Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar, em enunciados que emergem na Antiguidade Clássica e ecoam nos dias atuais, os discursos que trabalham em prol do silenciamento da voz e da fala pública femininas. Para tanto, partindo de uma Análise do discurso derivada das discussões de Michel Foucault, o artigo faz valer a espessura histórica dos discursos para proceder à análise de enunciados que versam acerca de pronunciamentos públicos realizados por Tabata Amaral, Deputada Federal em atuação pelo estado de São Paulo, no Brasil. O intuito será o de demonstrar que as memórias do período clássico, apesar das descontinuidades promovidas pela cultura ocidental, se materializam ainda em nossa tradição política contemporânea.
Palavras-chave:discurso políticodiscurso político,antiguidade clássicaantiguidade clássica,fala pública femininafala pública feminina,voz femininavoz feminina,Tabata AmaralTabata Amaral.
Resumen: Este artículo tiene por objetivo analizar, en enunciados que emergen en la Antigüedad clásica y reverberan en nuestros días, los discursos que procuran el silenciamiento de la voz y del habla pública femeninas. Con base en el análisis del discurso derivado de la perspectiva de Michel Foucault, el texto toma en cuenta el espesor histórico de los discursos para proceder al estudio de enunciados relativos a los discursos públicos de Tabata Amaral, diputada federal en ejercicio por el Estado de San Pablo, en Brasil. El propósito será demostrar que las memorias del período clásico, a pesar de las discontinuidades promovidas por la cultura occidental, se materializan aún en nuestra tradición política contemporánea.
Palabras clave: discurso político, antigüedad clásica, habla pública femenina, voz femenina, Tabata Amaral.
Abstract: This article aims to analyze through statements emerging from Classical Antiquity which gain echo today the speeches that work for the silencing of female voice and public speech. Proceeding from Michel Foucault's Discourse Analysis discussions, the article asserts the historical depth of the speeches in order to analyze Tabata Amaral, Federal Deputy acting for the state of São Paulo, Brazil statements made during his public pronouncements. The aim was to demonstrate that the memories of the classical period, despite the discontinuities promoted by Western culture, are still materialized in our contemporary political tradition.
Keywords: political speech, classical antiquity, female public speech, female voice, Tabata Amaral.
I. ESCENARIOS
Ecos da Antiguidade Clássica na tradição política contemporânea: discursos sobre a voz e a fala pública de Tabata Amaral
Ecos de la Antigüedad Clásica en la tradición política contemporánea: discursos sobre la voz y la palabra pública de Tabata Amaral
Echoes from the Classical Antiquity in the contemporary political tradition: discourses on Tabata Amaral's voice and public speech
Recepção: 16 Abril 2020
Aprovação: 27 Setembro 2020
No que diz respeito a silenciar as mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de prática.
Fonte: (Beard 2018: 11)
Ainda que o espetáculo político, em sua complexidade, possa parecer, a princípio, um produto naturalmente agenciado no interior das práticas sociais, é certo que seu modo de organização é fruto de um processo histórico. Tal processo, antes de restringir-se particularmente a uma história da retórica, estende-se à história do corpo, dos gestos, da voz e do exercício de fala pública do orador. Estende-se, ainda, à história dos dispositivos materiais que registram e transmitem este exercício, bem como à história do público ouvinte em suas diversas variantes comportamentais (Courtine e Piovezani 2015: 15). Neste sentido, não são alheias ao processo histórico de que resulta o espetáculo político as exclusões e discriminações de que a voz e a fala pública femininas foram constantemente alvo, tampouco os diversos enunciados que as materializam em tantas nuances, nos mais distintos tempos, meios e veículos.
Partindo desse pressuposto, este artigo tem por objetivo analisar, ainda que brevemente, em enunciados que emergem na Antiguidade Clássica e desaguam nos dias atuais, discursos que fazem ecoar aquilo que Courtine e Piovezani (2015: 16) chamaram de uma sexuação das cenas oratórias, isto é, um atravessamento da instância do gênero na determinação dos limites dos exercícios de fala, bem como de seus poderes e efeitos. Mais especificamente, pretende-se analisar enunciados produzidos na Grécia Antiga, na Europa moderna e no Brasil contemporâneo que trabalham em prol do silenciamento da fala pública feminina mediante o descrédito que lhe é impingido em sua comparação à fala pública masculina ou, ainda, mediante uma caracterização estigmatizada da sua voz.
