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Irracionalidade acadêmica: a universidade e as tiranias do tempo, da métrica e da competitividade
Irracionalidad académica: la universidad y las tiranías del tiempo, de la métrica y de la competitividad
Academic irrationality: the university and the tyrannies of time, metrics, and competitiveness
PatryTer, vol. 8, núm. 15, e55915, 2025
Universidade de Brasília

Artigos



Recepción: 01 Octubre 2024

Aprobación: 31 Octubre 2024

Publicación: 10 Noviembre 2024

DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v8i15.55915

Resumo: O artigo aborda as irracionalidades do atual modelo de gestão das universidades. Ele destaca como a busca por mais organização, eficiência e produtividade, muitas vezes baseada em princípios de racionalização, resulta em irracionalidades: individualismo, desumanização, desonestidade, superficialidade, perda de qualidade e aumento do estresse acadêmico. A partir de um diálogo com a literatura sobre a crise da universidade e de reflexões sobre as experiências do autor enquanto acadêmico em países distintos, o artigo explora três tiranias que dominam a academia contemporânea: tempo, métrica e competitividade, e questiona como essas pressões distorcem a essência contestadora, colaborativa e reflexiva da universidade. Por fim, propõe uma análise de contrarracionalidades acadêmicas como formas de resistência que surgem em resposta a esse modelo hegemônico, sugerindo alternativas que questionem o caráter estrutural do problema e estimulem o pensamento crítico.

Palavras-chave: irracionalidade, contrarracionalidades, tirania do tempo, métricas, competitividade.

Resumen: El artículo aborda las irracionalidades del actual modelo de gestión de las universidades. Destaca cómo la búsqueda de más organización, eficiencia y productividad, a menudo basada en principios de racionalización, resulta en irracionalidades: individualismo, deshumanización, deshonestidad, superficialidad, pérdida de calidad y aumento del estrés académico. A partir de un diálogo con la literatura sobre la crisis de la universidad y reflexiones sobre las experiencias del autor como académico en distintos países, el artículo explora tres tiranías que dominan la academia contemporánea: tiempo, métrica y competitividad, y cuestiona cómo estas presiones distorsionan la esencia contestataria, colaborativa y reflexiva de la universidad. Finalmente, propone un análisis de contrarracionalidades académicas como formas de resistencia que surgen en respuesta a este modelo hegemónico, sugiriendo alternativas que cuestionen el carácter estructural del problema y estimulen el pensamiento crítico.

Palabras clave: irracionalidad, contrarracionalidades, tiranía del tiempo, métricas, competitividad.

Abstract: The article addresses the irrationalities of the current university management model. It highlights how the pursuit of more organization, efficiency, and productivity, often based on rationalization principles, results in irrationalities: individualism, dehumanization, dishonesty, superficiality, loss of quality, and increased academic stress. Through a dialogue with the literature on the university crisis and reflections on the author’s experiences as an academic in different countries, the article explores three tyrannies that dominate contemporary academia: time, metrics, and competitiveness, and questions how these pressures distort the contestatory, collaborative, and reflective essence of the university. Finally, it proposes an analysis of academic counter-rationalities as forms of resistance that arise in response to this hegemonic model, suggesting alternatives that question the structural nature of the problem and stimulate critical thinking.

Keywords: irrationality, counter-rationalities, tyranny of time, metrics, competitiveness.

1. Introdução: racionalização e a universidade em ruínas

Ainda durante a fase mais severa da pandemia de Covid-19, Fleming (2021) publicou o livro Dark Academia: How Universities Die (Academia Sombria: Como as Universidades Morrem, em tradução livre). Com um tom bastante desolador, ele chama a atenção para os problemas resultantes da submissão das universidades estadunidenses a um modelo neoliberal baseado na nova gestão pública. A recente pandemia apenas contribuiu para a aceleração desse processo. Já na década de 1990, Readings (1996) falava da universidade em ruínas ao criticar como as universidades estadunidenses substituíram o discurso da cultura pelo da chamada "excelência." Em um tom similar, mas ainda mais fatalista, Fleming critica como a aplicação de medidas austeras, a busca incessante pela competitividade, o fascínio pelos rankings e a procura acrítica por "impacto" têm deteriorado a qualidade de vida dos acadêmicos nos Estados Unidos, levando a uma epidemia de estresse, depressão e, em casos mais graves, ao suicídio.

Embora o foco do texto de Fleming seja a realidade dos Estados Unidos, com seu conhecido histórico neoliberal (veja, por exemplo, a mercantilização da saúde (Navarro, 1994) e do sistema prisional no país (Wacquant, 2009), o livro me fez refletir sobre as semelhanças, e algumas diferenças, com a minha realidade como professor universitário na Bélgica e meu conhecimento do universo acadêmico brasileiro. Mesmo que no Brasil e na Bélgica talvez estejamos em um estágio anterior ao descrito por Fleming, é inegável que, na maioria das universidades europeias e brasileiras, o cenário por ele retratado serve como um alerta: se ainda não enfrentamos esses problemas em sua totalidade, estamos certamente caminhando nessa direção.

O texto de Fleming se encaixa nas ideias de racionalização que Ritzer ([1993] 2019), baseado nas ideias de Max Weber, expõe no livro The McDonaldization of Society (A McDonaldização da Sociedade). Ritzer define mcdonaldização a partir do conceito weberiano de racionalização[i]. Ele identifica quatro elementos principais nesse processo: controle, onde as atividades são rigidamente reguladas; calculabilidade, que enfatiza a quantificação e a medição de resultados; eficiência, que busca o meio mais rápido e econômico para alcançar objetivos; e previsibilidade, que visa à padronização e à uniformidade das operações, com o objetivo de evitar as surpresas. Autores como Hartley (1995), Hayes & Wynyard (2002) e Hayes (2017) falam mesmo de uma mcdonaldização do ensino superior.

