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A Limitação Territorial Da Coisa Julgada Como Óbice Ao Acesso À Justiça
Daniela Meca Borges; Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira
Daniela Meca Borges; Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira
A Limitação Territorial Da Coisa Julgada Como Óbice Ao Acesso À Justiça
TERRITORIAL LIMITATION OF RES JUDICATA AS AN OBSTACLE TO ACCESS TO JUSTICE
LA LIMITACIÓN TERRITORIAL DE LA COSA JUZGADA COMO OBSTÁCULO AL ACCESO A LA JUSTICIA
Revista Opinião Jurídica, vol. 16, núm. 23, pp. 160-183, 2018
Centro Universitário Christus
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RESUMO: As ações coletivas têm como pontos sensíveis a discussão acerca da legitimidade e da coisa julgada. O presente estudo tem por escopo a análise desta última, em que o debate se justifica porque a coisa julgada reflete as consequências do processo no mundo real. A coisa julgada nas demandas coletivas teve sua extensão ampliada para operar-se erga omnes ou ultra partes (redação original do art. 16 da Lei n. 7.347/1985 e art. 103 da Lei n. 8.078/1990), objetivando evitar a multiplicação de demandas com o mesmo pedido e causa de pedir e a existência de decisões conflitantes. Ocorre que a Lei n. 9.494/1997, até hoje em vigor, alterou o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) para limitar a coisa julgada à competência territorial do órgão prolator. A partir de então, surgiram grandes celeumas na doutrina e na jurisprudência pátria quanto à constitucionalidade, eficácia e aplicabilidade desta alteração, que ainda não foram definitivamente dirimidas. Diante desse cenário, são feitas considerações críticas, mediante emprego do método dedutivo, acerca da limitação da coisa julgada pela competência territorial do órgão prolator da decisão, que permitem concluir pela sua incompatibilidade com o microssistema processual coletivo e, também, que ela representa barreira ao acesso à justiça.

Palavras-chave: Coisa julgada, Competência territorial, Processo coletivo, Segurança jurídica, Acesso à justiça.

ABSTRACT: The discussion of legitimacy and res judicata is a sensitive issue to collective actions. This study aims to analyze the res judicata of collective action lawsuits, whose debate is justified because it reflects the impacts of this process in the real world. The scope of res judicata in collective action lawsuits was broadened to operate erga omnes or ultra partes (original wording of the article 16 of Law 7.347/1985 and the article 103 of Law 8.078/1990) in order to avoid the increase of lawsuits involving the same matter or relief and on the same legal grounds, besides reducing the risk of contradictory decisions. However, Law 9.494/1997, which is still in force, amended the article 16 of the Law of Public Civil Action (Law 7.347/1985) to limit the res judicata to the territorial jurisdiction of the respective court. Since then, there has been a lot of confusion about the doctrine and Brazilian jurisprudence regarding the constitutionality, effectiveness and applicability of this amendment, an issue that has not yet been definitively settled. In the light of this scenario, and by applying the deductive method, critical considerations are made about the limitation of res judicata in the territorial jurisdiction of the competent court that rendered the decision. The conclusion is that this is incompatible with the Brazilian micro system of collective actions, and also that this represents an obstacle to access to justice.

Keywords: Res Judicata, Territorial jurisdiction, Collective action lawsuit, Legal certainty, Access to justice.

RESUMEN: Las acciones colectivas tienen como puntos sensibles a la discusión acerca de la legitimidad y de la cosa juzgada. El presente estudio tiene como objetivo el análisis de esta última, cuyo debate se justifica porque la cosa juzgada refleja las consecuencias del proceso en el mundo real. La cosa juzgada en las demandas colectivas tuvo su extensión ampliada para operarse erga omnes o ultra partes (redacción original del art. 16 de la Ley n. 7.347/1985 y el art. 103 de la Ley n. 8.078/1990), teniendo como objetivo evitar la multiplicación de demandas con el mismo pedido y causa de pedir y la existencia de decisiones conflictivas. Ocurre que la Ley n. 9.494/1997, hasta hoy en vigor, alteró el artículo 16 de la Ley de Acción Civil Pública (Ley n. 7.347/1985) para limitar la cosa juzgada a la competencia territorial del órgano promulgador. Desde entonces, surgieron grandes polémicas en la doctrina y en la jurisprudencia patria en cuanto a la constitucionalidad, eficacia y aplicabilidad de esta alteración, todavía no han sido definitivamente dirimidas. Ante este escenario, son hechas consideraciones críticas, mediante empleo del método deductivo, acerca de la limitación de la cosa juzgada por la competencia territorial del órgano promulgador de la decisión, que permiten llegar a la conclusión de su incompatibilidad con el microsistema procesual colectivo y, también, que ella representa una barrera al acceso a la justicia.