Trata-se de um trabalho que, respaldado pela noção de discurso, interroga a materialidade linguística a respeito de suas condições históricas de emergência a partir de uma perspectiva arqueológica, questionando as relações que os enunciados estabelecem entre si na dispersão do tempo, bem como a função enunciativa que neles se exerce (Foucault 2010: 149). Não se trata, evidentemente, de buscar a origem perdida dos discursos que apartam a voz e a fala pública femininas de tantos cenários, mas de indagar às coisas ditas “o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido –e nenhuma outra em seu lugar” (Foucault 2010: 124). Trata-se de evidenciar que as coisas ditas não nascem ocasionalmente, no simples jogo das circunstâncias e das palavras, mas segundo um sistema geral de formação e transformação dos enunciados.
Assim, amparados por esta perspectiva que analisa o discurso em sua raridade, isto é, na observância do “princípio segundo o qual puderam aparecer os únicos conjuntos significantes que foram enunciados”, em detrimento de todos os outros que poderiam sê-lo de acordo com uma combinatória ilimitada dos elementos linguísticos (Foucault 2010: 135), pretende-se demonstrar a persistente irrupção dos enunciados que materializam formas de exclusão da voz e da fala pública femininas do cenário político em diversos meios e suportes, fazendo valer as nuances desse percurso que compreende uma longa duração histórica. Por fim, pretende-se ainda analisar, no que se refere à cena política contemporânea, dois textos produzidos e publicados em 2019 e 2020, respectivamente, acerca de pronunciamentos públicos realizados por Tabata Amaral (Partido Democrático Trabalhista – PDT), Deputada Federal em atuação pelo estado de São Paulo, no Brasil.
Comecemos por uma passagem da Odisséia, escrita por Homero há quase 3 mil anos. Nela, Penélope desce de seus aposentos e se dirige ao grande salão do palácio, onde seus pretendentes se amontoam à sua espera e à sua disposição. Chorando, Penélope sugere ao aedo que então cantava à multidão uma mudança na temática da música: o canto tão triste lhe trazia a memória de Ulisses, seu marido, de quem ainda aguardava o retorno de Troia. Telêmaco, seu filho, considera prudente interrompê-la:
Chorando assim falou ao aedo divino:/ “Fémio, conheces muitos outros temas que encantam os homens, façanhas de homens e deuses, como as celebram os aedos./ Uma delas cantam agora, enquanto estás aí sentado; e que eles/ em silêncio bebam o seu vinho. Mas cessa já esse canto tão triste,/ que sempre no meu peito o coração me despedaça,/ visto que em mim está entranhada uma dor inesquecível./ Pois vem-me sempre à memória a saudade daquele rosto,/ do marido a quem toda a Hélade e Argos celebram.”
Tal resposta deu à mãe o prudente Telémaco:/ “Minha mãe, por que razão levas a mal que o fiel aedo/ nos deleite de acordo com a sua inspiração? Não são/ culpados os aedos, mas Zeus: aos homens que por seu pão/ trabalham estabeleceu o destino que entendeu./ Não é justo levarmos a mal que ele cante a desgraça dos Dânaos./ Pois os homens apreciam de preferência o canto/ que lhes pareça soar mais recente aos ouvidos./ Que o teu espírito e o teu coração ousem ouvir./ Não foi só Ulisses que perdeu o dia do retorno/ em Tróia; também pereceram muitos outros./ Agora volta para os teus aposentos e presta atenção/ aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas/ que façam os seus trabalhos. Pois falar é aos homens que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa.” (Homero 2010: 34-35, grifo nosso)
Como se pode ver, ao interromper a mãe, Telêmaco não apenas desautoriza a fala de Penélope, numa defesa de que os aedos não tinham culpa do destino de Ulisses, como também a ordena seu retorno aos trabalhos domésticos –aos lavores, ao tear e à roca–, sob a prerrogativa de que a fala pública é uma competência exclusivamente masculina: falar é aos homens que compete. Trata-se de um enunciado que, em uma longa duração histórica, particularmente aquela que remonta ao período arcaico da Grécia Antiga, exclui a fala feminina da esfera pública de pelo menos três formas distintas: i) na sobreposição da fala masculina à fala feminina, uma vez que sobre o homem recairia a competência da fala; ii) na relação da suposta inaptidão feminina a um dado sentimentalismo que lhe seria inerente (é chorando e para manifestar sua tristeza que Penélope fala, referindo-se ao coração despedaçado e a uma dor inesquecível); iii) e no contraste entre a Penélope que fala e o prudente Telêmaco que a interrompe e a silencia, a partir do que se poderia ler uma postura sensata do filho frente a uma atitude irresponsável da mãe. De um lado, a competência, a razão e a prudência; de outro, a inaptidão, a emoção e a insensatez.