Na busca por tal racionalização desenfreada, as universidades descritas por Fleming acabam por produzir o que Ritzer define como a irracionalidade da racionalização (Ritzer, 2019, p. 157): sistemas projetados para serem eficientes e lógicos, acabam por produzir consequências irracionais que minam seus objetivos iniciais. Os efeitos de uma racionalização cega e suas consequentes irracionalidades incluem a desumanização, a falta de consciência crítica, a perda de qualidade e individualidade, e, paradoxalmente, a ineficiência. A busca obsessiva por eficiência e controle pode levar à ineficiência ao aumentar a burocracia e limitar a criatividade e a autonomia.

É essa ideia de uma irracionalidade acadêmica que impulsiona a escrita deste artigo. Além das reflexões oriundas da literatura sobre a crise da universidade e aquelas advindas da geografia produzida por pensadoras e pensadores como Maria Adélia de Souza e Milton Santos, o texto, escrito deliberadamente em primeira pessoa, também reflete minha vivência acadêmica em países diversos como França e Canadá, mas principalmente no Brasil e na Bélgica. As inspirações para este texto vêm de minhas experiências como professor e pesquisador em cursos de geografia, estudos urbanos, sociologia e criminologia nesses diferentes países. Neste texto, abordarei três tiranias que assolam a produção acadêmica hoje: a tirania do tempo, a tirania da métrica e a tirania da competitividade. O texto se encerra com uma análise das contrarracionalidades acadêmicas e uma reflexão sobre formas de resistência que emergem em resposta a esse modelo hegemônico. Acredito que seja possível pensar alternativas que recuperem o espírito colaborativo, contestador e reflexivo da academia, desafiando as imposições que sufocam a criatividade e o pensamento crítico.

2. A tirania do tempo

Há duas décadas, quando ainda orientando de doutorado em Geografia Humana na Universidade de São Paulo, sob a supervisão da incomparável professora Maria Adélia de Souza, homenageada neste número, eu tinha ainda uma visão bastante romântica e exageradamente otimista da universidade enquanto um centro de reflexões difíceis, de leituras aprofundadas, de um espaço das liberdades e dos tempos lentos. Não demorou muito para entender que o tempo, que deveria ser um aliado da reflexão e da construção rigorosa do saber, é um dos recursos mais escassos para os acadêmicos. Quanto mais se avança na carreira acadêmica, menos tempo se tem para leituras complexas[ii] e, ironicamente, para a escrita, o que, no meu caso mais recente, inclui a redação deste artigo. Dedicar-se a uma leitura lenta e aprofundada de um livro complexo, ou consagrar parte do dia para a redação de um texto inédito se tornou, paradoxalmente, um luxo na universidade do imediatismo. Não conheço nenhuma acadêmica ou acadêmico que não viva constantemente correndo atrás de prazos, sempre com algo pendente e acumulando tarefas que parecem impossíveis de serem concluídas no tempo disponível.

Na universidade meritocrática, a falta de tempo é frequentemente vista como uma responsabilidade individual do acadêmico. Esse é o tom de diversos livros de autoajuda como Trabalho Focado: Como ter Sucesso em um Mundo Distraído, de Cal Newport (2018), The Productive Researcher (O Pesquisador Produtivo), de Mark Reed (2017), e Publish and Flourish: Become a Prolific Scholar (Publique e Floresça: Torne-se um Acadêmico Prolífico), de Tara Gray (2015). A mensagem central dessas e tantas outras obras semelhantes é muitas vezes a mesma: estabelecer prioridades, evitar distrações e manter o foco. Embora essas obras possam oferecer estratégias úteis, por vezes contribuindo para um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal, elas apenas arranham a superfície do verdadeiro problema. A falta de tempo no ambiente acadêmico é uma questão estrutural: a culpa dos meus atrasos vai muito além da minha falta de organização e foco. Por mais rápido e eficiente que eu seja ao lidar com meus e-mails, sempre haverá mensagens não respondidas, pois o volume de chegada de e-mails supera minha capacidade de resposta.

Essa questão estrutural da falta de tempo no mundo acadêmico se torna evidente no livro (escrito em tom de manifesto) The Slow Professor: Challenging the Culture of Speed in the Academy (O/a Professor/a Lento/a: Desafiando a Cultura da Velocidade na Academia), das canadenses Maggie Berg e Barbara K. Seeber (2016). Nele, as autoras sugerem como a academia pode resistir à pressão por produtividade acelerada, defendendo uma abordagem mais pausada e reflexiva do ensino e da pesquisa. Elas argumentam que a busca incessante por eficiência e produtividade está minando a qualidade do trabalho acadêmico, gerando um ambiente tóxico que compromete não só o bem-estar dos professores como o próprio processo de aprendizado. É importante destacar que as autoras propõem que uma academia lenta não é apenas uma opção individual, mas uma forma de resistência coletiva contra a lógica de mercado que tomou conta das universidades.

