Resumo: Este artigo aborda a importância do mercado de escultura pública latino-americano para artistas europeus no início do século XX. Por meio da análise do concurso do Monumento à Independência do Brasil, são destacadas as estratégias utilizadas pelos gestores estatais na divulgação internacional da concorrência e na escolha do projeto do italiano Ettore Ximenes. São observadas também a participação dos artistas europeus e as recompensas que recebiam ao fazer parte do certame. O objetivo é compreender o funcionamento de concursos públicos internacionais, tendo em vista que essa maneira de selecionar obras foi uma prática muito recorrente no início do século XX na América Latina e que constituiu um importante mercado para escultores europeus, sobretudo, italianos.
Palavras-chave:MonumentoMonumento,Escultura públicaEscultura pública,Ettore XimenesEttore Ximenes,BrasilBrasil,São PauloSão Paulo.
Resumen: Este artículo aborda la importancia del mercado de escultura pública latinoamericana para artistas europeos a principios del siglo XX. Por medio del análisis del concurso del Monumento a la Independencia de Brasil, se destacan las estrategias utilizadas por los gestores estatales en la divulgación internacional del concurso y en la elección del proyecto del italiano Ettore Ximenes. Se observan también la participación de los artistas europeos y las recompensas que recibían al formar parte del certamen. El objetivo es comprender el funcionamiento de concursos públicos internacionales, dado que esa manera de seleccionar obras fue una práctica muy recurrente a principios del siglo XX en América Latina y que constituyó un importante mercado para los escultores europeos, especialmente italianos.
Palabras clave: Monumento, Escultura pública, Ettore Ximenes, Brasil, São Paulo.
Abstract: This article discusses the importance of the Latin American public sculpture market for European artists in the early 20th century. It analyses the contest to erect the Monument the Independence of Brazil, considering to the strategies used by state managers in the international dissemination of competition and in the choice of the project of the Italian Ettore Ximenes. It observes the participation of the European artists and the rewards they receive when participating in the competition. The objective is to understand the operation of international public contests, given that this way of selecting works was a recurrent practice in the early twentieth century in Latin America and that it has constituted an important market for European sculptors, especially Italian sculptors.
Keywords: Monument, Public sculpture, Ettore Ximenes, Brazil, São Paulo.
Dossier
Mercado e Consagração: o Concurso Internacional do Monumento à Independência do Brasil
Recepção: 29 Junho 2018
Aprovação: 29 Outubro 2018
As esculturas públicas tornaramse elementos cada vez mais presentes nas paisagens latinoamericanas a partir de meados do século XIX, intensificandose no início do século XX. Esse fenômeno deve ser compreendido juntamente com a construção das identidades nacionais dos recémemancipados países, nos quais a estatutária pública foi utilizada como suporte de memória, tendo por função a rememoração de personagens e de eventos, materializando uma pedagogia cívica no espaço urbano.
Monumento é entendido aqui no sentido proposto por Jacques Le Goff, quer seja aquilo que pode evocar o passado e que se caracteriza por ligar-se ao poder de perpetuação das sociedades históricas, constituindo como um legado à memória coletiva. É um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que detinham o poder.1 O processo de proliferação de esculturas no espaço público americano, apesar de proporcionalmente menor, pode ser comparado com o que ocorrera na Europa, sobretudo França e Itália, no século XIX, fenômeno conhecido como statuemania e estudado por historiadores como Maurice Agulhon.2 O contexto de construção da nação em bases laicas e na ordem do liberalismo motivou a produção de esculturas no Brasil, conforme indicou José Murilo de Carvalho e Paulo Knauss.3 Assim, as estátuas ganharam as ruas, multiplicando as homenagens aos heróis e eventos históricos e tornando as cidades um panteão a céu aberto. Com isso, abria-se um imenso mercado para escultores nacionais e estrangeiros, que tiveram na América oportunidades as quais lhes faltaria no muito mais concorrido mercado europeu.
Um tema bastante recorrente da estatutária pública dos países latino-americanos foi o dos heróis da independência, como Simón Bolívar e José de San Martín, e a presença de artistas estrangeiros em busca de consagração por meios de encomendas públicas se manifestou em vários deles, sinalizando o alcance internacional dessas iniciativas. Em Bogotá, na Colômbia, em 1883, foi criado o Parque do Centenário4 em comemoração aos cem anos do nascimento de Bolívar. No centro do parque, foi construído um pequeno templo de pedra, projetado pelo arquiteto italiano Pietro Cantini, para alojar a estátua do herói da independência. Em 1926, foi instalado ali um Monumento a Bolívar, feito pelo também italiano Pietro Tenerani, réplica do que fora inaugurado em 1846 na Plaza Mayor, que desde então passou a se chamar Praça Bolívar.5 Na mesma cidade, em 1910, foi realizada uma estátua equestre a Simón Bolívar, pelo escultor francês Emmanuel Fremiet, inaugurada no Parque da Independência no contexto das comemorações do centenário da emancipação política daquele país.6 Além das obras na capital colombiana há uma também em Medellín, realizada em 1923, pelos italianos Giovanni Anderlini e Eugenio Maccagnani.
Bolívar foi homenageado também na capital do Panamá, onde se ergueu um monumento encomendado ao escultor espanhol Mariano Benlliure, em 1926. Em Buenos Aires, na Argentina, em 1924, iniciaram-se os debates para se erigir um monumento ao mesmo herói, porém, a obra só foi concretizada em 1942, pelo escultor argentino José Fioravanti e instalado no Parque Rivadavia. Na cidade de Quito, no Equador, em 1928, foi realizado um concurso para o Monumento a Simón Bolívar, que teve como vencedor um grupo de franceses, formado pelos arquitetos Félix Brunau, René Maronzeau e Louis Émile Galey, além dos escultores Jacques Swobada y René Letourner. Em Guayaquil,7 também no Equador, foi erguido um monumento que une os dois libertadores da América, Bolívar e San Martín, obra do escultor espanhol José Antonio Homs, inaugurada em 1937.
