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Pluriversalidade do ser e concepção de espaço na cosmopercepção quilombola
Manoel Barbosa Neres
Manoel Barbosa Neres
Pluriversalidade do ser e concepção de espaço na cosmopercepção quilombola
Pluriversalidad del ser y concepción del espacio en la cosmopercepción quilombola
Pluriversality of being and conception of space in quilombola world-sense
PatryTer, vol. 8, núm. 15, e51344, 2025
Universidade de Brasília
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Resumo: O presente texto tem sua origem na pesquisa de doutorado “A pluriversalidade do ser a partir do pensamento de Mogobe Ramose e sua ressonância em uma comunidade quilombola do Brasil”. Esta referida comunidade quilombola é o Quilombo Mesquita, em Cidade Ocidental, GO. Baseando-se em pesquisas bibliográficas, discurso testemunhal e experiência de vida, a reflexão visa responder ao questionamento: como se manifesta a pluriversalidade do ser em Mogobe Ramose e como se dá sua ressonância na cosmopercepção quilombola no que diz respeito a espaço? A partir disso, a discussão desenvolve-se em torno da compreensão de uma realidade cósmica amplamente conectada que, por sua vez, explicita-se nas relações plurais, dimensões ancestrais e realidade dinâmica do ser (contínuo movimento). Pluriversalmente falando, espaço neste presente texto, tem nuances territoriais, memoriais, habitacionais, construções coletivas, espaços ecológicos e místicos. Compõe-se também de representações simbólicas, construções identitárias, lugar de fala, ambiente de luta e comprometimento.

Palavras-chave: Ubuntu, pluriversalidade, ancestralidade, movimento, quilombola.

Resumen: Este texto tiene su origen en la investigación doctoral “La pluriversalidad del ser a partir del pensamiento de Mogobe Ramose y su resonancia en una comunidad palenque de Brasil”. Esta comunidad palenque es Quilombo Mesquita, en Cidade Ocidental, GO. A partir de investigaciones bibliográficas, discursos testimoniales y experiencias de vida, la reflexión pretende responder a la pregunta: ¿cómo se manifiesta la pluriversalidad del ser en Mogobe Ramose y cómo se produce su resonancia en la cosmopercepción quilombola respecto del espacio? A partir de esto, la discusión se desarrolla en torno a la comprensión de una realidad cósmica ampliamente conectada que, a su vez, se explica en relaciones plurales, dimensiones ancestrales y realidad dinámica del ser (movimiento continuo). Pluriversalmente hablando, el espacio en este texto tiene matices territoriales, memoriales, habitacionales, de construcciones colectivas, espacios ecológicos y místicos. También se compone de representaciones simbólicas, construcciones identitarias, lugar de habla, ambiente de lucha y compromiso.

Palabras clave: Ubuntu, pluriversalidad, ascendencia, movimiento, palenques.

Abstract: One of the historical stages with more urban-architectural, political-economic and social changes in Mexico was the Porfirian era, which through the promotion of haciendas represented one of the essential strategies to consolidate the country as a nation in progress. Chiapas, one of the southern states of the Mexican Republic, specifically the region of Comitan, served as an important area at the state level in the development of its productive spaces, so the objective of this article is to make known the permanence of these haciendas in the territorial structure of Comitan, the significance of this era and its impact on the present time. The methodology used was qualitative based on documentary interpretation, reading of photographs and historical cartography. As a result, a historical reconstruction of the territorial transformation of Comitán through time is presented, valuing a heritage that has been forgotten.

Keywords: Ubuntu, pluriversality, ancestry, movement, quilombola.

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Pluriversalidade do ser e concepção de espaço na cosmopercepção quilombola

Pluriversalidad del ser y concepción del espacio en la cosmopercepción quilombola

Pluriversality of being and conception of space in quilombola world-sense

Manoel Barbosa Neres
Universidade de Brasília (FIL-UnB), Brasil
PatryTer, vol. 8, núm. 15, e51344, 2025
Universidade de Brasília

Recepción: 01 Febrero 2024

Aprobación: 01 Abril 2024

Publicación: 01 Noviembre 2024

1. Introdução

O termo “pluriversalidade” consiste em um dos principais elementos da doutrina do filósofo sul africano, Mogobe Bernard Ramose. “Pluriversalidade” relacionada-se com “pluriverso” que, ao contrário de “universo”, caracteriza-se semanticamente por ter alcance mais plural e, com isso, acentua a importância existencial de todos os seres da realidade cósmica.

Por conseguinte, a discussão espacial do ser fundamenta-se na concepção pluriversal de Ramose, a qual, por sua vez, encontra ressonância na cosmopercepção[i] quilombola. Isto significa dizer que, nessa linha reflexiva, a realidade cósmica é compreendida de forma conectada, de maneira que todos os seres da existência se manifestam como interdependentes ou interinfluentes em relação aos demais.

Essas conexões, no âmbito geral da pesquisa, dão-se de formas múltiplas, mas neste artigo, a discussão limitar-se-á em quatro aspectos: família, terra, ancestralidade e relação eco-social. A realidade parental envolve o ser humano antes, durante e após sua existência explícita. Muito semelhante também é a relação com os demais seres, a dimensão de poder e usufruto dos bens naturais. Pode-se discutir, inclusive, o sentido e alcance da palavra propriedade, talvez um dos mais obcecados desejos do ser humano.

Dessa forma, a presente discussão pretende dar conta do seguinte questionamento: como se manifesta a pluriversalidade do ser em Mogobe Ramose e como se dá sua ressonância na cosmopercepção quilombola no que diz respeito a espaço? Portanto, o alcance da pesquisa constitui-se da abordagem teórica de Ramose referente à pluriversalidade do ser e a correspondência dessa teoria no modo de ser e conceber quilombola, no tocante à questão espacial.

Quanto ao termo “espaço”, ele é compreendido em contexto pluriversal, isto quer dizer que sua abrangência abarca dimensões territoriais, memoriais, habitacionais, construções coletivas, espaços ecológicos e místicos. A dimensão de espaço compõe-se também de representações simbólicas, construções identitárias, lugar de fala, ambiente de luta e comprometimento. Dessa forma, a presente reflexão se baliza nesses fundamentos socioculturais, mesmo quando não se fala explicitamente deles na forma objetiva da escrita.

Na qualidade de texto resultante de pesquisa, este artigo insere-se no mesmo contexto metodológico da investigação em que se encontra vinculado, qual seja, pesquisa bibliográfica, discurso testemunhal e de experiência de vida. A primeira parte é basicamente composta de pesquisa bibliográfica, consistindo em uma imersão principal no trabalho teórico de Mogobe Ramose (1992, 2005), sua compreensão de pluriversalidade, fundamentada na filosofia africana, principalmente no que se designa como filosofia ubuntu.

Contudo, a contribuição de Ramose nesta questão vai além das obras publicadas, pois que o período mais intenso de pesquisa e escrita foi antecedido de diversos contatos, de informações generosas, da disponibilização de um extenso curriculum vitae, o qual foi fundamental para a escrita de sua biografia, produção, atuação acadêmica, militância estudantil, social e política.

Outros/as autores/as compõem também esta primeira parte. É o caso de Archie Mafeje (1973, 2018), o qual embasa a discussão do ser humano em relação com a terra, território e ecologia. Mafeje inspira a reflexão referente a poder, propriedade, domínio e outros mais.

A necessidade de um bom entendimento obriga a explicação de alguns termos utilizados, e a criação de uns outros. No que diz respeito aos termos já existentes, encontram-se as palavras “pluriversal”, “pluriversalidade”, “pluriverso”, as quais caracterizam-se por ser algo de grande amplitude de conexões, pluralidade, sem perder de vista as realidades de menor generalidade; tem-se pois, uma relação abrangente e convergente de micro e macrocosmo.

Também assim é “dialética”, amplamente utilizada no presente texto, mas com um sentido voltado exclusivamente à perspectiva pluriversal. Significa dizer que “dialética” aqui consiste em esforço contínuo e concentrado na busca de compreensão de uma realidade múltipla de nuances e formas de entendimento. “Dialética” não se limita à oposição entre “tese” (afirmação) e “antitese” (negação), em busca de uma “sintese”. Seu real sentido vincula-se ao diálogo e busca por compreensão plena e não a relação inimicista de um sistema de opostos.

Essa figura (figura 1), denominada esfera dialética, representa os vários aspectos que uma realidade pode ter com o processo de discussão. Partindo de um certo ponto, as suas possibilidades de compreensão de determinada realidade ou síntese podem ser encontradas em interação com qualquer outro ponto do sistema e não apenas com o seu contrário. Com isso, o processo dialético pode ser plenamente desenvolvido sem nenhuma obrigação de uso do sistema de opostos.

Um exemplo explica melhor essa questão. Usando-se a afirmação “vacina faz bem no combate à Covid”, para seguir o padrão dialético consolidado


Figura 1
– Esfera dialética
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

a partir de Hegel e Marx, há necessidade de contrapor essa afirmação com uma antítese, a qual seria “vacina não faz bem no combate à Covid”. Nota-se que entre “fazer bem” e “não fazer bem” há um longo caminho a ser percorrido, sendo que entre uma e outra assertivas caberiam outras mais: “vacina faz bem, desde que acompanhada de outras providências”; “vacina faz bem, mas não resolve o problema em definitivo”; “o uso de vacina em nada altera o tratamento da Covid”.