No entanto, é na obra Dark Academia de Fleming, já citada, que a raiz estrutural da questão fica ainda mais evidente: a racionalização das universidades resulta no enxugamento do corpo docente e do corpo técnico-administrativo e na subsequente sobrecarga de trabalho para os que permanecem. A maior parte dos professores acumulam não só suas tarefas de ensino e pesquisa, mas também uma carga crescente de tarefas administrativas que vão desde aquelas ligadas a recursos humanos até a contabilidade e o manejo de salários e orçamentos de pesquisa. São vários empregos em um. A culpa do stress e consequentes burnouts não é, portanto, daqueles que passam por essas situações. Ela está na estrutura da universidade corporativa de hoje.

Para compreender os ritmos acelerados da universidade hoje, o conceito de aceleração contemporânea proposto por Milton Santos pode ser especialmente relevante. As inovações tecnológicas, que antes pareciam mais duradouras, agora têm um ciclo de vida muito curto, sendo rapidamente substituídas por novas inovações. Como Santos (1993a, p. 2) coloca: “A aceleração contemporânea é, por isso mesmo, um resultado também da banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante. São, na verdade, acelerações superpostas, concomitantes, as que hoje assistimos. Daí a sensação de um presente que foge". Essas acelerações, porém, não chegam aos lugares na mesma intensidade e de forma concomitante. Como disse o autor:

O que existe mesmo são temporalidades hegemônicas e temporalidades não-hegemônicas ou hegemonizadas. As primeiras são o vetor da ação dos agentes hegemônicos da economia, da política e da cultura, da sociedade enfim. Os outros agentes sociais, hegemonizados pelos primeiros, devem se contentar de tempos mais lentos. (Santos, 1993a, p. 3)

Embora as pressões do tempo sejam semelhantes, o tempo universitário na Bélgica não é o mesmo do Brasil, assim como ambos diferem de Cuba, onde recentemente tive o prazer de dar uma palestra. A aceleração contemporânea atingiu em cheio a universidade belga, onde trabalho hoje. Um exemplo emblemático é o mais novo edifício da universidade, projetado como um modelo de inovação. As salas de aula possuem várias câmeras e microfones, persianas e iluminação automáticas, monitores espalhados pela sala para melhorar a visibilidade dos slides e monitores sensíveis ao toque, substituindo os antigos quadros negros. As salas se assemelham a um estúdio e possuem todo o aparato necessário para que as aulas sejam gravadas ou transmitidas ao vivo. É impossível ignorar a presença das câmeras e microfones e seu efeito panóptico (Melgaço, 2012; 2015). Apesar de toda a sofisticação, essa “sala inteligente” – que segue o discurso das “cidades inteligentes” como uma forma de teatro, de performance (como discutido por Melgaço & Van Brakel, 2021) ou fábula (Santos, 2001b) – é amplamente odiada por uma considerável parcela dos professores da minha universidade. Esse é particularmente o caso dos professores mais velhos, que frequentemente têm mais dificuldades com o uso dessas novas tecnologias. Tarefas antes simples, como escrever na lousa ou mesmo baixar a persiana em um dia de muito sol, agora exigem conhecimentos específicos e estão sujeitas a problemas técnicos.

Em contraste, minha recente experiência na Universidad Central “Marta Abreu” de Las Villas, em Santa Clara, Cuba, trouxe um choque de realidade. Durante minha palestra, ocorrida em meio a um dos frequentes cortes de energia no país, falei por duas horas sem luz, sem internet, sem a possibilidade de projetar slides e sem interferências externas, a uma plateia cuja atenção estava completamente voltada para aquele momento. Existia uma sensação de vivência do tempo presente que há muito eu não havia experimentado. Essa experiência me mostrou que há, sem dúvida, vantagens quando o tempo desacelera, permitindo uma vivência mais profunda do momento presente, mesmo em condições materiais muito precárias (contrapostas à vigorosa presença humana). O objetivo aqui não é, obviamente, romantizar a precariedade, mas destacar que a informatização e racionalização das salas de aula e a aceleração dos tempos não são, necessariamente, sinônimos de mais qualidade. Como diria Santos em seu artigo Elogio da Lentidão, publicado na Folha de São Paulo, “a velocidade hegemônica atual, do mesmo modo que aquelas que a precederam - e tudo o que vem com ela e que dela decorre- é apreciável, mas não imprescindível” (Santos, 2001a, s.p.).

Esse elogio da lentidão aparece em outros momentos da obra de Milton Santos, como no texto Metrópole: a Força dos Fracos é o seu Tempo Lento. Para Santos (1993b, p. 12), “os 'espaços luminosos' da metrópole, espaços da racionalidade, é que são, de fato, os espaços opacos”. O tempo lento, esse tempo da sobrevivência, permite uma vivência mais profunda e reflexiva, desafiando a lógica da aceleração imposta pela globalização. Essa ideia se alinha com a crítica à tirania do tempo e da velocidade de autores como Paul Virilio (1977)[iii] e mais recentemente Hartmut Rosa (2013). Rosa se debruça sobre o paradoxo de que o desenvolvimento técnico, ao invés de produzir mais tempo livre, faz justamente o contrário. Nunca estivemos tão ocupados. Já nos espaços opacos, aonde a aceleração não chegou com toda a intensidade, emergem os “homens lentos” (Santos, 2001b). O “homem lento” aparece como uma figura tanto de exclusão quanto de resistência, capaz de cultivar um outro ritmo de existência. A principal arma do homem lento são as contrarracionalidades.

