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O tempo da medicina e o tempo da sobrevivência: as experiências de sofrimento de médicas e médicos cubanos
Bruna Motta dos Santos
Bruna Motta dos Santos
O tempo da medicina e o tempo da sobrevivência: as experiências de sofrimento de médicas e médicos cubanos
The time of medicine and the time of survival: the suffering experiences of Cuban doctors
Anuário Antropológico, vol. 47, núm. 2, pp. 151-168, 2022
Universidade de Brasília
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Resumo: O presente trabalho tem como objetivo lançar um olhar antropológico sobre as experiências de sofrimento de profissionais da medicina de origem cubana que, após o fim do Programa Mais Médicos, tiveram suas vidas completamente transformadas. Para tal empreendimento, utilizaremos matérias jornalísticas nas quais estão expressos relatos sobre as vivências desses profissionais. Nesse sentido, usaremos o aporte teórico-conceitual da Antropologia das Emoções e do Sofrimento, mais especificamente, entendendo esse conjunto de acontecimentos através das noções de evento crítico . sofrimento social. Ao final, buscaremos refletir sobre como a irrupção deste evento impactou as vivências e percepções acerca do passado, presente e futuro, bem como as emoções que daí emergem.

Palavras-chave: Médicos Cubanos, Sofrimento Social, Evento Crítico, Emoções.

Abstract: The present work aims to launch an anthropological look at the experiences of suffering of medical professionals of Cuban origin who, after the end of the Mais Médicos Program, had their lives completely transformed. For such an undertaking, we will use journalistic reports in which reports about the experiences of these professionals are expressed. In this sense, we will utilize the theoretical-conceptual contribution of the Anthropology of Emotions and Suffering, more specifically, understanding this set of events through the notions of critical event and social suffering. At the end, we reflect on how the irruption of this event impacted the experiences and perceptions about the past, present and future, as well as the emotions associated with these temporalities.

Keywords: Cuban Doctors, Social Suffering, Critical Event, Emotions.

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Dossiê

O tempo da medicina e o tempo da sobrevivência: as experiências de sofrimento de médicas e médicos cubanos

The time of medicine and the time of survival: the suffering experiences of Cuban doctors

Bruna Motta dos Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Anuário Antropológico, vol. 47, núm. 2, pp. 151-168, 2022
Universidade de Brasília

Recepción: 15 Noviembre 2021

Aprobación: 09 Mayo 2022

Introdução

Enquanto um fenômeno humano, o sofrimento tem sido apropriado como objeto de estudo e intervenção pelas mais diversas áreas do campo científico, que buscaram, cada uma à sua maneira, compreender e diminuir as dores e aflições que assolavam os sujeitos. A exemplo disso, podemos citar a Medicina, que ao longo do seu processo de desenvolvimento se legitimou enquanto campo privilegiado para lidar com as dores e o sofrer físico dos pacientes, criando diversas formas de cessar ou aliviar o sofrimento daqueles a que se propunha curar (Victora 2011). Entretanto, no presente trabalho, nos reportamos à área médica, seguindo outros caminhos. Não trataremos aqui dos modos de sofrimento de pacientes, suas dores e lamentações, cujo mal estar é tratado pela Medicina em hospitais, postos de saúde ou clínicas. Entendendo o sofrimento como uma condição na qual as esferas física, psicológica, mental e espiritual não podem estar cindidas (Victora 2011), centramo-nos nas experiências do sofrer dos próprios médicos, compreendendo as dimensões sociais e culturais do sofrimento.

Situados enquanto um importante objeto de investigação antropológica, as perturbações, aflições e o sofrer humano serão aqui compreendidos para além de uma experiência estritamente física. Voltando nosso olhar para as experiências do sofrer, entenderemos o sofrimento associado àquilo que Victora (2011) chamou de políticas e economias da vida, cuja atenção está nas maneiras pelas quais as esferas política, econômica e institucional impactam as experiências íntimas e cotidianas dos sujeitos. Nesse sentido, nosso objeto no presente trabalho será o sofrimento social vivenciado por médicas e médicos cubanos que, após o fim da participação no Programa Mais Médicos (PMM), viram suas vidas completamente transformadas. Diante da impossibilidade de continuarem atuando em sua área de formação, esses profissionais passaram a realizar as mais diversas atividades, no intuito de permanecer no país onde criaram vínculos e estabeleceram suas vidas. No entanto, a submissão a atividades em condições de subempregabilidade os colocou diante de uma experiência de grande dor e tristeza, trazendo-os para terrenos de perdas em diversas instâncias.

Com o intuito de dar sentido às experiências desses profissionais, nos ocuparemos de matérias jornalísticas publicadas de modo online e aquelas transmitidas em programas de televisão. Para tal empreendimento, realizamos um levantamento das notícias sobre os profissionais cubanos após o fim da participação no Programa, partindo da delimitação daquelas reportagens que versavam sobre a condição específica dos médicos e médicas que aqui permaneceram[1]. Assim, trataremos os referidos materiais como a materialização dos fenômenos, entendidos como modos de estabilizar as interpretações dos eventos, considerando-os como artefatos de documentação, tal como propõe Freire (2019).

A partir desses aparatos midiáticos, torna-se possível conhecer os modos de sofrimento social e, mais que isso, torna-se possível situá-los enquanto objetos científicos (Wilkinson e Kleinman 2016). Buscaremos entender, portanto, as trajetórias mobilizadas nessas reportagens à luz do aporte teórico-conceitual dos campos da Antropologia das Emoções e do Sofrimento, principalmente voltando-nos para as noções de evento crítico . sofrimento social. Isso porque entendemos essas experiências como ocasionadas por um acontecimento mais amplo que teve grande impacto na vida de milhares de pessoas e, principalmente, como modos de sofrer causados e condicionados pela sociedade, cujas consequências ultrapassam a dimensão individual, reverberando a totalidade das práticas desses sujeitos.

