. Geni sugeriu utilizarem o espaço da igreja. Consultou as outras pastoras que também realizavam seus cultos no espaço e, não sem alguma discussão, semanas depois ele se tornou o centro dos quarentemados.
Ao final do ciclo, muito mais pessoas estavam usando as máscaras corretamente na vizinhança. Os agentes populares de saúde tornarem-se coordenadores de rua e passaram a ser responsáveis por arrecadar e organizar as doações de cestas básicas e por monitorar a saúde dos moradores. Para cumprir ambas as tarefas, mapearam as famílias da comunidade e o modo como cada uma delas participaria da ação – doando alimento, sendo voluntárias na organização, recebendo doações – e foram capacitadas para dar encaminhamento às pessoas que apresentassem sintomas de covid-19. Janaína foi uma figura fundamental para esclarecer seus vizinhos sobre a importância do monitoramento da oxigenação no cuidado com pessoas com suspeita ou em casos confirmados de covid-19. Os agentes populares conseguiram direcionar algumas doações para a comprar de quatro oxímetros comunitários. O uso contínuo do oxímetro possibilitou chegadas ao hospital para receber suporte de oxigênio antes do agravamento dos sintomas e garantiu que muitas vidas não fossem perdidas.
Como conclusão do curso de agentes populares de saúde no bairro de Mara, uma última atividade foi realizada. Nos espaços de terra batida, onde nenhuma edificação havia sido levantada desde os tempos da ocupação, foram construídos uma horta comunitária com plantas medicinais e um jardim sensorial com manjericão e ervas aromáticas, rosas e flores coloridas, orégano e ervas comestíveis e uma trilha sensorial na entrada, com diferentes texturas sobre as quais se pode caminhar. As crianças ficaram particularmente empenhadas em enfeitar os pedaços de madeira que indicavam os caminhos, identificavam as plantas e funcionavam como barreiras para que os cachorros não destruíssem o jardim.
O acúmulo dos movimentos de saúde das décadas anteriores; o acúmulo da experiência da campanha de solidariedade durante a pandemia; a experiência de educação popular e o histórico do trabalho militante; os impactos da pandemia nas periferias e a ausência de políticas de Estado de combate a tais impactos, bem como a ausência de uma campanha de educação em saúde; tudo isso foi gestando uma noção de cuidado que não prescinde de uma ética e de uma prática política, a partir da tríade convivialidade-contiguidade-consubstancialidade da vida no bairro-quilombo. De acordo com Maria Puig de la Bell casa: “Cuidado é tudo que é feito (e não tudo que ‘nós’ fazemos) para manter, continuar e reparar ‘o mundo’ de modo que todos (e não apenas ‘nós’) possam viver da melhor maneira possível. Esse mundo inclui tudo o que buscamos alinhavar em uma rede complexa e mantenedora da vida” (Bell casa 2017, 161, tradução minha[4]).
Esse cuidado foi corporificado numa tradução paraestatal nos agentes populares de saúde, que enfatizam o protagonismo das pessoas em suas comunidades, seus bairros e suas redes de vizinhança para o enfrentamento da pandemia nas periferias. Paralelamente, este texto consistiu em um experimento etnográfico a partir de pesquisa com pessoas envolvidas em uma campanha de solidariedade – dentre elas, agentes populares de saúde. Assim como os agentes populares de saúde são uma forma de tentar formular, em termos legíveis para o Estado, a experiência da existência consubstancial (e não confinada à precariedade e ao banimento racial) no bairro-quilombo, também este artigo experimentou tentar torná-los inteligíveis às antropólogas, driblando a precariedade como categoria totalizante de suas vidas.
A vida no bairro-quilombo de Mara e Janaína engendra casas e famílias contíguas cujas arquiteturas, fronteiras e parentescos vão sendo feitas e refeitas a todo o tempo, seja via banimento racial, como na destruição dos barracos no tempo da avó de Janaína – que perdera a conta do número de vezes porque a demolição de seus barracos se confunde com a demolição dos barracos que vieram antes e que viriam depois –, seja na convivialidade, como no revezamento de cozinhas para feitura das refeições ou no cuidado com seu Naldo. Busquei mostrar como esse modo de vida opera pela consubstancialidade e pelo drible ao confinamento da precariedade como categoria englobante. A criação dos agentes populares de saúde pode ser lida como um drible com relação ao “desmonte do SUS”, que inclui, na ética e na prática do cuidado, pessoas, terra, plantas, casas, aplicativos de celulares, máscaras, farinha, automóveis, motocicleta, banana, gás de cozinha, laje e vírus.