Essas contra-racionalidades se localizam, de um ponto de vista social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias; de um ponto de vista económico, entre as atividades marginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais "opacas", tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas essas situações se definem pela sua incapacidade de subordinação completa às racionalidades dominantes, já que não dispõem dos meios para ter acesso à modernidade material contemporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente. (Santos, 2006, p. 210)

Para Ana Clara Torres Ribeiro (2012, p. 60), homem lento é “um conceito que enfrenta as manifestações mais fortes da ideologia dominante, como as relacionadas com a velocidade e a eficácia, e permite valorizar (e aprender com) as experiências dos muitos outros”. A paciência e a resiliência, como pude ver na minha curta estadia em Cuba, aparece como uma virtude dos lentos. Ou como aponta Maria Adélia de Souza, na entrevista que abre este número, “o que restou aos pobres foi a fala e a comunicação para viver pois, como ‘homens pobres e lentos,’ não foram engolidos pela volúpia contemporânea do tempo, determinada pela pressa, pela rapidez” (Costa & Queiroz, 2025, p. 14).

Essa tirania da pressa e da rapidez muitas vezes ignora a história, a importância do tempo passado, os processos. "O passado como experiência foi substituído pela voracidade do tempo que nos impõe o futuro a cada instante!" (Souza, 2015, p. 52). Essa mesma tirania do tempo, implacável para os acadêmicos mais jovens e sem estabilidade, também se revela cruel para os mais velhos. A academia belga, onde atuo há mais de uma década, de modo geral não valoriza plenamente seus professores idosos. A aposentadoria compulsória praticamente extingue a autonomia desses e dessas docentes. Mesmo com toda a experiência acumulada, os aposentados não podem mais, por exemplo, liderar pesquisas e são excluídos dos círculos de decisão acadêmica. A entrevista de Maria Adélia de Souza na PatryTer sugere que a situação no Brasil não é muito diferente.

3. A tirania da métrica

ecentemente, tive a honra (e a enorme responsabilidade) de ser convidado a escrever o capítulo sobre Milton Santos (Melgaço, 2024) na edição revisada (e menos colonizada) do livro Key Thinkers of Space and Place (Principais Pensadores do Espaço e do Lugar). A nova edição traz agora duas organizadoras, além dos dois homens brancos das duas primeiras edi

Recentemente, tive a honra (e a enorme responsabilidade) de ser convidado a escrever o capítulo sobre Milton Santos (Melgaço, 2024) na edição revisada (e menos colonizada) do livro Key Thinkers of Space and Place (Principais Pensadores do Espaço e do Lugar). A nova edição traz agora duas organizadoras, além dos dois homens brancos das duas primeiras edições do livro, e vários novos capítulos. Na chamada pública para a sugestão de novos nomes, as organizadoras e organizadores da obra anunciavam que adicionariam duas dezenas de novos nomes ao livro. Segundo a chamada, o objetivo seria ampliar a gama de pensadores internacionais, diversificar as disciplinas e as contribuições em relação a gênero e raça, e incluir autoras que trabalhassem contra noções eurocêntricas de espaço e lugar.

Essa louvável iniciativa permitiu que Milton Santos e outras autoras do tal Sul Global[iv] fossem adicionados a essa importante lista de referência internacional. Porém, chamou-me atenção que a mesma chamada dizia que seria difícil afirmar que alguém cujo trabalho foi citado apenas 300 vezes fosse uma pensadora ou pensador fundamental, mesmo que esteja realizando um excelente trabalho. A chamada dizia que os editores estavam cientes dos problemas de usar citações como métrica, mas que alguém que esteja causando um impacto significativo teria algum tipo de presença mensurável que demonstrasse que outros estariam se engajando com suas ideias de maneira produtiva. Em outras palavras, eles criticavam as métricas, mas, ao mesmo tempo, recorriam a uma métrica bastante aleatória e mesmo questionável como critério de seleção aos autores e autoras referenciadas nos capítulos.

A métrica - essa forma de calculabilidade, um dos pilares da racionalização - tem de forma exponencial invadido a universidade neoliberal, reduzindo professores e pesquisadores a índices de desempenho. Dentre as várias formas de quantificação do trabalho acadêmico, um dos índices mais utilizados atualmente é o Índice-H, criado há duas décadas por Jorge E. Hirsch (2005). Ele mede o impacto científico de um pesquisador, considerando o número de publicações e o número de citações que essas publicações recebem. É um indicador amplamente usado no chamado Norte Global para avaliar a produtividade e a relevância de um autor na comunidade acadêmica.

Plataformas como Google Scholar, Scopus, Web of Science e ResearchGate utilizam o Índice-H e o apresentam com destaque nos perfis dos seus usuários. Como qualquer índice, ele é limitado e reducionista, podendo levar a injustiças (Burrows, 2012; Geraci, Balsis & Busch, 2015). Por um lado, sua ênfase em quantidades tende a desconsiderar a qualidade e a profundidade das pesquisas, podendo levar à promoção de publicações superficiais em detrimento de trabalhos mais substanciais. Por outro lado, o Índice-H pode ser influenciado por fatores externos, como as diferenças nas práticas de autoria e citação entre áreas do conhecimento, o que prejudica comparações justas entre pesquisadores de diferentes disciplinas. O Índice-H pode ainda acentuar desigualdades de gênero, pois mulheres frequentemente enfrentam barreiras adicionais que dificultam o reconhecimento e a citação de seus trabalhos, resultando em índices mais baixos em comparação com seus colegas masculinos. O Índice-H pune ainda as mulheres por seus períodos "improdutivos" durante licenças maternidades.