Nesse sentido, no texto que segue, apresento inicialmente alguns pontos à guisa de contextualização, buscando apontar as principais características e objetivos do Programa Mais Médicos, as tensões e conflitos em torno da presença cubana e como se deu o fim de sua participação. Em seguida, busco descrever e analisar as trajetórias pessoais dos médicos e médicas cubanas, mostrando como as experiências desses sujeitos podem ser compreendidas nos termos colocados pela antropologia. Por fim, partindo da análise das experiências de sofrimento desses profissionais, busco refletir como a irrupção deste evento impactou as vivências e percepções acerca do passado, presente e futuro, bem como as emoções que daí emergem.

1. O Programa Mais Médicos

O Programa Mais Médicos, instituído a partir da Lei nº 12.871 de outubro de 2013, foi um programa governamental que tinha como objetivo central sanar a carência de profissionais médicos em determinadas regiões do Brasil. Não se restringindo a esse objetivo, o PMM tinha como base três estratégias que se estruturavam em torno do aumento das vagas e dos cursos de graduação em Medicina (que deveriam se fundamentar nas renovadas Diretrizes Curriculares), da ampliação dos investimentos na esfera estrutural, manifestos na construção de Unidades Básicas de Saúde (UBS), e na admissão de médicos para os municípios de difícil acesso, com dificuldade no provimento de profissionais e considerados como áreas de vulnerabilidade socioeconômica. Dessas estratégias, a que mais ganhou visibilidade e despertou a atenção de setores da sociedade foi a admissão de médicos (Santos et al. 2015), que tinha o objetivo de suprir de maneira imediata a escassez dos profissionais nessas regiões e se caracterizou como uma medida emergencial e de curto prazo, enquanto os efeitos estruturais ainda não apresentavam resultados.

Segundo Pinto et al. (2014), o Brasil é um país cuja proporção de médicos por habitantes se encontra em uma condição muito inferior às necessidades apresentadas pela população e pelo Sistema Único de Saúde, sendo as regiões mais pobres as que mais sofrem com a má distribuição desses profissionais. As áreas mais afetadas, de acordo com o Cremesp, são as regiões Norte e Nordeste, que possuem a menor disponibilidade de médicos, enquanto as regiões Sul e Centro-Oeste estariam próximas da média, e a região Sudeste se situaria acima da média brasileira (CREMESP 2013 apud Pereira et al. 2015). Nessa perspectiva, o Programa tinha a finalidade de admitir profissionais da medicina de dentro e de fora do país, que passariam por uma formação complementar, além de uma supervisão para que a atenção à saúde fosse dispensada aos usuários, em consonância com os fundamentos da Política Nacional de Atenção Básica.

A atuação do Programa neste âmbito partia de incentivos para que os médicos passassem a atuar nas regiões do interior do Brasil, como fomento para especialização, bolsas de estudo, supervisão e tutoria em serviço, além de apoio clínico. Realizado por meio de Editais, poderiam se candidatar médicos brasileiros formados no Brasil e no exterior e médicos estrangeiros (Pereira et al. 2015). A ordem de prioridade obedecia aos seguintes critérios: os médicos com registro no Brasil compunham o primeiro grupo, abarcando médicos de qualquer nacionalidade que haviam se formado no país ou que tinham o diploma revalidado e registro no Conselho Regional de Medicina; o segundo grupo era composto por brasileiros intercambistas graduados no exterior e que não tinham o diploma revalidado e registro no CRM e, por último, os médicos estrangeiros que possuíam habilitação para exercer a medicina fora do país, mas que não tinham o diploma revalidado e, por conseguinte, registro no CRM (Ministério da Saúde 2015). Os médicos admitidos recebiam uma bolsa de 10 mil reais, cuja responsabilidade ficava a cargo do Ministério da Saúde (MS), enquanto as despesas de moradia, alimentação e transporte eram arcadas pelo município receptor (Pereira et al. 2015).

Os médicos estrangeiros, mais particularmente, possuíam uma licença de caráter provisório – o Registro Único – disponibilizada pelo Ministério da Saúde para desenvolverem suas atividades, permitindo que eles exercessem seu ofício apenas pelo período em que vigorasse o contrato. Dessa maneira, esses médicos tinham suas atividades restritas somente ao município e às Unidades Básicas de Saúde em que estavam lotados (Pereira et al. 2015). Além disso, os médicos participantes do PMM não poderiam substituir os profissionais já atuantes nas equipes multidisciplinares da Estratégia de Saúde da Família (ESF), já que as vagas oferecidas pelo Programa eram disponibilizadas em um processo anterior de adesão dos municípios, que deveriam optar pela implantação das novas ESFs ou pela integração destes médicos às ESFs nas quais havia a ausência dos profissionais (Pinto et al. 2014).Em julho de 2014, o Programa havia admitido 14.462 médicos brasileiros e estrangeiros em 3.785 municípios, com uma redução de 53% da escassez desses profissionais (SANTOS et al 2015). Desse total, 1.846 eram médicos formados no Brasil, 11.429 médicos cubanos e 1.187 profissionais brasileiros formados no exterior (PEREIRA et al 2015). Marcado pelo maior intermédio do Ministério da Saúde na Atenção Básica, em uma esfera cuja responsabilidade era predominantemente municipal, o Programa se constituiu com um papel mais central do nível federal em áreas que iam desde a admissão, passavam pela remuneração e alcançavam a formação médica.

2. A presença cubana: conflitos e tensões

Após o recrutamento de médicos brasileiros formados no Brasil e no exterior, percebeu-se que a demanda não havia sido suprida, emergindo a necessidade da abertura de vagas para médicos estrangeiros, que, como observamos, passam a ser compostas de forma majoritária por médicos de origem cubana. Conforme a ordem de prioridade, estabelecida por lei, se as vagas das três chamadas não fossem preenchidas, o Ministério da Saúde encontrava-se autorizado a estabelecer um acordo de cooperação com organismos internacionais, acordo que tinha como finalidade atender as demandas nacionais. Segundo o livro intitulado Mais médicos – Dois anos: mais saúde para os brasileiros (2015), organizado pelo Ministério da Saúde, o Programa valeu-se do acordo de cooperação já no primeiro ano, visto que não havia sido alcançado o preenchimento de vagas necessário.

