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Consumo e moralidade em contextos de vulnerabilidade: histórias de mulheres
Stories of women on consumption and morality in contexts of vulnerability
Anuário Antropológico, vol. 47, núm. 2, pp. 224-243, 2022
Universidade de Brasília

Artigos



Recepción: 08 Noviembre 2021

Aprobación: 28 Diciembre 2021

DOI: https://doi.org/10.4000/aa.9724

Resumo: A partir de dados de pesquisa obtidos em dois distintos contextos de vulnerabilidade social, este artigo analisa estratégias de consumo e percepções a elas associadas. São protagonistas das histórias contadas mulheres agricultoras bolsistas do Programa Bolsa Família e mulheres moradoras de centros urbanos que, em situação de redução de renda ocorrida durante a pandemia de COVID-19, aderiram ao grupo de Facebook Boleto+1. Entre as agricultoras, a pesquisa etnográfica foi realizada entre 2016 e 2018, enquanto que junto às associadas do Boleto+1 foi conduzida, em 2020, nos primeiros meses da pandemia, através de mídias digitais.

Palavras-chave: Mulheres, Vulnerabilidade, Consumo, Pandemia.

Abstract: Based on research data obtained from two different contexts of social vulnerability, this paper will analyse consumption strategies and their relevant perceptions. The leading figures of these stories are female peasants who are beneficiaries of the Bolsa Família Program and women living in urban areas who had their income reduced as a result of the COVID-19 pandemic and had therefore to join the Boleto+1 Facebook group. Among female peasants, the ethnographic research was conducted between 2016 and 2018, while the research with Boleto+1 associates was carried out in 2020, in the first months of the pandemic, via digital platforms.

Keywords: Women, Vulnerability, Consumption, Pandemic.

Introdução

A “rede de suporte financeiro-afetivo em tempos de coronavírus” Boleto+1 foi criada em março de 2020. Segundo relatos de duas administradoras[1], a iniciativa partiu de um grupo de mulheres de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, majoritariamente trabalhadoras do campo das artes – especialmente cinema e teatro – que buscavam, de forma solidária, fazer frente à crise que, a partir do início da pandemia[2], se instaurou entre trabalhadoras autônomas: “se você pode, ajude uma mulher que não pode, pagando um boleto seu”. Com a rápida e expressiva adesão de mulheres à iniciativa e a diversidade de demandas por elas apresentadas, logo o espaço deixou de voltar-se centralmente ao pagamento de boletos, passando a contemplar inúmeras formas de ajuda entre mulheres.

Em dezembro de 2020, quando a pandemia de COVID-19 ultrapassava, no Brasil, nove meses de duração e 190 mil mortes, o grupo de Facebook Boleto+1 (https://www.facebook.com/groups/Boleto1), voltado à captação de doações, superava 55 mil membros. No balanço dos nove meses de atividade do grupo, realizado pelas administradoras em postagem de 05 de janeiro de 2021, eram contabilizadas mais de duas mil solicitações atendidas, ultrapassando mil famílias apoiadas e perfazendo doações na ordem de R$ 220 mil[3]. Em suas palavras:

(...) o que realmente importa é a gente saber que o grupo ajudou de verdade milhares de mulheres e suas famílias. Quem tá no grupo sabe que essa ajuda vai muito além do que os números são capazes de mostrar. Porque aqui no grupo rola boleto pago, sim, mas também rola carona, conselho, cama pra dormir. Quantas vezes alguém ganhou uma cesta básica e dividiu no grupo? Ou recebeu uma doação e repassou uma parte? Teve também consulta médica, auxílio jurídico, identidade visual pra alavancar o negócio, aula particular.

No mesmo dezembro de 2020, eram mais de 14 milhões as famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família (PBF), então circunscrito no quadro do Auxílio Emergencial, benefício financeiro concedido pelo governo brasileiro, instituído pela Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Essa lei estabeleceu medidas excepcionais de proteção social adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia de COVID-19. O Bolsa Família foi criado em 2004, para promover a inclusão social de famílias[4] em situação de pobreza e fome, estimulando seu acompanhamento nas áreas de saúde e educação (Campello e Neri 2013). Enquanto programa de transferência direta de renda, o PBF é dirigido a famílias em situação de extrema pobreza e de pobreza – respectivamente, com renda mensal per capita de até R$ 89,00 e entre R$ 89,01 e R$ 178,00.

As duas iniciativas, Boleto+1 e Programa Bolsa Família, tão distintas em natureza, gênese e história, têm em comum os fatos de estarem voltadas a segmentos da população em situação de vulnerabilidade social e de serem especialmente dirigidas a mulheres. O Boleto+1 é concebido a partir de perspectiva “feminista e politicamente engajada”. O “Bolsa” realiza pagamento preferencialmente a mulheres, recorte definido a partir da concepção do Programa, de modo a contribuir para a autonomia feminina. É, assim, a partir da incidência que têm nas vidas de mulheres em situação de vulnerabilidade e tomando como ponto de observação contextos em que estão inseridas algumas delas, que optamos por colocar lado a lado duas iniciativas tão distintas.

Perguntamo-nos a que tipo de constrangimentos estão sujeitas as mulheres no que concerne às maneiras de empregar os recursos obtidos a partir das duas iniciativas em questão. Quais os usos legítimos do dinheiro recebido a partir da política pública ou da ação solidária?

Para refletir a respeito, conduzimos o olhar a estratégias de consumo e percepções a elas associadas entre mulheres inseridas em dois distintos contextos de pesquisa.

São protagonistas das histórias aqui contadas mulheres agricultoras assentadas bolsistas do Programa Bolsa Família. Essas mulheres foram escutadas quando da realização de pesquisa etnográfica conduzida, entre agosto de 2016 e abril de 2018, em município situado no sul do Rio Grande do Sul, no processo de elaboração da tese de doutoramento de uma das autoras deste artigo (Machado 2019). A etnografia teve seu primeiro momento no espaço institucional em que são estabelecidos e renovados os vínculos das bolsistas com o Programa, o setor em que, na Secretaria Municipal de Assistência Social, se realiza o atendimento referente ao Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Da sala do CadÚnico, a etnografia foi deslocada para casas de mulheres camponesas, assentadas de três assentamentos de reforma agrária. Essa inserção no campo se deu a partir de três interlocutoras de pesquisa anteriormente realizada para, a partir delas, chegar a vizinhas e outras conhecidas que fossem bolsistas do PBF. Se na sala do CadÚnico os registros no diário de campo buscaram apreender aspectos relacionados ao funcionamento do programa, ao partilhar do cotidiano das mulheres procurou-se observar elementos de sua relação com o programa e de suas práticas de consumo.