Minha universidade na Bélgica utiliza a plataforma Pure (pacote utilizado por várias outras universidades pelo mundo) para quantificar nossas produções e disponibilizá-las em um perfil acessível ao público. Como pode ser visto na página do meu perfil[v], logo após meu nome, o maior destaque é dado às citações ao meu trabalho e ao meu Índice-H. Eu sinto muito em frustrar os leitores deste texto com a informação de que estão lendo algo de um autor cujo Índice-H não passa de 5. Hirsch (2005), o criador do índice, considera que um pesquisador com 20 anos de carreira (estou próximo a isso) deveria ter um Índice-H em torno de 20. Recentemente, em um processo seletivo de professores do qual participei, foi sugerido que devido ao elevado número de candidatos, fosse feita uma primeira triagem com base, entre outros critérios, no Índice-H dos concorrentes. Felizmente, essa proposta foi rejeitada por uma parte crítica da comissão. Curiosamente, caso essa abordagem tivesse sido adotada e eu estivesse concorrendo, meu próprio Índice-H não seria suficiente para passar na pré-seleção. O uso das métricas, portanto, não está isento de incoerências.

Assim como nós produzimos as métricas, elas também nos produzem. Como bem explicado por Jerry Z. Muller em seu livro The Tyranny of Metrics (A Tirania das Métricas) (2018), as métricas que inicialmente seriam um meio de quantificação e avaliação de desempenho, passam a se tornar um fim em si mesmas. Com isso, surgem diversas formas de se gamificar desempenhos em que a mera melhoria de índices passa a se tornar o objetivo final. Como destacou Maria Adélia de Souza em sua entrevista de abertura a este número (Costa & Queiroz, 2025), no Brasil, o produtivismo exigido pela CAPES gera regras que podem ser consideradas imorais, que incentivam práticas questionáveis, como a repetição de temas em inúmeros artigos, muitas vezes com qualidade científica duvidosa, além da multiplicação artificial de coautorias e citações cruzadas, visando principalmente a elevação dos índices acadêmicos.

Nessa tirania da métrica, a noção de impacto se empobrece e se despolitiza (Tanczer, Deibert, Bigo, Franklin, Melgaço, Kazansky & Milan, 2019). O tal fator de impacto das revistas científicas é, sobretudo, um fator de popularidade. Seria o mesmo que avaliar o impacto de um influenciador digital pelo número de visualizações, curtidas e compartilhamentos de suas publicações, sem levar em conta o conteúdo que propagam. Tenho uma outra anedota que talvez ilustre bem tudo isso. Toda semana, o portal ResearchGate me informa que minhas publicações são as mais lidas quando comparadas àquelas dos meus colegas de departamento. À primeira vista, essa informação poderia ser uma fonte de vaidade, além de um capital político e simbólico que eu poderia usar, por exemplo, em uma corrida por promoção. No entanto, ao analisar essa métrica em mais detalhes, percebo que ela é altamente inflacionada por uma única publicação que, no momento da redação deste artigo, conta com mais de 7 mil leituras (na verdade visualizações). Isso é mais do que três vezes o número de leituras do meu segundo artigo mais lido, segundo a plataforma. A razão para a alta procura pelo primeiro texto está no título, que inclui o termo “porn graffiti” (Melgaço, 2020). Essa escolha um tanto acidental destaca como as métricas podem ser influenciadas por fatores pouco ligados ao rigor acadêmico. O tema e a seleção dos termos e títulos utilizados podem claramente influenciar as métricas de uma publicação.

4. A tirania da competitividade

As tiranias do tempo e das métricas tem como função principal classificar e comparar pessoas como forma de controlá-las. David Lyon (2003), pensador fundamental para os estudos da sociologia da vigilância, descreve muito bem essa prática chamada por ele de social sorting (algo como classificação ou seleção social). Usamos essas pontuações para comparar pessoas, e acadêmicos, em função de suas performances. Na minha instituição, essas pontuações, mais especificamente as publicações em artigos em revistas A1, são um dos principais critérios para a distribuição de fundos internos de pesquisa. Os professores que mais publicam são os que recebem mais recursos para que possam continuar publicando mais. É uma lógica quantitativista de auxílio que assiste quem já está no topo.

Essa universidade centrada em métricas se esquece do coletivo, ao focar excessivamente nas performances individuais. Isso dificulta que pesquisadores se identifiquem como parte de algo maior, de um projeto comum. Um exemplo recente ilustra bem essa ideia. Enquanto coordenador do meu grupo de pesquisa na Bélgica[vi], eu tentei arduamente promover encontros entres os professores e pesquisadores que abordassem mais do que assuntos práticos e burocráticos. Assumi o cargo com um objetivo claro de retomar discussões profundas de conteúdo, leituras coletivas de textos e livros clássicos e desafiadores e a promoção de seminários de trocas acadêmicas semelhantes aos inúmeros que frequentei promovidos pela professora Maria Adélia de Souza junto aos seus orientandos, na USP. Prontamente, percebi que era uma iniciativa fadada ao fracasso, já que rapidamente meus colegas e orientandos começaram a se desculpar, pois achavam muito difícil encontrar tempo para tais atividades. A reação deles não deveria ser motivo de surpresa: em uma universidade sob as tiranias do tempo e das métricas, o pragmatismo e o utilitarismo são consequências quase inevitáveis, já que os acadêmicos são pressionados a concentrar seus esforços em iniciativas que, de forma eficiente, retornem resultados quantificáveis. Pensar, refletir não aumentam diretamente o Índice-H.