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), organização ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS) com a qual o governo brasileiro já estabelecia uma relação de cooperação, firma um acordo de cooperação com o governo de Cuba, que passa a disponibilizar profissionais médicos cuja área de experiência e formação estavam voltadas para a Atenção Básica. É nesse contexto que o Brasil passa a importar os médicos cubanos, denominados pelo programa como médicos cooperados, já que não ingressavam de forma individual, mas por intermédio da OPAS, do governo de Cuba e do governo brasileiro (Campos e Junior 2016). Os médicos cubanos interessados em participar do Programa deveriam possuir especialização em Medicina Geral Integral, ter pelo menos 10 anos de experiência, 2 anos de trabalho em outros países, bem como conhecimento básico do português. Além disso, a partir do seu ingresso, os profissionais passariam por um “módulo de acolhimento”, no qual seriam abordados temas como o funcionamento do SUS, protocolos relativos à atenção básica e conteúdos de língua portuguesa, acrescidos de uma especialização em saúde familiar e comunitária (Molina et al. 2016).

Entretanto, a determinação positiva em relação à contratação de médicos oriundos do exterior sem o exame que revalidaria seus diplomas culminou em um grande conflito com entidades médicas radicalmente contrárias ao Programa e ao governo no qual ele fora instituído. Para Campos e Júnior (2016), esta tensão intensificou-se pelo fato de a maioria dos médicos estrangeiros ser proveniente de Cuba, ainda que possuíssem formação e experiência particular em Atenção Primária e Medicina de Família e Comunidade, estando em consonância com as diretrizes do Programa. Na página do Conselho Federal de Medicina é possível encontrar diversas notícias e artigos que tratam do PMM, como em uma nota publicada em agosto de 2013. Nela, o Conselho situa sua posição contrária ao Programa e, mais especificamente, aos médicos cubanos, considerando o anúncio de importação dos profissionais como “eleitoreiro, irresponsável e desrespeitoso”, podendo-se ler o seguinte trecho:

O Conselho Federal de Medicina (CFM) condena de forma veemente a decisão irresponsável do Ministério da Saúde que, ao promover a vinda de médicos cubanos sem a devida revalidação de seus diplomas e sem comprovar domínio do idioma português, desrespeita a legislação, fere os direitos humanos e coloca em risco a saúde dos brasileiros, especialmente os moradores das áreas mais pobres e distantes (Conselho Federal de Medicina 2013).

As entidades médicas e os setores de oposição ao governo situaram-se como um importante polo desta relação, como uma esfera da sociedade cuja posição era afirmada e reafirmada como contrária ao Programa, especificamente quando se tratava dos médicos oriundos da Ilha, sendo raras as menções aos médicos brasileiros intercambistas que se graduaram em outros países. O que quero dizer, a partir deste aspecto, é que as questões envoltas no Programa são complexas e ultrapassam aspectos relativos à promoção e assistência à saúde, envolvendo questões econômicas, partidárias e políticas, em que setores específicos da sociedade tomam posições de acordo com os lugares que ocupam. Penso como esse processo de construção de um imaginário negativo em torno da atuação dos médicos estrangeiros pode ter corroborado para o fim da participação cubana e, consequentemente, no que analisaremos posteriormente como as trajetórias de sofrimento de médicos e médicas após o fim do PMM.

Foi nesse cenário de tensões e conflitos que, após meia década em vigor, o Programa Mais Médicos passa a atuar sem a participação dos médicos cubanos. Quando ainda se encontrava em campanha eleitoral, o atual presidente da República Jair Bolsonaro (PL) proferiu diversas críticas ao Programa e ao governo de Cuba, afirmando que expulsaria seus profissionais a partir da revalidação do diploma, promessa esta que compunha seu plano de governo. Nas palavras de Bolsonaro, em discurso proferido na cidade de Presidente Prudente: “Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil", e continua:

Qualquer estrangeiro vindo trabalhar aqui na área de medicina tem que aplicar o Revalida. Se você for para qualquer país do mundo, também. Nós não podemos botar gente de Cuba aqui sem o mínimo de comprovação de que eles realmente saibam o exercício da profissão. Você não pode, só porque o pobre que é atendido por eles, botar pessoas que talvez não tenham qualificação para tal (G1 2018).

Diante das ameaças de mudanças nos termos do acordo, consideradas inconcebíveis pelo governo da Ilha, o Ministério da Saúde de Cuba decide cessar sua participação no Programa, publicando sua decisão em nota no dia 14 de novembro de 2018, por considerar ameaçadoras as declarações do então futuro Presidente e por julgar inaceitável “questionar a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de suas famílias, prestam atualmente serviços em 67 países”. Afirmaram, ainda, que os colaboradores cubanos se alocaram em mais de 3.600 municípios, chegando a constituir 80% do corpo médico participante do Programa, tendo aceitação de 95% da população brasileira. Como apontam em um trecho da nota,

o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, com referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, disse e reiterou que modificará os termos e condições do Programa Mais Médicos, desrespeitando a Organização Pan-Americana da Saúde e o que esta acordou com Cuba, ao questionar o preparo de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa à revalidação do título e como única forma de se contratá-los a forma individual (G1 2018).

Com o fim da participação, Cuba solicitou o retorno dos 8.332 mil médicos que na época exerciam sua profissão no Brasil. Regressaram à Ilha, em novembro de 2018, os primeiros 200 daqueles que deveriam deixar o país até meados de dezembro daquele ano. Desse total, cerca de 2.500 médicos optaram por permanecer no Brasil e, considerados como desertores, não poderiam retornar a Cuba por um período de oito anos. Os que aqui permaneceram – muitos por motivos comuns, entre os quais se destaca a constituição de uma nova família – passaram a trabalhar nas mais variadas funções, seja como motoristas, faxineiros, pedreiros ou ambulantes, enquanto aguardavam as promessas de reintegração do atual governo. Das trajetórias e experiências destes sujeitos é que nos ocuparemos agora.

