Antropologias da vida
Recepción: 07 Noviembre 2024
Aprobación: 11 Noviembre 2024
Mudanças climáticas, mudanças antropológicas
A forma como as ciências modernas chamadas “da natureza” operam possui uma contradição estrutural importante. Quem pesquisa algo no mundo busca isolar a coisa estudada, para entender como ela se comporta ou como funciona, assumindo que o resto do mundo permanece constante. Ao mesmo tempo, o capitalismo moderno, irmão gêmeo da ciência, faz com que nada fique estável por muito tempo, como famosamente afirmou Marx, parafraseando Shakespeare: “tudo que é solido se desmancha no ar”. Marx se referia, principalmente, à ordem social e econômica. Até recentemente, ambas as coisas eram entendidas como elementos distintos da realidade: as ciências da natureza versam sobre o mundo material, enquanto Marx falava sobre construções sociais. Ocorre que, na atual fase do capitalismo industrial, o que se desmancha é muito mais do que os arranjos sociais e econômicos. É a própria solidez física das coisas; muitas vezes, não apenas no ar, mas pelo ar.
Em 2018, o jornal inglês TheGuardian publicou um artigo intitulado “Para onde você deve se mudar para se salvar das mudanças climáticas?”. O texto integrava discussão mais ampla a respeito dos chamados “portos-seguros climáticos”. Uma cidade que despontava como particularmente bem posicionada na lista de tais portos-seguros é Asheville, localizada no oeste do estado americano da Carolina do Norte. Em 26 de setembro de 2024, o furacão Helene adentrou os Estados Unidos pelo norte da Florida como categoria 4; no dia seguinte, destruiu Asheville.
O escritor Peter Conroy, morador da cidade, escreveu o texto “Carta de Asheville”, que circulou amplamente pelas redes sociais. Na abertura do texto, o autor escreve: “A primeira regra dos desastres climáticos é que eles sempre acontecem em outro lugar. Até que isso não seja mais verdade. A regra número dois é que você não está preparado. Não há outras regras”.
Os dois elementos centrais da mensagem de Conroy – como pensamos (no caso, sobre onde ocorrerão os desastres) e como nos comportamos e nos organizamos (ou não, aqui, para desastres) – tocam em temas centrais do trabalho da antropologia. Pensamento e comportamentos são coisas individuais, mas também coletivas. Pensamos e nos comportamos de acordo com padrões culturais, políticos e econômicos, nos dizem quase dois séculos de pesquisas antropológicas e das demais áreas das ciências sociais. E pensamos a respeito de como pensamos, também.
É com isso tudo como pano de fundo que as transformações em curso nos padrões do clima nos fazem perceber que não é apenas a atmosfera que está em transformação. As formas como pensamos a respeito dela e sobre nossa relação com ela também estão. Vivemos um momento de mudanças climáticas e de mudanças antropológicas. O momento atual é caracterizado por grandes incertezas: sobre o que está ocorrendo com o mundo, e, igualmente, sobre nossa capacidade de entender tais transformações e nos ajustarmos a elas.
É preciso dizer, em primeiro lugar, que a antropologia tem papel importante na forma como se têm construído estratégias para lidarmos com os impactos das mudanças climáticas. As transformações ambientais afetam todas as dimensões da vida, porque todas e todos estamos imersos no ambiente. Mesmo que muita gente ainda mantenha a ideia de que a “natureza” começa onde a cidade acaba, ou que está na Amazônia, na Mata Atlântica ou no Cerrado, o fato é que, no que diz respeito à atmosfera, estamos não só imersos nela, mas produzindo-a, através de nossa respiração. Da mesma forma, todas as nossas atividades se desenrolam e foram criadas com alguma pressuposição a respeito da natureza: certa quantidade de chuva ou de sol ou certo nível do rio em determinado momento do ano, por exemplo. Quando as coisas transcorrem de modo “normal”, não colocamos atenção em nada disso. Mas quando esses estados pressupostos não se materializam, nossas atividades se desorganizam, e os elementos da natureza passam a ser visíveis. A seca extrema que assolou a cidade de São Paulo em 2014 foi um exemplo disso. Para grande parte das pessoas ali residentes, uma seca daquela proporção não era parte da lista dos futuros possíveis para a capital paulista.