Mas este enunciado, longe de indicar uma materialidade perdida na vastidão dos tempos, delata, antes, o funcionamento de um discurso que lhe é anterior e que lhe presta condições de emergência, bem como sugere um campo de relações em um futuro provável, haja vista que “Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão” (Foucault 2010: 112). Um exemplo da regularidade promovida por este discurso, que se estende ao longo de toda a Antiguidade, é a comédia Ekklesiazousai, ou “as mulheres que se reúnem em assembleia” (Pompeu 2016: 84), publicada na passagem do período Arcaico ao período Clássico da Grécia Antiga e, portanto, na passagem de um regime aristocrático para um regime democrático.
Décima peça escrita por Aristófanes, Ekklesiazousai relata a reunião de um grupo de mulheres que, lideradas por Praxágora, vestem-se de homem para ir à assembleia, espaço interditado à presença feminina. Com o objetivo de discursar para o público ouvinte e defender a entrega do Estado às mulheres, a comédia narra os empecilhos encontrados pelo grupo em seu intento, dentre os quais estaria, não por acaso, a parca habilidade oratória –o que funciona, no texto, como parte da graça–:
[1ª M.] E como uma associação de mulheres frágeis vai discursar na assembleia?/ [PR.] De um modo excelente. Pois dizem dos jovens que, quanto mais enrabados, mais terríveis são no discursar. Assim, a coisa começa bem para nós./ [1ª M.] Não sei, terrível é a falta de experiência. [...]/ [PR.] Então vai, põe a coroa: vai dar tudo certo. Agora tente falar bonito como um homem, apoiando a postura na bengala./ [2ª M.] Eu preferia que outro, desses acostumados a discursar, fizesse o melhor, enquanto assistiria calmamente sentado... (Aristophanes 1973: vv. 110–120; 148-152, tradução nossa, grifo nosso)
Pelos excertos, é possível afirmar que o absurdo narrado pela comédia está assentado em uma série de oposições: se, por um lado, o risível reside no fato de que as mulheres, mesmo frágeis, querem discursar na assembleia (E como uma associação de mulheres frágeis vai discursar na assembleia?); por outro lado, como resíduo sintomático, têm-se a naturalização de um discurso segundo o qual a força é um pré-requisito para a fala e, sendo ela um atributo masculino, seria também masculina a habilidade da fala. Logo, teríamos que “os homens são fortes e, por isto, podem discursar” e que “as mulheres são frágeis e, por isto, não podem discursar” –o que dialoga, em larga medida, com o excessivo sentimentalismo de Penélope na obra de Homero, que teria, inclusive, legitimado a prudente interrupção de Telêmaco. Do mesmo modo, também como parte da graça, a comédia apresenta uma alternativa que poderia favorecer as mulheres frente a esta suposta inaptidão: dizem dos jovens que, quanto mais enrabados, mais terríveis são no discursar. Na busca por uma semelhança entre homens e mulheres que pudesse garantir uma boa desenvoltura oratória a estas últimas, resvala-se no papel sexual passivo exercido por ambos, de onde decorreria, portanto, uma certa paridade, mas cuja validade é refutada em seguida, na medida em que se atenta para a falta de experiência das mulheres no que se refere à fala, ainda que, hipoteticamente, fossem tão enrabadas quanto os bons oradores: terrível é a falta de experiência.
Na sequência, Praxágora recomenda que se tente falar bonito como um homem, o que relega a fala feminina à fealdade e ratifica o discurso materializado por Telêmaco na epopeia homérica: falar é aos homens que compete, justamente porque cabe ao homem falar bonito. Este signo –bonito– é ainda aclarado com a continuidade do diálogo: diante da recomendação e da dificuldade encontrada para cumprir a sugestão de Praxágora de que se fale bonito como um homem, a personagem interpelada recorre ao comodismo do silêncio e da isenção, fazendo valer um discurso condescendente relativamente à detratação da fala feminina, bem como à sua completa exclusão da cena pública e, mais particularmente, política: Eu preferia que outro, desses acostumados a discursar, fizesse o melhor, enquanto assistiria calmamente sentado… Assim, se, por um lado, temos o comodismo, a isenção e a falta de costume da fala feminina, que justamente por estes fatores não tem experiência oratória e não é bonita, de modo que é melhor que não falem; por outro lado, têm-se a ação e o vigor no exercício da fala masculina, que justamente por isto se manifesta como bela, experiente e melhor relativamente à fala feminina, de modo que é recomendado que falem.