Talvez, a principal razão para essas faltas, porém, esteja no fato de que reuniões (apesar de muitas vezes maçantes) são geralmente momentos de se pensar e trabalhar para o coletivo. Mas a métrica acadêmica pouco se importa com o coletivo: ela mede, prioritariamente, e premia o indivíduo. O trabalho generoso dos colegas e alunas e alunos que leram e comentaram o primeiro rascunho deste texto, a quem sou muito grato, não é de nenhuma forma mensurado e creditado. Outras iniciativas acadêmicas cruciais como o trabalho como editor de um periódico científico, ou mesmo o trabalho fundamental dos e das pareceristas, também não são quantificados e valorizados. Até mesmo a tradução, esse trabalho árduo e generoso em relação à obra de um autor, como a que fiz junto com Tim Clarke do livro Por uma Outra Globalização (Santos, 2017), não é computada. Na universidade da competitividade, trabalhos fundamentais para a ciência enquanto bem coletivo não viram métricas.

Assim, quanto mais presente se torna o discurso da competitividade, mais individualista e menos solidária se torna a universidade. Essa tendência ao individualismo já havia sido destacada por Maria Adélia de Souza em sua aula magna ministrada na USP, em 1996, por ocasião de concurso para Professora Titular do Departamento de Geografia:

[...] é preciso cuidar para que a Academia pouco a pouco não se deixe envolver pelas amarras da burocracia a serviço de poderes nem sempre lastreados na legitimidade outorgada pelo saber, pelo compromisso social, mas em processos políticos cuidadosa e longamente engendrados, a serviço de cada um e não da coletividade e da própria Universidade. Ao invés do discurso do saber, produz-se o discurso da arrogância. (Souza, 2021, p. 7)

As tiranias do tempo e das métricas alimentam e são retroalimentadas por uma tirania da competitividade. As universidades mcdonaldizadas mais e mais se veem como empresas e incorporam o vocabulário e as práticas empresariais. Recentemente minha universidade adotou completamente a lógica dos key performance indicators (identificadores-chave de desempenho) (KPI) como forma de estimular, mas sobretudo monitorar e controlar a produção acadêmica dos seus professores e pesquisadores. Vale também destacar o uso do termo Bolsa de Produtividade usado pelo CNPq no Brasil. Quando vemos as universidades se portando de forma corporativa, vemos que muitas das críticas feitas por Milton Santos à perversidade das empresas em Por uma Outra Globalização se encaixam perfeitamente no caso das universidades. Como já disse Santos (2001b, p. 46): “agora, a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque chega eliminando toda forma de compaixão. A competitividade tem a guerra como norma”. E mais adiante: “a competitividade é uma espécie de guerra em que tudo vale e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência” (Santos, 2001b, p. 57). Ou ainda: “dir-se-á que, no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individualista, ou se desaparece” (Santos 2001b, p. 67). Na mesma obra, Milton Santos acrescenta ainda que "em última análise, a competitividade acaba por destroçar as antigas solidariedades, frequentemente horizontais, e por impor uma solidariedade vertical, cujo epicentro e a empresa hegemônica, localmente obediente a interesses globais mais poderosos e, desse modo, indiferente ao entorno." (Santos, 2001b, p. 85).

Na universidade do “homo lattes”, como ironicamente menciona Maria Adélia de Souza em sua entrevista à PatryTer (Costa & Queiroz, 2025, p. 9), a medida de impacto, de sucesso, passa a ser a comparação. E, muitas vezes, tal comparação é usada como instrumento de poder. Lembro-me da pressão que senti durante os meus cinco anos de estágio probatório na Bélgica, em que minha produção era por vezes comparada a de outros pesquisadores mais prolíficos e “produtivos” que eu. O conteúdo do meu trabalho, o que eu havia escrito em meus textos, parecia menos relevante que meus índices.

Nessa universidade em que o que vale é o que se mede, e o que se mede são, majoritariamente, as publicações, o ensino, esse momento sublime de troca coletiva, torna-se cada vez menos valorizado. O impacto do trabalho de professoras como Maria Adélia de Souza é inegável. Como ela mesmo diz na entrevista publicada em PatryTer: “meu caminho não foi publicar livros, mas pesquisar, ensinar e formar meus alunos da melhor maneira possível. Mas, sobre isso, somente eles poderão atestar” (Costa & Queiroz, 2025, p. 24). Respondendo a esse chamado, eu atesto que suas aulas são obras-primas cujo impacto são irredutíveis a índices simplistas.

Na universidade competitiva, o crescimento, aquele traduzível em índices, torna-se o mantra. Há sempre uma possibilidade de se fazer mais (e mais com menos): mais publicações, mais alunos por curso, mais aparições públicas, mais projetos em busca de mais financiamento externo. Essa é também a universidade de mais depressão, mais stress, mais síndromes do impostor, mais burnouts. Textos como Less is More (Menos é Mais) de Jason Hickel (2021), tornam-se leituras fundamentais nestes tempos, mesmo que o que dizem seja bastante óbvio.