A antropologia é importante nesse contexto justamente porque coloca atenção nas práticas e hábitos culturais e suas ideias associadas, com as quais as pessoas pensam e desenvolvem suas atividades cotidianas. A abordagem antropológica é importante no esforço de compreender e trabalhar com praticamente tudo o que diz respeito à nossa relação com a natureza e suas transformações, porque essas coisas são parte da cultura, das relações sociais, da política, da economia, das religiões e das demais esferas da vida. A maneira como uma comunidade entende o risco de desastres a que está submetida vincula-se a outras ideias existentes em seu meio cultural e político. A forma como o conceito de mudanças climáticas é recebido e interpretado pelas pessoas, e se reverte ou não em coisas como o comportamento eleitoral que definirá quem terá controle de órgãos e agências de estado, é também fortemente influenciada por ideias e hábitos culturais. É por isso que, nos debates sobre os impactos das mudanças climáticas e as formas de adaptação necessárias para a continuidade da vida coletiva, cientistas sociais e lideranças de comunidades locais e populações tradicionais são chamados a participar de maneira crescente.
Dito isso, ocorre que em momentos de crise tão intensas como a em que nos encontramos, uma das reações comuns é que alguns grupos sociais realizem avaliações profundas a respeito de sua história e de seu papel no mundo. Como não poderia deixar de ser, a antropologia e as ciências sociais atravessam um desses momentos de avaliação profunda. Estas ciências sempre existiram em relação complexa com a modernidade ocidental. Foram criadas para dar apoio ao projeto moderno, que, em grande parte do mundo, materializou-se na forma de dominação e exploração colonial. Mas também se constituíram como certa consciência crítica no interior da modernidade. Essa consciência crítica, no entanto, se fundamentou em ideias modernas em si mesmas. O problema foi imaginado como residindo na incapacidade das sociedades modernas em viver de acordo com seus próprios ideais. Ainda no século XVI, o filósofo francês Montaigne, por exemplo, teceu comentários sobre os hábitos e costumes dos povos indígenas das Américas, em um ensaio famoso, apenas para criticar a sociedade francesa em relação à forma como ela propagava a violência e produzia grandes contingente de indivíduos miseráveis. Não havia real interesse em compreender os fundamentos dos modos de vida dos povos indígenas.
Já despontava no horizonte do pensamento ocidental a sensação de autossuficiência nos modos de pensar e a ideia de que a ordem social moderna deveria ser, como a ciência, autocorretiva. Engenheiros e físicos (à época de Montaigne ainda inexistentes, tal qual os entendemos) consertariam as estruturas materiais da realidade; filósofos, sociólogos e antropólogos consertariam as ideias e os comportamentos. O mundo material, as classes populares, as populações residentes nas colônias, bem como as mulheres, as crianças, os loucos e os marginais, eram pensados como objetos de tais manipulações corretivas. O colonialismo espalhou essa agenda dos homens brancos, entregando-a aos homens quase-brancos das colônias. O Brasil chega ao segundo milênio de nossa era com grande parte de suas elites políticas, econômicas e intelectuais pensando da mesma forma.
É no limiar do segundo milênio, também, que dois cientistas, Eugene Stoermer e Paul Crutzen, propõem que vivemos em outro mundo agora, uma nova época geológica que denominaram Antropoceno. Sua inspiração foi a constatação de que não há mais nada no planeta que não esteja contaminado, de alguma forma, pela atividade industrial e seus efeitos negativos. Os exemplos contemporâneos mais notáveis são a presença de microplásticos em tudo o que é vivo e o fato de que a composição química da atmosfera inteira foi alterada pela queima de carvão mineral, gasolina, gás natural e congêneres. As mudanças climáticas são um dos elementos do Antropoceno; a ponta do iceberg, pode-se dizer.
Depois de duas décadas de debate, os geólogos decidiram que o Antropoceno não é uma nova época geológica; é mais um evento geológico. Isso não diminui a gravidade da situação. Basta lembrar que o meteoro que causou a extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos, é entendido também como evento geológico.
Duas questões trazidas pelo debate do Antropoceno têm implicações imensas a respeito de como pensamos sobre nós mesmos e sobre o mundo, e o que fazer com isso. Em primeiro lugar, a natureza deixou de ser o que era; ou, colocando de forma mais apropriada, nunca foi o que as ideias modernas sugeriram que ela era. Não é pano de fundo, não foi criada para usufruto humano, não é recurso inesgotável, e os humanos não têm lugar especial ou excepcional dentro dela. Fica claro que, quando os agentes da modernidade pensam com conceitos equivocados, como a ideia moderna de natureza, suas ações podem resultar em catástrofes, mesmo quando pautadas pelas melhores intenções. É em decorrência disso que o grau de eficácia com que a modernidade tenta corrigir alguns dos mais graves problemas causados por ela mesma é baixíssimo. Por exemplo, em 2023 ocorreu a 28ª reunião anual de países, organizados pela ONU, com o objetivo de construir soluções para os principais problemas causados pelas mudanças climáticas – a COP28 do clima, em Dubai. No mesmo ano, foram lançadas na atmosfera 37,4 bilhões de toneladas adicionais de carbono, um recorde histórico. Após 28 anos de esforços, nem a ciência, nem os governos, nem os ativistas conseguiram fazer com que a quantidade de emissões sequer se reduzisse, enquanto falam o tempo todo da necessidade de que tais emissões deixem de existir.