Palabras clave: Cosa juzgada, Competencia territorial, Proceso colectivo, Seguridad jurídica, Acceso a la justicia.

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A Limitação Territorial Da Coisa Julgada Como Óbice Ao Acesso À Justiça

TERRITORIAL LIMITATION OF RES JUDICATA AS AN OBSTACLE TO ACCESS TO JUSTICE

LA LIMITACIÓN TERRITORIAL DE LA COSA JUZGADA COMO OBSTÁCULO AL ACCESO A LA JUSTICIA

Daniela Meca Borges
Universidade de Ribeirão Preto, Brasil
Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira
Universidade de Ribeirão Preto, Brasil
Revista Opinião Jurídica, vol. 16, núm. 23, pp. 160-183, 2018
Centro Universitário Christus

Recepção: 22 Janeiro 2018

Aprovação: 26 Abril 2018

1 INTRODUÇÃO

Em razão do reconhecimento dos direitos coletivos (lato sensu), foi necessário desenvolver a tutela coletiva de direitos, como forma de assegurar uma prestação jurisdicional adequada, porque as legislações processuais até então existentes foram pensadas apenas para os litígios individuais.

Por isso, o processo era insatisfatório para dirimir aqueles outros conflitos, em que o bem jurídico tutelado pertencia a toda uma coletividade, categoria, classe ou grupo de pessoas, ou ainda, àquelas demandas que, apesar de veicularem um direito autônomo, guardavam entre si uma relação de similitude e se repetiam.

A legislação processual foi se desenvolvendo até alcançar o que ficou conhecido como microssistema processual coletivo, o qual é formado pela aplicação conjunta da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor - por força do artigo 21 da Lei n. 7.347/1985 combinado com o artigo 90 da Lei n. 8.078/1990 -, não obstante existirem outras normas que gravitam em torno desse microssistema, cuja aplicação é atraída conforme o objeto da demanda posto em juízo, verbi gratia, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), dentre outros.

O processo coletivo difere-se do processo individual quanto à legitimação, ao procedimento e, sobretudo, quanto à autoridade da coisa julgada, pois não seria possível prestar tutela jurisdicional adequada aos direitos coletivos (lato sensu), se a sentença tivesse autoridade somente entre as partes em que era dada, porque, caso assim o fosse, todos os titulares do direito teriam de estar no polo ativo da ação. Ocorre que algumas das espécies dos direitos coletivos possuem titulares indeterminados (difusos) ou indetermináveis (coletivos stricto sensu), o que acabaria por inviabilizar a presença de todos eles em juízo.

Para solucionar esse problema, houve ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada nas demandas coletivas, para se estender erga omnes ou ultra partes, conforme a natureza do direito tutelado no processo (CDC, art. 103) (BRASIL, 1990).

Desse modo, a tutela coletiva deu tratamento molecularizado aos conflitos, maximizando a proteção e a efetivação dos direitos. Ocorre que essa expansão da autoridade da coisa julgada acabou por colidir com os interesses políticos no momento contemporâneo à implantação do Plano Real. Isso porque, com o início das privatizações, foram ajuizadas Ações Civis Públicas com pedidos liminares, que, quando concedidos, tinham abrangência em todo território nacional (em razão da natureza erga omnes ou ultra partes da coisa julgada) e acabava por inviabilizar os planos do Governo Federal.