5. Considerações finais: por uma contrarracionalidade acadêmica

Isabelle Stengers (2018), influente voz do movimento “slow science”, defende no título do seu livro Another Science is Possible: A Manifesto for Slow Science (Outra Ciência é Possível: Um Manifesto pela Ciência Lenta), que outra ciência seria possível. A possibilidade de um futuro diferente passaria por uma ciência menos apressada e mais politizada. Souza (2015) nos lembra, porém, que a possibilidade de uma nova história é dependente de transformações estruturais:

A verificação de uma história concreta acontecendo no presente exibe a possibilidade de produção pela sociedade de uma nova história. Este seria o grande fundamento de uma nova globalização. Esta proposição emerge do período histórico atual que é, ao mesmo tempo, uma crise. Por isso, todas as soluções apontadas, que não sejam estruturais, geram novas crises. (Souza, 2015, p. 37)

ão os empecilhos de uma transformação estrutural que explicam o compreensível pessimismo de Fleming (2021) quanto ao futuro da universidade. O momento que vivemos, com o advento das inteligências artificiais (IA), parece apena

São os empecilhos de uma transformação estrutural que explicam o compreensível pessimismo de Fleming (2021) quanto ao futuro da universidade. O momento que vivemos, com o advento das inteligências artificiais (IA), parece apenas acelerar essas questões estruturais. Mesmo que exista a possibilidade de usos éticos, responsáveis e contrarracionais das IAs (como, por exemplo, um auxílio aos não-anglófonos para enfrentar a barreira da hegemonia da língua inglesa nos círculos acadêmicos), há uma grande chance de que essas IAs acelerem ainda mais os tempos, as métricas e a competitividade.

Haveria alguma saída estrutural para o futuro da universidade? Alguns caminhos de resistência e contrarracionalidades podem nos dar pistas. Contra a tirania do tempo, não há outra resposta senão a desaceleração. E essa não é uma tarefa fácil, especialmente para aqueles que ainda buscam se firmar na carreira acadêmica, marcadamente competitiva. É por esse motivo que cabe aos acadêmicos com posições estáveis e seguras questionar o modelo empresarial universitário, ou ao menos não o reproduzir com seus alunos e orientandos.

Essa desaceleração pode ser também aprendida com as práticas de sobrevivência dos “homens lentos”, para quem a aceleração muitas vezes não é nem mesmo uma possibilidade. Suas experiências com seus tempos lentos podem ser elucidadoras das vantagens em se produzir menos, mas com mais originalidade e qualidade. Porém, a sugestão de uma desaceleração pode ser perversa se entendida como uma prática individual somente. No mundo da competitividade acadêmica, quem desacelera acaba ficando fora dos círculos de decisões e de acesso ao financiamento de pesquisas. Por isso essa desaceleração deve ser coletiva e estrutural.

Sobre a tirania das métricas, é preciso se opor à sua ampla aceitação e crescente implementação no contexto brasileiro. O seu uso como instrumento de comparação e seleção deve ser questionado. A Declaração de São Francisco sobre Avaliação da Pesquisa (DORA)[vii], lançada em 2012, merece destaque. Surgida como uma resposta às distorções causadas pelas métricas acadêmicas, ela questiona o uso exagerado e descontextualizado de índices como o fator de impacto e o Índice-H na avaliação de pesquisadores e instituições. A declaração propõe que a qualidade e o impacto de um trabalho acadêmico não sejam medidos apenas por citações ou pela revista onde foi publicado, mas sim por uma avaliação mais qualitativa, levando em conta a relevância e contribuição efetiva do trabalho para o campo. Movimentos como o DORA se somam a outras vozes que chamam a atenção para o fato de que essas métricas exacerbam não só desigualdades de gênero, como já mencionado, mas também desigualdades em relação aos contextos e línguas das publicações. Além disso, a pressão por melhores métricas pode levar a práticas antiéticas, como a manipulação de coautorias e a proliferação de publicações superficiais.

É importante entender que o problema das métricas não será resolvido simplesmente com a introdução de métricas melhores. O aprimoramento do Índice-H com a sugestão de índices como Índice-E, Índice-G, Índice-i10, entre tantos outros, não é a resposta que precisamos. O ponto aqui é que devemos nos convencer que impacto é um conceito abstrato, necessariamente político, e não reduzível a uma medida.

A oposição às métricas também pode vir de revistas científicas como a PatryTer. Recomendo a leitura do excelente editorial de Costa, Moncada, Zomighani Jr. & Lima (2022) sobre as revistas científicas no contexto da globalização neoliberal. Nossa revista, Criminological Encounters[viii], assim como PatryTer, adota a política do movimento da Ciência Aberta, não se escondendo por trás de um acesso restrito por assinatura. Na Criminological Encounters, recusamos ainda o uso do fator de impacto. É essencial publicar em revistas abertas, não-hegemônicas e em línguas igualmente não-hegemônicas, mesmo que essas publicações não influenciem os Índices-H. As revistas predatórias devem, obviamente, ser duramente boicotadas. Além disso, cabe destacar uma política recentemente adotada pela Comissão Europeia em relação às publicações financiadas por essa instituição e que deveria ser urgentemente replicada pelas agências de financiamento de pesquisa no Brasil (CAPES, CNPq, FAPESP, entre outras): toda publicação resultante de financiamento público deve ser obrigatoriamente disponibilizada de forma aberta e gratuita ao público.

Já a resposta à tirania da competitividade deve passar pela condenação do individualismo e do carreirismo. Ao invés disso, deve-se incentivar as solidariedades horizontais (essas práticas irredutíveis à métrica). É fundamental valorizar as práticas coletivas e colaborativas, ao invés de se premiar e fomentar a vaidade acadêmica. É preciso também se perguntar o que ganhamos como sociedade com tal competitividade acadêmica. Em outras palavras, é preciso voltar à pergunta fundamental de Collini (2012) em seu livro What are Universities For? (Para que Servem as Universidades?). Quais grupos dentro da academia se beneficiam com essa competitividade? Quem decide o que conta e o que deve ser medido? Quem decidiu que livros e capítulos de livros não devam ter o mesmo "impacto" que artigos em revistas científicas? Como fica a ética na universidade da competitividade? Como nos lembra Everaldo Costa (2016, s.p.), o que fazer com essa "cegueira ou a pseudo-cegueira moral e ética (retratada pela opressão do produtivismo desenfreado, a qual todos somos submetidos nas instituições de ensino superior)"?