No Peru, foi José de San Martín8 que recebeu várias homenagens. Em Porto Callao, foi inaugurado, em 1901, uma obra feita pelo italiano Augustín de Marazzani. Em Lima, um monumento foi encomendado ao espanhol Lorenzo Roselló e ao italiano Piero Nicolli, inaugurado em 1903. Entre 1904 e 1906 foi realizado um concurso para se erigir outro monumento a San Martín em Lima, porém, a despeito da participação de vários artistas, o governo peruano optou por contratar diretamente o escultor espanhol Mariano Belliure, que teve sua obra inaugurada em 1920, no contexto das comemorações do centenário da independência.9
A independência tornou-se um tema ainda mais central da estatutária pública durante as comemorações de seus centenários, em vários países da América do Sul. Em Quito, no Equador, foi inaugurado em 1906 o Monumento a los héroes del 10 agosto de 1809, feito pelo artista ítalo-suíço Francisco Durini. Na Argentina, foi realizado entre 1908 e 1909 um concurso para erguer, em Buenos Aires, um monumento em homenagem à sua independência,10 vencido pelo italiano Luigi Brizzolara, obra que acabou não sendo concretizada. No México, foi feito o Monumento a la Independencia, conhecido como El Angel, do escultor nacional Antonio Rivas Mercado, inaugurado em 1910, na Cidade do México. Em San Salvador, capital de El Salvador, foi inaugurado em 1911 o Monumento a los Próceres de la Independencia de Centroamérica, realizado também pelo ítalo- suíço Francisco Durini.
No Brasil, o centenário da independência mobilizou grandes comemorações e a concretização de diversas obras escultóricas, em que artistas naci nais e estrangeiros competiam por suas encomendas. A mais emblemática é o Monumento à Independência, um dos maiores conjuntos escultóricos do país, instalado no Parque da Independência, no bairro Ipiranga, em São Paulo, local em que fora a declarada a Independência do país em relação a Portugal, no dia sete de setembro de 1822. Erguido por meio de concurso público internacional ocorrido entre 1919 e 1920, foi a peça central dos festejos centenários em São Paulo, que por meio dessa obra era alçada a competir com o Rio de Janeiro, capital do país, como sede simbólica das comemorações. Ansiosos por se inserir na voga de se erguer esculturas com a função de construir identidades nacionais, os dirigentes paulistas pretendiam, com esse monumento, destacar o estado e a cidade de São Paulo por meio da notoriedade da obra, bem como pelo seu poder de evocar o passado e delinear contornos de uma idealização de nação no qual os paulistas tinham papel decisivo.
Esse elencar de obras erguidas nas principais cidades da América Latina demonstram esforços para dotar de materialidade aos heróis nacionais e demarcar espaços simbólicos. Durante as comemorações dos centenários da independência, a prática de ser se erguer monumentos tornou-se mais efetiva e com uma clara intenção de evidenciar o caráter cosmopolita dessas cidades, por isso, tornaram-se recorrentes os concursos internacionais, amplamente divulgados e que contavam com uma significativa participação de artistas de diversas nacionalidades, ansiosos por alavancarem suas carreiras na América.
Este artigo analisa o concurso do Monumento à Independência do Brasil destacando as estratégias utilizadas pelos gestores estatais, responsáveis pelo concurso, na escolha do projeto que melhor representava as suas expectativas simbólicas. Serão observados, de um lado, os mecanismos de divulgação e valorização da obra e os esforços para que sua imagem circulasse em revistas internacionais e, por outro, a participação dos artistas e as recompensas que recebiam ao fazer parte dessa concorrência. O objetivo é compreender, por meio da análise do caso brasileiro, o funcionamento de concursos públicos internacionais, tendo em vista que essa maneira de selecionar obras foi uma prática muito recorrente no início do século XX na América Latina, que contava com grande participação de artistas estrangeiros. O artigo examina também as rusgas entre os que defendiam que artistas nacionais fossem priorizados, numa faceta protecionista que era associada à própria comemoração da Independência e de sua replicação na defesa da autonomia dos artistas do país em face da produção estrangeira.
Os esforços de homenagear a independência do Brasil por meio de esculturas públicas remontam aos primeiros anos da vida política independente brasileira, portanto, ainda no período imperial. Entre 1824 e 1825, no Rio de Janeiro, então capital da monarquia, foi proposta a construção de uma escultura ao imperadorD. Pedro I,11 intenção que só seria concretizada em 1862, com a inauguração da estátua equestre que homenageava o príncipe português que foi o líder e proclamador da Independência da antiga colônia lusitana. Considerada a primeira escultura pública do Brasil, ela foi resultado de um concurso, que teve como vencedor o brasileiro João Maximiano Mafra. A obra de Mafra foi, entretanto, executada em Paris pelo artista francês Louis Rochet que havia se classificado em terceiro lugar no mesmo concurso.12 Foi também Rochet quem concebeu e realizou uma escultura em homenagem a José Bonifácio, outro personagem central da independência brasileira, inaugurada no Rio de Janeiro, em 1872.13 Tais iniciativas geraram, contudo, poucas repercussões nas províncias imperiais e em suas capitais, que pouco viabilizaram a construção de monumentos escultóricos em suas praças. O mais importante deles foi o Monumento ao Dois de Julho, localizado na capital do estado da Bahia, Salvador, que homenageava o término das guerras de Independência, ocorrido ali em 1823. Foi concebido em 1876 pelo artista italiano Carlo Nicoli, tendo sido inaugurado apenas em 1895.14
Em São Paulo, local da Proclamação de 1822, a proposta de homenagear a independência por meio da escultura pública também data dos anos primeiros anos do período imperial. Autoridades provinciais intencionavam destacar o fato de que foi nessa cidade que D. Pedro teria proclamado a independência em 1822, por isso, pretendia-se erguer um monumento escultórico no exato local do brado. A primeira manifestação a favor dessa obra ocorreu em 1824, por meio da iniciativa do Presidente Província, e resultou na colocação da pedra funda- mental de um monumento. Os planos das autoridades paulistas, no entanto, não se efetivaram, apesar das diversas tentativas ocorridas durante o período monárquico. O que ganhou concretude foi a construção de um monumento de caráter arquitetônico, projetado pelo italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi que, a partir de 1895, passou a abrigar o Museu Paulista. Para o interior desse edifício, Pedro Américo de Figueiredo e Mello realizou uma pintura histórica da proclamação de D. Pedro às margens do riacho Ipiranga, intitulada Independência ou Morte!