Há que se notar ainda no exemplo anterior que a expressão “Não faz bem” se equipara, de certa forma, à afirmação “faz mal”, o que gera ainda mais distanciamento da primeira afirmação, a tese “vacina faz bem no combate à Covid”. Portanto, a obrigação de uso de uma antítese para atender ao formato triádico (tese, antítese, síntese) gera um combate argumentativo imediato, desnecessário e bélico. Antes de se chegar a uma assertiva de oposição há muitos degraus a serem percorridos dentro de uma via argumentativa.

Outro termo de relevância na reflexão é “cosmopercepção[ii], uma releitura da palavra “cosmovisão”. Esta alteração corresponde à tradução de “world-sense” e confere maior ambrangência na compreensão do ser humano e suas múltiplas possibilidades de captar e compreender a realidade em si e externa a si. Quanto

à nova terminologia encontram-se “socioenergia”, “eu estendido”, “oncestralidade”, que serão devidamente explicados no fluxo da exposição.

O trabalho metodológico, por característica, formato e necessidade acuida-se no aspecto acadêmico convencional. Entretanto, comporta-se também um olhar coletivo (uso da terceira pessoa do plural) e inclusivo (primeira pessoa do singular), com a adoção do discurso testemunhal (Seligman-Silva, 2008) e da experiência de vida (Hooks[iii], 2013). Esta fundamentação metodológica embasará as exposições em que, na condição de morador do Quilombo Mesquita, proferirei a discussão. O discurso testemunhal e experiência de vida serão utilizados (sem abrir mão da ferramenta bibliográfica), principalmente na segunda parte, quando é discutida a relação quilombola com a doutrina de Ramose.

2. Mogobe Ramose e a pluriversalidade do ser

A presente figura (figura 2) representa as múltiplas conexões de um ser. Os símbolos de infinito e as setas dispostas em múltiplas direções significam que a existência de um ser é condicionada à existência de muitos outros. Esta dependência existencial está relacionada com elementos cósmicos, ancestrais, biológicos, culturais, cronológicos, econômicos, psíquico-afetivos e assim por diante.

Discutir a pluriversalidade do ser a partir de Mogobe Ramose consiste em imersão profunda no conteúdo, forma e contexto daquilo que ele compreende como filosofia africana ou filosofia ubuntu, demonstrando a relação de proximidade entre elas, tendo a segunda por raiz e fundamento da primeira. Isto é evidenciado com o título de sua obra principal, Filosofia africana através do ubuntu. Nesta, Ramose afirma:

Ubuntu é a raiz da filosofia africana. O ser de um africano no universo é inseparavelmente ancorado no ubuntu. Da mesma forma, a árvore africana do conhecimento deriva de ubuntu com o qual está conectado indivisivelmente. Ubuntu então é a fonte que flui com ontologia e epistemologia africanas. Se essas últimas são as bases da filosofia, então a filosofia africana foi estabelecida há muito tempo em e através do ubuntu. (Ramose, 2005, p. 35)

Com isso, o autor explicita a importância da filosofia ubuntu, assim como sua firme e longínqua presença no continente africano. Assim também pensa Tejada: “vai do deserto de Núbia até o Cabo de Boa Esperança e do Senegal a Zanzibar” (Tejada, 1979 apud Ramose, 2005, p. 35). A presença generalizada desse paradigma filosófico (ubuntu) no ambiente sócio-cultural do continente africano corrobora a defesa de proximidade dessas duas realidades filosóficas.

A reflexão pluriversal contempla necessariamente também uma abordagem cosmológica, ecológica e holística, portanto, uma realidade existencial de múltiplas relações. Por isso, a terminologia se faz fundamental. O termo “universo”, por exemplo, atende às exigências semânticas e existenciais de uma realidade multifacetada? Ramose entende que não, uma vez que certas determinações classificadas por universais não abrangem a totalidade dos seres em questão. É o caso da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

A (...) “declaração universal dos direitos humanos” é problemática na medida em que significa que esses direitos devem ser os mesmos para todos, em todo lugar. A ênfase na mesmidade (sameness) sob a égide do “universal”, diz respeito à aparente intenção de estabelecer totalidade e hegemonia. Podemos ilustrar este problema da mesmização (samenization) fazendo referência à “Declaração dos Direitos da Mulher e do Cidadão” (1790) defendido pela madame Olympe de Gouges na França. Sua intenção era contrapor-se à “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” francesa (1789). O ponto central da “Declaração” opositora era, de fato, contestar o “esquecimento ou desprezo dos direitos das mulheres...” (Ramose, 2011, p. 9)


Figura 2
– Representação das múltiplas conexões que um determinado ser pode comportar
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

Vê-se que o debate explora contradições de um sistema dominante, demonstrando que uma aparente unificação conceitual (e também prática histórica) gera constantes exclusões. A configuração de direitos humanos constitui um conjunto de disposições que não se refere à humanidade como toda. O direito de autodefesa é exclusividade das nações dominantes; a filosofia limita-se à ocidental, a universalidade (mesmicidade) é excludente.

O termo “universo” vem do latim, unius (um) e “versus” (alternativa de…). A composição do termo sugere uma realidade marcada pela diversidade e não de uma unicidade. Diz respeito mais a uma situação de pluralidade e menos a uma realidade fechada e dominadora, resultante de um olhar unificado. “Universo” nesse contexto de “mesmeficação” é contraditório em si:

Considerando que “universal” pode ser lido como uma composição do latim unius (um) e versus (alternativa de...), fica claro que o universal, como um e o mesmo, contradiz a ideia de contraste ou alternativa inerente à palavra versus. A contradição ressalta o um, para a exclusão total do outro lado. Este parece ser o sentido dominante do universal, mesmo em nosso tempo. Mas a contradição é repulsiva para a lógica. Uma das maneiras de resolver esta contradição é introduzir o conceito de pluriversalidade. (Ramose, 2011, p. 9)

Frente a essa incoerência teórico-prática, a saída parece ser mesmo a adoção de uma nova terminologia, capaz de abarcar mais amplamente a realidade cósmica, em suas expressões incontáveis, dinâmicas, e até imprevisíveis, que ao contrário do que antes se defendia, não possui nenhum centro, mas sim uma constante mudança de paradigma. Esse termo recebe o nome de “pluriverso” :

Deve-se notar que o conceito de universalidade era corrente quando a ciência entendia o cosmos como um todo dotado de um centro. Entretanto, a ciência subsequente destacou que o universo não possui um centro. Isto implicou na mudança do paradigma, culminando na concepção do cosmos como um pluriverso. Parece que a resistência do “universo” mostra uma falha que aponta para o reconhecimento da necessidade de um deslocamento do paradigma. Neste ensaio optamos por adotar esta mudança de paradigma e falar de pluriverso, ao invés de universo. (Ramose, 2011, p. 10)

Prosseguindo a reflexão, Ramose trabalha a distinção entre Ser e entes, sendo que o primeiro consiste na manifestação da multiplicidade e diversidade dos demais. Esses entes são identificados a partir de suas especificidades, e essa situação de primazia da particularidade que erroneamente é concebida como a condição ontológica originária do ser. Esta perspectiva contribui para substituição da pluriversalidade original do ser por uma dimensão de particularidade, especificidade e individualidade:

Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser. (Bhom, 1980 apud Ramose, 2011, p. 10)

Nota-se que a adoção da singularidade como condição “ontológica originária do ser”, acaba por inseri-lo fora da sua conexão pluriversal e jogá-lo na contínua necessidade de negação do outro. A afirmação identitária do ser (ente) exclui automaticamente as demais. Temos assim a exaltação de uma característica fundamental do pensamento ocidental, o individualismo:

Na prática, esta disposição filosófica do ser é experimentada como a exclusão dos outros, que não aparecem como sendo o mesmo que nós, ou que são percebidos como uma ameaça à mesmidade inscrita em nossa particularidade. Esta lógica da exclusão foi experimentada historicamente, como o foi para nós, na cristianização e colonização dos outros povos do mundo. O significado filosófico desses eventos históricos é a afirmação de que uma perspectiva particularista pode reivindicar o direito de se impor como a primeira e única experiência, conhecimento e verdade se encaixam e se tornam válidos para todos os outros seres humanos independentemente de suas condições existenciais. Esta é a peculiaridade do esforço de suprimir e mesmo eliminar a pluriversalidade do ser. Esta é a base para o questionável e equivocado conceito de “universalidade”. (Ramose, 2011, p. 10)

Essa lógica da exclusão baseada em uma percepção equivocada de universalidade sustentou o protagonismo de um posicionamento velado, esse que acentua a particularidade como ponto de partida da filosofia. Sua estrutura de pensamento caracteiza-se como “universal”, mas sua prática em nada dirige atenção ao mundo da cultura, sexo, gênero, religião. Com isso, sua contradição interna é mais que evidente.

