ARTIGOS DE REVISÃO

Recepción: 19 Junio 2019
Aprobación: 16 Agosto 2019
DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v21n22019p189-204
Resumo: O texto aborda a produção científica, no campo da Educação no Brasil, de trabalhos stricto sensu acerca do tema das Cotas na Educação no período de 2013-2018, disponível no banco de teses e dissertações da CAPES. Buscou-se conhecer as discussões de pesquisadores e os resultados de suas investigações, assim como quais outras questões foram levantadas acerca da educação pública brasileira. A metodologia utilizada contemplou a pesquisa bibliográfica (GIL, 2002), bibliométrica (TAKAHASHI, 2013) e a análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Observaram-se caminhos comuns do debate das pesquisas acerca da política de cotas, e, por fim, apontaram-se os limites das cotas enquanto medidas de justiça social, quando aplicadas isoladamente.
Palavras-chave: Cotas, Produção científica, Análise de conteúdo.
Abstract: The text approaches the scientific production of works stricto sensu in Brazil in the field of Education, in the period 2013-2018, on the theme of Quotas in Education, available in the theses and dissertations bank of CAPES. We sought to know the discussions of researchers and the results of their investigations, as well as to know what other questions were raised about Brazilian public education. The methodology used was based on bibliographic research (GIL, 2002), bibliometric (TAKAHASHI, 2013) and content analysis (BARDIN, 2011). It was observed common paths in the research debate on quota policy. Finally, the study points out the limits of quotas as social justice measures, when applied in isolation.
Keywords: Quotas, Scientific production, Content analysis.
Resumen: El texto trata sobre la producción científica, en el campo de la educación en Brasil, de las obras stricto sensu sobre el tema de Cuotas en la Educación en el período 2013-2018, disponible en el banco de tesis y disertaciones de CAPES. Buscamos conocer las discusiones de los investigadores y los resultados de sus investigaciones, así como también qué otras preguntas se plantearon sobre la educación pública brasileña. La metodología utilizada incluyó investigación bibliográfica (GIL, 2002), bibliométrica (TAKAHASHI, 2013) y análisis de contenido (BARDIN, 2011). Había caminos comunes para la discusión de la investigación de la política de cuotas. Finalmente, se señaló los límites de cuotas como medidas de justicia social, cuando se aplican de forma aislada.
Palabras clave: Cuotas, Producción científica, Análisis de contenido.
1 Considerações introdutórias
Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens?
(ROUSSEAU, 1989)
O presente texto tem como objetivo apresentar ao leitor o estágio da discussão sobre as ações afirmativas (AAs) para o ingresso no ensino público federal brasileiro, tendo por foco as pesquisas desenvolvidas sobre essa temática nas pós-graduações stricto sensu. A investigação contempla o período que sucedeu a promulgação da “Lei de Cotas” (Lei nº 12.711 de 2012), especificamente o período de 2013 a 2018.1 Entende-se que a norma federal possa ter influenciado a produção acadêmica que veio a ser publicada no período. A importância dessa análise encontra-se no fato de que ela evidencia as discussões de pesquisadores e os resultados de suas investigações sobre o acesso especial concedido a determinados grupos sociais, assim como investiga que outras questões sobre a educação pública brasileira foram levantadas.
É relevante destacar que, embora a Biologia tenha pacificado o entendimento de que raças não existem, o racismo, entretanto, não deixou de existir. Para além do projeto político do “movimento negacionista” e “revisionista histórico” que ocorre no Brasil, é notório que o racismo e outras formas de discriminação permanecem presentes na realidade brasileira, constituindo um fenômeno social que é fruto de um passado histórico de escravidão e desigualdades socioculturais.
Grupos que desejam revisar a história social do Brasil com o objetivo de reescrever os fatos históricos, independentemente da historiografia científica, chegam a conclusões de que a miscigenação do Brasil seria um “tratado de paz da humanidade", enfocando que a "cultura" foi algo trazido para o país pelos portugueses (NEHER, 2019), ignorando as características próprias dos povos autóctones americanos e africanos — estes últimos traficados ao país. Há, portanto, um esforço para deslegitimar os métodos científicos e os estágios do conhecimento de cada temática, atacando-se a academia enquanto seu espaço de maior representatividade (são exemplos as afirmações: a “terra é plana”; “nazismo é de esquerda”; o “golpe de 1964 e a ditadura brasileira não existiram”; “não houve escravidão europeia na África”, entre outros).