3. Trabalho, sobrevivência e recomeço: as trajetórias de vida depois do PMM

Em uma das primeiras cenas da reportagem produzida pelo programa de televisão “Profissão Repórter”, da Rede Globo, uma jornalista dirige-se até uma barraca de churrasquinhos. Conforme se aproxima, é possível ouvir a música latina, em língua espanhola, enquanto a câmera foca uma placa em que se pode ler o seguinte escrito: “EspetoCuba”. Uma mulher, Suleni, apresenta aquele que comanda o empreendimento: “Esse é meu esposo, o doutor Humberto”. E a jornalista o cumprimenta: “Oi, doutor Humberto”. A esposa de Humberto segue apresentando o outro homem, que se encontra ao lado do marido: “Esse é o doutor Miguel”. Enquanto serve seus clientes, Miguel conta: “em Cuba não temos espeto. Aprendemos aqui, agora. Em Itaituba aprendemos a fazer”.

O trabalho era recente, há apenas 20 dias os dois médicos cubanos haviam começado a vender churrasquinho nas ruas da cidade. Suleni conta como o “EspetoCuba” era fruto da solidariedade familiar: “Um cunhado deu, para iniciar, a carne, o outro cunhado ajudou com a mesa, outras coisinhas, a lâmpada... É assim, cada um da família ajudou com alguma coisa”. Enquanto a jornalista explica como aquela havia sido a maneira encontrada pelos médicos para ganhar a vida, são mostradas imagens dos clientes de Humberto e Miguel. “Eu tô casado aqui, a minha mulher está grávida. Então eu tenho que fazer alguma coisa pra sobreviver aqui no Brasil. É difícil trabalhar nisso aqui que estamos fazendo, é um pouco difícil”, lamenta Miguel (Profissão Repórter 2019).

Abro a seção com esta descrição por considerá-la emblemática e elucidativa frente às tantas experiências de médicas e médicos cubanos de que trataremos aqui. Colocamo-nos a questão de como, diante de um acontecimento de ordem política, diversos sujeitos tiveram suas vidas cotidianas impactadas, passando a mobilizar formas múltiplas para lidar com as situações em que se encontravam. Após a declaração de Bolsonaro, Cuba retira-se do Programa e, com o fim da participação cubana, os profissionais da medicina veem suas vidas completamente transformadas. Para muitos, voltar à Ilha era o que deveria ser feito. Para outros, essa não era mais uma opção. Assim como Humberto e Miguel, muitos deles conheceram brasileiras e brasileiros com quem se casaram e tiveram filhos. Para eles, voltar à Ilha seria o mesmo que abandonar ou romper seus laços afetivos.

Através das trajetórias discutidas, veremos como a principal motivação que impulsionou os(as) médicos(as) cubanas a permanecerem no Brasil foi a constituição de relacionamentos afetivos. Esse “permanecer” mostra-nos como amores também possuem a capacidade de motivar e reconfigurar a vida destes sujeitos, cujas trajetórias passam a situar-se entre dois países distintos (Coelho e Oliveira 2020). Nas palavras de Padovani (2015, 277), o “amor” é mobilizado para “falarem sobre as malhas relacionais que as[os] localizam perante as instituições estatais e perante as próprias redes”, sendo diante desses amores e da constituição de seus novos laços que eles e elas decidem ficar, adaptando-se a outras funções para permanecer no país.

Nesse sentido, entendemos o fim da participação cubana no PMM como um evento crítico, nos termos que Das (1999, 2020) conceituou. Para a antropóloga indiana, tais eventos, ao ocasionarem rupturas e transformações drásticas na vida dos sujeitos, implicam na constituição de novos modos de ação e na reconfiguração de suas vidas a partir da redefinição de valores e significados. Com a irrupção desses acontecimentos, os sujeitos criam modos para lidar com as consequências no seu cotidiano, como uma forma de reabitar o mundo. Assim, ao buscarem reconstruir suas vidas fazendo com que sua existência se torne possível novamente, os sujeitos empreendem uma descida ao ordinário, ou seja, vivenciam aquele cenário devastado, mas o reconstroem, buscando novas formas para seguir.

Como buscarei demonstrar a seguir, o trabalho aparece como a principal forma de adequação aos novos contornos das vidas de médicos e médicas cubanas. Diante da impossibilidade de exercerem a medicina, os sujeitos reabitam seus mundos perdidos realizando as mais diversas atividades laborais, sendo através da vivência em seus novos cotidianos de trabalho que encontram formas de se reconstruírem.

***

Em uma reportagem do jornal matutino Bom Dia Cidade, da região de Campinas, vemos trajetórias semelhantes. Trata-se, aqui, das experiências de quatro médicos que decidiram se unir após a decisão de permanecer no Brasil. Eduardo, um dos entrevistados, fala do interior de uma cozinha, que naquele momento havia se tornado seu ambiente de trabalho. O médico, que veio de Cuba para atuar na cidade de Luziânia, em Goiás, relembra com pesar o momento em que recebeu o comunicado do governo cubano, de que deveria voltar ao seu país de origem:

Recebemos a informação diretamente da Embaixada de Cuba e dos coordenadores da UPA de que o programa havia sido fechado. Isso para nós foi um impacto muito grande. A gente acordando todos os dias para trabalhar, para salvar vidas como estávamos acostumados e de pronto falaram: vocês não são mais médicos. Se querem ser médicos têm que voltar para a Cuba (Bom Dia Cidade 2019).