Também são protagonistas das histórias aqui trazidas à luz mulheres moradoras de centros urbanos de diversos pontos do país, principalmente das regiões metropolitanas de Porto Alegre e de São Paulo, que, com a redução de renda ocorrida no período de isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, aderiram ao grupo de Facebook Boleto+1. A aproximação de pesquisa possível, realizada por uma das autoras deste artigo, foi dada pelo próprio contexto: em tempos de isolamento social, a pesquisa foi realizada via mídias digitais. Inicialmente, a partir de conhecida comum, foi possível acessar e entrevistar, via chamada realizada através do aplicativo WhatsApp, uma das administradoras do grupo. Na sequência, a partir do acompanhamento e da observação das postagens realizadas no grupo, foram sendo identificadas algumas mulheres cujos casos despertassem atenção e/ou que evidenciassem maior interatividade no grupo. Os contatos foram estabelecidos a partir do Facebook do grupo, sendo estabelecidas conversas em chat privado, algumas delas evoluindo para entrevistas realizadas em chamadas de vídeo no WhatsApp. Compõem, assim, o corpus da análise, postagens e comentários de mulheres que, em 2020, durante os primeiros meses da pandemia, pediram ou realizaram doações no grupo Boleto+1, inserido na rede social Facebook, complementados por contatos e entrevistas junto a algumas dessas mulheres e administradoras do grupo.

Na sequência desta introdução, o artigo é composto por outras três partes, além de uma pequena síntese dos achados, ao final. No próximo item, serão apresentados alguns parâmetros de funcionamento das iniciativas em questão, para, em continuidade, conduzir o olhar a imagens utilizadas em materiais de divulgação do Programa Bolsa Família e em pedidos de doação veiculados no Boleto+1. Nesses dois itens, são introduzidos elementos que permitem vislumbrar o modo como as mulheres em situação de vulnerabilidade trazidas à análise encontram-se cerceadas por perspectiva moralista do consumo, o que será também evidenciado a partir de extratos de histórias de cinco delas, duas bolsistas do Bolsa Família, três membros do Boleto+1. Os dados construídos serão, então, analisados à luz de reflexão sobre pobreza, vulnerabilidade e mulheres.

As regras

Para aderir ao Programa Bolsa Família, a mulher deve estar inscrita no CadÚnico, mantendo seus dados atualizados e informando quaisquer mudanças referentes a endereço, telefone de contato ou constituição da família (nascimento, adoção, morte, casamento, separação).

O Programa estabelece condicionalidades que devem ser atendidas pelas famílias bolsistas, relacionadas a saúde e a educação, aí incluídos o acompanhamento do calendário de vacinas, crescimento e desenvolvimento de crianças menores de sete anos; o pré-natal para gestantes; o acompanhamento de nutrizes. Do mesmo modo, são obrigatórias matrícula e frequência escolar mensal mínima de 85% para crianças e adolescentes entre seis e 15 anos; matrícula e frequência escolar mensal mínima de 75% para adolescentes de 16 e 17 anos que usufruam da Variável Jovem. Modalidades e valores recebidos do Programa variam de acordo com composição – número de pessoas, faixa etária, presença de gestantes – e renda da família.

Para ter seu pedido publicado no Boleto+1, também é necessário que a mulher realize um cadastro, cujos dados são checados e validados pelas administradoras do grupo. Tal controle foi implantado apenas em agosto de 2020, como parte de um conjunto crescente de medidas destinadas a eliminar fraudes, disciplinar pedidos e evitar comentários desrespeitosos.

No início das atividades do Boleto+1, as administradoras restringiam-se a coibir postagens de cunho ofensivo ou cujo conteúdo abrangesse pedido ou oferta de serviços não diretamente associado ao contexto da pandemia. Desaconselhavam também postagens impessoais, indicando que o pedido fosse inserido em narrativa sobre a situação vivida pela mulher. Desde sua criação em março até dezembro de 2020, o grupo Boleto+1 foi, para reorganização, fechado e reaberto ao menos cinco vezes, com o estabelecimento de regras referentes a valor máximo por pedido – fixado, em maio, em R$ 300 –; tempo mínimo entre dois pedidos – inicialmente o intervalo era de uma semana, logo passando a dez dias –; proibição de pedidos inbox, interpretados como assédio pessoal a administradoras ou outras. A punição diante de infração era realizada através de bloqueio ou exclusão do grupo.

Dado o impacto das imagens nas publicações e de modo a evitar seu uso de forma apelativa, logo após o início do funcionamento do Boleto+1 as administradoras restringiram a duas as imagens permitidas por postagem; depois foi explicitado que não seriam aceitas fotos que mostrassem dor e sofrimento e, finalmente, após o que uma administradora descreveu como “competição da geladeira mais vazia”, foi completamente proibido o uso de imagens nas postagens.

Cabe mencionar que, neste tipo de grupo do Facebook, ao clicar no perfil de um membro, pode-se identificar suas interações, postagens e comentários realizados no grupo. Pode-se também observar que constam como orientações para o grupo mensagens coibindo postura moralista: “Não julgamos o mérito do pedido, por favor, não julguem”, “Não gostou de um post? Achou o pedido estranho? Não julgue”.

Delineadas as regras que cerceiam os movimentos das mulheres na interação com as duas iniciativas em análise, temos evidenciados outros elementos de constrangimento a que estão submetidas em imagens captadas a partir de cartazes de divulgação do PBF e de postagens realizadas no Boleto+1, trazidas na sequência.

O que dizem cartazes e geladeiras?


Figura 1
Material de divulgação do Programa Bolsa Família
Facebook – Bolsa Família, 2018.