A esta altura da discussão, Ramose defende que a particularidade só pode ser um princípio válido da filosofia se essa tiver em conta as múltiplas interações da pluriversalidade do ser, elementos tais como cultura, sexo, gênero, momento histórico, localização geográfica. Nesta perspectiva, a particularidade passa a conectar-se à coletividade. Caso contrário, tem-se a lógica da exclusão, essa que se disfarçar de universalismo e gera múltiplas consequências.

Por conseguinte, a concepção de ser cósmico abarca um conjunto amplo de elementos orgânicos e inorgânicos, materiais e imateriais, presentes, passados, futuros e ancestrais. Na verdade, a divisão da natureza entre matéria orgânica e inorgânica não é algo apropriado. Na verdade, acaba por consistir no principal fundamento de uma concepção fragmentária, pois separa vida e cosmos. Consequentemente, explicita-se uma tendência milenar da mente humana em querer explicar de forma igual realidades expressamente diferentes.

Essa percepção fragmentária parece ser imposta à mente humana pela própria natureza, enquanto desenvolve o seu processo evolutivo. A natureza é fragmentada à medida em que manifesta o seu caráter através da multiplicidade e pluriformidade dos seres vivos e não-vivos. Mas essa fragmentação ainda deixa a natureza intacta como uma totalidade. A totalidade é composta pelas totalidades parciais, mas sem reduzir-se a elas.

Tais diferentes realidades (matéria inorgânica e orgânica) estão, portanto, fortemente conectadas, visto que conceito de vida remete, ao mesmo tempo, à matéria inorgânica e orgânica:

Com relação à primeira, parece supor que os constituintes básicos da vida já estão presentes na matéria inorgânica. Nesse estágio, os constituintes existem em suas formas simples e, assim, chegamos à estrutura fundamental da matéria que consiste em partículas que não são “realmente partículas no sentido comum da palavra. Além disso, podem nem ser que se refira a todas as coisas”. Um correlativo à estrutura fundamental da matéria é o conceito, bem como as constantes fundamentais da realidade, que são “certas quantidades que desempenham um papel básico na física e que têm o mesmo valor numérico em todo o universo e em todos os momentos no tempo”. (Davies, 1983 apud Ramose, 1992, p. 590)

Por conseguinte, da relação entre as partículas fundamentais e as constantes fundamentais é que surge a vida, de um movimento simples para um complexo, mas nunca distante ou fora da matéria. A transição da não-vida para a vida dá-se em um nível particular da evolução. Assim, os organismos vivos podem ser considerados:

(...) matéria organizada de maneira especial, e não como matéria investida de uma propriedade especial “vida” além do escopo da ciência física... Tal suposição não pode impedir uma consciência sensível sobre aspectos do comportamento dos organismos vivos que não podem ser expressos em termos de física e química. (Peacocke, 1965 apud Ramose, 1992, p. 587)

Segue-se, pois, que Ramose entende que não há que se falar em gap entre vida e não-vida, uma vez que vida é resultado da estrutura fundamental da matéria e de sua fundamental constante. Os novos seres constituem uma específica totalidade com direitos próprios, não mais constituinte único básico de um novo todo; a vida é um conceito holístico.

Assim compreendendo, a vida não se reduz à realidade terrestre, ela é fenômeno cósmico e o mais importante aspecto do universo (pluriverso) em si mesmo. Fundamental observar ainda que cada vida que surge traz em si a capacidade de manutenção, regulação, sustentação, codificação e assim por diante. De certa forma, tem-se aqui um sistema autônomo. Não se fala de autonomia plena, visto que cada realidade existente encontra-se conectada ao mundo cósmico. Pode-se falar então de microcosmo, sistema com autonomia, mas, também conectado e dependente.

Como pode verificar, o autor desenvolve uma linha de reflexão que busca tanto evidenciar as articulações entre os seres da natureza, como também demonstrar a sua continuidade, independente das alterações formais que possam acontecer. Mas esclarece que não defende nenhum tipo de vitalismo ou sistema semelhante. Reconhece o valor da ciência e não chancela nenhum absolutismo filosófico.

Afirma que a vida não é resultado da intervenção de um pássaro, nem a mente (ou alma) consista em algum tipo de importação de um outro universo. Elas são realidades que estão conosco e fazem parte de nós. A concepção da vida como uma força indivisível difere-se do posicionamento religioso, o qual entende a mesma como resultado da ação de entidade externa que desenha, cria e protege.

Assim, temos que Ramose manifesta uma visão profundamente holística da existência. Compreende a realidade cósmica não como universo, mas sim como pluriverso, pois as realidades são diversas em suas realidades, expressando sempre suas especificidades, sem perder a conexão com o todo. Essas realidades múltiplas conectadas, contudo, não são propriamente as mesmas ao mesmo tempo, considerando que estão também em contínua evolução. Elas compõem um movimento contínuo do “ser sendo” e segue seu curso tendo o equilíbrio cósmico por alvo principal.

Por fim, tem-se a concepção de um pluriverso sem hierarquia, centro, periferia ou geopolítica. Sendo assim, não há porquê o ser humano sentir-se e agir como centro do universo. Nas partes do todo ou no conjunto das totalidades, a existência acontece e busca sua plena realização.

3. Pluriversalidade do ser e relação com o espaço na cosmopercepção quilombola

Antes de entrar propriamente na temática quilombola, gostaria de me inserir no contexto, expondo o meu lugar de fala (Ribeiro, 2017). Sou um aquilombado[iv] do Quilombo Mesquita, Cidade Ocidental, Goiás, há quase 40 anos, quilombo esse surgido por volta de 1746. Essa vivência de inculturação, parceria e conhecimento trago para o seio da pesquisa. Insiro-me, portanto, no contexto da experiência, tal qual defende hooks (2013). Procedimento semelhante tem Suely Carneiro (2005), ao fazer uso do testemunho. Portanto, associo a experiência à ciência, a fim de melhor enriquecer a reflexão.

3.1. Quilombo, uma realidade pluriversalizada no Brasil

Quilombo tem sua origem no kimbundu (língua falada por povos bantu), kilombo, e significa local de descanso, acampamento na floresta. No Brasil, quilombo adquiriu significado de lugar de resistência ao escravismo, o que se consolidou como a principal forma de enfrentamento do Estado e da sociedade racista, uma prática que atingiu o País como todo:

O fato é que, no Brasil, como nos demais países nos quais o escravismo moderno existiu, a revolta do negro escravo se manifestou. Devemos dizer, para se ter uma ótica acertada do nível de resistência dos escravos, que a quilombagem foi apenas uma das formas de resistência. Outras, como o assassínio dos senhores, dos feitores, dos capitães-do-mato, o suicídio, as fugas individuais, as guerrilhas e as insurreições urbanas se alastravam por todo o período. Mas o quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo. (Moura, 1986, p. 25)

Sendo, portanto, um fenômeno generalizado, a quilombagem funcionou como uma cunha fincada no tronco do sistema colonial, gerando danos econômicos, políticos e sociais: causava prejuízos na produção, na máquina estatal e na normalidade social. Uma vez que se constituiu na principal forma de resistência negra, o aquilombamento constituiu seu formato pluriformemente, observadas, inclusive, diferenças regionais e sociais. Atualmente se estima um total de 5.972 comunidades quilombolas no Brasil, entre essas apenas 323 (distribuídas em 176 territórios quilombolas)[v] já receberam o título das terras.

Tendo em vista um número tão elevado de comunidades, faz-se necessário atentar para a complexidade e diversidade de sua amplitude. Isso implica na necessidade de consideração da multiplicidade em que essa realidade se manifesta. É por isso que afirma Abdias do Nascimento:

O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar locaiizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. (Nascimento, 1980, p. 255)

Portanto, nessa diversidade que tanto envolvia entidades reconhecidas, como também as clandestinas, a luta antirracista acontecia. Nela se fortalecia o sonho de liberdade, mas também a guarda de um cabedal imenso de valores culturais e societários, os quais podem ser chamados de quilombismo:

Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos que nós conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os “ilegais” foram uma unidade, uma afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo. (Nascimento, 1980, p. 255)

Dessarte essa conformação resistente e resiliente, as consequências do quilombismo não se contiveram às fronteiras político-sociais de um seguimento afro-brasileiro. Pelo contrário, abriu portas a outras formas de organização social, inclusive a democracia. Neste sentido, afirma uma declaração do Movimento Negro Unificado Contra o Racismo e a Discriminação Racial:

Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de Zumbi, líder da República Negra dos Palmares, que existiu no Estado do Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos, para declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data: 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra! Dia da morte do grande líder negro nacional, Zumbi, responsável pela primeira e única tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática, ou seja, livre, e em que todos – negros, índios e brancos – realizaram um grande avanço político, econômico e social. Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos. (Nascimento, 1980, p. 256)

Ciente do alcance e importância do quilombismo para os(as) afro-brasileiros(as), mas também para a sociedade em geral, Abdias Nascimento, tenta expliccitar de forma bem pedagógica o que realmente consiste este paradigma político-social. Para isso faz uso da estrutura alfabética (ABC do quilombismo), assim como um conjunto de dezesseis princípios e propósitos. Seguem a citação de alguns desses pincípios:

1. O Quilombismo é um movimento político dos negros brsileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram e existem no País.