Conforme o tempo passava e as dívidas aumentavam, os médicos decidiram se mudar para Restinga, em São Paulo, e lá iniciaram a venda de marmitas. Nairóbi, prima de Eduardo, o acompanhou no empreendimento: “começamos a fazer marmitas e vimos pelas coisas iam mais ou menos funcionando, não dava muito lucro, mas dá para pagar as contas”. Cinco meses depois e com a parceria de Ariel e Junete, mudaram-se para a cidade de Franca, onde abriram um restaurante maior. Ainda que o resultado do trabalho fosse favorável, possibilitando que os médicos possuíssem uma renda para viver, a perspectiva futura era de voltar a exercer a medicina, através da revalidação dos seus diplomas: “a gente falou assim: vamos tentar, até sair o Revalida, até sair um edital em que a gente seja contemplado, porque ficar parado não dá realmente”, contou Ariel. À espera de retornar às rotinas de atendimentos, os médicos e médicas se viam tomados pela angústia e tristeza por não poder clinicar. Nas palavras de Junete:

Mesmo se você não tá exercendo como médica, você é médica. Ninguém vai tirar isso de você. (...) É difícil, é muita ignorância, é um sentimento muito difícil de explicar, porque passei muitos anos de sacrifício em meu país, seis anos de carreira, depois três anos de especialização em clínica geral e dá muita saudade, muita dor. Você prepara sua vida para uma coisa e de repente por coisas que acontecem acorda de outro jeito (Bom Dia Cidade 2019).

Roberto é outro médico que decidiu permanecer no Brasil e seguia vivendo na cidade de Nova Olinda do Norte, no Amazonas, desde 2014, quando chegou de Cuba para trabalhar em um distrito indígena. Lá estabeleceu família ao se casar com uma brasileira e por esta razão decidiu ficar no Brasil, mesmo diante da impossibilidade de atuar como médico. Quando suas economias acabaram, iniciou uma dupla jornada de trabalho, sobrevivendo do emprego que conseguiu em um supermercado e da venda de farofa com carne salgada, atividade desempenhada em uma praça da cidade em parceria com a esposa. “Isso faço à noite. De dia, trabalho em um supermercado, arrumando estoques”. Diante do presente penoso longe da medicina, Roberto também situa o retorno às rotinas de trabalho no horizonte de suas perspectivas futuras:

Tenho muitas esperanças de fazer o Revalida e exercer a profissão aqui. Não quero nada de graça, apenas uma oportunidade para continuar trabalhando num lugar que me apaixonei, que formei vínculos, que tenho certeza de que posso ajudar e, claro, também posso ficar feliz (O Estado de S. Paulo 2019).

Os laços aqui estabelecidos também motivaram a decisão do médico Yonnel, que chegou a Luziânia em 2014 e pouco tempo depois se casou com a brasileira Vânia, com quem teve um filho. Com o fim da participação de Cuba, Yonnel decidiu ficar no Brasil: “Eu gosto do meu país. Mas fiz minha vida aqui”, conta. Ao ver-se desempregado e com um filho para cuidar, o médico passou a contar com doações, fruto da solidariedade de seus antigos pacientes e de um amigo, também médico cubano, que anos atrás conseguiu validar o diploma no Brasil. Em entrevista, Yonnel conta que já havia realizado inúmeras tentativas de emprego, mas a formação em medicina o impediu de ser admitido: “As pessoas têm um certo receio de achar que eu, como médico, agora não posso fazer esse tipo de atividade. Eles ficam com vergonha”. Em relação à medicina, relata o anseio em voltar a exercer a profissão em que se formou: “não perco a esperança de voltar a atuar”. Mas enquanto não é possível, passou a criar peixes ornamentais em caixas d’água no quintal de sua casa, buscando ter alguma renda para as despesas.

"Como não tenho mais pacientes, trato deles com muita atenção. Refeições, cuidados. E eles sabem quando me aproximo, parece que até já me conhecem. (...) Sei que isso não será suficiente para me sustentar. Mas será uma ajuda". (O Estado de S. Paulo 2019).

Diante das múltiplas possibilidades encontradas para ganhar o sustento no Brasil, a área da saúde, mesmo que em tempos de dificuldade, acaba por se constituir como direção a ser seguida diante da impossibilidade de clinicar. Juan inicialmente exercia a função de motorista de aplicativo: “é uma função digna, consigo dinheiro para despesas pequenas", afirma. Mesmo não podendo exercer a medicina, anseia por atividades que se aproximem dela, realizando cursos de terapias alternativas, como o de acupuntura. “Está mais próximo da minha área, o rendimento é melhor do que o de motorista”, e completa: “Vamos nos virando. Mas não seria muito melhor para todos se pudéssemos trabalhar como médicos?” (O Estado de S. Paulo 2019). O mesmo aconteceu com Valenciano, que investiu suas economias fazendo cursos de terapia holística, forma como hoje consegue sobreviver na cidade de Franca, em São Paulo: “estou conseguindo duas ou três sessões por dia. Muitos clientes são indicados por amigos e pacientes com quem fiz amizade” (O Estado de S. Paulo 2019).

As estratégias mobilizadas por médicas e médicos cubanos são as mais variadas, demonstrando criatividade frente às drásticas transformações em suas vidas. A nacionalidade cubana, por exemplo, alvo de críticas negativas quando se tratava da profissão médica, tomou um sentido positivo e valorizado diante das possibilidades encontradas por estes sujeitos. Tendo permanecido durante quatro anos no Programa, Bermudez passou a trabalhar como garçom, cozinheiro e animador de festa no típico bar cubano que abriu em Sorocaba, o “Cuba Libre”. Assim, contou em entrevista: “as contas não param de vencer e não dava mais para ficar esperando o governo. Resolvi arriscar e acho que o mais difícil já passou. O bar já tem até karaokê e está bombando”. Bermudez ainda empregou mais quatro médicos cubanos que atuavam em Campinas e Pernambuco: “eles ajudam a preparar e servir pratos, ensinam a dançar salsa, fazem um pouco de tudo. Aqui virou um refúgio” (O Estado de S. Paulo 2019).