A imagem acima integra material de divulgação do Programa Bolsa Família na rede social Facebook, em que a indicação da hashtag #FicaADica orienta para a compra de material escolar e são apresentadas ilustrações de frutas, legumes e verduras, alimentos usualmente classificados como saudáveis. Ao atentar para as imagens na rede, pode-se perceber a recorrência de postagens que orientam para o consumo de alimentos, material escolar e roupas, com foco especialmente na criança. É o que se pode notar na Figura 2, em que são apresentados gastos relativos com recursos do PBF em 2008 – destaque à alimentação como principal gasto, seguida por material escolar –; no slogan “Bolsa Família é comida na mesa das crianças” (Figura 3); no recado do reajuste do valor com a imagem de mãe e filhos comprando alimentos (Figura 4); no chamamento para “prestar mais atenção no que come” (Figura 5) ou, ainda, a supermãe elástica, que com o auxílio do PBF “combate a fome e faz as crianças crescerem” (Figura 6).


Figura 2
Gastos relativos com o recurso do PBF
Fonte: Facebook – Bolsa Família, 2008.


Figura 3
Relação PBF, alimentação e criança
Fonte: Facebook – Bolsa Família, 2016.


Figura 4
Reajuste PBF e vinculação a alimentação
Fonte: Facebook – Bolsa Família, 2016.


Figura 5
Campanha alimentação saudável
Fonte: Facebook – Bolsa Família, 2016.


Figura 6
Campanha Supermães do BF
Facebook - Bolsa Família, 2016.

Os cartazes indicam itens de consumo recomendados quando obtidos a partir do dispêndio de recursos originários no Programa, sugerindo orientação que pode ser relacionada a condicionalidades do PBF, como acompanhamento de peso e medidas de crianças e mãe ou da frequência escolar de criança e adolescente. Assim, ainda que não conste da legislação que conforma o PBF determinação referente ao emprego dos recursos concedidos pelo Programa, a observação dessas imagens revela o consumo considerado legítimo e, em correspondência, o perfil da considerada “boa” mãe e administradora do lar – como dito na Figura 6, uma supermãe.

Ainda atentando a imagens, mas agora conduzindo o olhar ao Boleto+1, cabe recordar as modificações, antes mencionadas, nas regras de participação e de convivência do grupo. Segundo relatado por administradoras, no início – quando ainda não se aplicavam restrições ao uso de imagens nas postagens –, comumente as fotos mostravam pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, expondo crianças com doenças de pele, crianças chorando em pedido de comida, idosos definhando.

Primeiro a gente pediu pras pessoas não postarem imagens de dor e sofrimento, o que evitaria crianças doentes e pessoas idosas em situação de degradação. Porque era bem degradante o que apareceu ali. Mas depois vieram as geladeiras vazias, assim, uma pessoa cozinhando num fogareirinho num chão batido. Depois a gente começou a pesquisar essas imagens na internet e essas imagens não eram das pessoas que pediam, eram imagens encontradas [em banco de imagens] na internet. Daí a gente começou a achar que a coisa da imagem estava sendo usada como um disparador de pena e compaixão e que as pessoas usavam desse recurso para ter seus posts atendidos, pois tem muitos posts que entram diariamente e nem todos conseguem ser contemplados. Então esse foi um recurso que algumas pessoas encontraram para fazer valer o seu post. Isso não significa que a pessoa não precise de dinheiro, não precise de ajuda, mas usar esse recurso para ter o seu post contemplado, parece que começou a prejudicar as pessoas que estavam cumprindo todas as regras do grupo. A gente estipulou algumas regras: o que pedir, ser sincera, ser concisa, contar rapidamente sua história... e tinha muita gente que seguia à risca, e essas pessoas estavam sendo prejudicadas por um teatro de uma ou outra. E foi proibido por isso, para coibir essa sensibilização quase novelesca (trecho de depoimento de administradora do Boleto+1, em áudio no WhatsApp).

Como relatado, no momento em que foram proibidas imagens associadas a dor e sofrimento, começaram a aparecer muitas fotos de geladeiras e despensas vazias. Uma das administradoras referiu-se a esse fenômeno como uma “competição da geladeira mais vazia”, como ilustrado pela sequência de fotos reproduzidas na sequência, extraídas de distintas postagens, todas de julho de 2020.


Figura 7
Geladeiras vazias e outras imagens indicadoras de escassez de alimentos.
Facebook, Grupo Boleto+1, julho de 2020.

As imagens da Figura 7 evidenciam a tentativa de acionar, nos pedidos, parâmetros associados ao julgamento moral daquilo que é comprado com as doações, uma vez que o alimento destinado a sanar a fome parece ser, entre os gastos, o considerado mais legítimo.

Ao discorrer sobre necessidades básicas e supérfluas, Lívia Barbosa e Colin Campbell (2013, 39) mencionam que tal distinção pode “definir critérios de direitos, postura moral, participação e constituição nas diferentes sociedades, além de permitir que se observem os mecanismos de poder que lhes são subjacentes”. Para esses autores, por trás da oposição entre necessidades básicas e supérfluas está a possibilidade de grupos sociais e políticos controlarem o consumo alheio, definindo o que é possível e o que é recomendado consumir. Tal controle é exercido, em especial, sobre classes menos favorecidas, contexto em que é tido como digno o consumo destinado a suprir carências culturalmente definidas como básicas. Assim, é considerado inadequado ou mesmo irresponsável o consumo orientado para a reprodução de certos estilos de vida, que extrapolariam as ditas necessidades básicas (Barbosa e Campbell 2013). É nesse quadro que podemos entender que a classificação de determinados segmentos sociais como “pobres” estabelece, de antemão e por outros, a maneira como seu dinheiro deve ser gasto.

Antes de seguir no debate relacionado a moralidades vigentes em nossa sociedade associadas ao consumo e às políticas públicas, convidamos a conhecer Bianca, Joana, Valquíria, Alessandra e Mercedes, mulheres cujas histórias aportam à análise que aqui se desenrola.

Histórias de mulheres

· Bianca e a conta de TV

Bianca não é de muitas explicações. É uma jovem de 15 anos que mora com a mãe e os irmãos menores e que se dirige ao grupo Boleto+1 a fim de pedir ajuda para pagar uma conta de TV a cabo no valor de R$ 164. Em sua postagem, em que exibe uma foto da TV em que aparece a imagem de um filme de animação infantil, ela diz:

Será que alguém pode pagar essa conta pra minha mãe, porque ela não tem dinheiro pra pagar pra mim e meus quatro irmãos não ficarmos sem TV pra olhar nessa quarentena. Já está muito difícil sem comida, minha mãe está fazendo de tudo pra conseguir comida, aí não tem como pagar.