No início do século XX, intelectuais e políticos brasileiros situados nas maiores cidades do país, como Rio, São Paulo, Salvador e Recife, estavam empenhados na construção de versões narrativas que fixassem a primazia de seus estados na liderança da construção de uma identidade nacional. Estava também em pauta a reformulação da memória política, agora pautada em valores republicanos, tendo em vista que em 1889 a Monarquia havia sido deposta por militares e a República fora instalada como regime. José Murilo de Carvalho abordou, em trabalho pioneiro, os primeiros passos da versão nacional da statuomanie, bem menos extensa e opulenta do que a que ocorria nos países europeus, mas igualmente marcante no forjamento dos heróis nacionais e no fortalecimento das esculturas públicas como símbolos cívicos e instrumentos pedagógicos para a formação do cidadão. O Rio de Janeiro sobrepôs-se a todas as outras cidades em termos de encomendas de estátuas, sendo absolutamente preponderante, nessa fase, as encomendas públicas a artistas brasileiros ligados à Escola Nacional deBelas Artes.15 A aproximação do Centenário expandiu as encomendas públicas de esculturas, constituindo-se como o momento ideal para a concretização de diversos projetos celebrativos, já que a reflexão e os debates sobre o Brasil e o nascimento da “jovem” nação no século XX tornaram-se a principal pauta da elite letrada, incluindo as ambiciosas lideranças paulistas, que dirigiam o estado mais rico da federação devido à exportação de café. Diante dessa conjuntura, o projeto do monumento paulista, cogitado em 1824, finalmente seria concretizado.
Em 1912, Francisco de Paula Rodrigues Alves, Presidente do estado de São Paulo, solicitou autorização ao Congresso Legislativo para se erigir um monumento no lugar em que se deu o grito de independência.16 Dotar esse local de um marco simbólico, tornava-se algo de grande relevância para a elite dirigente paulista, que buscava consolidar uma versão paulista da história oficial e a centralidade dos territórios paulista e paulistano nos destinos do país. Defendendo o caráter nacional que a obra escultórica deveria ter, Rodrigues Alves reivindicou a participação dos estados da Federação por meio de doação de verbas para a execução da obra. O apoio foi obtido por meio de contribuições vindas de Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Pará, Paraná, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Santa Catarina.17 Dessa maneira, demonstrava-se que a iniciativa paulista tinha o aval e a colaboração dos outros estados, tornando a execução do monumento interesse de todos.
O edital do concurso para o Monumento à Independência foi divulgado em 1917,18 em pleno transcurso da Primeira Guerra Mundial. Foi traduzido em quatro línguas (francês, espanhol, inglês e italiano), tendo sido publicado em periódicos da Espanha,19 Itália,20 França,21 Estados Unidos da América,22 entre outros.23 Sabe-se que o governo pagou U$ 468,00 dólares para obter essa divulgação no jornal The Sun, de Nova York24 e muito provavelmente também investiu somas para alcançar publicidade em outros jornais estrangeiros. Além disso, os consulados foram informados de que o governo do estado de São Paulo arcaria com as despesas de transporte das maquetes e dos projetos provenientes de outros países. Tal esforço demonstra que houve um grande investimento para garantir que artistas estrangeiros participassem da concorrência, o que não foi aceito placidamente pelos artistas nacionais, como se verá à frente. Abria-se, portanto, um campo de embate pela primazia de representar-se o país, embora as autoridades paulistas estivessem firmemente empenhadas em atrair artistas estrangeiros, integrando a cidade no mercado internacional de artistas capacitados a produzir grandes esculturas públicas.
Uma outra possível evidência desse empenho foi a prorrogação da data de entrega dos projetos, inicialmente estipulada para sete de setembro de 1918, e que foi estendida até dezembro de 1919. Possivelmente, isso ocorreu em decorrência da extensão dos conflitos bélicos na Europa até o armistício de 11 de novembro de 1918 e da possibilidade de participação de mais artistas estrangeiros por meio do adiamento da data limite de entrega dos projetos.25 Assim, ampliava-se a oportunidade de atrair a atenção de artistas europeus para a capital paulista, num período em que os recursos para obras semelhantes na Europa eram absolutamente escassos devido ao esforço de guerra e ao arruinamento financeiro gerado pelos conflitos.
O empenho em angariar a participação estrangeira no concurso gerou descontentamento em artistas do Rio de Janeiro que, organizados na Sociedade Brasileira de Belas Artes,26 elaboraram um protesto contra o edital.27 Eles alegavam que, por se tratar de “uma obra de arte nacional”, destinada a eternizar a “data iniciadora da nossa personalidade política da nossa emancipação social”, o governo de São Paulo deveria chamar exclusivamente “à liça os elementos artísticos que nos pertencem”. E completavam que:
Cabe à arte nacional revelar-se como demonstração do seu adiantamento e um atestado da cultura brasileira.