2. O Estado Nacional Quilombista tem sua base em uma sociedade livre, justa, igualitária e soberana. O igualitarismo democrático quilombista é compreendido no tocante à raça, economia, sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, enfim, em todas as expressões da vida em sociedade. O mesmo igualitarismo se aplica a todos os níveis de Poder e de instituições públicas e privadas. (Nascimento, 1980, p. 275)

Esta discussão poderia se estender por muito mais em profundidade e/ou desdobramentos, dada a quantidade e qualidade de teóricos(as) dedicados(as) a esta temática. Todavia, a relevância e pertinência da questão parece já razoavelmente demonstradas. Isso feito, direcionemos agora a discussão ao Quilombo Mesquita, no qual abordaremos os temas de pluriversalidade das relações, da ancestralidade e da dinâmica do ser, baseado na teoria ramosiana.

3.2. Pluriversalidade das relações quilombolas

Embora a maioria das pessoas no Quilombo Mesquita trabalhem em suas pequenas propriedades (agricultura familiar), raramente as atividades são realizadas de forma individual. Quase sempre há pessoas trabalhando conjuntamente no preparo da terra, plantio, capina, colheita, transformação da matéria prima e outros mais. Essas pessoas retribuem umas às outras por meio do pagamento convencional, trocas de dias de trabalho ou até permuta do trabalho por bens de consumo.

Além disso, há uma prática centenária, o famoso mutirão “treição”. Embora tenha sido esquecido por algumas décadas, devido às mudanças causadas pela construção de Brasília, essa prática retorna agora com muita energia. Mutirão é algo bastante comum no Brasil, mas o “treição” parece modalidade própria do Quilombo Mesquita e também do Quilombo dos Almeidas (Silvânia, GO). Sua particularidade consiste no elemento surpresa. As atividades são preparadas sem o conhecimento da pessoa que será favorecida. Essa, por sua vez, se trata de alguém em situação de muita necessidade.

Esta minha vivência comunitária e acadêmica muito tem proporcionado agradáveis surpresas. Uma delas ocorreu neste período de elaboração deste artigo. Estou me referindo ao livro “O Trabalho como Festa: algumas imagens e algumas palavras sobre o trabalho camponês acompanhado de canto e festa”, de Carlos Rodrigues Brandão (2020). A boa surpresa recai primeiro em saber que, além de Mesquita e Silvânia, o “treição” ou “traição” existe, existiu ou existirá também em algumas regiões de Goiás, Tocantins, Minas Gerais, Mato Grosso e Bahia.

Afirma Brandão:

Uma forma curiosa e hoje bastante rara de ajuda mútua e de trabalho vivido como festejo, ocorria com freqüência em Goiás e em algumas áreas rurais de Minas Gerais. Nunca ouvi falar de sua existência em outros Estados, mas acredito que ela seja ou fosse vigente também no Tocantins, regiões da Bahia na fronteira com Goiás e também no Mato Grosso. (Brandão, 2020, p. 5)

Após fornecer informações sobre os lugares de existência do referido mutirão, o autor descreve as particularidades dessa modalidade de trabalho comunitário:

A diferença entre esta modalidade de ajuda mútua, de mutirão, e as outras, bastante mais freqüentes, é que o próprio “dono do serviço” não toma a iniciativa de convocar parceiros, parentes e/ou vizinhos. Ele recebe em sua casa, em um clima de surpresa e festa, os trabalhadores do mutirão. E mesmo que por ventura ele saiba o que vai acontecer, ele deve representar o papel de quem de nada sabe. E o mutirão começa com uma traição, com uma “treição”. E este momento da chegada é um alegre e festivo rito de surpresa e acolhida. (Brandão, 2020, p. 6)

Por fim, o autor demonstra, por meio de um canto, o formato lúdico e solidário desses eventos:

Meu senhor dono da casa,

Meu amigo, meu patrão

Saia na porta da rua

Receber sua “treição”.

Eu vim aqui

Eu vim lhe visitar (bis)

Meu senhor dono da casa

De saúde como está?(bis)

Senhora dona da casa

Cinturinha de retrós,

Entra pra porta pra dentro

Vai coar café pra nós.

Eu vim aqui... (Brandão, 2020, p. 7)

Percebe-se características muito distintas daquelas do trabalho escravo do tempo do Brasil-colônia, do trabalho semelhante à escravidão (ainda atual) ou ainda do regime rigoroso do trabalho capitalista (ao menos em parte). Na verdade, a prática do mutirão é muito antiga e generalizada entre os povos tradicionais. Todavia, no Brasil, a prática tornou-se mais comum com o fim do regime escravocrata, ocorrendo com mais frequência entre os pequenos e médios proprietários e pessoas pobres (principalmente negras).

Nessas situações, além da prática da solidariedade, há outro elemento motivador: a força interativa. As pessoas conseguem produzir muito mais quando trabalham juntas. É notável a influência que uma exerce sobre a outra, propiciando, um clima de satisfação, força e energia. A motivação vem da boa vontade, do desafio, da queimadinha[vi] ou até por competição. As pessoas percebem experiencialmente o melhor resultado do trabalho quando estão no coletivo.

Tem-se então um encontro poderoso de troca de energias, sejam elas psíquicas ou biopsíquicas. Por alguma razão essas pessoas são motivadas a realizarem algo com muita desenvoltura e competência, almejando sempre atingir o ponto máximo de sua capacidade. Esta boa energia, força, estímulo, desafio ou competição é o que podemos denominar de sócio-energia, energia social ou energia coletiva.

Apesar do tema estar sendo tratado em referência a uma comunidade tradicional, marcada por elementos étnicos, pode-se afirmar que o fenômeno da sócio-energia é acontecimento contínuo e generalizado, repetido sempre que as pessoas se encontram em uma boa causa, a exemplo de construir a casa de uma idosa. São exemplos de relações pluriversais, ou seja, aquelas que conectam os seres em múltiplas dimensões, sendo que vários aspectos podem ser observados ao mesmo tempo: produção, solidariedade, motivação, competição, celebração, desfruto.

No tocante ao trabalho propriamente, as comunidades quilombolas exercem relações com a terra, com a ancestralidade, expressam resistência, liberdade e racialidade. O fato de poder trabalhar livremente um espaço sob seu domínio significa a conexão com a memória de seus antepassados, lutas para si e para seus descendentes. Trabalhar a terra significa gratidão e respeito ancestral no sentido vertical e horizontal.

De forma similar, o trabalhar a terra constitui-se em memorial racial, consciência negra, pois cada palmo de chão foi resultado de luta, resistência, resiliência e perseverança contra a opressão de um domínio racialmente branco. O fato de poder lidar autonomamente com a terra, retirar dela o seu sustento significa assegurar à pessoa negra o direito de produzir, desfrutar, compartilhar.

Assim, a relação com a terra tem sentido muito mais profundo que uma simples concepção de posse, uso ou propriedade. Aplica-se adequadamente aqui o que defende Mafeje (1973), a ideia de que não somos nós que possuímos a terra, mas sim, ela que nos possui. Na verdade, na perspectiva da pluriversalidade, o mais correto é afirmar que os seres humanos e a terra possuem laços de holisticidade; compartilham múltiplas dimensões e infinitas propriedades. Na perspectiva quilombola, terra é vida, qualidade de vida, ancestralidade, solidariedade.


Figura 3
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.


Figura 4
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.


Figura 5
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.

A concepção quilombola na relação com a terra (propriedade, posse, etc.) pouco se encaixa no paradigma capitalista ou socialista/comunista. Em primeira vista, o quilombismo parece mais próximo ao socialismo, e da mesma forma parece confirmar o arcabouço teórico do Decreto 4.887 (2003) e de alguns teóricos, como por exemplo, Clóvis Moura.

Quanto ao Decreto 4.887 (2003), sua perspectiva é coletivista: “A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2o, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade”.

Tanto no Artigo 2º, quanto na visão geral do documento, a abordagem guarda sempre o alcance coletivo. A comunidade é compreendida como um todo, regida por uma associação que lhe representa, administra e controla. A propriedade é coletiva e “pró-indivisa”. Sua garantia de permanência é selada pela caracterização de “inalienabilidade”, “imprescritibilidade” e "impenhorabilidade".

Não resta dúvida de que, em matéria coletiva, o Decreto atende muito bem a garantia do direito sobre a terra, permanência, segurança e estabilidade. Isto é fundamental, tanto em um contexto de reparação histórica, como no balizamento sócio-político-jurídico em âmbito nacional. Todavia, o fato de constituir-se apenas em um decreto revela certa fragilidade. Neste sentido, talvez seja necessário garantir uma força jurídica maior, o status de lei ordinária ou complementar.