Ao ler os comentários à postagem de Bianca, um chama atenção, escrito por uma das administradoras do grupo:

Amigas, já removi alguns comentários aqui. LEMBRANDO: se você não considera importante o pedido de outra, passe adiante, não venha dizer como a pessoa deve agir e criticar uma necessidade que você não conhece bem.

Além dos comentários que haviam já sido apagados pela administradora, ao menos outras cinco dezenas deles: aconselhavam Bianca a renegociar o valor com a empresa de TV a cabo ou a contratar internet e adquirir um “box TV” (aparelho utilizado para acessar os canais sem pagar pelo serviço); diziam que a empresa de TV a cabo não poderia cancelar o sinal devido à pandemia; reforçavam o pedido de ajuda da menina; relembravam que, pelas regras do grupo, é vedado julgar pedidos.

Bianca conseguiu a ajuda solicitada para pagar o boleto da TV a cabo. Após essa primeira postagem, sempre contextualizando a situação da família, Bianca pediria mais uma vez ajuda para o pagamento da TV a cabo e, em outras ocasiões, para o pagamento do aluguel, para compra de comida e de gás. Em todas essas circunstâncias, seus pedidos foram atendidos.

· Joana e seus meninos: “eu não vivo de Bolsa Família”

Ainda pequena, Joana veio com a família do noroeste do Rio Grande do Sul para o assentamento, no sul do estado. Antes disso, seu pai havia estado acampado por nove meses. Aos 28 anos, ela, os dois filhos – de dez e de seis anos – e o esposo residem em um lote no mesmo assentamento em que vivem seus pais. Joana mora ali há menos de dois anos e conta que ainda está estruturando o lote, dedicado à produção para o consumo da família (batata doce, mandioca, galinhas, gansos, perus, porcos, vacas leiteiras) e à produção de fumo, essa destinada à comercialização.

Aos nove anos, Joana deixara a casa de seus pais para trabalhar como babá de duas meninas, na casa de uma família que inicialmente residia no meio rural e depois se mudou para a sede do município. Mais tarde retomou os estudos e, em troca do trabalho, recebia hospedagem, alimentação e algum item de vestuário, permanecendo com essa família por aproximadamente três anos. Depois disso, voltou a viver com os pais, no assentamento, trabalhando como diarista na colheita de fumo. O dinheiro que recebia utilizava para comprar roupas e calçados para si. Ela se casou aos 16 anos, indo morar com a família do esposo – só mais tarde conseguiriam seu próprio lote –, tendo seu primeiro filho aos 17 anos. O dinheiro que então recebia trabalhando na colheita de fumo, em propriedades de vizinhos, era destinado a despesas da família.

Joana considera que a família se encontra em uma fase difícil, com falta de dinheiro, contando apenas com o proveniente do Bolsa Família. No decorrer da conversa realizada em sua casa, ao ser indagada sobre a atualização do cadastro do CadÚnico, ela afirma ter sido inquirida sobre o uso do dinheiro recebido do Programa. Comenta, então, que com

o dinheiro do Bolsa, eu tenho crediário na Pompéia [loja de vestuário e calçados]. Os guris crescem muito, compro roupa, calçado, um Nescau [achocolatado], que eles gostam muito, um pudim, uma gelatina.

Joana declara que tudo o que ela e sua mãe compram com o dinheiro do Bolsa é direcionado às crianças. Ela refuta o comentário da irmã, que mora e trabalha em Porto Alegre e insinua que Joana não teria interesse em buscar outras fontes de renda, considerando-a acomodada por receber o Bolsa Família. Joana questiona: “quem vai viver com R$ 152? [valor que recebe do PBF]”, argumentando “eu não vivo de Bolsa Família, eu trabalho de peão!”. Ela destaca, ainda, que produz alimentos para a família, o que representa uma economia importante, na medida em que evita que compre esses produtos no mercado.

· Valquíria: o fogão caro demais

Valquíria é moradora de Niterói, Rio de Janeiro, que, em postagem no grupo Boleto+1 realizada em agosto de 2020, se apresenta como “mãe-solo de uma menina de 1 ano, diarista, órfã de infância, mulher feliz, cheia de paz e esperança”.

O perfil de Valquíria contempla algumas das características comumente encontradas entre as mulheres que apresentam pedidos no Boleto+1, em sua maior parte mulheres autônomas que se viram impedidas de trabalhar devido à pandemia ou que, nesse contexto, estão desempregadas; muitas vezes negras; recorrentemente mães-solo, que criam sozinhas as crianças, que, com o fechamento de creches e escolas, passaram a estar todo o tempo em casa.

Valquíria explica que se dirige ao grupo para pedir ajuda a fim de iniciar um pequeno negócio, pois, pretendendo vender porções de comida – como frango à passarinho e “batata turbinada” –, precisa adquirir um fogão mais potente e que esteja em melhores condições do que o seu, enferrujado e com apenas duas bocas funcionando. Ela conta, ainda, que até já possui máquina de cartão, o que será útil para o novo negócio.

Em sua postagem, Valquíria menciona detalhes de sua vida pessoal e financeira, relatando estar pagando o financiamento de sua casa, realizado pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Ela conta que encontrou na internet um fogão usado ideal e que busca o dinheiro para realizar sua compra, no valor de R$ 500. Valquíria publica algumas fotos do fogão que quer comprar e de seu fogão atual, bastante deteriorado, bem como uma foto de sua filha, uma menina pequena trajando vestido de princesa, com a legenda: “peço ajuda de vocês pra me ajudar a conquistar mais que um fogão e sim autonomia e independência financeira”.

Os comentários em reação à postagem divergem. Há as que opinam ser elevado o preço do fogão desejado, dizendo que Valquíria poderia encontrar um usado de até R$ 200. Há as que consideram que, para fazer porções, o que ela necessitaria é de uma fritadeira, enquanto que para outras o fogão é bom e acertada a escolha. Valquíria responde aos comentários, justificando a escolha a partir de experiência de trabalho anterior em restaurante, comentando a potência e a boa marca do fogão desejado, ponderando haver variação de preços em diferentes regiões e, ainda, apresentando resultados de pesquisa realizada para fundamentar a escolha, para seu empreendimento, por esse tipo de fogão. Por fim, exasperada, ela pede: “se eu conseguir algum valor né? Por que todos falam do valor e isso não tá me ajudando em nada [...] Que pessoas boas entendam minhas necessidades nesse momento e me deem as mãos”. Pelo que se pode notar do que ali consta, ela parece não ter recebido qualquer ajuda do grupo.