O ato do governo de S. Paulo peca por impatriótico, já aceitando a concorrência de artistas estrangeiros, inteiramente alheios às nossas tradições e estranhos inteiramente aos nossos destinos, já estabelecendo cláusulas em sua maioria favorável a estes, com grave prejuízo dos artistas patrícios ou estrangeiros, residentes há muitos anos entre nós.
Não é admissível, não é racional, não é logica a comemoração da independência de um país com o empréstimo da colaboração de estranhos, a desairosa e amesquinhante importação com que a xenomania intenta desprestigiar os cultores das artes plásticas nacionais.28
As críticas recaíam em um dos pressupostos do concurso: o fato dele ser internacional. Propostas protecionistas ocorreram também em concursos de outros países da América do Sul, como o do Mausoléu a Manuel Belgrano, em Buenos Aires. Luis Duprat, autor da ideia do monumento, sugerira que ele fosse realizado exclusivamente com materiais argentinos e por artistas argentinos. No entanto, quando foram redigidas as bases do concurso, os organizadores optaram por internacionaliza-lo, convidando artistas italianos e franceses para a concepção de projetos.29 Os signatários do protesto brasileiro também consideravam que o monumento de São Paulo deveria ser feito por um artista brasileiro e recriminavam a constante importação de obras e de artistas estrangeiros, considerado por eles como uma “xenomania”.30 E rogavam para que só fossem aceitos “os artistas brasileiros natos ou naturalizados e os artistas estrangeiros residentes no Brasil e radicados insofismavelmente ao solo de nossa Pátria”. Concluíam afirmando queo edital era “atentatório e lesivo aos interesses da arte e dos artistas nacionais” e exigiam “uma providencia enérgica, pronta e salutar” dos organizadores.
O Secretário do Interior e o Presidente do Estado responderam dizendo que não se afastariam do que havia sido estipulado pela lei que autorizou a construção do Monumento, que determinara que o concurso seria de caráter internacional.31 Essa inflexibilidade gerou constrangimentos, pois nenhum artista do Rio de Janeiro participou da concorrência. Aliás, foram poucos os participantes brasileiros. Dos 27 projetos analisados,32 apenas seis eram provenientes do Brasil: um do escultor pernambucano Bibiano Silva e os demais de São Paulo, porém, em todos estes cinco projetos havia a participação de pelo menos um artista imigrante já fixado no Brasil. Um deles era Nicola Rollo, italiano que havia se estabelecido na capital paulista em 1913 e que apresentou sua proposta sem parcerias. Os outros quatro projetos provenientes de São Paulo haviam sido entregues por duplas que tinham pelo menos um integrante estrangeiro imigrante.33 Foram também apresentados 21 projetos de artistas estrangeiros que não residiam no Brasil, sendo oito deles provenientes da Itália,34 três da Espanha,35 dois da França,36três da Argentina,37 um do Uruguai,38 um dos Estados Unidos,39 um da Suíça,40 um da Dinamarca,41 além de um de procedência desconhecida.
O edital do concurso brasileiro previa a utilização de granito e bronze no monumento. Os concorrentes deveriam apresentar desenhos da planta, elevação e corte, entregar um “memorial descritivo”, que explicasse a obra e as intenções do artista, além de uma maquete em gesso, na escala de 1:10. O vencedor recebe- ria o prêmio de 30:000$000 (trinta contos de réis), enquanto o classificado em segundo lugar receberia 15:000$000 (quinze contos de réis). Outro documento exigido era o orçamento da obra, considerado de grande relevância pois havia sido determinado que o custo total não poderia exceder mil contos de réis.42 Foi comum a concursos internacionais estipular um valor máximo a ser despendido. No caso do Monumento à Independência da Argentina, o valor da obra era 300.000 pesos ouro43, porém, em 1913, os artistas vencedores solicitaram uma revisão de orçamento, alegando haver incidido inflação no custo dos materiais e dos serviços. Esse foi um dos empecilhos que impediu a concretização da obra portenha.44
O valor dos prêmios do concurso do monumento brasileiro foi outro item criticado no protesto da Sociedade Brasileira de Belas Artes, que o considerou exíguo para a “importância técnica e artística da obra a executar” e para as despesas que os artistas arcariam para confeccionar maquetes e plantas dos projetos. O valor estabelecido era idêntico aos que haviam sido concedidos, em 1910, para os vencedores dos concursos Monumento a Feijó e para o Monumento Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, ambos realizados em São Paulo.45 De fato, desde de que o concurso do Monumento à Independência fora formulado, em 1912, mantiveram-se os valores dos prêmios, apesar da grande inflação vivida no Brasil com a Primeira Guerra Mundial.46 Contudo, nota-se que os prêmios não se constituíam como um empecilho, já que uma grande quantidade de escultores, principalmente estrangeiros, enviaram projetos para participar do certame. E foi justamente esse o argumento que os organizadores do concurso utilizaram como resposta ao protesto,47 afirmando que os artistas estrangeiros não haviam reclamado da exiguidade dos prêmios fixados a despeito do sacrifício que tiveram com o transporte de suas maquetes.