Tais atributos, mais uma vez, longe de emergirem de modo isolado, dialogariam também com outros dizeres cuja emergência dar-se-ia ainda na Grécia Antiga, mas desta vez no período Helenístico e em outro campo do saber, aquele da história natural: trata-se do estudo realizado por Aristóteles acerca de uma descrição das espécies que passaria também por uma descrição valorativa da voz. A princípio, uma distinção das tonalidades vocais entre homens e mulheres: “De um modo geral, a fêmea, na maioria dos animais, tem uma voz mais aguda”; “a voz dos machos difere da das fêmeas, sendo que os machos emitem uma voz mais grave do que elas, em todos os animais cuja voz se prolonga” (Aristóteles 2006: 216-217). Em seguida, a atribuição, a cada uma dessas caracterizações –entre a voz grave e a voz aguda–, de seu valor: “Quanto à voz, a grave e intensa indica coragem, e a aguda e fraca, covardia”; “uma voz poderosa é própria do homem corajoso e uma frouxa e fraca do inseguro”; “Quanto aos que falam com voz aguda, doce e oscilante são afeminados: compara-se às mulheres e ao conjunto desse aspecto” (Aristóteles 1999: 47, 49, 75, tradução nossa).
Paralelamente, portanto, aos enunciados que regulam e limitam a fala feminina na medida em que lhe atribuem um descrédito pela ausência de força e experiência, o estudo aristotélico materializa enunciados que trabalham na manutenção deste controle por meio de uma caracterização estigmatizada da voz feminina: não basta coibir seu exercício de fala pública, é preciso, do mesmo modo, subtrair o valor de sua voz, numa clivagem que a distingue e a inferioriza relativamente à voz masculina. Em consonância com a comédia de Aristophanes e, anteriormente a ela, com a epopeia homérica, que alertavam para uma fala que, assim como as mulheres, eram frágeis, caracterizada pelo sentimentalismo, pela isenção e pela inexperiência, os atributos conferidos por Aristóteles à voz feminina remetem a uma voz aguda, fraca, frouxa e oscilante, o que delataria, consequentemente, uma mulher covarde e insegura. De modo oposto, a voz masculina, por ser grave, intensa e poderosa, delataria um homem corajoso, distante daquilo que qualificaria os afeminados.
Destarte, não é sem razão que, mesmo ao final do primeiro século da Era Cristã, ratificando este estudo de Aristóteles, os tratados de Retórica atualizam tais enunciados, agora na promoção de normas cuja finalidade seria corrigir ou, pelo menos, apontar possíveis defeitos nos usos da voz e nos exercícios da fala. Exemplo disto são as passagens das Instituições oratórias de Quintiliano, nas quais se defende haver muitas condições comuns nos cuidados a serem tomados com a voz pelos oradores e pelos mestres do canto, entre as quais “a robustez da constituição corporal, para que nossa voz não seja fina e estridente, como a dos eunucos, das mulheres e dos doentes”, acrescentando, ainda, que “aquele que está comprometido com inúmeras obrigações para com seus cidadãos precisa possuir uma voz robusta e resistente, ao invés de uma flexível e delicada” (apud Piovezani 2016: 87).
Do mesmo modo, ainda no campo da Retórica, mas agora em tratados franceses dos séculos XVII e XVIII, teríamos em Cressoles a afirmação de que “o maior pecado que acometem os oradores suaves e delicados, dos quais flui demasiada ternura, é o de que seu corpo seja efeminado, de modo que sua voz assemelhe-se ao piado das aves” (apud Piovezani 2016: 88). E em Dinouart, a necessidade de que o orador tenha uma voz sã e nítida, isto é, “que não seja desarmônica, nem seja demasiadamente aguda ou grave ou lenta, embaraçada, fraca ou efeminada”, uma vez que “os Oradores que possuem a voz mole, efeminada, fluida e demasiadamente composta em seus tons também o são em suas ações” (apud Piovezani 2016: 88).