· Alessandra: encontre um kitnet!

Alessandra, mulher negra do interior de São Paulo, inicia seu pedido no grupo Boleto+1 desculpando-se por estar pedindo, dizendo não poder acreditar ter chegado a essa situação. Muitas das mulheres que pedem ajuda no grupo começam pedindo desculpas. Alessandra conta que mora com as duas filhas e a esposa, recebendo do pai biológico das filhas pensão no valor de R$ 230. Em postagem realizada em abril de 2020, diz que não tem conseguido trabalhar, mas que está à disposição para indicações de trabalhos, acrescentando que sua esposa, por fazer parte do grupo de risco – sofre de arritmia cardíaca e bronquite –, está impedida de trabalhar durante a pandemia. Ela conta, ainda, que não tem como acessar o seguro-desemprego, porque, segundo ela, para voltar a ter direito ao benefício seria necessário cumprir um intervalo de 16 meses desde a última vez que o recebeu. Mesmo sendo chefe de família, Alessandra obteve o Auxílio Emergencial de apenas R$ 600.

Ameaçada de despejo por não ter como pagar o aluguel de R$ 900, Alessandra está em busca de uma moradia mais barata, mas, enquanto isso não acontece, precisa pagar o aluguel do mês. Ela já tem R$ 500 e está em busca dos R$ 400 que faltam.

É nesse contexto que procura ajuda no grupo Boleto+1, explicando a situação e colocando imagens da conversa de WhatsApp com a proprietária do imóvel, que se recusa a reduzir o valor do aluguel. Alessandra afirma ter muita vergonha por pedir ajuda, contando que sempre trabalhou como cozinheira e conseguiu pagar o aluguel, comentando, ainda, que, vendo-se nesta situação, chegou mesmo a tentar suicídio.

No grupo, o primeiro comentário dirigido a Alessandra, em resposta a seu pedido, recomenda que ela não se desespere:

Não pense em se matar, vai dar tudo certo, se você se matar a situação piora. Conecte sua TV no canal 21 e ouça palavras de fé e conforto. Tudo isso vai passar, confia em Deus.

No comentário seguinte, uma mulher diz que pode ajudar com tudo o que dispõe: “Velho, sem mentir, que tenho R$ 8,84 na minha conta, você aceita?”

Em comentários que se seguem, participantes do grupo avaliam a postura da proprietária do apartamento, dizendo que, por um lado, também deve estar difícil para ela, “não tá fácil pra ninguém”, e, por outro, que ela não tem coração por não baixar o valor, “nossa, uma completa ridícula”.

Não tardam comentários, de diversas mulheres, dizendo a Alessandra que o valor que paga pelo aluguel está caro e aconselhando-a a sair de lá, a trocar por algo que se enquadre no valor do Auxílio Emergencial. Algumas mulheres dizem a Alessandra que deve procurar um local mais barato, enquanto outras comentam que sua situação ainda está melhor do que a delas. Alessandra argumenta que está, sim, tentando achar um local mais barato para morar: “Eu já procurei, o problema é os depósitos, os donos estão exigindo muito”, “Eu estou à procura sim, se eu achasse a casa a R$ 600 seria perfeito sim. Aí eu daria jeito pra pagar carreto [transporte] e nos alimentar por que eu não tenho vergonha de pedir ajuda e de trabalhar. Eu estou a procura”.

Diante da insistência de comentários no sentido de que ela deveria se mudar para um lugar mais barato, Alessandra parece ficar incomodada, explicando que sempre conseguiu pagar seu aluguel e suas contas, que trabalha desde os 12 anos de idade, mas explicitando motivos pessoais que interferem na possibilidade de mudança para um lugar menor:

Mas vamos lá, vou sair daqui e eu vou pra onde com a minha família? Minhas filhas, minha esposa com problemas de saúde? Você acha que eu queria estar aqui passando por isso, me expondo dessa forma, nunca, pra mim isso é humilhante, mas como você disse, “cada um com seus problemas”. Que Deus abençoe a sua vida.

A um comentário sugerindo a Alessandra que alugasse um kitnet, ela responde que “não daria kitnet, tenho 2 filhas, somos em 4, e aqui não têm isso [referindo-se à inexistência de kitnets na localidade onde mora], até queria, sério mesmo”. Rebatendo, a mulher diz: “amiga, nessa crise dá pra morar até em dois cômodos rs [risos]”.

Ao final, algumas mulheres chamam atenção para o fato de, apesar de tantos comentários, Alessandra ainda não ter recebido a ajuda que precisa, ao que ela desabafa:

Sei que são muitos pedidos de ajuda, sei que muitos podem falar ou achar que não tem necessidade meu post, mas só eu sei o que eu tô passando, noites nem dormi, sabendo que qualquer momento não terei teto pra morar, não sei o que fazer.

Em conversa com Alessandra realizada pelo Messenger (bate-papo privado do Facebook), logo após escutar a explicação a respeito do desenvolvimento da pesquisa sobre o grupo, ela pediu ajuda, relatando ter sido bloqueada no grupo, de modo que não tem mais acesso a ele para pedir ajuda, ainda que siga precisando muito. Ela relatou que não pode permanecer na antiga casa, que está em um local menor e que segue passando por dificuldades, tendo que mandar as filhas para a casa do pai – “que elas odeiam” – e colocar à venda, em sua página do Facebook, alguns eletrodomésticos que possui. Alessandra revelou que, no início, conseguiu ajuda no grupo, inclusive a partir da postagem antes comentada. A ajuda veio de pessoas que não teceram comentários. No entanto, logo foi bloqueada, deixando de ter acesso ao grupo, ao que parece como punição por ter realizado pedido inbox.