O concurso do Monumento à Independência teve, como visto, êxito de internacionalização. A grande presença de artistas estrangeiros ampliava ainda mais o alcance da divulgação do concurso e a fama dos escultores participantes, como Zochi e Ximenes, contribuiria para engrandecer o monumento. Além disso, o concurso se confirmou como parte de um mercado atrativo e em expansão para escultores estrangeiros, que ainda não tinham sido mobilizados para a avalanche de encomendas aos soldados mortos, viabilizados apenas após a reconstituição financeira dos países vencedores.48 Muitos deles, como os italianos Luigi Brizzolara, Ettore Ximenes e Donini Cesare, não se limitaram a enviar as maquetes, mas foram pessoalmente ao Brasil para participar da concorrência. O investimento de uma viagem transatlântica poderia ser recompensado, ainda que não vencendo o concurso, por meio da obtenção de outras encomendas. Por isso, alguns deles tão logo chegaram ao Brasil foram visitar os escritórios dos principais jornais paulistas para obter visibilidade por meio da publicação de matérias sobre suas carreiras e seus projetos nos periódicos. Ximenes, Brizzolara e Cesare utilizaram essa estratégia e tiveram seus nomes amplamente divulgados pela imprensa antes da exposição de seus trabalhos.49
Em 10 de março de 1920, foi inaugurada a exposição com as maquetes dos projetos participantes do concurso, no Palácio das Indústrias, em São Paulo. Alguns artistas procuraram se evidenciar diante da grande diversidade de projetos ali apresentados, de modo a ampliarem suas chances de vitória. Ettore Ximenes, por exemplo, apresentou não uma, mas duas maquetes, além de um alto relevo de grandes proporções representando a proclamação da Independência no Ipiranga, segmento de grande importância no seu projeto, como se verá a seguir. Conquistar os prêmios e obter evidência no concurso era um objetivo que valia o risco de tantos investimentos, como os realizados por Ximenes.
Diferente da opinião púbica, a decisão dos membros do júri pelo projeto de Ettore Ximenes (Img. 1) foi unânime. Outro italiano, Luigi Brizzolara (Img. 2), ficou em segundo lugar e, além dos prêmios previstos no edital, foram realizadas mais duas gratificações: uma a Nicola Rollo, artista italiano radicado no Brasil, e outro para a dupla Roberto Etzel e Luigi Contratti, este italiano, aquele brasileiro que morava em Roma. Ficava evidente, portanto, a primazia dos italianos no concurso.
Os artistas que obtiveram destaque no concurso foram aqueles que realizaram outras obras de vulto no mesmo período. Ettore Ximenes conquistou o segundo prêmio do concurso do Monumento aos Andradas, em Santos, e foiescolhido para realizar o Monumento à Amizade Sírio-Libanesa, em São Paulo. Luigi Brizzolara foi designado pela colônia italiana para realizar o Monumento a Carlos Gomes, inaugurado em 1922 e, no mesmo ano, as estátuas de Antonio Raposo Tavares e Fernão Dias Paes Leme para o Museu Paulista, todas também em São Paulo. A Nicola Rollo coube a execução de estátuas de bandeirantes para a escadaria do Museu Paulista, além de uma obra em homenagem ao movimento bandeirista, que seria instalada em frente ao edifício do Museu, mas que acabou não se concretizando. Todos esses monumentos foram idealizados para as comemorações do centenário da independência, evidenciando a importância deste evento como uma porta de entrada para o mercado escultórico da cidade de São Paulo, então, em desenvolvimento.
Ettore Ximenes, o vencedor do concurso, apresentou um projeto de características neoclássicas, que tinha em sua face principal um grande alto relevo (Img. 3) em referência ao quadro “Independência ou Morte” (Img. 4), de Pedro Américo. Esta pintura histórica representa o sete de setembro de 1822, quando o príncipe regente, às margens do riacho do Ipiranga, teria proclamado o grito simbolizando a ruptura entre Brasil e Portugal. Além do alto relevo, o projeto de Ximenes previa quatro estátuas sedestres de personalidades brasileiras, que representavam “o pensamento e ação”: José Bonifácio, Diogo Feijó, Tiradentes e Ledo Gonçalves. Dois conjuntos escultóricos laterais simbolizavam o “Jugo e a escravidão” (Img. 5) e a “Liberdade” (Img. 6). No cimo do monumento, haveria um o grupo triunfal (Img. 7) constituído por um “colossal plinto retangular”, em cujos lados seriam ornados com altos relevos. No carro triunfal, estaria em pose majestosa uma figura representando a Independência, a empunhar, “com a mão direita, o pendão da liberdade, e com a esquerda, uma espada embainhada, como significação do fato consumado”. Junto dela, nessa “Marcha do Triunfo”, estariam diversas alegorias representando a Arte, a Poesia, a Música, a História, o Pensamento e a Ciência, entre outros.50
Nos comentários dos jornais, Ettore Ximenes havia sido elogiado pela sua qualidade técnica, por conhecer “perfeitamente as formas anatômicas” e ter figuras “plasmadas maravilhosamente”, com proporção correta.51 Um detalhe bastante elogiado pela Comissão Julgadora foi o alto relevo em referência ao quadro de Pedro Américo. Esta pintura já compunha o imaginário da independência, portanto, auxiliaria na função pedagógica do monumento de lembrar a todos que por ele passasse a importância daquele lugar e do evento que ocorrera ali em 1822. O relevo permitia cristalizar uma representação da cena da emancipação literalmente às margens do Ipiranga.