Como se pode perceber, há uma regularidade na materialização dos discursos acerca da depreciação da voz feminina na dispersão do tempo histórico. Se, com Aristóteles, aquilo que se dizia anteriormente sobre a fala pública feminina desliza para a caracterização de sua voz, o campo da Retórica leva ao paroxismo as distinções entre as vozes masculina e feminina: entre a honra de uma e o descrédito da outra, opera-se uma separação absoluta. Da primeira, destaca-se a robustez e a resistência, atributos que amparariam, inclusive, certa conduta social –aquele que está comprometido com inúmeras obrigações para com seus cidadãos precisa possuir uma voz robusta e resistente–; da segunda, o caráter fino, estridente, flexível, delicado, terno e fraco, além de ratificar o demasiado sentimentalismo feminino como fator que interfere na baixa qualidade vocal das mulheres, já antes apontado por Homero e por Aristophanes a respeito de sua fala, ainda coloca em xeque a possibilidade de uma honrada conduta: os oradores que possuem a voz mole, efeminada, fluida e demasiadamente composta em seus tons também o são em suas ações. Não se trata, portanto, de apenas –como se isto fosse bem pouca coisa– detratar a voz feminina, é preciso também, metonimicamente, desqualificar a mulher de que dela faz uso e ainda os homens que, inadvertida ou infortunadamente, possuam uma voz cuja qualidade se aproxime daquela das mulheres, os efeminados.
Assim, partindo do pressuposto de que “não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto” (Foucault 2010: 111), o que se tem, de Homero a Dinouart, é justamente uma série enunciativa na qual se atesta a produção e a materialização de discursos que, persistente e continuamente, excluem e discriminam a voz e a fala pública femininas, trabalhando na manutenção de práticas que silenciam e interditam as mulheres na medida em que lhes furtam o direito de fala, bem como estigmatizam sua voz em benefício da fala e da voz masculina.
Apesar das rupturas que, sob o peso do tempo e das descontinuidades de todas as ordens, foram promovidas pela cultura ocidental no que se refere a muitas das práticas que se deram a ver na Antiguidade Clássica e se fizeram refletir pelo menos até o século XVIII, é certo que ainda estão entre nós os ecos do período antigo. Assim, a despeito daquilo que reivindicam e promovem os movimentos emancipatórias que hoje buscam, em alguma medida, reparar distorções históricas, como o próprio movimento feminista, é recorrente, em muitos meios e veículos contemporâneos, a retomada de memórias que, ora com maior, ora com menor ênfase, sugerem aos homens, em detrimento das mulheres, a competência e o vigor necessários à fala pública, particularmente na esfera política. Para exemplificar esta atualização e a produção deste efeito de memória (Courtine 2009: 105-106), tomemos alguns dizeres produzidos acerca de Tabata Amaral (PDT), Deputada Federal em atuação pelo estado de São Paulo, no Brasil.
O exercício político de Tabata Amaral no Congresso está marcado pelo diálogo tenso com a direita e suas pautas mais conservadoras, mas também com a esquerda e suas pautas mais progressistas. Confirmam esta afirmação os episódios em que contribuiu para desestabilizar, apoiada pela esquerda, o Ministro da Educação e sua inércia na proposição de projetos; bem como seu voto favorável à reforma da previdência proposta pelo governo, acostando-se àquilo que defendiam os partidos de direta. No primeiro cenário, mais precisamente em março de 2019, quando do confronto que animou a esquerda entre a Deputada e o então Ministro da Educação Ricardo Vélez Rodrigues, foi publicada na edição digital do El país Brasil a matéria assinada por Marina Rossi e intitulada A jovem deputada que jogou contra as cordas o ministro da Educação e sua “lista de desejos”. No lide: Neófita no Congresso, Tabata Amaral (PDT-SP) sugere que Ricardo Vélez se demita do MEC, o deixa em silêncio, e agrava ainda mais a situação do ministro olavista de Bolsonaro. Em seu primeiro parágrafo, lê-se:
Quem assistiu ao discurso de estreia da deputada Tabata Amaral (PDT-SP), 25 anos, no plenário da Câmara dos Deputados, em fevereiro, não poderia imaginar que menos de dois meses depois ela colocaria contra a parede um ministro septuagenário do Governo Jair Bolsonaro. De fala mansa, linear e sem alterações, a deputada não carrega em seu discurso os trejeitos inflamados de palanque. “A educação não muda se as políticas e os políticos não mudarem”, disse ela, em pouco mais de cinco minutos de apresentação. E foi exatamente essa conduta serena e sem precisar mudar o tom de voz que fez o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, ficar sem resposta nesta quarta-feira durante uma reunião da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados (Rossi 2019, online, grifos nossos).