Quanto ao aspecto individual, o Decreto não faz nenhuma referência, parte da perspectiva de que a comunidade quilombola é um único ser, homogêneo e articulado. Isso nem sempre condiz com a realidade. As comunidades tradicionais também lidam com conflitos e disputas internas, e seus membros muitas vezes são cooptados por agentes externos (políticos, empresários, etc.)

Na verdade, o próprio sistema escravizador era especialista em fomentar divisões entre as pessoas negras, e até mesmo contava com isso. Um dos métodos que utilizava era o de separar os/as escravizados/as de mesma língua, agrupando-os com outros/as de línguas diferentes. Com isso dificultava a comunicação e forçava a utilização da língua portuguesa. Não havendo relações familiares entre eles/as, reduzia-se também a possibilidade de existência de vínculos afetivos e reduzia os riscos de rebelião.

A divisão como método de controle foi utilizada em larga escala, como bem defende o teórico escravista, William Lynch (1712), em sua famosa carta. Esse método se estabeleceu bem no Quilombo Mesquita (e continua fazer estragos) por meio de favorecimentos financeiros, postos de trabalhos, disseminação de fake news e outros instrumentos (Neres, 2016).

Com isso, há necessidade de encontrar mecanismos de fortalecimento tanto das comunidades em âmbito coletivo, bem como, de cada pessoa e sua família, de forma que as relações externas e internas não sejam tóxicas, convergindo à consolidação de direitos plenos. Um olhar unicamente coletivista não capta a complexidade dessas comunidades e muito menos contribuirá a um entendimento pleno de sua cosmopercepção.

Essa percepção pluriversal leva à constatação de certas ambiguidades. Por um lado, temos um sistema capitalista, essencialmente liberal em sua teoria, mas profundamente limitador em sua prática. Esse sistema é o que leva restrição às comunidades, edificam cercas, muros, fortalezas e dificultam o trânsito livre de pessoas; prejudicam até mesmo o acesso a recursos naturais (água, frutos silvestres, plantas medicinais, pastos coletivos). Por outro, um sistema socialista (dito controlador) parece interagir melhor com o livre deslocamento das pessoas, de suas relações humanas e cósmicas, bem como de seu acesso a recursos naturais. Entretanto, esse mesmo paradigma (socialista) questiona o sentido e valor das raízes étnicas e identitárias.

Vejamos o texto:

A partir das entrevistas realizadas conclui-se que os oponentes ao quilombismo advogam para si o direito à propriedade privada e defendem os fundamentos capitalistas. Todavia, entre os quilombistas, embora não haja uma defesa explícita do socialismo, demonstram-se adeptos à legislação e aos trâmites legais de oficialização do quilombo e não deixam de demonstrar simpatia por atividades coletivas, como os mutirões, por áreas comuns e por liberdade de deslocamento, com redução das cercas e dos muros (direito de ir e vir). Enquanto os capitalistas dentro do território arrogam o direito de ir e vir para garantir a propriedade privada, os quilombistas exigem o mesmo, porém, com finalidade diferente - algo que incide na redução do poder sobre o domínio particular. Para os capitalistas, não poder vender as terras atenta contra a liberdade de deslocamento. Já para os defensores quilombolas, são os instrumentos de controle de posse (cercas, muros, fechamento) que comprometem a observância do princípio das liberdades individuais. (Neres, 2016, p. 110)

Fato é que a percepção quilombola parece ter uma medida mais justa em relação às articulações da vida: consegue perceber e balancear a gravidade de suas necessidades e as de seus semelhantes; correlaciona a medida de seus direitos com a dos demais. Um quilombola, por exemplo, não vê problema em compartilhar de seus bens com alguém que peça por estar necessitado ou até mesmo por querer apenas desfrutar algo interessante.

Vê-se capaz de compartilhar suas produções até pelo simples prazer de ver alguém se deliciar com algo bom ou ainda demonstrar a grandeza daquilo que produz: uma semente especial, um fruto apetitoso ou um n’golo[vii]. Esse tipo de relação demonstra conexão profunda com a natureza, consigo mesmo e com as pessoas. Produzir, aprender, reconhecer, compartilhar, acolher são características quilombolas comuns.

Mas a coisa pode ser vista também em outra direção. No Quilombo Mesquita há pouca coisa que desagrada às pessoas quanto o fato de alguém mexer em algo que não é seu sem a devida permissão. Seja roubo, furto ou empréstimo sem autorização, trata-se de algo abjeto e compromete seriamente a moral. Alguém se apossar de algo sobre o qual não tenha nenhum merecimento ou permissão é visto sempre como desprezível, que não cabe no rol dos costumes locais e, portanto, deve ser rejeitado.

Compreende-se, portanto, que as pessoas têm ciência de sua tangibilidade e transitoriedade em relação à propriedade da terra (e de outros bens), guardam reconhecimento e amor à ancestralidade que preservou e transmitiu os múltiplos benefícios, compreendem a grandeza da convivência e compartilhamento dos benefícios e responsabilidades da comunidade. Mas, por outro lado, arrogam a si o direito de autoridade sobre algo do qual dedicou cuidado, atenção e esforço, não importa se isso tenha o nome de propriedade, posse, direito de uso ou de usufruto.

Fato é que mesmo baseando-se na compreensão teórico-jurídica de que se trate de terras a serem tituladas como coletivas, as relações na prática continuarão as mesmas e com as mesmas exigências, isso quer dizer que haverá sempre necessidade dos mesmos laços de solidariedade, responsabilidade, reconhecimento dos méritos de cada pessoa, compromisso e honestidade. Consequentemente, há necessidade de melhor explicitação do que significa ser uma propriedade coletiva e mais ainda (devido a carência teórico-jurídica) de como se dá a garantia dos direitos individuais, familiares e até da natureza.

Nesse sentido afirma A. Bispo dos Santos:

Eu nasci no ano de 1959 no vale do rio Berlengas, numa comunidade chamada Pequizeiro, que fazia parte do conjunto de comunidades que formavam o povoado Papagaio, hoje município de Francinópolis, Estado do Piauí. Nessa região o uso da terra era demarcado pelas práticas e cultivos. Isso era tão forte entre nós que, apesar das pessoas mais velhas possuírem alguns documentos de propriedade, esses só tinham valor para o Estado. Para nós o que valia era os perímetros que chamávamos de extrema, demarcados pela nossa capacidade de cultivar e de compartilhar. Tanto é que a nossa roça era emendada com tantas outras roças que a chamávamos de roça de todo mundo. E nós podíamos pescar nos riachos e lagos, podíamos extrair frutos nativos e até cultivados, sem precisar pedir permissão a quem os cultivava. A consideração que devíamos era avisar o que tínhamos extraído. Talvez, por isso, até hoje muitas pessoas não entendam porque presenteávamos até os desconhecidos com o que tínhamos de melhor nas nossas roças. (Santos, 2015, pp. 81-82)

Como pode ser verificado, há um padrão ético consensuado tradicionalmente: “a consideração que devíamos era avisar o que tínhamos extraído”. Os bens da natureza e os produtos do trabalho são compreendidos como benefícios disponíveis de forma coletiva, mas também os esforços individuais e a autoridade sobre algo são assegurados, uma vez que é necessário “avisar” sobre o que extraiu. Parece que aqui há um link perfeito entre a dimensão coletiva, a grupal e a individual, sem nenhuma supervalorização ou diminuição de uma dimensão em relação às outras.

Fato é que, em sua maioria, as comunidades tradicionais, como os quilombos, conseguem articular bem as múltiplas dimensões, principalmente as de necessidades básicas:

Nem todo mundo tinha material de pesca. Por isso, uns jogavam tarrafas, uns mergulhavam para desenganchar, uns colocavam os peixes na enfieira, etc., de forma que todos participavam. Independente da atividade desempenhada por cada um, no final todas as pessoas levavam peixes para casa e a medida era o que desse para cada família comer até a próxima pescaria. Seguindo a orientação das mestras e mestres, ninguém podia pescar para acumular, pois melhor lugar de guarda os peixes é nos rios, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo. (Santos, 2015, p. 82)

Ainda nesta linha de reflexão, há outro aspecto digno de nota: a forma pluriversal em que os trabalhos são realizados nos quilombos. Diferentemente do trabalho de larga escala, setorizado, departamentalizado (indústria, monocultura), os/as quilombolas trabalham a terra de forma totalizante. Isto significa que as pessoas que preparam a terra são as mesmas que plantam, colhem, transformam (fazem a farinha, a rapadura), e também desfrutam de suas produções.

Por conseguinte, dificilmente acontece que um/a produtor/a quilombola não seja também consumidor de sua produção, a não ser nos casos em que trabalham para outros em condições assalariadas. Mas na maioria dos casos, quem produz também consome, compartilha ou comercializa. E neste sentido vem um outro registro: raramente quem planta come sozinho, o desfrute costuma ser coletivo.

Aqui parece encaixar bem a forma em que Ramose define a remuneração do trabalho na cosmopercepção africana pré-colonial. Na visão desses povos subsaarianos, a remuneração de um trabalhador não se destina apenas a ele, precisa atender às necessidades da família ampliada. Esse benefício tem que ser proporcional às pessoas que dependem dele para sua subsistência. O valor não se calcula por hora, mas sim, por vida.