O edital do concurso explicitava que o julgamento da obra recairia sobre seu o valor técnico e a sua capacidade de traduzir “a verdade do grande acontecimento que se pretende comemorar”, para tanto, indicava-se a leitura do livro de Rocha Pombo, intitulado “História do Brasil”.52 No julgamento dos projetos, o júri destacou a importância do “ensinamento histórico” e criticou as obras alheias à nossa “nota nacional”. Condenaram um projeto em que Marechal Deodoro, proclamador da República, foi confundido com D. Pedro I, o responsável pela independência, bem como aqueles que tinham dísticos escritos em espanhol, exemplos que demonstravam que os artistas estrangeiros desconheciam a história brasileira e até mesmo língua falada no Brasil. Já o projeto de Ettore Ximenes foi elogiado justamente por sua “evocação nacional”. Em uma entrevista, Ximenes menciona que teria pedido ao “professor Parlagrecco”53 que fornecesse um trabalho pelo qual pudesse se guiar e que ele teria oferecido uma fotografia da obra de Pedro Américo, Independência ou Morte. Ximenes acrescenta ainda fora “vizinho de ateliê” do pintor brasileiro quando ele pintava o quadro, que foi realizado em Florença.54
Apesar dos elogios à obra de Ximenes, os jurados solicitaram diversas mudanças à proposta inicial, como a inclusão de outros eventos históricos que completariam a narrativa do processo de independência, que no projeto estava restrito ao sete de setembro, contemplado no alto relevo, e às estátuas sedestres dos próceres. Dentre as alterações requeridas pelo júri estava a substituição das alegorias “Jugo e a escravidão” e “Liberdade” por grupos escultóricos que representariam os inconfidentes mineiros (Img. 8) e os revoltosos de Pernambuco (Img. 9). Essas rebeliões haviam acontecido no período colonial e se caracterizaram por defender a ruptura com Portugal e a adoção do regime republicano, ideias que se ajustavam aos valores que um monumento erguido durante a República pretendia reforçar. Houve também a inclusão de baixos relevos representando a aclamação de D. Pedro I como imperador em São Paulo e o Combate do Pirajá, batalha final do processo de independência, ocorrido na Bahia. Por fim, a estátua sedestre de Tiradentes foi substituída pela de Hipólito José da Costa, já que aquele havia sido contemplado em um dos conjuntos laterais. Essas inclusões evidenciavam as intenções memorialísticas dos jurados e promotores do concurso A solicitação de mudanças em projetos vencedores de concursos não era algo incomum,55 mas é um indicativo de que os motivos para a escolha de um projeto não se restringiam à composição.
Um aspecto que também deve aqui ser considerado para a compreensão da vitória de Ximenes é o estilo empregado pelo artista. Foram apresentados projetos muito variados, alguns vinculados à tradição clássica, que seguiam modelos antigos, padrões classicizantes, com aplicação de regras herdadas da tradição, como o neoclassicismo, visto em projetos como o de Ximenes. Outros vinculavam-se a movimentos demarcados por linhas mais livres, que abandonavam os contornos firmes e a rigidez do acabamento ao proporem formas mais dinâmicas, como o projeto de Brizzolara.
Vincular-se com a tradição da arte ocidental, ou seja, o historicismo acadêmico da arte italiana, cujo gosto era consagrado na Europa e em diversas outras encomendas na América do Sul, constituía uma opção bastante válida para um monumento que pretendia ser a demonstração de São Paulo como centro irradiador de civilização, cultura e tradição, por meio da repercussão de cânones artísticos europeus. Vale lembrar que monumentos de características acadêmicas marcaram a produção escultórica italiana antes da Primeira Guerra Mundial, portanto, não eram vistos como ultrapassados nas primeiras décadas do século XX.56 Ao contrário, eram muito oportunos para serem utilizados na representação do herói. Valéria Salgueiro afirma que, apesar desse período ter sido marcado pelo questionamento das bases em que a arte estava assentada, havendo a busca por expressões mais modernas, principalmente na pintura, os monumentos públicos permaneceram conservadores em estilo, técnica e tema. Por sua relação com o jogo político e a sua associação a assuntos oficiais, o conservadorismo formal do monumento público continuava prevalecendo sobre as aspirações mais audaciosas:
O estilo acadêmico e oficial da escultura em geral também foi posto em xeque, mas no campo da escultura pública foi diferente, com menor furor. É que na escultura voltada para os espaços públicos as convenções até então prevalecentes estavam tão firmemente consolidadas no gosto público de classe média e nos critérios dos comitês pró-monumento que uma renovação a partir de novas fontes figurativas tornava-se de recepção mais difícil.57
Tendo em vista as pretensões de se constituir um imaginário social, a recepção da obra pelo público, a sua assimilação e a sua relação afetiva eram aspectos fundamentais. Ademais, era certamente desejo das elites dirigentes paulistas ter um grande monumento público de estilo clássico, que seguisse as regras da Academia francesa e italiana, feito por um artista filiado à “tradição do belo” e de prestígio internacional, tal como se mostrava o projeto ganhador no concurso de projetos para o Monumento à Independência. Erguer essa obra seria uma oportunidade de inserir o Brasil na produção escultórica acadêmica internacional, tal como acontecia com países vizinhos da América do Sul.
Aos organizadores do concurso, escolher um artista estrangeiro de grande fama internacional era algo plausível de ser desejável, por isso, tanto investimento haviam feito para internacionalizar o concurso. Pretendia-se, por decorrência, que o monumento tivesse a chancela da crítica estrangeira, o quetornava favorável a escolha de um artista que já tinha reconhecimento. Ettore Ximenes era o artista de maior reconhecimento que participou do concurso, já que era um escultor ativo e bastante requisitado para obras de grandes proporções, tanto na Itália, como em outros países da Europa e também nos Estados Unidos. Em seu país, ele havia vencido diversos concursos, alguns de grande visibilidade como o Monumento a Garibaldi, em Milão, finalizado em 1895, e a Quadriga que coroa o Palazzo di Giustizia, em Roma, vitória obtida em 1900. Em Florença, fez a estátua de San Mattia para a fachada da Igreja de Santa Maria del Fiore, em 1887. Na capital italiana, possui também a obra Ciceruacchio, premiada na Exposição de Turim de 1880 e erguida no Lungo Tevere Flaminio, em 1907, e Rinascita,58 que recebera a medalha de ouro na Exposição Universal de Paris, em 1900. Em 1908, Ximenes foi escolhido para realizar um grupo alegórico Il Diritto para o Monumento Nazionale a Vittorio Emanuele II, o imenso monumento arquitetônico que homenageia o primeiro rei da Itália unificada, situado no coração de Roma, sobre a Colina Capitolina e em frente à Piazza Venezia e ao Corso.