Para que o novo modelo econômico não fosse frustrado, foram editadas sucessivas Medidas Provisórias que culminaram na promulgação da Lei n.9.494/1997, a qual alterou um dos dispositivos do microssistema - o artigo 16 da Lei n.7.347/1995 - para limitar a autoridade da coisa julgada à competência territorial do órgão prolator.

Contudo, essa alteração é destoante de todo o resto do microssistema, notadamente, o artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor. Porém, ela permanece até hoje em vigor, e sua aplicação ainda é controvertida na jurisprudência dos Tribunais, causando uma verdadeira situação de instabilidade jurídica.

Outra consequência dessa alteração é que o resultado favorável da demanda coletiva não mais beneficiará aqueles outros titulares do direito que residirem fora da competência territorial do órgão prolator, os quais terão de ajuizar outro processo, possibilitando, inclusive, que a questão seja julgada de forma diversa, ou seja, a coexistência de decisões conflitantes.

Diante de todas essas questões, o presente estudo tem por escopo investigar se a limitação territorial da coisa julgada pela competência do órgão prolator se constitui em óbice ao acesso à justiça.

Para tanto, serão adotadas como referencial teórico as proposições de Cappelletti e Garth (1998) sobre o acesso à justiça.

Já com relação à metodologia a ser empregada, o estudo se desenvolverá por meio de uma pesquisa bibliográfica, objetivando a análise crítica dos argumentos contrários e favoráveis à nova redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), empregando o método dedutivo. A importância da pesquisa é manifesta, considerando-se os precedentes dos Tribunais que serão analisados criticamente, visando a modificação da situação atual, que acarreta em grave comprometimento à efetivação dos direitos fundamentais por meio da ação civil pública.

A investigação será dividida em sete capítulos. Partiremos da superação da distinção romana entre o direito público e o privado. Após, serão apresentadas as espécies de direitos que podem ser tutelados pela via coletiva. Em seguida, com base em dados históricos, será demonstrada a importância do processo coletivo para concretização do acesso à justiça. No último tópico, será feito o delineamento das espécies e dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada. Com base nesses pressupostos, será possível examinar a atual redação do artigo 16 da Lei n. 7.347/1985, a fim de se perquirir sobre a sua constitucionalidade e aplicabilidade, externando nosso entendimento.

2 A SUPERAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO ROMANA DO DIREITO

Historicamente, os direitos foram divididos com base na classificação romana, entre público e privado, de modo que, se a relação jurídica existente se referisse às coisas do Estado (publicam jus est quod ad statum rei monanae spectat), recebia a classificação de Direito Público; enquanto, se o interesse fosse de um cidadão romano (privatum, quod ad singulorum utilitatem spectat), era denominada como Direito Privado (REALE, 2002, p. 339).

Almeida (2008, p. 388-391) esclarece os critérios que foram utilizados para justificar essa divisão entre Direito Público e Privado, organizando-os em quatro principais.

O primeiro critério observava a preponderância do interesse em jogo, de modo que prevalecendo o interesse público, a relação deveria ser qualificada como de Direito Público. Do contrário, seria relação de Direito Privado.

Também existiu quem sustentasse que a divisão Público e Privado decorria da natureza jurídica das relações entre os sujeitos, de modo que, se houvesse uma relação de autoridade (do Estado) e subordinação (do sujeito), tratava-se do Direito Público. Porém, se fosse verificada uma relação de igualdade entre os sujeitos, era classificado como Direito Privado (SARMENTO, 2005, p. 31-32).

Outros argumentavam que, para qualificar uma relação como de Direito Público ou Direito Privado, bastaria verificar quais eram os sujeitos envolvidos, porque, naquela, haveria, necessariamente, a presença do Estado, enquanto nesta apenas particulares (PEREIRA, 2017, p. 27-29).

Já, para o quarto critério, as relações de Direito Privado representavam uma faculdade de direitos aos seus titulares, os quais poderiam exercê-los ou não, enquanto aquelas outras de Direito Público se traduziam na obrigatoriedade para os órgãos públicos de reestabelecerem as normas que foram violadas.