Ainda que pareça deslocar a histórica exclusão que apartou a voz e a fala pública femininas do cenário político, este enunciado não está desvinculado das práticas discriminatórias que lhe são anteriores. Três rápidas observações podem comprová-lo. A primeira delas refere-se ao destaque oferecido à idade da Deputada –25 anos–, recorrência constante nos textos a seu respeito e cuja retomada se propaga ao longo da matéria: duas vezes com a expressão jovem deputada (até mesmo no título), duas vezes com o termo neófita (no lide, por exemplo), e ainda com o vocábulo novata. Do mesmo modo, é também uma retomada da pouca idade da Deputada a referência ao Ministro enquanto septuagenário, uma vez que esta informação reforça a disparidade etária entre os dois políticos e evidencia a surpresa enunciada com o fato da jovem deputada, “apesar” da idade, ter colocado o Ministro contra a parede. Se nos amparamos em um discurso, tido como evidência cultural, segundo o qual a idade é proporcional à experiência, a surpresa a qual nos referimos, bem como as tantas retomadas da idade da Deputada, resultam em uma filiação aos enunciados que fazem convergir a experiência e a possibilidade de vencer debates públicos: como é possível que, “apesar” de jovem e, portanto, inexperiente, a Deputada possa vencer o Ministro? O que está evidenciado, portanto, não é o fato, mas a surpresa diante dele enquanto ocorrência extraordinária, o que produz um efeito de memória –aqui entendida enquanto “existência histórica do enunciado no interior das práticas discursivas” (Courtine 2009: 105-106)– relativamente aos dizeres produzidos na Antiguidade clássica: justamente por saber que terrível é a falta de experiência, conforme Aristophanes, estampa-se a surpresa diante da desenvoltura de Tabata no debate, não obstante sua inexperiência.
Uma segunda observação, ainda acerca da primeira afirmação, refere-se à outra admiração que se imprime: aquela que relaciona o discurso de estreia da Deputada à sua fala diante do Ministro – Quem assistiu ao discurso de estreia da deputada Tabata Amaral (PDT-SP) [...] não poderia imaginar que menos de dois meses depois ela colocaria contra a parede um ministro septuagenário do Governo Jair Bolsonaro. Se consideramos os efeitos eufóricos provocados pela fala da Deputada no debate com o Ministro, marcada ao longo de todo o texto e, além disso, a distinção com que é marcado seu discurso de estreia, têm-se consequentemente a sinalização de efeitos disfóricos relativamente a este último, motivo pelo qual o público ouvinte não poderia imaginar sua vitória diante do Ministro dois meses depois. Em suma: como é possível que esta Deputada, cujo discurso de estreia não produziu qualquer efeito no jogo do poder político, possa agora vencer o Ministro? Mais do que isso: como é possível que tenha vencido o Ministro lançando mão de uma fala mansa, linear e sem alterações, desvencilhada dos trejeitos inflamados de palanque?
E justamente na caracterização da sua fala reside nossa terceira observação: a surpresa anteriormente impressa a respeito da vitória de Tabata diante do Ministro, “apesar” de sua parca experiência e de seu discurso de estreia, estende-se, agora, à sua fala. É fazendo uso de uma fala que não recorre a qualquer rompante oratório que Tabata vence o Ministro. Trata-se de uma passagem que não apenas evidencia que o próprio do palanque político são, de fato, os trejeitos inflamados –o embate das falas fortes e viris, embaladas por uma voz robusta e resistente, do qual sairia vencedor aquele que demonstrasse maior potência oratória, lógica e corporal, conforme tantos tratados de retórica–, como também os distingue da fala de Tabata, de modo que esta última estaria, por consequência, à margem. Assim, o que se enuncia, além da surpresa diante do efeito causado por esta fala, “apesar” da sua natureza, é ainda o fato de que ela está fora do cenário político, demarcando a filiação do texto à memória dos dizeres produzidos por tantos séculos, segundo os quais uma fala deste tipo –mansa, linear, serena e sem alterações– não poderia ou não deveria estar no palanque, ocupar um lugar público de poder e, principalmente, produzir efeitos, haja vista que uma voz fraca e frouxa indica covardia e insegurança, conforme vimos propor Aristóteles.