Pode-se dizer que, diferentemente do período escravocrata, “onde os lugares são visíveis e decididos pelo fenótipo e pelo status de origem do modo mais claro possível, a produção da desigualdade na nova ordem é opaca e não transparente aos indivíduos que atuam nela” (SOUZA, 2017, p. 50). Essa falta de nitidez naturaliza a concepção de que só os mais aptos e capazes devem/podem progredir, individualiza as conquistas, menospreza a responsabilidade coletiva e provoca o que Loïc Wacquant chamou de um “neodarwinismo” (JENSEN, 2015, p. 49).
Para Lakatos, a “história da ciência é e deveria ser a história de programas de pesquisa em competição”, sendo a ciência uma sucessão de teorias (REALE, 1991, p. 1.048). A partir disso, acerca das questões relacionadas às cotas, é cogente analisar as contribuições das pesquisas científicas e as conclusões a que chegaram bibliográfica e bibliometricamente, enquanto paradigma de explicação do fenômeno educacional, contrapondo e refutando os discursos enviesados e ideologizados sobre o tema.
2 Cotas: “dar a cada um o que é seu” ou “conforme sua necessidade”
O Brasil é marcado por desigualdades de natureza social, econômica e educacional, entre outras. A concepção da igualdade formal, presente no ordenamento jurídico do país, não foi suficiente para reduzir ou eliminar as desigualdades práticas e materiais acumuladas ao longo da história.
O compromisso legal de um “Estado Social” não se viabilizou, condicionado por ausência de recursos, remanejo para pagamento de dívidas públicas, insuficiências materiais de projetos, entre outros. Paralelamente, ao longo dos anos, sempre foi possível observar os desequilíbrios representativos da população brasileira nos meios universitários. A desproporcionalidade educacional requereu o debate acerca de ações afirmativas, nomeadamente políticas públicas que garantam a igualdade formal e material — permitindo ao cidadão uma igualdade substantiva (PIOVESAN, 2005, p. 49).
De acordo com Thomas Sowell, pesquisador sênior de políticas públicas da universidade norte-americana de Stanford, em sua obra “Ação Afirmativa ao Redor do Mundo: um Estudo Empírico Sobre as Cotas e Grupos Referenciais” (2016), o conceito de ações afirmativas surge no debate norte-americano por volta da década de 1960. O pesquisador destaca que ações dessa natureza são tomadas inicialmente na Índia, no início do século passado. No caso norte-americano, o debate acerca dessas políticas ocorreu em um contexto que passava pela implantação de leis federais importantes sobre os direitos civis.
O primeiro uso oficial do termo “ações afirmativas”, relacionando-o a contextos raciais e étnicos, deu-se com o Decreto norte-americano nº 10.925, datado de 1961 e assinado pelo presidente John F. Kennedy, o qual estabelecia que os contratos federais tivessem que “assumir a ação afirmativa para assegurar que os candidatos fossem empregados e que os empregados, nos seus trabalhos, fossem tratados sem considerações de raça, credo, cor, ou origem nacional” (SOWELL, 2016, p. 164) [grifo nosso]. Embora o tratamento “sem considerações” nos pareça deslocar a discussão contra a aplicabilidade das ações afirmativas, convém esclarecer que a legislação visava combater as leis segregacionistas da Era Jim Crow2. Essa foi a primeira de uma série de normas que vieram a culminar no que ficou conhecido como ações para representação, que, posteriormente, assumiriam diversificados formatos — entre os quais inserem-se as cotas.
Importa destacar que o conceito de “ações afirmativas” possui variações, a depender da especificidade dos países e das regiões que implementaram tais medidas (tendo mutabilidade conceitual: “discriminação positiva”, “programas para a igualdade de oportunidades”, entre outros). De maneira geral, as “ações afirmativas” são compreendidas como um conjunto de políticas que tendem a realizar reparação e reconhecimento, com o intuito de compensar desigualdades raciais e sociais, “orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória” (BRASIL, 2004, p. 12).
Assim, com vistas a romper com o processo desigual da sociedade brasileira, que se reproduz em suas instituições educacionais, a partir da retomada da democracia brasileira em 1988 surgem as discussões acerca das políticas de ações afirmativas. No entanto, tais debates eram muito mais midiáticos e de vitrine para governantes do que efetivamente programas ou políticas de Estado.