Entretanto, os encontros com os antigos pacientes e as memórias do cotidiano nos consultórios os trazem, também, para cenários onde a tristeza e o pesar são constantes. Niurka, que recebeu apoio do prefeito da cidade em que atuava, trabalha hoje na função administrativa de um hospital, onde no passado exercia a medicina. Estar neste ambiente, ainda que empregada, traz as lembranças dos tempos de médica, memórias que emergem em um presente no qual não pode atender os pacientes: “Quando chego, evito entrar pela porta principal. Sempre tem um paciente ou outro que pergunta se não posso dar uma olhadinha rápida. Atender é minha paixão, mas estou impedida”. De modo semelhante, Mercedes relata como o reencontro com os pacientes era um momento difícil, algo frequente, já que ela passou a trabalhar como balconista em uma farmácia, em Piracicaba. “Fiz muitos amigos e meus ex-pacientes acham estranho quando me encontram no balcão da farmácia. Mas dou graças a Deus por estar aqui” (O Estado de S. Paulo 2019). Nessa mesma perspectiva se desenrolam os relatos de Yamilet, que atuava em Jacobina, na Bahia, e permaneceu legalmente no Brasil após se casar com um brasileiro: “As pessoas vêm todo dia procurando atendimento, eles acham que eu ainda sou a médica deles. E para mim é muito difícil falar ‘eu não posso’. Para nós é difícil, sabe? Porque a gente já provou que é médico” (Veja 2019).

Contudo, mesmo em suas novas funções, a carga do imaginário criado em torno da profissão médica não cessa de emergir. No Brasil, os cursos de medicina se constituem como as graduações mais concorridas, com salários que saltam aos olhos daqueles que anseiam ou não por seguir na profissão. Nas palavras de Machado (1997, 21), “a profissão médica é este estereótipo de profissão com alto grau de autonomia técnica (saber) e econômica (mercado de trabalho)”. Para a autora, a Medicina é dotada de pressupostos monopolistas, possuindo um projeto profissional bem-sucedido, cujas alianças com o Estado e com setores da elite fizeram com ela possuísse aparatos legais para que exercesse seu ofício de forma exclusiva, vendendo seus serviços particulares.

Num dado momento, esta expertise tornou-se exclusiva do exercício dos experts. Assim, os médicos adquiriram, historicamente, o monopólio de praticar a medicina de forma exclusiva, colocando na ilegalidade e clandestinidade todos os praticantes empíricos e curiosos desse ofício (Machado 1997, 22).

Nessa perspectiva, compreendemos não só a dinâmica dos registros e como eles operam como aparatos de liberação ou restrição da atividade médica, por nós já discutida, como também o caráter que a Medicina, enquanto profissão técnica e economicamente autônoma, adquire em nossa sociedade. Assim, é frequente não só o espanto das pessoas ao perceberem médicos trabalhando em funções consideradas como “inferiores” ou “desvalorizadas”, como também a recusa em empregar estas pessoas em funções percebidas como não dignas de um profissional da Medicina. Como afirmou Rodriguez,

muitas pessoas, quando descobrem nossa profissão, nos dizem que não podem nos contratar, porque os empregos não estariam à altura de um médico. Éramos médicos, sim, mas hoje não somos nada. Somos como qualquer um que precisa de um trabalho para sobreviver (BBC 2019).

Durante a reportagem que abre esta seção, uma jornalista entra em um supermercado e pergunta por Miguel, que logo chega cumprimentando os funcionários do estabelecimento. Enquanto empacota as compras de uma senhora, a jornalista se aproxima e pergunta à mulher se ela já conhecia Miguel, que respondendo negativamente é informada de que ele é um médico cubano. Surpresa, a mulher diz: “Ah tá! Poxa! É um prazer ser atendida por ele, porque ele atende muito bem os clientes. Mas ao mesmo tempo, eu acho que é uma pena. Na profissão dele, acaba sendo um desperdício”. A reportagem continua e Miguel afirma:

É incrível que a gente fique aqui, fazendo esse trabalho aqui que é um trabalho digno pra mim, eu não tenho frescura em trabalhar com qualquer coisa que eu precise. Só que é difícil. Eu tenho 18 anos de médico, entendeu, de formado. Então, ficar empacotando aqui, enquanto tem comunidade que está sem médico, é ruim (Profissão Repórter 2019).

Os entraves ao reestabelecimento de uma nova vida parecem não ter fim. A condição de imigrante é apontada como um elemento negativo frente às suas tentativas de conseguir um emprego no país, tanto nas funções médicas quanto naquelas que nada tem a ver com o mundo da saúde. Enquanto uns ajudam, pelo conhecimento da difícil situação vivenciada por esses médicos, outros se recusam, pelo fato de serem estrangeiros. Molina lamenta: “Só quero trabalhar [...]. Criam obstáculos, sem qualquer justificativa. Há uma xenofobia como com qualquer estrangeiro, não só com os cubanos. Antigamente, nos viam como deuses, hoje nos veem como um nada” (BBC 2019).

Aqui, não podemos tecer as associações do imigrante com o trabalho sem qualificação, já que esses profissionais vieram para o Brasil justamente por possuírem a formação de que necessitavam os postos de saúde e hospitais brasileiros. O que ocorre, entretanto, é o que Sayad (1998) chamou de qualificação social do trabalho, imposta pela própria condição do imigrante, uma identificação que ultrapassa as esferas do trabalho, expressando-se na totalidade de suas práticas sociais, algo já manifesto quando ainda participavam do Programa. Nas palavras do autor, “a condição de imigrante não deixa de qualificar socialmente o trabalho que é efetuado pelo trabalhador imigrante e, para ser mais verdadeiro, lhe é reservado o que lhe cabe” (Sayad 1998, 108).

Trajetórias como as que descrevemos são atravessadas por grandes dificuldades, um sofrimento que se estende para as diversas dimensões de suas vidas. Essas vidas, precarizadas após determinados acontecimentos, são colocadas sob foco e a elas são dados rostos que permitem que nos identifiquemos ou não. Ao nos identificarmos com elas, nós as humanizamos; ao não nos identificarmos, nós as trazemos para a esfera da não-humanização. Essas reportagens, ao darem nome, rosto e imagem a essas experiências, operam uma identificação simbólica. Para Butler (2011), a insensibilidade frente à dor e ao sofrimento humano traz-nos para uma desumanização consumada, por isso a importância de colocar em evidência as dores, os sofrimentos e as lamentações diante das experiências desses sujeitos.