Sua carreira no exterior era também de grande repercussão, o que não poderia passar desapercebido pelos jurados do monumento a ser erguido em São Paulo. O primeiro concurso que Ximenes vencera fora da Europa foi o do Mausoléu ao General Manuel Belgrano59, em Buenos Aires, cidade que despontava como a riquíssima capital da economia da carne e do trigo argentinos e um mercado importante para pintores, escultores e arquitetos europeus. Nos Estados Unidos, recebeu encomendas de membros da colônia italiana para realizar obras de relevo em Nova York, como o Monumento a Giovanni da Verrazzano, instalado no Battery Park, em 1909, e o Monumento a Dante Alighieri, encomendado em 1910, mas inaugurado apenas em 1921, no Dante Square.60 Ettore Ximenes também foi escolhido para realizar monumentos para o Império Russo.61 Em 1909, embarcou para Kiev a convite do czar Nicolau II, e realizou o monumento ao Czar Alexandre II, erguido na praça Carskaja, em 1912. Venceu também o concurso do monumento a Pyotr Stolypin, presidente do Conselho de Ministros russo que havia sido assassinado no ano anterior. Em 1913, foi escolhido para fazer o Monumento a Alexandre I, em Kishinev,62 que foi erguido na rua Aleksandrockaja em 1914.63 A trajetória de Ettore Ximenes permite perceber, portanto, o prestígio e reconhecimento que o escultor já tinha no meio artístico italiano e internacional. Escolher um escultor da notoriedade de Ximenes pode- ria garantir uma repercussão internacional do Monumento à Independência do Brasil. Ademais, o escultor estava em evidência na imprensa italiana durante o concurso brasileiro, já que em 22 de fevereiro de 1920, alguns dias antes de abrir a Exposição de Maquetes no Palácio das Indústrias, inaugurou-se em Parma, o monumento dedicado a Giuseppe Verdi, de sua autoria.64
A fama de Ximenes permitia supor que seria grande a repercussão internacional na imprensa caso sua obra fosse escolhida, o que também seria estratégico para divulgar o monumento brasileiro. Isso, de fato, ocorreu, pois assim que foi anunciada a vitória do escultor, diversos jornais e revistas da Itália divulgaram com orgulho a “nova conquista da arte italiana”. Houve artigos veiculados em periódicos como Il Messagero,65 e revistas como L’artista Moderno66 e L’illustrazione coloniale;67 houve também imagens da maquete com legenda explicativa sobre o concurso, em revistas como La domenica del Corriere (Img. 10) e no jornal da colônia italiana no Brasil Fanfulla; e até matérias de página inteira, com reprodução de várias imagens da maquete, como em L’illustrazione italiana.68 Essas publicações destacavam o mérito do escultor e da arte italiana, reforçando que havia sido resultado de uma competição árdua em que tomaram parte artistas de diversos países. Além dos periódicos italianos, o concurso e a vitória de Ximenes ganharam destaque na revista portuguesa A Águia (Img. 11), na madrilena La Ilustración Española y Americana (Img. 12) e na londrina The Graphic.
Realizar o Monumento à Independência era também uma aposta decisiva para Ettore Ximenes, um artista experiente e maduro, que já havia obtido louros em diversos lugares. Portanto, lançar-se nesse concurso, despender tempo e dinheiro para realizar duas maquetes e um friso de grandes proporções, demonstra que esta era uma decisão pensada e de grande importância para sua carreira, especialmente em um momento em que havia imensa retração do mercado de encomendas públicas na Europa. Era, assim, uma tentativa de alcançar um glorioso ponto da sua trajetória profissional ao realizar o monumento principal dedicado à celebração da independência de um país, situado numa das cidades mais ricas da América.