As primeiras experiências de AA no ensino superior brasileiro remetem ao início dos anos 2000. Através de uma lei estadual, em 2002, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) passaram a reservar uma “cota mínima de até 40% (quarenta por cento) [de suas vagas] para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação” (RIO DE JANEIRO, 2001). Em 2003, mediante uma iniciativa institucional, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira universidade federal a adotar as cotas. Por intermédio de seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), no dia 6 de junho de 2003, a UnB aprovou o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial, onde se estabeleceu que 20% das vagas do vestibular seriam destinadas a candidatos negros, além de prever a disponibilização de vagas para indígenas de acordo com demanda específica (CARVALHO; SEGATO, 2002).
Para além da polissemia do conceito de ações afirmativas, houve, da mesma forma, uma variação no formato de sua aplicabilidade com o passar dos anos. De caráter controverso, as ações afirmativas foram julgadas como constitucionais no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, após intensos debates sobre sua legalidade e constitucionalidade. Naquele ano, considerando apenas o escopo das 59 universidades federais, mesmo antes da aprovação do STF e da Lei nº 12.711/2012, 32 universidades já possuíam cotas para oriundos de escolas públicas, e 25 delas aplicavam algum tipo de cota com critério racial (SEMESP, 2012).
3 Estratégia metodológica
Para viabilizar esta pesquisa3, realizou-se uma análise bibliográfica e bibliométrica entre as pesquisas acadêmicas e científicas relativas às ações afirmativas na modalidade de cotas, as quais foram desenvolvidas nas pós-graduações stricto sensu do Brasil. A pesquisa contemplou o período de 2013 a 2018 e teve por base as produções disponíveis no Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
De acordo com Gil, o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica pode ser o mesmo da pesquisa documental, sendo classificada como de segunda mão, dado que já recebeu um “tratamento analítico” (2002, p. 51). Enquanto fonte secundária, a pesquisa bibliográfica pode, desse modo, permitir a compreensão da resolução de um problema ou ser considerada como um laboratório para se analisar o que se pretende resolver. De qualquer modo, constitui-se como o “primeiro passo de toda a pesquisa” (MARCONI, 2007, p. 44).
Por esse motivo, fontes bibliográficas como teses e dissertações são muito valiosas para o pesquisador, uma vez que já possuem acuradas revisões da produção acadêmica, muito embora dependam da “qualidade dos cursos e da instituição onde foram produzidas”, além da “competência de cada orientador” na sua construção, requerendo cuidado em suas análises (GIL, 2002, p. 66). Como destaca Bardin (2011, p. 123), “nem todo o material de análise é susceptível de dar lugar a uma amostragem, e, nesse caso, mais vale abstermo-nos e reduzir o próprio universo (e, portanto, o alcance da análise) se este for demasiado importante”4.
A pesquisa bibliométrica, por sua vez, é uma apuração da produção científica e acadêmica acerca de alguma temática, em um determinado período. Nessa abordagem utiliza-se de métodos matemáticos e estatísticos para quantificar a “produção, a disseminação e o uso da informação registrada” (TAKAHASHI, 2013, p. 76). As vantagens do método ocorrem para identificar a produção do conhecimento em determinada área, autores e campos de pesquisa e avaliar o estágio científico da produção do conhecimento, citações e instituições, entre outros.
Nesse aspecto, destacamos que o método bibliométrico pode ser um grande aliado para a identificação prévia do conhecimento e a sua possibilidade de falseabilidade popperiana. Karl R. Popper encontra, no critério de falseabilidade (possibilidade de teste), o fundamento da ciência, concluindo que “a teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica” (POPPER, 1982, p. 66), devendo ser ciência aquilo que pode ser continuamente testado, verificado e refutado, se for o caso, avaliando sua validade, na busca por erros.
A título de exemplificação, a pesquisa aberta por ações afirmativas (sem o uso de aspas) no banco da CAPES gera um resultado de 87.720 pesquisas relacionadas ao tema — tendo as ações afirmativas diversas configurações: no mercado de trabalho (Lei Federal nº 8.213/91); nas Instituições Federais de Ensino (IFEs) desde 2002 e, principalmente, com a promulgação da Lei nº 12.711/12; para a ocupação de cargos públicos (Lei Federal nº 12.990/2014), entre outras. Em relação à busca pelo conceito de “ações afirmativas” (com o uso de aspas), por outro lado, foram retornadas 1.092 investigações científicas desenvolvidas em mestrados (acadêmicos ou profissionais) e doutorados entre os anos de 2000 e 2018 e em 85 áreas do conhecimento, com predominância nas áreas de Educação, Direito e Administração. Ao pesquisar o termo “Lei de Cotas” (com o uso de aspas), o sistema gera um resultado de 212 pesquisas, nos mesmos graus acadêmicos, entre os anos de 2005 a 2018, em 48 áreas do conhecimento, tendo maior aparição nas mesmas áreas relacionadas anteriormente.