Assim, se o que se torna notícia é aquilo que se apresenta como mais ou menos extraordinário, o que está expresso na matéria não é exatamente o triunfo de Tabata diante de seu adversário político, mas o fato dela tê-lo vencido “apesar”: i) da sua inexperiência; ii) da ineficácia de seu discurso de estreia; iii) da sua fala feminina. Se não se pode negar que o texto assume uma postura mais progressista do que conservadora relativamente à presença da Deputada no cenário político, tampouco se pode negar que esse reconhecimento ainda se dê de modo ambíguo, na medida em que faz soar a memória de preceitos antiquíssimos construídos em prol de uma arena política exclusivamente masculina.
Em contrapartida, não se pode inferir que enunciados como este inibam a emergência daqueles outros que se posicionam de modo mais conservador, evidenciando acentuadamente os preconceitos fomentados em uma longa duração histórica a respeito da voz e da fala pública femininas. Exemplo disso é o artigo de opinião publicado por Gustavo Conde no portal de notícias Brasil 247 em 27 de fevereiro de 2020, quando do voto favorável de Tabata Amaral à reforma da previdência proposta pelo governo, o que acabou por dificultar seu diálogo com a esquerda. Vejamos algumas passagens:
Acabo de ler a entrevista da Tabata Amaral para a Folha de S. Paulo. Como diria Andy Warhol, trata-se um discurso “profundamente superficial”. É uma experiência diferente ler o que Tabata pensa. Não são clichês, são fragmentos de clichês. Não há propriamente uma voz ali, mas um amontoado de sentenças de autoajuda, fé e palestra motivacional. O sujeito gramatical foi esmagado –e realmente parece ter um “financiador-fiador” na sua reconstrução “facial”. Tabata pede licença a ‘si mesma’ de maneira intermitente para dizer coisas mais à esquerda ou mais à direita. Há uma insegurança estrutural no seu discurso. [...] Há, também, um aspecto simplório em seu discurso. Uma curiosa falta de sofisticação retórica para quem alardeia curso de ciência política e astrofísica em Harvard. Vazios gramaticais, regência trôpega, inadequações na seleção lexical. Destaque-se que todos esses traços podem lhe ser positivos, como se fossem uma certa busca deliberada pela fala popular. Mas soam artificiais (Conde 2020, online, grifos nossos).
O ponto de partida do texto reside na crença da relação estabelecida entre fala e pensamento: é uma experiência diferente ler o que Tabata pensa. Por se tratar de um texto que faz referência a uma entrevista concedida pela Deputada, o enunciador começa por tomar como constitutiva uma tal constante antropológica que relaciona aquilo que cognitivamente processamos com aquilo que se expressa em nosso corpo enquanto voz e fala. A partir daqui, passa a detratar o pensamento e a própria pessoa política paralelamente a uma detratação de sua fala. São pelo menos três as formas como isto se processa. A princípio, uma rápida descrição disfórica de seu pensamento: não são clichês, são fragmentos de clichês, com a qual se equipara o pensamento da Deputada aos chavões do senso comum, dos quais estaria ausente certa elaboração intelectual mais densa e maturada.
Como consequência desta carência, uma segunda forma de detratação: aquela que tenta demonstrar a falta de autonomia da Deputada naquilo que concerne, agora, não a seu pensamento, especificamente, mas já à sua fala como espelho de seu pensamento, da qual decorreria sua insegurança. Para comprová-lo, referenciam-se os supostos problemas encontrados por Tabata na construção das sentenças, as quais resultariam apenas de uma tessitura mal coordenada de dizeres advindos de campos como autoajuda, fé e palestra motivacional, que estariam muito aquém da densidade intelectual teoricamente exigida pelo campo político. Com o mesmo intuito, procede-se ainda à negação linguística de todos os termos que se referem a uma possível autonomia da Deputada: a voz (está ausente), o sujeito gramatical (foi esmagado), a reconstrução “facial” (inerte, posto que controlada por um financiador-fiador), e ‘si mesma’ (a quem a Deputada pede licença de maneira intermitente). A insegurança, portanto, na ausência desta tal autonomia que a impede de falar por si mesma e, mais do que isso, que a obriga a recorrer a dizeres sem qualquer densidade intelectiva, seria estrutural, isto é, constitutiva de Tabata, de sua fala e, consequentemente, de seu pensamento.