Essa cosmopercepção vivenciada em Mesquita pode ser explicada com aquilo que defende Clóvis Moura:

A organização dos quilombos era muito variada, dependendo do espaço ocupado, de sua população inicial, da qualidade de terreno em que se instalavam e das possibilidades de defesa contra as agressões das forças escravistas. Aproveitavam-se desses recursos naturais regionais, e os exploravam ou industrializavam, dando-lhes, porém, uma destinação diferente no setor da distribuição. Ao invés de se centrarem na monocultura que caracterizava a agricultura escravista, que também monopolizava a produção na mão dos senhores, os quilombos praticavam uma economia policultora, ao mesmo tempo distributiva e comunitária, capaz de satisfazer as necessidades de todos os seus membros. Enquanto na economia escravista a produção fundamental e mais significativa era enviada para o mercado externo, e a população produtora passava privações enormes, incluindo-se o pequeno produtor, o branco pobre, o artesão e outras categorias, que eram esmagados pela economia latifundiário-escravocrata, nos quilombos, o tipo de economia comunitária ali instalado proporcionava o acesso ao bem-estar de toda a comunidade. (Moura, 1986, p. 45)

Ressalta-se ainda que os quilombos inauguraram um formato inovador de sociedade, moldando-se nos fundamentos de uma estrutura político-social inclusiva e antirracista:

As afirmações acima levam-nos a uma série de considerações gerais sobre a função dos quilombos como nódulos de resistência permanente ao sistema escravista. Não podemos, por isso, deixar de salientar que, durante todo o transcurso de sua existência, eles foram não apenas uma força de desgaste, atuando nos flancos do sistema, mas, pelo contrário, agiam em seu centro, isto é, atingindo em diversos níveis as forças produtivas do escravismo e, ao mesmo tempo, criando uma sociedade alternativa que, pelo seu exemplo, mostrava a possibilidade de uma organização formada de homens livres. Essa perspectiva que os quilombos apresentavam ao conjunto da sociedade da época era um “perigo” e criava as premissas para reflexão de grandes camadas da população oprimida. (Moura, 1986, p. 47)

Não deixando de acentuar a presença em maior número e importância das pessoas negras, os quilombos eram também compostos por outros segmentos oprimidos do período colonial: indígenas, pequenos produtores, fugitivos do fisco, etc.

Retornando ao Quilombo Mesquita, os pousos de folias são também dignos de destaque. É prática antiga e generosa. São: Folia de Reis e de São Sebastião (janeiro), Folia do Divino Espírito Santo (agosto), Folia de Nossa Senhora da Abadia (agosto) e Folia de Nossa Senhora Aparecida (outubro). As folias do Divino e de Nossa Senhora da Abadia são as mais participadas.

Esses eventos para que aconteçam, carecem de muita gente envolvida, seja isso na infraestrutura ou na execução dos próprios rituais (cantorios, danças, etc). Uma boa parte das atividades ocorre no pouso de folia, uma residência anfitriã que recebe os foliões, as insígnias do/a santo/a celebrado/a e os/as convidados/as. Neste local, as pessoas rezam, alimentam-se, divertem-se e repousam.

Mesmo que se trate da residência de alguém que acolhe, as despesas e os trabalhos são bem compartilhados. Muitas pessoas doam alimentos, materiais de consumo, tempo e criatividade. O local é cuidadosamente preparado e enfeitado, os alimentos são feitos com esmero e fartura, de maneira que seja preservada a boa qualidade, assim como a quantidade suficiente, independentemente do número de pessoas presentes.

A participação é aberta a todos os presentes, seja nos rituais, danças, alimentação, convivência. Ninguém paga nada por isso. Todavia, à medida que as pessoas convivem, envolvem-se e/ou tomam conhecimento da importância desses acontecimentos, também acabam por assumir as responsabilidades de sua continuidade. Com isso voluntariam-se a serem anfitriãs nas próximas edições, além de se comprometerem cada vez mais com as necessidades da festa. Com isso, o evento é favorável tanto a quem acolhe, quanto a quem é acolhido porque há um compartilhamento generoso de boas energias, criatividade, disponibilidade, fé. A pessoa anfitriã não se sente só diante de tamanha responsabilidade, nem as demais sentem-se ignoradas, indesejadas ou isentas de responsabilidade. Há uma confluência profunda de intenções e realizações.

3.3. Pluriversalidade da ancestralidade quilombola

A pluriversalidade do ser em uma lógica ramosiana associa-se perfeitamente à dimensão de ancestralidade na perspectiva quilombola. Para uma boa compreensão dessa questão é importante explicar que ancestralidade nesse ambiente sociocultural não se reduz às conexões biogenéticas de descendência. Para além disso, compreende-se fatores psíquicos, ambientais, cosmológicos, sucessivos e colaterais. A existência de um ser condiciona-se às conexões com esses múltiplos fatores acima mencionados.

Para explicar melhor essa questão, podemos recorrer a um exemplo bastante comum, o caso da utilização das palavras “nascimento”, “crescimento” e “morte”. Isso é bem ilustrado na figura 6, a qual consiste na representação de um espectro nas dimensões de passado, presente, futuro. No primeiro círculo, o espectro está imerso em um oceano; no segundo, ele está na praia e no terceiro retorna ao oceano. Nos três casos, o elemento água condiciona a existência do ser. As intersecções que conectam os círculos significam que as três realidades estão interligadas em todas as fases da linha temporal, independentemente se o contexto se caracteriza mais com o passado, presente ou futuro.

As palavras “nascimento”, “crescimento”, “morte” são rotineiramente utilizadas fazendo referências a seres vivos. Todavia, aplicam-se os mesmos termos no tocante a demais seres da vida cósmica: “morte de uma estrela”, “nascimento de um rio”. A consequência imediata disso é o enlarguecimento do alcance da palavra “ancestralidade”. Seus limites ultrapassam as barreiras do humano e esbarram as fronteiras do mundo cósmico. Ancestralidade compreende elementos biofísicos, genéticos, psíquicos e até espirituais.

Nesta mesma linha de discussão insere-se a figura dos mortos-vivos, pessoas já falecidas, mas que de alguma forma atuam nas instâncias da vida cotidiana, principalmente nos momentos fortes de tomadas de decisão. Conforme bem narra Ramose


Figura 6
Conexão ancestral
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

(2005), para que alguém, dentre os antigos africanos, fosse considerado da comunidade, havia um conjunto expressivo de rituais que a pessoa deveria se submeter. Nesses rituais, por um lado, o membro era incorporado ao mundo de seus ancestrais e, por outro, recebia a investidura, a missão que deveria desenvolver ao longo de sua vida terrena.

Desta forma, além de nascer dentro de um grupo étnico, a pessoa precisava ser acolhida e reconhecida pela comunidade. A aceitação do novo membro significava acolhimento de toda a comunidade, dos mais velhos aos mais novos e, mais ainda, dos ancestrais falecidos (mortos-vivos), dos quais a vontade deveria ser também interpretada.

Nesse caso pode-se perceber a ocorrência simultânea na ancestralidade de elementos sócio-culturais, psíquicos e até espirituais, além dos genéticos. Trata-se, portanto, de um conjunto amplo do qual a pessoa precisa ter ciência, ser aceita e aceitar. São vários elementos atuando ao mesmo tempo, sejam eles referentes ao conhecimento da história, do senso de pertencimento e da segurança de ser acolhido em uma realidade em que se vê herdeiro de valores e benefícios, mas que precisa dispor-se a contribuir com a continuidade do legado. Sua identidade é moldada conjuntamente com a missão recebida.

Essa forma de manifestação da vivência ancestral é semelhante nas comunidades quilombolas. Embora os rituais não ocorram na forma antiga, como, por exemplo, derramamento de sangue, esses eventos são recorrentes, principalmente, por meio de cerimônias religiosas (cristianismo e religiões afro-brasileiras).

No caso de Mesquita, os traços de ancestralidade são muito acentuados. Ilustra bem isso o caso dos cemitérios. O território demarcado do Quilombo Mesquita é composto de apenas 4.200 hectares, havendo um centro mais populoso, alguns núcleos menores e a maior parte do território caracteriza-se por espaços isolados, florestas e áreas de cultivo.

Nesse espaço relativamente pequeno há uma totalidade de oito cemitérios de adulto e um de crianças (cemitério dos anjinhos). O fato de uma população de aproximadamente 3.000 pessoas habitar uma área de aproximadamente 4.200 hectares, não parece ser justificativa suficiente à


Figura 7
– Árvore genealógica de uma das famílias tradicionais da comunidade
elaboração própria (Neres, 2016, p. 41).

existência de um número tão elevado de cemitérios.

Mas há algumas situações que talvez melhor expliquem esse fato. A primeira parece ser mesmo a consciência dos vínculos ancestrais e isso faz com que as pessoas queiram ficar perto de seus parentes, mesmo após a morte. Isso significa que a morte não rompe os sentimentos de pertencimento e a sensação de estar em constante interação. Possivelmente, o sentimento de conexão ancestral após a morte pode ser até mais fortalecido, visto que a morte atribui ao ser um aspecto de transcendência.