Como o objetivo é avaliar a possível interferência da Lei de Cotas sobre as IFEs e as pesquisas realizadas em seu meio, utilizou-se o descritor “Lei de Cotas” (entre aspas), aplicando o filtro para a área do conhecimento de “educação” (entre as 49 citadas) no Banco de Teses e Dissertações, totalizando 39 resultados entre 2013 e 2018. Excluíram-se as pesquisas que não estavam disponíveis integralmente na plataforma ou por constar duplamente no catálogo. Assim, chegou-se a 22 teses e dissertações.
Na sequência, as 22 produções foram alocadas em planilha eletrônica (Google Drive), registrando-se as informações disponíveis no portal bem como efetuando-se o download da íntegra das pesquisas. A partir daí, procedeu-se à análise de conteúdo. Dessa forma, por intermédio do conteúdo analisado, buscou-se compreender a particularidade da discussão das cotas após a promulgação da lei federal e observar o atual estágio do debate científico.
4 Apresentação e compreensão dos resultados
A análise de conteúdo enquanto metodologia de pesquisa social, segundo Moraes (1999, p. 15), “é uma interpretação pessoal por parte do pesquisador com relação à percepção que tem dos dados. Não é possível uma leitura neutra. Toda leitura se constitui numa interpretação”. Assim, o interesse não está na descrição das pesquisas, mas no que pode ser abstraído. Dessa forma, a compreensão dos resultados é apresentada, num primeiro momento, por gráficos e figuras, os quais nos fornecerão determinadas bases para a análise a ser realizada num segundo momento.
O Gráfico 1 ilustra em quais instituições as 22 produções analisadas foram realizadas assim como o número de resultados para o descritor “Lei de Cotas” no período 2013 a 2018 na área de Educação.

Analisando-se a produção de teses e dissertações no período, verificou-se um interesse crescente pela temática, que pode se justificar pelas ampliações das discussões entre a defesa das políticas focalizadas ou universalistas advindas da polarização política brasileira e, igualmente, pela necessidade do acompanhamento e avaliação do desenvolvimento e aplicação da lei de cotas. Destaca-se que há maior produção de dissertações de mestrado sobre o tema, somando 16 produções entre as 22 pesquisas realizadas.

Na sequência, realizou-se a mensuração das palavras-chave, as quais indicam o percurso que cada pesquisa realizou. Observa-se que as discussões sobre as AAs obtiveram maior importância5, enquanto as questões raciais e o debate sobre as cotas no ensino médio ficaram entre aquelas que receberam menos atenção. O debate sobre a sua constitucionalidade, embora extenso previamente à lei, não apareceu nas palavras-chave, o que sugere a sua pacificação após análise do STF em 2012. Destaca-se, entretanto, existirem atualmente iniciativas em discussão, que desejam eliminar o critério racial das cotas usando como justificativa a inconstitucionalidade, como o Projeto de Lei 1.531/2019 (BRASIL, 2019).

Com o programa World Cloud Generator, gerou-se uma representação no estilo “nuvem de palavras” com os termos mais citados no “tema” das 22 produções, excluindo-se artigos, preposições, conjunções, etc. O destaque do tamanho representa a frequência do uso das palavras: quanto maior o uso, maior o destaque do termo na nuvem.

Na sequência, o Quadro 1 apresenta, resumidamente, o foco das pesquisas realizadas sobre as cotas. A análise foi elaborada considerando as palavras-chave elencadas no Gráfico 3 e os termos com maior expressão na “nuvem de palavras” da Figura 1, que foram assim categorizados: legalidade (lei) e os embates teóricos acerca das políticas universalistas ou focalizadas; acesso à educação e ao ensino superior; permanência; e estudos/análises dos limites e as perspectivas das políticas cotistas. De antemão, esclarecemos que, entre os estudos listados, todas as categorias foram em maior ou menor medida encontradas nas pesquisas.

Por meio desse levantamento, perceberam-se preocupações comuns com a eficácia das políticas de cotas, com a análise da permanência dos estudantes, especialmente no que concerne aos programas de assistência estudantil e de acompanhamento educacional, evitando a evasão precoce (1, 5, 7, 10, 13, 15, 17, 20, 21 e 22). Também com boa visibilidade, deu-se a defesa da política de cotas como eficaz para a democratização do acesso ao ensino (7, 12, 14, 15, 18, 21 e 22).