Para o artista obter o sucesso almejado não bastava vencer o concurso, mas garantir que a obra fosse erguida. Quando o contrato foi firmado, decidiu-se que a obra poderia ter um custo total de 1.300:000$000 (mil e trezentos contos de réis), aumentando, portanto, o que fora estipulado no edital. No entanto, em 1922, faltando pouco mais de seis meses para a inauguração, Ettore Ximenes solicitou aumento de verba sob alegação da vertiginosa elevação do preço dos materiais e dos trabalhos na Itália. Na petição enviada ao Presidente do estado de São Paulo, o escultor afirmava que se não obtivesse o aumento requerido, teria de “suspender os trabalhos”.69 Em uma entrevista, Ximenes alegou que o custo da base do monumento, que havia orçado em 300.000 liras, aumentara para 2.000.000 de liras e que a diária de um operário que antes custava 7 liras passou a ser 50.70
A despeito das alegações do artista, seu pedido foi negado pelas autoridades paulistas. Esse revés, no entanto, não o desestimulou a uma nova tentativa de inserir-se no mercado brasileiro. Em 1922, foi lançado o edital do concurso internacional destinado a erguer o Monumento à República, no Rio de Janeiro, no qual o artista de inscreveu. Nessa nova concorrência, o valor da obra era significativamente maior do que no monumento de São Paulo, pois estipulava-se a destinação de 3.000:000$000 (três mil contos de réis) para a execução do monumento, além dos prêmios de 50.000 francos para o vencedor e 25.000 e 15.000 francos para o segundo e o terceiro lugar. Malgrado a ameaça de suspender os trabalhos em São Paulo, Ettore Ximenes acabou finalizou o Monumento à Independência utilizando recursos próprios, evitando que sua reputação fosse manchada pelo fracasso da obra escultórica mais ambiciosa de sua carreira, algo capaz de obstruir inclusive suas chances no concurso do Rio de Janeiro. O Monumento à Independência, foi, com atraso, inteiramente inaugurado em sete de setembro de 1923, um ano após as comemorações centenárias.71
Nessa mesma data, foram divulgados os vencedores do citado concurso do Monumento à República, no Rio de Janeiro, em que Luigi Brizzolara conquistou o primeiro lugar e Ettore Ximenes o segundo. O resultado desse concurso gerou muitas controvérsias e, após um longo período de impasse, decidiu-se pela execução do projeto de Ximenes em detrimento do de Brizzolara.72 Foi também nesse ínterim que o escultor recebeu a encomenda para realizar, na capital italiana, um grande monumento intitulado Marcha sobre Roma,73 que homenageava o início da instauração do regime fascista na Itália por Mussolini, encomenda essa que coroava definitivamente sua inserção como protagonista no mercado escultórico italiano de então, por meio de uma encomenda a ser realizada pelo novo regime que se instaurara em 1922 na própria capital do país.74
Por mais que o artista tenha despendido recursos próprios para executar o monumento de São Paulo, o Monumento à Independência lhe rendeu outras recompensas, fossem elas financeiras, como o prêmio de segundo lugar do con- curso carioca, fosse de reconhecimento, como a sua escolha para realizar o monumento carioca apesar de ter ficado em segundo lugar no certame. Além disso, seu esforço pessoal em custear a finalização do monumento em São Paulo acabaria por ser recompensado, pois em 1926, após uma extensa discussão na Câmara e no Senado do Estado de São Paulo, Carlos de Campos, Presidente do Estado de São Paulo, autorizou a abertura de um crédito de 1.500:000$000 (mil e quinhentos contos de réis) “para pagamento de uma gratificação ao escultor Ettore Ximenes, pela conclusão do monumento do Ipiranga”.75 A aventura de Ximenes no mer- cado artístico brasileiro chegara, portanto, a um bom termo.
A proliferação de obras escultóricas realizadas por artistas italianos, franceses e espanhóis nos países latino-americanos demonstra que a América era um impor- tante mercado para a produção escultórica europeia desde meados do séculoXIX. Franco Sborgi lembra que o modelo europeu de consagração da memória por meio de esculturas foi transmitida a diversos países, em que as elites dirigentes tornaram urgente a necessidade de consagração da própria identidade nacional por meio de imagens públicas que celebrassem os marcos dos processos de independência, entre outros. Fora da Europa, esse fenômeno foi particularmente visível nos países da América Latina e nos Estados Unidos, em que ocorreram diversos concursos internacionais para a realização de monumentos com essa finalidade. E os artistas italianos tiveram, como no caso da trajetória de Ettore Ximenes, um papel relevante nesse processo.76
Os concursos internacionais configuraram um importante instrumento de contratação de artistas e escolha de obras. Por meio deles, as intenções monumentais dos gestores estatais, responsáveis pela concorrência, tinham seu alcance expandido para além das fronteiras nacionais, tornando o monumento e a cidade em que ele estaria inserido, mais conhecido. Além disso, a América era vista por muitos artistas europeus como como um ambiente de oportunidades para se obter encomendas, viver de seus trabalhos artísticos e obter prestígio e projeção internacional de suas carreiras. Concursos internacionais eram, entretanto, instrumentos de consagração de mão dupla. Se, por um lado, aos países latino-americanos importava ter um monumento reconhecido internacionalmente e vinculado a uma tradição europeia, por outro, aos artistas europeus, essas conquistas eram importantes fontes de recursos bem como de reconhecimento e projeção internacional que acabava por lhes garantir mais notoriedade em seus países de origem.
No concurso do Monumento à Independência do Brasil, o governo paulista fez uma escolha estratégica ao decidir pela execução da obra de Ettore Ximenes. Ele era um artista influente, que tinha com carreira consolidada e de grande visibilidade internacional. Além disso, a sua maquete era uma grande representação do ideal clássico, um estilo de grande prestígio, que permitia agregar o “valor da tradição” ao monumento brasileiro. Era também uma oportunidade de a cidade ter um monumento de qualidade técnica, realizado por um escultor italiano, capaz de difundir a obra em periódicos internacionais. Além de o projeto de Ximenes ser uma concepção artística bastante complexa, que possuía um enorme relevo que fazia referência a um quadro consagrado, cuja imagem já fazia parte do imaginário da independência.
A vitória no concurso brasileiro significou uma conquista importante para Ettore Ximenes, não apenas pelo aspecto financeiro, mas, sobretudo, pela consagração de sua carreira. A importância desse monumento foi evidenciada no esforço que o artista teve para obter a vitória no concurso e para que a obra fosse executada, mesmo diante da falta dos recursos disponíveis. Além das con- sequências mais imediatas, que foram as encomendas que ele recebeu no Brasil e na Itália, o monumento lhe garantiu um efeito mais duradouro, que é ser o de ser o autor de um dos maiores conjuntos escultóricos da América Latina. É notória a importância que a obra brasileira adquiriu na carreira do artista, pois nos obituários divulgados em periódicos italianos, o Monumento à Independência é sempre citado, demonstrando como era uma grande conquista do escultor italiano, e evidenciando a importância das vitórias em concursos nos países americanos para a carreira dos artistas italianos, como de resto, foram para todos os demais que se lançaram no estimulante mercado latino-americano de esculturas públicas.77