Almeida (2008, p. 388-391) criticou cada um desses critérios, sob o argumento de que eles seriam fechados e excludentes, não comportando os Direitos Coletivos, que denotariam um caráter de autoritarismo ou absolutismo em manter a relação de subordinação entre o Estado e o sujeito, incompatível com o atual Estado Democrático de Direito; que existem direitos individuais que devem ser tutelados pelo Estado, tais como os direitos da criança e do adolescente em situação de risco; e, sobretudo, que nenhum desses critérios conciliava os planos da titularidade e da proteção com a efetivação dos direitos.

A partir da constatação de que a classificação do Direito entre Público e Privado já não mais servia para distinguir as relações sociais, surgiu uma Teoria Tricotômica a qual argumentava que entre o Direito Público e o Privado existiriam os interesses transindividuais.

Como adepto dessa teoria, Mazzilli (2014a, p. 27) sustenta o reconhecimento de “uma categoria intermediária de interesses que não são meramente individuais, porque transcendem os indivíduos isoladamente considerados, mas também não chegam nem a constituir interesse do Estado nem de toda a coletividade.”

Todavia, não prevaleceu, na doutrina, a existência de um tertium genus, pois a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não recepcionou a divisão de Direito Público e Privado, porém estabeleceu uma nova summa divisio, ou seja, a de Direito Coletivo e Direito Individual, sem que haja prevalência de qualquer uma delas e que, em caso de conflito, deverá ser utilizado o princípio da proporcionalidade (ALMEIDA, 2008).

Nesse sentido, Venturi (2010, p. 182) afirma que foi em razão da “superação da summa divisio entre público e privado que os direitos difusos encontraram terreno para florescer.”

Almeida (2008, p. 430) justifica que essa nova divisão estaria enunciada na Carta Maior, por meio do Capítulo I, do Título II, que estabelece “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, do artigo 5º, inciso LXXIII e do artigo 129, inciso III.

Também corroboraria com essa nova summa divisio o fato de que o Código de Defesa do Consumidor trouxe, no caput de seu artigo 81, que “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.” (BRASIL, 1990, online).

Desse modo, este trabalho adota a classificação de Almeida (2008, p. 397-418), não apenas por entendê-la harmônica com a Constituição Federal e com o microssistema processual coletivo, mas, sobretudo, em razão de suas consequências que potencializam a tutela jurisdicional, haja vista que essa nova divisão tem, em seu topo, a Constituição Federal como ponto de “união e de conformação entre o Direito Coletivo e o Direito Individual”; como consequência, as exceções não serão mais pautadas nos privilégios do Poder Público, mas, sim, no Princípio da Isonomia; e, notadamente, porque ela tem como principal critério o plano da proteção e da efetivação de direitos.

3 OS DIREITOS COLETIVAMENTE TUTELADOS

Como exposto alhures, o Código de Defesa do Consumidor, atento à nova divisão do direito estabelecida pela Constituição Federal, conceituou, no parágrafo único de seu artigo 81, três espécies de direitos, a saber:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos [...] os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos [...] os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum (BRASIL, 1990, online).

Da leitura do dispositivo em comento, infere-se que os direitos difusos são identificados pela indivisibilidade de seu objeto e indeterminação dos seus titulares. Como exemplo dessa espécie, podemos citar o artigo 225 da Constituição Federal, que assegura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Note-se que não há divisibilidade quanto ao seu titular, tampouco quanto ao seu objeto. Todos são titulares desse direito, inclusive as futuras gerações (direito intergeracional) e não é possível lesar, nem reparar o meio ambiente de forma individual.

Já os coletivos (stricto sensu), apesar de seu objeto também ser indivisível, diferenciam-se dos primeiros, porque seus titulares são determináveis. Mazzilli (2014b, p. 29) cita como exemplo um determinado grupo de indivíduos que assinam um contrato de adesão com cláusula abusiva. Observa-se que é perfeitamente possível identificar os titulares, bastando, para isso, apurar todos os contratantes, bem como que a indivisibilidade do objeto é constatada no fato de que a retirada ou manutenção da cláusula abusiva atinge todas as vítimas de igual modo.