O debate sobre os conceitos de legalidade ou constitucionalidade e posicionamentos meritocráticos foi pouco expressivo (19 e 21, respectivamente), indicando a provável superação da discussão. Transversalmente, questões sobre a “justiça” das cotas ainda possuem latência, especialmente no binômio de “cotas sociais” x “cotas raciais”, com maior aceitação das primeiras (7, 9, 17 e 19). Os limites atribuídos às ações afirmativas derivam das experiências em cada caso, tendo maior percepção em cinco pesquisas (4, 7, 10, 13 e 21). Neste ponto, convém atentar para a denúncia de que a política ampliou o acesso, mas não houve expansão de outros recursos, nem para servidores (para capacitações com os seus operadores, acerca dos auxílios oferecidos pelos programas de assistência) nem para os atendimentos educacionais especializados das instituições.
Acentua-se o fato de que, em algumas instituições, foi perceptível a geração de “cotistas de elite”, sendo eles uma superseleção das camadas sociais de origem, traduzindo-se em mais do mesmo, isto é, não houve acesso do público prioritário da política: os mais vulneráveis (3, 12, 14 e 18). Não menos importante é a necessidade de se recuperar a crítica de que a passagem do ensino médio para o ensino superior permanece assentada na lógica liberal, viabilizada pela meritocracia e seletividade, tornando-se um funil segregador, mesmo com a existência da Lei de Cotas (21).
Dessa forma, os caminhos comuns do debate das pesquisas acerca das cotas versaram, sobretudo, acerca da conquista para a democratização do ensino; da contribuição para a diversidade e redução do perfil elitista das instituições federais; e da reparação histórica aos grupos sociais em desvantagens. Apontou-se para alguns limites, tais como a burocracia nos processos de permanência; o aparecimento do perfil de “cotistas de elite”; a falta de acompanhamento educacional dos cotistas; a não diferenciação da escola pública (federal, estadual e municipal). Em síntese, os principais resultados das pesquisas stricto sensu analisadas indicaram ganhos sociais com a política de cotas no ingresso, mas ressaltam que ela é incapaz de propiciar, a ermo, ganhos reais e substantivos suficientes para os seus beneficiários.
Por fim, cabe atentar que os resultados das pesquisas avaliadas são complexos e raramente permitem um comparativo satisfatório tanto pela característica polissêmica das ações afirmativas quanto dos públicos-alvo e dos contextos nos quais elas se inserem. Dessa maneira, a análise das políticas públicas, como no caso das cotas, permanece como desafiadora. Afinal, prover a educação, discutindo sobre suas contribuições para uma sociedade justa e democrática, requer permanente debate e análise.
5 Considerações finais
Esta pesquisa teve por objetivo analisar a produção científica desenvolvida em programas de pós-graduações stricto sensu brasileiros da área da educação sobre ações afirmativas na educação no interstício 2013 a 2018. A análise centrou-se nas pesquisas disponíveis pública e integralmente no portal da CAPES. Buscou-se conhecer as discussões de pesquisadores da área e os resultados de suas investigações, assim como conhecer quais outras questões sobre a educação pública brasileira foram levantadas.
Embora as pesquisas revelem caminhos comuns apontando a política de cotas como um passo indispensável para a diversidade do acesso ao ensino federal público, os pesquisadores tendem a denunciar os limites que se fazem presentes no cotidiano da política, requerendo sua manutenção e aperfeiçoamento, e demonstrando que o tema requer contínuas investigações.
Além do mais, esclarecem que as universidades não podem se constituir para alguns poucos privilegiados, sendo necessária sua democratização. De outro ponto, sustentam que a permanência deve estar ancorada em ações que transcendam as cotas — dispondo de acompanhamento especializado, proteção econômica mediante bolsas, atentando para o fato de que estudos para todos não significa os mesmos estudos para todos —, ampliando a igualdade de oportunidades na diversidade educacional.
Por fim, entende-se que é demasiado ingênuo acreditar que as pontuais políticas de cotas e demais ações afirmativas, mesmo com grandes avanços, sejam capazes de efetivamente democratizar a educação superior e se estabelecer como marco de justiça social de forma isolada, uma vez que as desigualdades educacionais estão intimamente relacionadas às desigualdades sociais.
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Notas
Notas de autor