· Mercedes, que andarilhou e pousou

Mercedes, 48 anos, é natural da região noroeste do Rio Grande do Sul, tendo vivido a infância no meio rural, com mais cinco irmãos. Aos doze anos, foi para a cidade, trabalhar como empregada doméstica. Por oito anos trabalhou na residência da primeira família que a empregou, cuidando de quatro crianças e realizando as tarefas da casa. O dinheiro que recebia pelo trabalho era gasto na compra de roupas. Mercedes conta que, quando pequena, “nem gostava de ir para a escola, porque não tinha roupa” e que, quando se mudou para a cidade, “não tinha um casaco para levar e era frio, meu irmão me emprestou o dele, único que ele tinha”.

Casou-se aos 19 anos, permanecendo casada durante nove meses. Separou-se grávida, o marido era alcóolatra. Voltou a trabalhar como empregada doméstica, mas o valor que recebia não era suficiente para as despesas, daí retornou para a casa dos pais. Da casa dos pais, mudou-se para uma fazenda, para trabalhar como cozinheira. Lá viveu até o filho completar um ano e seis meses, quando retornou para a cidade, onde alugou uma casa e colocou o filho na creche. Mais uma vez, trabalhou como doméstica.

Passado um tempo, reencontrou um antigo namorado de adolescência, Lauro. Os dois logo se casaram e foram morar com o irmão de Mercedes, em um assentamento no município de Jóia. O irmão convenceu-os a acampar, para que conseguissem sua própria terra. Acamparam em Santo Antônio das Missões, juntamente com outras cinco mil famílias. Em dezembro de 1989, após cerca de um ano e oito meses acampados – quando o filho Vitor tinha cinco anos, Márcio 1 ano e ela estava grávida de Violeta –, Mercedes e família chegaram ao assentamento em que hoje vivem, no sul do Rio Grande do Sul.

Mercedes conta que ficaram mais de um ano morando no barraco de lona e trabalhando no lote, até que construíram a casa. “Para ir na venda, o Lauro ia a pé”, ela lembra, contando que a distância percorrida era de 12 quilômetros. Desde a chegada ao assentamento, Mercedes foi bem ativa no Movimento [dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], sendo que logo assumiu a função de coordenadora. Recordando que sua caçula, Vitória, nasceu nesse período, ela relata que por “seis anos praticamente me dediquei ao Movimento, fui para Brasília, por tudo”. Atualmente Mercedes está voltada ao artesanato – crochê e pintura – e quase não sai de casa, afirmando sentir falta do período de andanças pelo Movimento.

Mercedes destaca a importância do PBF para sua família e vizinhos: “a nossa dificuldade era muito grande antes do Bolsa Família, tiraram muita gente da pobreza”. Ela lembra que, quando passou a ser bolsista, destinava o dinheiro recebido para alimentação:

Na época que saiu, eu fazia o rancho e paramos de passar dificuldades. Eu criei meus filhos com o Bolsa Família, eu comprava o grosso. Porco, galinha, eu sempre tive. Feijão, eu tinha. Eu comprava um fardo de farinha, um fardo de arroz, um fardo de açúcar. Aí eu passava bem o mês todo.

Ao longo dos anos, o dinheiro do BF continuou sendo prioritariamente destinado à alimentação: “meu Bolsa Família sempre está na Ivone [proprietária de comércio próximo ao assentamento], eu pego boia [alimentos], mês passado sobrou R$ 100 e eu peguei para pagar gasolina”. Contando que no “ano passado dei para Márcio e Cristina comprar calçado, às vezes compro linha [para artesanato]”. Mercedes relata que também destina parte do dinheiro recebido aos filhos e a atividades produtivas que realiza, como o artesanato e as criações: “mês passado eu comprei milho para as galinhas”. Ela é enfática: “o Bolsa Família, quando as crianças eram pequenas, mudou minha vida!”.

Assim como as mulheres que postam pedidos no grupo Boleto+1 acabam – buscando evidenciar necessidades de suas famílias e, com isso, sensibilizar potenciais doadoras – por expor fragmentos de suas vidas, a exemplo do mostrado nas fotos de geladeiras vazias, as bolsistas do PBF devem, recorrentemente, convencer as gestoras do Programa da necessidade do dinheiro recebido. Além de apresentar a documentação exigida pelo Programa no cadastro e em sua atualização, elas estão sujeitas a receber visita in loco das gestoras, caso essas suspeitem das informações fornecidas na sala do CadÚnico.

Ao lembrar a ocasião em que realizou a atualização de seu cadastro, Mercedes explicita o constrangimento sentido: “outra coisa que eu não gosto daquelas gurias, é que tu responde e elas ficam se olhando... vontade de perguntar se está fedendo”. Quando instigada a falar mais a respeito, a bolsista desabafa: “parece que tu é um preguiçoso, um vagabundo, que não é um direito teu!”. E complementa: “lá na Primeira-Dama [Secretaria de Assistência Social], me sinto assim, me dá vontade de chorar, me sinto mal, parece que tu tá pedindo”. Mercedes associa o estigma a sua condição de agricultora assentada: “Chega lá, ‘ah, é do assentamento?’, já se olham, ‘veio pedir, né?’”.

Pobreza, vulnerabilidade e mulheres

Ao analisar, em item anterior, imagens exibidas em material de divulgação do PBF e em postagens de pedidos de doações no Boleto+1, pode-se perceber, sob inspiração de Barbosa e Campbell (2013), o controle moral exercido sobre o modo como segmentos classificados como pobres gastam o dinheiro. Ainda, nas palavras dos autores citados:

Essa dimensão de controle moral e/ou, mediante políticas públicas, do consumo dos menos favorecidos levou, até há bem pouco tempo, tanto a academia quanto o mundo dos negócios a ignorarem as classes populares como consumidoras. Não só suas preferências por bens e serviços foram ignoradas, como suas estratégias de aquisição, fruição, ressignificação e mediação social através de objetos continuam em grande parte desconhecidas por aqueles que se dedicam ao estudo desses segmentos (Barbosa; Campbell 2013, 39).