A segunda implicação é o fato de que, se as ideias que usamos há tanto tempo para organizar nossa vida se mostram, agora, equivocadas, as ciências e a antropologia não saem ilesas. Depois de décadas tentando se livrar de esquemas de pensamento evolucionistas, a partir de meados do século XX, a disciplina passou a focar-se em descrever e entender como as coisas são socialmente construídas. Entender a construção social das coisas foi recorrentemente entendido como forma eficaz de acessar para onde a crítica deveria apontar. Esmiuçar os processos de construção social da desigualdade, por exemplo, iluminaria as engrenagens de tais processos e possibilitaria atuação corretiva apropriada. O problema é que o mundo, no que diz respeito à forma como lidamos com o desafio climático, não está se reorganizando de forma autocorretiva. Inevitavelmente, surge a sensação de esgotamento de paradigmas. Não se trata de pensarmos qual inovação técnica ou teórica precisamos para entendermos o que está ocorrendo. Trata-se de entender que as bases mesmas que fundamentam nosso pensamento não estão funcionando. Construir novas teorias com base em ideias ineficazes não nos ajudará.
A antropologia, desta forma, não apenas se encontra no momento mais profundamente reflexivo de sua história; há gente que prevê seu desaparecimento, caso não seja capaz de desvencilhar-se de seus modos modernos de pensar e agir. Quem, dentre nós, no entanto, sabe pensar de formas não modernas? Em lugares onde a modernidade é entendida como sinônimo de existência humana digna, como na Europa ocidental e toda sua área de influência, o colapso iminente da modernidade é inevitavelmente pensado como o fim do mundo.
O Brasil, no entanto, está em outro lugar. Olhando a partir daqui, o que se vê lá parece, antes de tudo, certa falta de imaginação. Mas o Brasil, como grande parte da América Latina, só está na condição de imaginar diferente graças ao esforço indescritível de resistência dos povos originários e das comunidades tradicionais aos avanços da modernidade. Resistência que custou a vida de milhões de pessoas e segue vitimizando dezenas de milhares, todos os anos. O que nos dizem essas coletividades é que outros mundos são possíveis, e nem todo mundo possível é, necessariamente, inteligível aos olhos modernos. Não é, portanto, todo o Brasil que está na condição de imaginar diferente. Olhando a partir das estruturas modernas da universidade (como os departamentos e as disciplinas, por exemplo), não é fácil entender, em sentido profundo, como os povos indígenas resistiram tanto e seguem resistindo.
É nesse contexto que o pensamento de gente como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Sandra Benitez, Jera Guarani, Edson Kaiapó, Daniel Munduku, Valdelice Veron, Gerson Baniwa, Braulina Baniwa, João Paulo Tukano, Nego Bispo, e de tantas e tantos outros é tão importante, ainda que a maioria das instituições do saber autorizado não saiba muito bem o que fazer com suas ideias.
O problema tampouco se resume às ideias. Uma das questões mais sensíveis do mundo em que vivemos é o fato de que as estruturas e infraestruturas se transformam de modo mais lento do que as ideias. Isso é grave em um momento em que o tempo é o recurso mais escasso. A modernidade segue presente nos traçados urbanos, na arquitetura dos prédios e da divisão dos tempos no cronograma de atividades de pesquisa universitária, por exemplo. O esforço a ser feito, nesse contexto, é muito maior. As infraestruturas são as amarras do mundo, através das quais o passado se faz presente por inércia. É como o atendente da empresa provedora de Internet para o lar de Peter Conroy, em Asheville, que, ao ser informado de que o serviço deveria ser cancelado porque a casa não existia mais, perguntou se o modem poderia ser devolvido à empresa.
Não sei se, no contexto das transformações em curso na atmosfera e em tudo o mais, as práticas reconhecidamente eficazes de conhecimento sobre como o pensamento e a vida estão imbricados serão denominadas antropologia no futuro. Mas acredito que, em grande medida, serão construídas por outras pessoas. As mesmas que, em reunião importante da ONU sobre biodiversidade, em 2024, lançaram o documento “A Resposta Somos Nós”, em que reivindicam a copresidência da reunião do clima de 2025, a COP30, a ser realizada em Belém. Acredito, também, que a resposta provavelmente não atenderá às conveniências das instituições que, até agora, reservaram para si a autoridade de dizer o que é conhecimento válido – sobre o clima, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC, mas também sobre tudo o que trata a antropologia.