E, diversamente dos dois primeiros, os direitos individuais homogêneos têm objeto perfeitamente divisível e titulares determinados ou determináveis. Na verdade, trata-se de direitos que poderiam perfeitamente ser buscados pela via individual, mas que em razão da mencionada homogeneidade - decorrentes da afinidade das lesões experimentadas por seus titulares - são tutelados pela via coletiva. Pode ser dado como exemplo o defeito de um lote de determinado brinquedo, porém os consumidores desse produto terão de demonstrar os danos por ele ocasionados e sua extensão.

Não obstante essa classificação ser ope legis, houve celeuma na doutrina quanto à forma de interpretá-la. O enfretamento das posições divergentes é importante porque o modo como o direito for classificado determinará qual será a extensão da coisa julgada nas demandas coletivas, por força do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990).

Moreira (1991, p. 187) advogou a tese de que existem litígios essencialmente coletivos e litígios acidentalmente coletivos. São utilizados dois critérios para distingui-los: um subjetivo e outro objetivo.

Os primeiros, quanto ao critério subjetivo, referem-se a número indeterminado ou indeterminável de sujeitos e, no tocante ao critério objetivo, apresentam natureza indivisível, de modo que “é impossível satisfazer o direito ou o interesse de um dos membros da coletividade sem, ao mesmo tempo, satisfazer o direito ou o interesse de toda a coletividade e vice-versa”. O autor acrescenta que “a solução será, por natureza, unitária, incindível” (MOREIRA, 1991, p. 187-188).

Por outro lado, os segundos não possuem a mesma indivisibilidade do objeto. Para elucidar, o autor exemplifica com uma fraude financeira que atinge elevado número de pessoas, argumentando que esse fenômeno tem dimensões distintas e que permite apreciação isolada, individual, no entanto poderá ser determinado que uns têm o direito à reparação e outros não, ou seja, a solução é perfeitamente cindível (MOREIRA, 1991, p. 188).

Em conformidade com essa posição, Zavascki (2017, p. 39-40) defende que existem os direitos coletivos e a defesa coletiva de direitos, que não se confundem entre si. Para esse autor, o direito coletivo “é designação genérica para as duas modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu”, enquanto a defesa coletiva de direitos se refere ao modo de tutelar os direitos individuais homogêneos, que “são, por esta via exclusivamente pragmática, transformados em estruturas moleculares, não como fruto de uma indivisibilidade inerente ou natural [...], mas por razões de facilitação de acesso à justiça, pela priorização da eficiência e da economia processuais.”

Nery Júnior (1992, p. 244-250), a seu turno, argumenta que o método classificatório dos direitos deve ser o tipo de tutela jurisdicional que se pretende (pedido e causa de pedir), porque o mesmo fato pode originar pretensões difusas, coletivas e individuais. O jurista cita como exemplo o acidente com o “Bateau Mouche IV” ocorrido no Rio de Janeiro, em decorrência do qual o Ministério Público poderia propor ação para interditar a embarcação a fim de evitar novos acidentes, tutelando o interesse difuso da vida e a segurança das pessoas abstratamente consideradas; a ação de obrigação de fazer intentada pelas empresas de turismo na proteção de seu interesse coletivo da boa imagem desse setor da economia; e as indenizações de cada uma das vítimas do evento que representam os direitos individuais.

Em sentido contrário, Bedaque (2011, p. 34-36) critica a tese de Nery, argumentando que ela denota um “processualismo exacerbado”, bem como que ela “desconsidera o objeto na construção do instrumento.” Bedaque (2011, p. 35) defende que “é o tipo de direito que determina a espécie da tutela”, além de ressaltar a autonomia entre o direito material e o processual, porque “o interesse ou direito é difuso, coletivo ou individual homogêneo, independentemente da existência de um processo. Basta que determinado acontecimento da vida o faça surgir.”

Compartilhamos do entendimento de Bedaque (2011), porque ele está em conformidade com o disposto no parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, o qual, sem fazer qualquer alusão ao pedido e à causa pedir, definiu as espécies dos direitos que podem receber tutela coletiva.