Esse novo status traz em si a sensação de que o ente querido adquire maior poder de intervenção, o que pode ser revertido em defesa da família, na orientação da consciência para tomada de decisões, na proteção dos bens para que haja prosperidade, preservação da saúde, união da família e garantia de continuidade.

Percebe-se nesse último aspecto (garantia de continuidade) algo bem paradoxo: a morte tida sempre como o decreto de finalização de tudo, nesse caso caracteriza como a garantia de continuidade tanto do grupo, quanto de todas as condições ambientais. Considerando que a vivência de um ser

humano depende da coexistência com a natureza, garantir a vida humana associa-se à preservação da existência dos demais. Quer dizer, vida para todos.

Temos com isso que o status de morto não representa derrota, mas sim, elevação. Morrer significa adquirir condições sobrenaturais com possibilidade de intervenção em todas as dimensões, inclusive na natureza. Os entes queridos falecidos podem então ajudar na garantia da chuva, do controle das pragas, da saúde, da paz e da prosperidade.

A segunda explicação que parece também bastante óbvia é o fato (já aludido acima) de que o agrupamento dos escravizados não se deu de forma alinhada, em harmonia com as tendências étnicas dos/as africanos/as expatriados. Isso torna comuns as situações de conflito entre quilombolas, algumas que inclusive, perduram e perpassam gerações, algo recorrente no Quilombo Mesquita.

Desta forma, é perceptível que a ancestralidade não herda apenas coisas boas; ao contrário, impacta em muito e negativamente a realidade comunitária, principalmente quando se trata de algo motivado e/ou alimentado. Essas tensões atualmente são amplamente potencializadas por meio de ações de cooptação, capitaneadas pelo poder político e econômico locais, fato que muito tem prejudicado o processo de regulamentação do próprio território quilombola junto aos órgãos de Estado (Neres, 2016).

Não obstante, a dimensão ancestral no Quilombo Mesquita é explicitada de forma direta, seja ela no sentido vertical (avó-filha-neta) ou “oncestral”[viii] (relações concomitantes, colaterais). Verdade é que as pessoas, em sua maioria, são conhecidas por seus vínculos familiares: fulano, filho de beltrano, primo de fulana, e assim se segue.

Talvez por isso, a construção das árvores genealógicas não seja uma das missões mais difíceis de serem realizadas. Uma simples conversa com alguém adulto, preferencialmente mais idoso, é suficiente para uma boa compreensão dos laços familiares que compõem a teia local. E isso tendo em conta a complexidade da teia ancestral após quase três séculos de história.

O amplo reconhecimento dessas linhagens ancestrais tem múltiplas consequências, além das prerrogativas identitárias reconhecidas de seus membros e direitos de herança: favorece o direito de liderança sobre alguma entidade civil ou religiosa, concede certo status profissional, assegura a guarda de valores culturais (receitas, perícia em fazer algo), favorece em algumas carreiras que dependam de escolhas por meio de sufrágios (política partidária e similares).

Conquanto muitos sejam os benefícios da ancestralidade na comunidade, não deixa de haver, por sua feita, alguns infortúnios. Ter relações de proximidade com alguém que cometeu algum delito mais sério ou que não atendeu às expectativas de um serviço contratado são situações comprometedoras à toda parentela. De qualquer forma, como quase tudo nesta vida, as conexões ancestrais não portam apenas benefícios. Por uma razão ou outra, ou até sem nenhuma razão aparente, as coisas podem tomar significados diferentes, basta que as circunstâncias também mudem.

Um exemplo de mudança (positivamente falando) tem sido em relação à concepção quilombola em si. Antigamente, a sociedade em geral encarava negativamente a existência de um quilombo e mais ainda a “audácia” de alguém se manifestar quilombola. Com o passar dos anos, com o advento de novas ideias e maior manifestação do espírito, essa percepção tem mudado. Desconsiderando o interesse e mesquinharia de alguns grupos de poder e de pessoas cooptadas, a maioria da sociedade (inserindo aí os/as quilombolas) já percebe a quilombidade como um fator importante à evolução do espírito humano e da vida cósmica. Isso é uma nova realidade.

3.4. A perspectiva dinâmica do ser em uma cosmopercepção quilombola

Este quadro do pintor alemão, Johann Moritz Rugendas, pintado em 1820, registra as imagens de pessoas africanas escravizadas de dez etnias: 1 - Angola, 2 - Congo, 3 - Benguela, 4 - Monjolo, 5 - Cabinda, 6 - Quiloa, 7 - Rebolo, 8 e 9 - Moçambique, 10 - Mina (figura 8).


Figura 8
– Pinturas representativas de dez etnias escraizadas
Rugendas (1820) citado na obra de Neres (2016, p. 31).


Figura 9
– Placa indicativa Quilombo Mesquita
Fonte: elaboração própria, 2015.


Figura 10
– Placa indicativa pichada
elaboração própria, 2015.

A perspectiva dinâmica do ser, um dos temas centrais da pesquisa em pauta, reflete a realidade em um movimento constante entre o “já” e o “ainda não”. Retornando à palavra ubuntu, ubu diz respeito ao ser em geral voltado sempre à realização, que por sua vez é ntu. Com isso temos um ser que já é (sem ser totalmente) e um ser que ainda não é (já sendo). Todavia, se por um lado tem-se o ser que é sem ser e, por outro, o ser que ainda não é sendo, conclui-se que o ser está em contínua busca de sua plenitude, a qual se encaminha na conexão das duas realidades (ubu e ntu).

Esse encontro dialético da realidade já presente, mas também sempre voltada a uma nova manifestação, realiza-se principalmente por meio da

ancestralidade; ela é o elemento conector que dá ordem à teia da existência em perspectiva ancestral e “oncestral”; isso dentro de uma dinâmica temporal constante que, de certa forma, relativiza a fragmentação de passado, presente futuro. A eterna interligação das realidades faz com que a existência flua em sentido pleno e insaciável, no horizonte reomodal[ix] do ser “sendo”.

Essa realidade incorpora a cosmopercepção quilombola, identificável em múltiplas manifestações: ciência e consciência da teia ancestral, a existência da luta como algo incorporado à vivência do dia-a-dia, dinâmica fluída do tempo, a guarda atualizada do cabedal cultural. Visto que já refletimos bastante sobre a ancestralidade, vamos nos limitar agora aos dois outros aspectos.

A perspectiva dinâmica do ser em contexto quilombola incorpora-se, primeiramente, à vivência do dia-a-dia. Observando-se o passado encontra-se um histórico de luta pela sobrevivência, pela liberdade e por direitos básicos, como o acesso à terra. Se o foco é o presente, a luta concentra-se na defesa do território, da segurança alimentar, educação, saúde, combate ao racismo. Mas quando se olha ao futuro, a principal missão é evitar a repetição dos erros históricos da política da inimizade[x], construir relações antirracistas estáveis, contribuir à sociedade do futuro com muitos de seus valores, ocultados pelo racismo individual, estrutural e institucional.

Contudo, dado que na perspectiva da ancestralidade, a dimensão temporal é mais constância que fragmentação, a afirmarção mais coerente a ser feita é a de que todas as exigências da luta quilombola são sempre contemporâneas e necessárias. É a concretização explícita e contundente do ser “sendo”, uma verdade persistente, teimosa e atual, fazendo e perfazendo-se como efetividade ontológica condicionante da quilombidade.

A necessidade da luta abarca a defesa da identidade quilombola, seja ela compreendida como um eu coletivo ou uma coletividade. O próprio termo “quilombola” é um ser reomodal, dada a ressignificação constatemente recebida. Mas essa ressignificação não representa a totalidade. As divergências são resultantes das ações estratégicas dos grupos político-econômicos interessados na exploração dos territórios quilombolas, na deserção do grupo quilombola cooptado, ou talvez, isso tudo junto na qualidade de produto final do racismo em suas diversas manifestações.

A luta em torno do termo “quilombo” e "quilombola", na qualidade de combate simbólico, concretiza-se também em proibições, perseguições funcionais, manifestações violentas. É o que ocorre, por exemplo, no município de Cidade Ocidental, onde se encontra o Quilombo Mesquita. Nessa parte da Federação, há proibições veladas e explícitas de utilização desses termos nos documentos e comunicações oficiais. Simplesmente, “quilombo” e “quilombola” são palavras proibidas pelo governo local, quando referidas a Mesquita. Todavia, os/as quilombolas não desistem de suas prerrogativas e narrativas.

A perspectiva dinâmica do ser manifesta-se como realidade fluída do tempo. Caso se considere o campo territorial, ancestral, cultural ou de luta, o tempo quilombola é pluriversal, dialético e reomodal. Isso pode ser bem explicado tomando, por exemplo, a relação tempo e trabalho da terra.