Essa mesma perspectiva é aqui trazida para iluminar as histórias antes narradas, quando observadas: a ação das administradoras buscando coibir questionamentos ao pedido de doação para pagamento do boleto da TV por assinatura realizado por Bianca – que o justifica diante da prioridade dada pela mãe à destinação de recursos à alimentação dos filhos –; a ênfase com que Joana e Mercedes afirmam a destinação aos filhos dos recursos recebidos do Bolsa Família; as censuras – não estariam querendo demais? – com que se deparam Valquíria e Alessandra ao, respectivamente, buscar ajuda para alcançar ou manter condições que consideram aceitáveis de trabalho ou de moradia. Como tantas outras mulheres – bolsistas ou não do PBF, membros ou não do Boleto+1 –, aquelas cujas histórias foram aqui trazidas se defrontam com mecanismos de controle moral que as colocam sob escrutínio, da sociedade e/ou do Estado. Nesse quadro, é emblemática a pergunta que, sem jamais ter sido dita, Mercedes “escuta” ao sentir o olhar com que é recebida na sala do CadÚnico: “veio pedir, né?”.

Ao analisar técnicas de governo na América Latina, Bruno Lautier (2014) explicita haver, por parte do Estado, uma distinção entre o “bom pobre” e o “mau pobre”. O “bom pobre” seria aquele que aceita a indagação sobre sua renda real, sobre o modo de vida e, ao mesmo tempo, admite facilmente que deve ser reeducado e que lhe cabe ser humilde. Já o “mau pobre” seria dissimulado e possuidor de vícios, além de considerar a ajuda assistencial como obrigação em relação à qual não deve contrapartidas.

Vale ainda mencionar que, em sua análise sobre políticas públicas, o autor identifica, na primeira década do século XXI, uma mudança relevante, em que a “luta contra a pobreza” teria sido substituída pela “luta contra a vulnerabilidade”. Para Lautier (2014, 468), ambos os termos, pobreza e vulnerabilidade, são herdeiros da moral cristã, em que,

por um lado, o pobre ao qual se destina a compaixão do rico é o meio de sua salvação por meio da doação de esmolas. Por outro lado, a asserção “ajude a si mesmo e o céu o ajudará” – versão antiga da palavra de ordem da luta contra a vulnerabilidade – é uma constante do discurso religioso, mas também leigo, desde o final da Idade Média.

No que concerne especificamente ao campo de estudos sobre mulher e pobreza – que tem por marco o Ano Internacional da Mulher, instituído em 1975, pela Organização das Nações Unidas, a ONU –, Luciana Cruz (2013, 81) aponta que, nesse período, há uma “feminização da pobreza”, ancorada no entendimento de que “um lar sem a presença masculina seria um lar incompleto e suscetível à pobreza”. Essa visão mais tarde seria complexificada com a consideração de outras variáveis e a concepção de que a pobreza de uma família independe do sexo de quem a chefia.

Já o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, de 1997, apresenta o empoderamento das mulheres entre as prioridades para a erradicação da pobreza. Como argumenta Marins (2017, 110, grifos da autora), a inclusão da mulher – como se dá no caso da titularidade no PBF – está atrelada a uma estratégia de definir a qual pobre dirigir os recursos, em um cenário em que as organizações internacionais indicam as mulheres como as mais capacitadas no combate à pobreza. As mulheres “[...] se tornam, assim, sob diferentes justificativas, o alvo e o ator principal das políticas de transferência de renda [...] os programas de transferência de renda claramente se apoiam no capital de gênero para o cumprimento de seus objetivos”. Tal perspectiva ganha força imagética mesmo em campanha do PBF, a exemplo do cartaz reproduzido na Figura 8.


Figura 8
Ênfase às mulheres como chefes de família e titulares do Programa
Facebook - Bolsa Família, 2020.

Mas, segundo a mesma autora, ainda que alguns estudos apontem o PBF como um Programa promotor da autonomia entre as mulheres, também sinalizam que essa prioridade de titularidade do cartão pode ser interpretada em sentido contrário. Nessa medida, “reforça a imagem da mulher como cuidadora do lar e confirma a posição masculina como não responsável pelo cuidado das crianças” (Marins 2017, 121).

Na mesma perspectiva, ao refletir sobre a prioridade da mulher na titularidade do cartão do PBF, Cruz (2013) aponta que daí decorre o direcionamento também a ela das recomendações e normatizações. Dessa forma, a mulher torna-se a principal responsável pelo Programa, enquanto o homem fica isento de responsabilidades. Segundo a concepção da autora, a eleição da mulher como titular e responsável pelo cartão do PBF fortaleceria a ideia de que cabe à mulher o cuidado da casa, das tarefas domésticas e da família, o que pode reforçar a desigualdade existente na divisão do trabalho. Mas, por outro lado, pode também iniciar um processo de desestabilização das hierarquias internalizadas nas famílias.

Trazendo o foco para o contexto de pandemia, vale buscar luz na discussão proposta por Denise Pimenta (2020), apontando que, em tal circunstância, tornam-se ainda mais evidentes as estruturas sociais e que, além do fato de toda pandemia ser racializada – não apenas porque morrem mais pretos do que brancos, mas também porque as mulheres que cuidam são mais pardas e pretas do que brancas –, a pandemia tem rosto de mulher. Isso se deve não só ao fato de as mulheres serem a maioria das cuidadoras na área da saúde, mas porque também o são no âmbito doméstico, ficando responsáveis pela gestão da alimentação, da água e também dos auxílios do Estado e das doações de mantimentos e materiais de limpeza, entre outros. Desse modo, é flagrante a sobrecarga física e psicológica a que estão submetidas.

Retomando as histórias de mulheres anteriormente vislumbradas, se entendemos, com Pimenta (2020), que toda pandemia tem as marcas de classe, gênero e raça, temos desenhado o perfil majoritariamente presente entre as mulheres que buscam ajuda no grupo Boleto+1. E se pensamos no papel reservado às mulheres na operacionalização de programas de distribuição de renda, quase podemos imaginar fotos de Mercedes e Joana em cartazes do Bolsa Família.

Achados de percursos de pesquisa

O que as histórias aqui trazidas, de habitantes de lugares tão distintos como assentamentos de reforma agrária e centros urbanos, inseridas em diferentes contextos sociais, culturais e econômicos, têm em comum?

Antes de mais nada, o fato de serem histórias de mulheres em situação de vulnerabilidade, como tantas outras. Certamente não é coincidência que várias sejam as pesquisadoras que, nos últimos anos, têm encontrado histórias semelhantes. A exemplo de Talita Eger (2013), que se dedica a refletir sobre as moralidades subjacentes ao uso do dinheiro recebido por participantes do PBF, em estudo realizado no município de Alvorada, Rio Grande do Sul.