Nessa resposta à pergunta sobre o papel da universidade do mundo acelerado de hoje, as humanidades (Souza, 2015), e sobretudo a Geografia, assumem um papel fundamental. Como bem aponta Thiago Costa (2016, p. 15), "enquanto a lógica neoliberal no período recente implanta um imaginário da celeridade – contexto em que as cidades se adaptam para tornarem-se cada vez mais fluídas, buscando conferir maior velocidade aos trânsitos – a geografia nos convida a perceber a lentidão como resistência."

Não sejamos, contudo, ingenuamente românticos: a universidade nunca foi um centro isento de elitismos. Essa universidade das irracionalidades da racionalização, das tiranias do tempo, da métrica e da competitividade, porém, apenas reforça o caráter exclusivo e segregador da academia. Tanto Milton Santos (2001b) como Maria Adélia de Souza (2014) falam, porém, do futuro como um conjunto de possibilidades. E uma outra universidade é sim possível. Mas para que isso aconteça devemos nos comprometer com mudanças estruturais que levem à construção de uma universidade menos refém de tiranias, menos tributária do mercado, e, portanto, mais justa, ética e solidária.

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Notas

[1] Professor Associado da Vrije Universiteit Brussel, Bélgica. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7654-9874. E-mail: lucas.melgaco@vub.be.
i Cabe talvez aqui uma nota de que o próprio livro The McDonaldization of Society se tornou uma espécie de exemplo do fenômeno que critica: a mcdonaldização. A obra, com seu apelo acessível e popular, alcançou grande sucesso, sendo constantemente reeditada — já está na 10ª edição. Sua abordagem simplificada e compreensível corre o risco de, ironicamente, reproduzir o tipo de superficialidade que caracteriza o processo de racionalização excessiva que descreve. Para uma reflexão mais profunda sobre a racionalização e suas irracionalidades, vale também a pena voltar aos clássicos que exploram o tema, como o próprio Max Weber, e o seu conceito da "gaiola de ferro" (Weber, 1992), e também várias outras pensadoras como Hannah Arendt (1973; 2006), que refletiu como a burocratização e racionalização deram as bases para a produção da irracionalidade da banalidade do mal.
[ii] Na verdade, lê-se muito como professor universitário. Lemos o tempo todo. A leitura, juntamente com a escrita e a oralidade, são nossas principais ferramentas de trabalho. Porém, esse tempo é muitas vezes tomado pela leitura de trabalhos e provas de alunos, projetos científicos, relatórios e minutas de reuniões. Sobra pouco tempo para leitura mais desafiadoras de clássicos ou dos últimos livros publicados nas nossas áreas de interesse. Quando acontecem, essas leituras acabam sendo feitas nas tais horas "livres". Como aponta Fleming, (2021, p. 24), “Conheço muitos acadêmicos para quem nada é mais relaxante do que passar férias na praia com um livro acadêmico denso” (tradução livre).
[iii] Apesar das semelhanças em relação à discussão sobre o tempo como violência, Milton Santos e Paul Virilio tinham visões bastante distintas em relação ao conceito de espaço. Enquanto para Santos espaço é instância (2008), Virilio falava do fim do espaço e da geografia (1984).
[iv] Mesmo que tenha já utilizado o termo Sul Global no livro que editamos sobre Milton Santos (Melgaço & Prouse, 2017), eu continuo incomodado com o caráter reducionista e muitas vezes pejorativo do termo. Mais recentemente algumas vozes dentro da sociologia e, mais especificamente, dos estudos de vigilância têm preferido o termo "mundo majoritário". Esse termo, cunhado pelo fotógrafo e ativista Shahidul Alam (2008) no início dos anos 1990, é uma reflexão sobre o fato, até óbvio, de que as chamadas minorias são, na verdade, a maioria da população mundial.
[v] Acessível em: https://researchportal.vub.be/en/persons/lucas-de-melo-melgaço.
[vi] Na Vrije Universiteit Brussel (VUB), faço parte do grupo de pesquisa Crime and Society (CRiS), o qual coordenei até novembro de 2022. O CRiS está alocado no Departamento de Criminologia e realiza pesquisas em quatro principais linhas: penologia, estudos sobre polícia e vigilância, jovens e crime, e criminologia urbana (da qual sou coordenador). Na Bélgica, há uma política universitária recente de fusão de grupos de pesquisa menores em grupos maiores, com a principal motivação de racionalizar as atividades de pesquisa.
[vii] A declaração em português pode ser lida em: https: //sfdora.org/read/read-the-declaration-portugues-brasileiro/. [viii] A revista Criminological Ecounters é conduzida pelo grupo de pesquisa Crime and Society (Cris), da Vrije Universiteit Brussel ( VUB), e pode ser acessada livremente através do endereço criminologicalencouters.org.
[viii] A revista Criminological Ecounters é conduzida pelo grupo de pesquisa Crime and Society (Cris), da Vrije Universiteit Brussel ( VUB), e pode ser acessada livremente através do endereço criminologicalencouters.org.


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