Se continuarmos a desconsiderar as palavras que nos entregam essa mensagem, e se a mídia não fizer essas imagens correr, e se essas vidas continuarem inominadas e não lamentadas, se elas não aparecerem em toda sua precariedade e destruição, não nos emocionaremos com elas. Não retornaremos àquele senso de indignação ética que é, distintivamente, para um Outro e em nome de um Outro (Butler 2011, 31).

Ao tratarmos dessas experiências, através das reportagens que lhes dão um rosto, estabelecemos não somente um contato com o sofrimento do Outro. Elas possibilitam, sobretudo, que lancemos um olhar às vivências sociais e às circunstâncias que definem a forma como tal sofrimento ocorre e os efeitos que eles causam na vida das pessoas. Todo esse emaranhado de trajetórias e de diversas formas de agir diante de um evento crítico de grandes proporções individuais e coletivas mostra-nos como o sofrimento está para além de uma experiência física. Essas experiências, produzidas socialmente, trazem os sujeitos para um terreno de angústia, vergonha social e, sobretudo, de perda, seja dos contextos e dos indivíduos que dão sentidos positivos às suas vidas, seja de suas identidades e papéis (Wilkinson e Kleinman 2016). Nessa perspectiva, apropriamo-nos da noção de social suffering no intento de dar inteligibilidade a essas vivências, compreendendo como esse processo de perda da participação no Programa culminou em uma série de outras perdas em várias esferas de suas vidas. Como um evento, de ordem política, teve um impacto tão grande na vida individual de milhares de pessoas?

Segundo Wilkinson e Kleinman (2016), o sofrimento social permite que compreendamos como o sofrimento experenciado pelos sujeitos é provocado e condicionado pela sociedade e, mais do que isso, como o sofrimento consiste em um elemento dinâmico que se insere em processo mais amplo de transformação sociocultural. Falar do fim do PMM implica que nos direcionemos a acontecimentos de ordem política nacional e internacional. Ainda que tenham ocorrido em um nível mais amplo, seus efeitos tiveram implicação direta na vida privada dessas pessoas. Esse é o caráter do que os autores chamaram de sofrimento social, sendo experiências que ocorrem em contextos de eventos críticos e que colocam as pessoas em vivências de destruição e perdas abruptas, que podem ser ocasionadas tanto pelo homem quanto pela natureza: “se é claro que o sofrimento se dá nos dramas mais íntimos da vida pessoal, ao mesmo tempo quase sempre engloba atitudes e compromissos que compõem nosso ser social mais amplo (Kleinman e Wilkinson 2016, 8, tradução nossa)[2].

No caso aqui analisado, o sofrimento social emerge da “ruptura” de uma trajetória profissional por processos políticos mais amplos, do padecimento em experienciar esse novo cotidiano e da esperança de um futuro incerto. Para Victora (2011), a análise antropológica dos sofrimentos a partir das dinâmicas sociais, políticas, culturais e econômicas que os produzem, tensiona a clássica oposição sociedade-individuo, ao evidenciar como o sofrer está atravessado por causas diversas e variáveis, tal como buscamos refletir através das experiências de médicas e médicos cubanos. Nesse sentido, compartilhamos da reflexão proposta pela autora, que chama atenção para a necessidade de enfrentamento do caráter indissociável das esferas físicas, psicológicas, morais e sociais do sofrimento, atentando para como as análises dessas experiências colocam em questão os modos através dos quais buscamos dar inteligibilidade aos fenômenos humanos.

4. Rupturas, adaptações e futuros possíveis

Como vimos, o trabalho foi a principal forma encontrada por médicas e médicos cubanos para se adequaram aos novos contornos de suas vidas e, embora muitos deles tenham alcançado modos para sobreviver, essas trajetórias envolveram experiências de grande sofrimento. Como apontou Castellitti (2019), ao analisar trajetórias de comissárias de bordo após a falência da Varig, processos como estes envolvem mais do que a perda de um emprego; associam-se, sobretudo, à ausência do sentido do tempo, enquanto um elo coerente entre passado, presente e futuro. A profissão que outrora realizavam fica no passado, fazendo com que os sujeitos empreendam movimentos biográficos no sentido de enfrentar os novos rumos de suas trajetórias no presente, frente a distintos horizontes de possibilidade. Diante de um cenário em que a profissão fica no passado, é no presente que os sujeitos fazem o que entendem ser necessário para sobreviver. Ainda que as funções de motorista, ambulante ou balconista não fossem atividades pretendidas, era o que precisava ser feito na busca de um futuro, um tempo incerto, porém desejado e planejado. Assim, podemos refletir, acerca de como o trabalho é pensado em termos de temporalidade, marcando não só uma ruptura entre passado, presente e futuro, mas como uma forma de referência às atividades que desempenhavam anteriormente e as que passaram a realizar (Ayoub 2014), temporalidades que tratamos aqui como o tempo da medicina e tempo da sobrevivência.

Podemos refletir, ainda, acerca de como médicos e médicas atribuem sentido às experiências vivenciadas em seu passado, presente e futuro. O exercício da medicina já não faz mais parte das vivências cotidianas; está situado em um passado que não se quer esquecer, mas lembrar e reviver. O tempo da medicina torna-se, assim, uma temporalidade valorizada, cujas memórias os levam para um momento no qual realizavam a função que escolheram para as suas vidas e podiam sobreviver de um modo economicamente satisfatório. O presente, por sua vez, é marcado pela experiência penosa da ausência do fazer médico e das dificuldades financeiras; é o tempo da sobrevivência ou, como pontuamos acima, do sofrimento, de adaptar-se para existir. Nesse ínterim, o futuro é tempo do desejo e da esperança, no qual se espera retornar ao exercício da medicina, mas ao mesmo tempo da incerteza de sua concretização. Nessa ótica, o tempo da medicina não é forjado apenas a partir das vivências de outrora, mas se encontra intimamente vinculado ao presente e às perspectivas de futuro, tendo como pano de fundo os laços construídos e as emoções experienciadas.