Eger (2013) mostra que o pano de fundo do debate diz respeito à capacidade de esses sujeitos administrarem adequadamente tais recursos, com a ênfase da crítica sendo colocada em práticas de consumo de bens considerados supérfluos e em supostos desvios e mau uso do dinheiro – indicando que haveria usos considerados adequados para tais recursos. Ao destacar ser esse dinheiro destinado a um grupo social cujo comportamento é estigmatizado e monitorado, Eger (2013, 18) aponta ser um dinheiro “carregado por marcas de classe, gênero e geração” – e, acrescentaríamos, também por marcas de raça – “e atravessado por sentidos, moralidades, classificações e expectativas socialmente constituídas e permanentemente tensionadas”.

Observando o cotidiano de famílias participantes do Programa Bolsa Família em dois grandes centros urbanos, Porto Alegre e Rio de Janeiro, Michele de Lavra Pinto (2013, 2016) mostra haver um juízo tácito determinando que as bolsistas devam utilizar o dinheiro recebido do Programa para adquirir alimentos e sob orientação de determinados parâmetros nutricionais considerados adequados pela área da saúde – análise corroborada pelo estudo de Mattar (2019), realizado em favela carioca. A partir das evidências encontradas em campo, Pinto (2013, 166) afirma ser perceptível a conformação de uma hierarquia de necessidades moralmente aceita referente ao consumo de populações de baixa renda, analisando que “o discurso moral que há sobre o consumo atinge particularmente as populações pobres, pois recai sobre elas um etnocentrismo social que subtrai a capacidade, autonomia e liberdade sobre suas escolhas”.

As histórias das mulheres escutadas por essas autoras, assim como as que trouxemos aqui a partir dos dois universos de pesquisa observados, são histórias que se cruzam por serem consideradas, a partir de parâmetros estabelecidos pelo Estado a partir da política pública ou a partir da sociedade civil, de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Algumas são “beneficiárias” do Programa Bolsa Família, outras membros, como demandantes de doações, do grupo de Facebook Boleto+1. Suas histórias também se cruzam por serem colocadas sob escrutínio do olhar de controle e vigilância voltado a suas estratégias de consumo, pelo moralismo a que são submetidas.

Referências

Barbosa, Lívia, e Collin Campbell. 2013. “O estudo do consumo nas Ciências Sociais contemporâneas”. In Cultura, consumo e identidade, orgs. Lívia Barbosa, e Collin Campbell, 21–44. Rio de Janeiro: FGV.

Campello, Tereza, e Marcelo Côrtes Neri, orgs. 2013. Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília: IPEA.

Cruz, Luciana Ramirez da. 2013. As portas do Programa Bolsa Família: vozes das mulheres beneficiárias do município de Santo Antônio do Pinhal/SP. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

Eger, Talita Jabs. 2013. Dinheiro e moralidade no Bolsa Família: uma perspectiva etnográfica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Lautier, Bruno. 2014. “O governo moral dos pobres e a despolitização das políticas públicas na América Latina”. Caderno CRH 27(72): 463–77.

Machado, Carmen Janaina. 2019. O Bolsa Família a partir das margens do estado: um estudo sobre consumo, política pública e desenvolvimento rural. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Marins, Mani Tebet A. 2017. Bolsa Família: questões de gênero e moralidades. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

Mattar, Viviane. 2019. Moralidades em torno do Bolsa Família, gênero e alimentação: um estudo de caso a partir de uma favela no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2015. Manual de gestão do Programa Bolsa Família. Brasília: MDS.

Pimenta, Denise. 2020. “Pandemia é coisa de mulher: breve ensaio sobre o enfrentamento de uma doença a partir das vozes e silenciamentos femininos dentro das casas, hospitais e na produção acadêmica”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia 8(1): 8–19.

Pinto, Michele de Lavra. 2013. “O público e o privado: o ‘baralhamento’ no cotidiano das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família”. Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho 38: 157–70.

Pinto, Michele de Lavra. 2016. Políticas públicas de transferência de renda: um estudo sobre o Programa Bolsa Família na favela do Pavão-Pavãozinho. Tese de doutorado, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

Notas

[1] Somos gratas às agricultoras assentadas e às membros do Boleto+1 que tivemos por interlocutoras – vale aqui menção a Dani Sousa – e gostaríamos, também, de registrar nosso agradecimento a Livia Pasqual e Priscila Guerra, mulheres que estiveram ou estão à frente do Boleto+1, com quem tivemos oportunidade de interagir no processo de pesquisa. Esclarecemos que, em acordo com as interlocutoras, à exceção dos mencionados nesta nota, os nomes trazidos ao artigo são fictícios – tendo sido atribuídos pelas pesquisadoras a partir das trajetórias das interlocutoras ou por associação a seus nomes verdadeiros – e, ainda, que o termo “administradora” será empregado de modo genérico em referência a criadora e/ou moderadora e/ou administradora do Boleto+1.
[2] Caracterizada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde, em março de 2020, a COVID-19 é doença causada pelo SARS-CoV-2, novo tipo de coronavírus identificado.
[3] Após pausa de um mês, em uma “live de reabertura” realizada, em 2 de fevereiro de 2021, na nova página do Boleto+1 no Facebook (https://www.facebook.com/boletomaisum), as administradoras apresentaram o “novo Boleto”, explicando o formato atualizado como projeto de financiamento coletivo, com regras e funcionamento distintos do que fora vigente até então e a perspectiva de criação de uma associação. Em vídeo postado no Youtube (disponível em: https://youtu.be/ivcgg6Mtm0M), as administradoras apresentam brevemente as mudanças. A veiculação de pedidos de ajuda e captação de doações, na modalidade como até então fora feita, deixava, assim, de ser propósito do grupo. Essa mudança delimita temporalmente a análise referente à experiência do Boleto+1 neste trabalho, restrita, desse modo, ao primeiro período de sua existência.
[4] Na concepção do Programa (MDS 2015), “família” corresponde à unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, formando um grupo doméstico que vive sob o mesmo teto e é mantido pela contribuição de seus membros (Lei n° 10.836, de 2004).


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