Aparentemente, a realidade temporal manifesta-se como algo sempre bem resolvido, principalmente naquilo que diz respeito às quatro estações (por sinal, um número que inspira sempre exatidão e estabilidade). Apesar disso, para quem lida com a terra, a realidade é sempre muito incerta. Há previsões que podem ser feitas, baseando-se nos conhecimentos populares e nos científicos. Apesar disso, a realidade em que se lida é muito incerta, acarretando sempre uma sensação de insegurança e aventura.

O tempo é um verdadeiro fanfarrão. Acreditar nele é sempre grande risco. Com ele, a incerteza parece ser a grande verdade. O tempo revela sim, seus segredos, mas sempre em conta-gotas; mostra por um lado e esconde-se por outro. É possível se prever quando e onde haverá chuvas, assim como o sol, o frio, o vento. Contudo, a previsão não é garantia. Sabendo disso, quem trabalha a terra precisa estar disposto/a a refazer os planos a cada nascer do dia, pois a surpresa pode bater à porta.

Essa mesma dinâmica é observada em relação aquilo que se produz, às receitas, às espécies que se cultiva. Alguns elementos permanecem e se consolidam com o passar do tempo, outros não. Tratando-se do Quilombo Mesquita, temos o caso do quiabo-de-angola, conhecido também por cuxá, vinagreira, azedinha, hibisco. Tradicionalmente se cultiva uma espécie originária da África e da Ásia. É uma planta muito versátil, utilizada para se fazer tanto comidas, quanto bebidas.

Apesar de tratar-se de uma produção muito estável, ultimamente têm ocorrido inovações. Através de parcerias feitas com a Embrapa local foi possível se adquirir novas espécies e, atualmente, aquilo que se reduzia ao cultivo de uma única espécie agora são ao menos quatro tipos diferentes. Além disso, há ainda a possibilidade de aquisição de uma quinta espécie, autóctone do Senegal.

Sendo assim, uma prática centenária, rica, diversificada, baseada em uma única espécie é agora fortalecida com pelo menos mais três espécies diferentes. O aumento do potencial produtor agora pode ser estimado por simples dedução lógica, mas dentro de uma lógica que não costuma ser extremamente exata.

Em seguimento a isso, um outro aspecto corrobora bem essa dimensão pluriversal do ser. Trata-se de elementos da cultura e da tecnologia. As comunidades quilombolas são ricas em exemplos de recursos tecnológicos, que marcaram épocas e acabaram sendo incorporados à cultura local (ou até mesmo ultrapassaram suas fronteiras). Foi o caso da tecnologia de manipulação dos metais, da produção do açúcar, da construção dos canais de fornecimento de água, dos monjolos, roda d’água, e outros mais.

O monjolo, cujo nome homenageia uma etnia africana, consolidou-se como tecnologia de uso amplo e ainda hoje é encontrada, mesmo após o advento dos equipamentos elétricos. Sua proposta de solução de problema nem só faz memória aos tempos antigos, como demonstra sua aplicabilidade atual, na qualidade de uma tecnologia simples, cujo funcionamento não gera dano ambiental.

Com isso temos a constituição de uma cosmopercepção pluriversal da realidade, onde o tempo é percebido em sua dinamicidade, mas que nunca se manifesta por meio de ruptura ou fragmentação. A realidade coaduna-se por meio de elementos antigos, novos ou atualizados. E da mesma forma, a luta se compõe de antigos e novos elementos, porque assim também é a opressão. Essa é a realidade quilombola, bem como da luta antirracista: tensa, intensa e contínua. E assim também compreende o seu espaço existencial, determinado por relações conectadas, dinâmicas e equilibradas.

4. Considerações finais

Tendo em vista a discussão desenvolvida até aqui parece consequente que a concepção pluriversal do ser, fundamentada em Mogobe Ramose e ressonante na cosmopercepção quilombola, nos conduza a uma ideia de espaço amplamente conectada. Suas nuances são plurais, grupais, mas também individuais. São humanas, mas também animais, vegetais e cosmológicas.

Nessa lógica, não encontra muito sentido a estruturação de uma sociedade extremamente dividida, entre centro e periferia, bairros nobres e setores pobres. Não comportam também um sistema rígido de fronteiras, sejam elas locais, nacionais ou internacionais. A realidade cósmica comporta um conjunto infinito de relações, o que inclui intercâmbios diversos: culturais, científicos, tecnológicos, vivenciais.

Por conseguinte, a concepção pluriversal do ser posiciona-se de forma divergente de um paradigma social individualista que impacta de maneira excessiva, principalmente as políticas públicas, direciona opções e ações empreendedoras, com demandas subjetivas, em áreas como habitação, transporte, produção. O resultado disso é sempre catastrófico ao equilíbrio ecológico.

A dimensão de espaço é também ancestral e “oncestral”, sua existência encadeia as relações sucessivas de maneira real e simbólica. Com isso, o aspecto temporal vai além de uma simples sucessão de períodos; pelo contrário, se entrelaça no conjunto amplo das gerações. Com isso, espaço é também memória, identidade e afeto.

Dado que a realidade se faz em contínuo movimento do “ser sendo”, consequentemente, a concepção de espaço igualmente é dinâmica e, por isso, permite sempre atualizações e aperfeiçoamento. Contudo, o conceito de mudança nem sempre coincide com o de progresso; de quando em quando mudanças provocam regressos. Por isso, a chave identificadora de uma evolução real consiste na busca perseverante do equilíbrio cósmico. Sendo assim, parece coerente afirmar que, dependendo do contexto existencial, um simples recuo pode resultar em grande avanço.

Material suplementario
5. Referencias bibliográficas
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Notas
Notas
[1] Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília (FIL-UnB). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1658-1650. E-mail: maneneres@gmail.com.
[i] Cosmopercepção é um termo de autoria do Prof. Wanderson Flor do Nascimento, da Universidade de Brasília, quando traduz “world-sense” (original da escritora nigeriana, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí) e significa a capacidade de compreender a realidade por sentidos físicos, emocionais e intelectuais.
[ii] Traduzo aqui a expressão ‘world-sense’ por ‘cosmopercepção’ por entender que a palavra ‘sense’, indica tanto os sentidos físicos, quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensamento. A palavra ‘percepção’ pode indicar tanto um aspecto cognitivo, quanto sensorial. E o uso da palavra ‘cosmopercepção’ também busca seguir uma diferenciação – proposta por Oyěwùmí – com a palavra ‘worldview’, que é, usualmente, traduzida para o português como ‘cosmovisão’ e não como ‘visão do mundo’ (N. da T.)” Esta nota é de autoria do professor da Universidade de Brasília, Wanderson Flor do Nascimento, na oportunidade em que traduz para fins didáticos o texto Visualizando o corpo: teorias ocidentais e sujeitos africanos, de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí.
[iii] Sempre escrito com “h” minúsculo, por opção da autora.
[iv] Termo atribuído a quem tem vivências consolidadas com uma comunidade quilombola, mas não é um/a quilombola de origem.
[v] Acessado em: https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/titulos_quilombolas_nov_2021.pdf
[vi] Bebida alcoólica quente, feita com cachaça, ervas e açúcar.
[vii] Bebida típica do Quilombo Mesquita, Cidade Ocidental, Goiás, feita à base de cachaça, quiabo-de-angola (hibisco) e açúcar.
[viii] “Oncestralidade” é sugestão do autor para definir as relações biogênicas, bio-fisicas, planetárias ou cosmológicas que ocorrem de forma concomitante. O termo difere de “ancestralidade”, que significa algo transmitido entre gerações, portanto, que não ocorre entre os seres contemporâneos. O “on” substituto da “an” vem da língua inglesa e significa (neste caso) “sobre”, “em cima”, “ligado”. Juntado à “cestralidade” significa algo que acontece ao mesmo tempo, na mesma linha do tempo, no mesmo horizonte.
[ix] David Joseph Bohm (1917-1992), físico estadunidense, de posterior cidadania brasileira e britânica. É um dos físicos mais importantes do século XX. Contribuiu com ideias inovadoras à teoria quântica, neuropsicologia e filosofia da mente. Entre as suas contribuições, encontra-se a discussão da linguagem reomodal.
[x] “Políticas da Inimizade” é uma obra e também terminologia do escritor camaronês, Achille Mbembe, e diz respeito à prática hostil e beligerante, envolta em questões raciais, presentes nas sociedades antigas e contemporâneas.

Figura 1
– Esfera dialética
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

Figura 2
– Representação das múltiplas conexões que um determinado ser pode comportar
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

Figura 3
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.

Figura 4
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.

Figura 5
– Mutirão “Treição”
Roneide Benedito, 2023.

Figura 6
Conexão ancestral
elaboração própria e desenho manual, desenho gráfico de Diana da Silva Alves, 2024.

Figura 7
– Árvore genealógica de uma das famílias tradicionais da comunidade
elaboração própria (Neres, 2016, p. 41).

Figura 8
– Pinturas representativas de dez etnias escraizadas
Rugendas (1820) citado na obra de Neres (2016, p. 31).

Figura 9
– Placa indicativa Quilombo Mesquita
Fonte: elaboração própria, 2015.

Figura 10
– Placa indicativa pichada
elaboração própria, 2015.
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