Nessa perspectiva, Coelho e Oliveira (2020) abordam como uma gramática específica dos sentimentos pode estar associada aos modos de se viver, reviver e antecipar o tempo, ressignificando vivências do passado e perspectivas de futuro. Assim, experiências emocionais particulares se vinculam a temporalidades específicas, podendo estar relacionadas tanto à sua duração, quanto aos períodos ou situações em que emergem, formando o que os autores denominaram como um complexo emocional. Nesse sentido, quando tratamos do amor, descrito nas trajetórias como a motivação para ficar no Brasil, estamos falando de uma emoção situada no presente; o amor consiste em uma modalidade de viver o tempo presente. O mesmo acontece com a tristeza e o sofrimento, vinculados ao presente de dificuldades e às jornadas de trabalho dissociadas da prática médica.

Já a nostalgia, aqui identificada mais propriamente pelo termo saudade, é referenciada às rotinas médicas e às interações com os pacientes. Para Coelho e Oliveira (2020), a nostalgia refere-se à experiência de perda inscrita no tempo, um sentimento referenciado a um ponto inicial e fundado na experiência subjetiva de um passado reavivado pela memória e que permanece no presente. A nostalgia emerge, desse modo, como uma experiência emocional vinculada ao passado, evidenciando as formas como médicos e médicas enfrentam subjetivamente o que entendem não mais existir ou, dito de outro modo, como revivem o tempo.

Contudo, dirão os autores, a nostalgia não se limita ao passado, mas consiste em um sentimento que tem a capacidade de impulsionar a esperança no futuro, fazendo com que a experiência do presente tenha sentido (Coelho e Oliveira 2020). É nessa perspectiva que busco pensar as experiências dos profissionais aqui descritas, refletindo sobre como as memórias do tempo da medicina conduzem os sujeitos a ter esperanças em um futuro melhor, onde seja possível reviver o passado de algum modo. Ao preservarem suas expectativas nesse futuro, seu presente de sofrimento torna-se dotado de significado, como um momento a ser superado. Assim, a esperança é associada ao futuro, vivenciada como um modo de anteciparo tempo.

Nesse sentido, tratar de sofrimento social a partir das experiências de médicas e médicos cubanos implica que olhemos para os impactos sociais das perdas em suas trajetórias de vida. Mas não só isso. Implica que olhemos, também, para os projetos, os sonhos e as estratégias para lidar com o sofrimento e para construção de novos contextos de vida. O sonho de voltar a exercer a medicina no Brasil, ainda que acreditem como remotas as possibilidades, é colocado em foco em diversos momentos e, enquanto isso não ocorre, buscam agir no sentido de ocuparem outros espaços, lidando com as dificuldades cotidianas. Como afirmou Zampirolli (2018), sonhar é trazer para o presente um futuro mais ameno em meio a um ambiente de dor e tristeza.

Sonhar, portanto, ao mesmo tempo que é o reconhecimento das distâncias entre o presente e aquilo que deve ser mudado para haver algum futuro, não implica uma passividade, mas um movimento de trabalho e de pequenas conquistas que vão travando uma possibilidade de futuridade (Zampiroli 2018, 364).

Como relataram por diversas vezes as médicas e médicos cubanos, as possibilidades de retomarem o exercício da profissão no país não depende somente deles, está na ordem do incontrolável e por isso mesmo a situamos como um sonho. Os sonhos, para além de uma simples idealização, constituem-se para estes sujeitos em uma “potência grandiosa em forçar novos limites na malha do cotidiano ao fazer projeções de melhores futuros” (Zampirolli 2018, 366). É essa potência que os move no sentido de jamais desistirem de retornar à Medicina.

Considerações finais

Ao nos voltarmos para as narrativas midiáticas em torno do fim do Programa Mais Médicos e, sobretudo, para o sofrer de médicas e médicos cubanos, nos foi possível tomar conhecimento dessas vivências e de, também, visualizarmos a constituição do que Vieira (2014) chamou de comunidade de sofrimento, expressos em uma experiência compartilhada por meio de histórias e símbolos comuns. Por meio dessas experiências compartilhadas e compartilháveis, buscamos situar o fim do Programa com um evento crítico, entendendo-o como um acontecimento de ordem política que teve consequências diretas na vida de milhares de pessoas, redefinindo rotinas e modos de viver. A partir desse evento, instaura-se uma condição de sofrimento social, na qual profissionais formados e com anos de prática na área médica são impedidos de prestar atendimentos, o que os faz mobilizar estratégias diversas e novos modos de ação para sobreviver. É por meio do trabalho que eles buscam não só a sua sobrevivência, mas um retorno à própria dignidade, ainda que não estejam nas funções mais privilegiadas.

Tendo por base as mudanças e a ruptura drástica sofrida em seus modos de vida, buscamos demonstrar, ainda, como noções de tempo estabelecem uma relação íntima com a dimensão do trabalho. Assim, o tempo da medicina e o tempo da sobrevivência possuem significados particulares, relacionados com o presente de dificuldades e com as expectativas que traçam para os seus futuros. Destas experiências, emerge um complexo emocional (Coelho e Oliveira 2020) específico das vivências de médicas e médicos cubanos, sendo o amor e a tristeza referenciados ao presente, a nostalgia/saudade referida ao passado, e a esperança atribuída a um tempo futuro. Situados entre um tempo da medicina e um tempo da sobrevivência, as experiências das médicas e médicos mostram-se permeadas por sofrimentos, mas também por amores e sonhos, que os fazem nunca perder de vista o retorno ao ofício que escolheram para suas vidas.

Material suplementario
Referências
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