Por fim, a descrição disfórica do pensamento de Tabata, que deslizou, em seguida, para a crítica de sua fala, resvala ainda em sua retórica: se os dizeres vazios e mal organizados de que se valem sua fala estavam colocados, a princípio, em decorrência do senso comum ao qual se presta seu pensamento, aqui, o aspecto simplório de seu discurso relaciona-se a uma curiosa falta de sofisticação retórica para quem alardeia curso de ciência política e astrofísica em Harvard. Trata-se de uma referência que relaciona o domínio da retórica aos cursos nos quais se diplomou Tabata, mais especificamente ao curso de ciência política, posto que se trata de alguém que exerce o cargo de Deputada: como é possível que este curso não a tenha equipado das características centrais e historicamente assentadas da fala política? Como é possível que uma graduada em ciência política não tenha pleno domínio dos instrumentos retóricos que a forneçam uma fala articulada e corajosa, dotada de vigor e poder? Com isto, produz-se não apenas uma crítica à sua fala, que prescindiria da retórica política na medida em que compreenderia, supostamente, vazios gramaticais, regência trôpega, além de inadequações na seleção lexical, como também um questionamento de sua formação, em consonância com o anteriormente dito em relação à natureza de seu pensamento. Em suma: uma má formação acadêmica, um pensamento vulgar e, portanto, uma fala medíocre. Mesmo o único indulto possível é ainda negado, posto que até a aventada simetria da fala de Tabata a uma fala popular, supreendentemente apreciada pelo enunciador, resta artificial. Não por acaso, já se havia afirmado anteriormente que a insegurança da Deputada é estrutural.
Assim, este enunciado assemelha-se ao anteriormente analisado na medida em que, tanto em um quanto em outro, pauta-se uma fala feminina que está proscrita do campo da fala pública. Lá, pela indicação, ainda que ambígua e mais progressista, da inexperiência da Deputada, da ineficácia de seu discurso de estreia, bem como de sua fala feminina desvencilhada dos trejeitos inflamados de palanque; aqui, de modo muito mais conservador, explícito e violento, por meio de uma crítica direta à seu pensamento –fragmentos de clichês–, à sua falta de autonomia –parece ter um “financiador-fiador” na sua reconstrução “facial”–, bem como à sua questionável formação acadêmica e à sua fala ordinária –falta sofisticação retórica–. São filiações que, no interior de uma série discursiva, retomam e atualizam as memórias do período clássico: ora aquelas que sugerem a falta de talento e de experiência das mulheres no que se refere ao trato com a fala política, ora aquelas que atribuem covardia e insegurança à voz feminina: há uma insegurança estrutural no discurso de Tabata...
Se o regime democrático do qual nos valemos atualmente não encontra vias legais de apartar a voz e a fala pública femininas de seus lugares de poder, principalmente pela atuação de movimentos sociais que lhes reivindicam, é certo que os discursos historicamente produzidos, mantidos e ainda materializados em textos contemporâneos promovem essa exclusão de modo tão ou mais aguerrido, na medida em que permanecem trabalhando em prol de uma naturalização das práticas discriminatórias: ora com maior ênfase e numa perspectiva realmente misógina, ora com menor ênfase e numa perspectiva mais igualitária, embora ainda de modo ambíguo.
Não é sem razão, portanto, que, em contraposição à força, ao alcance e à persistência já demonstrados pelos discursos aqui analisados, valemo-nos daquilo que é responsabilidade política da Análise do Discurso –o questionamento das evidências e a desnaturalização das práticas–, na tentativa de contribuir para que sejam cada vez mais numerosas, barulhentas e investidas de poder as vozes e falas femininas que já se dão a ver para além das práticas que as constrangem. E isto porque a regularidade da emergência dos discursos discriminatórios na dispersão do tempo não lhes atribui um caráter natural, haja vista que o discurso não é outra coisa senão uma “violência que fazemos às coisas”, “uma prática que lhes impomos em todo o caso” (Foucault 2004: 53), mas uma construção misógina do cenário político em uma longa duração histórica, com a qual não se pode compactuar.