4 O PROCESSO COLETIVO COMO ELEMENTO CONCRETIZADOR DO ACESSO À JUSTIÇA

Loureiro (2004, p. 66) bem assevera que as discussões sobre o “acesso à justiça” são relevantes desde o momento em que foi atribuído ao Estado o poder de solucionar os conflitos, eliminando a autotutela, pois já haveria aí a necessidade de se investigar sobre a forma como a jurisdição seria exercida, as regras de organização da administração da justiça e o processo como instrumento para efetivação desse acesso.

Todavia, num primeiro momento, o Estado, marcadamente liberal, preocupou-se em somente assegurar a via do acesso, isto é, a previsão em lei de que as pessoas poderiam acionar o Poder Judiciário para dirimir determinado conflito, sem que fosse perquirida a qualidade dessa tutela e se ela era igualmente acessível a todos.

Na década de 70, iniciou-se, em Florença, um movimento para apurar quais eram os obstáculos enfrentados por aqueles que buscam a Justiça, o qual ficou conhecido como “The Florence Acess-to-Justice Project” e cujos resultados foram publicados por Cappelletti e Garth (1998) na obra “Acesso à Justiça”.

Esses juristas dirigiram seus estudos a partir de duas premissas: o sistema deveria ser igualmente acessível a todos, e ele deveria produzir resultados que fossem individuais e socialmente justos. Além de reconhecerem o acesso à justiça como “o mais básico dos direitos humanos dentro de um sistema jurídico igualitário, cujo objetivo fosse garantir, e não apenas proclamar direitos.” (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 12).

Cappelletti e Garth (1998) organizaram os obstáculos a serem superados para efetivação do acesso à justiça e cujas soluções foram apresentadas em três “ondas renovatórias”, dentre as quais, a segunda dirigia-se à representação dos interesses difusos em juízo.

A partir de então, o acesso à justiça pode ser visto tanto sob a perspectiva do acesso ao Poder Judiciário, quanto sob o ponto de vista do acesso à tutela jurisdicional adequada, porém aquele é pressuposto desta, porque, sem que haja a possibilidade de se buscar a intervenção do Poder Judiciário, não é possível se pensar em prestação jurisdicional efetiva.

No tocante à história brasileira, temos que a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 limitava a intervenção do Poder Judiciário à lesão a direito individual,1 negando a tutela preventiva e a proteção aos direitos coletivos lato sensu, o que se manteve na Constituição de 1967,2 na emenda constitucional de 19693 e que só foi modificado com o advento da Carta de 1988, não obstante já termos, em 1965 e 1985, a defesa de alguns direitos coletivos (lato sensu) por meio da Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/1965) e da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985).

Ocorre que a Lei da Ação Popular reprime a violação de direitos difusos decorrentes de ato do Poder Público, deixando de tutelar aquelas lesões praticadas por particulares.

Em razão disso, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, atentos para o fato de que no direito alienígena já havia alguma proteção aos direitos coletivos mediante propositura da class actions,4 elaboraram o anteprojeto daquilo que viria a ser a Ação Civil Pública (LOUREIRO, 2004, p. 114).

Por conseguinte, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Junior, todos membros do Ministério Público, deram sequência ao estudo do tema e elaboraram a tese “A Ação Civil Pública”, utilizada para elaboração de um novo anteprojeto que culminou na aprovação da Lei n. 7.347/1985 (LOUREIRO, 2004, p. 114-116).

Após, em 5 de outubro de 1988, ocorreu a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, assegurando que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” (art. 5º, XXXV). (BRASIL, 1988, online).

Houve verdadeira ampliação da tutela com a inclusão da palavra “ameaça” e retirada da expressão “direito individual” que constava nas constituições anteriores, passando-se a reconhecer a tutela preventiva e a proteção a qualquer direito, individual ou coletivo, em conformidade com o seu Título II, Capítulo I, que enuncia “dos direitos e deveres individuais e coletivos” dentre suas garantais fundamentais, corroborando a afirmação feita no item “2” de que a Carta Magna de 1988 estabeleceu uma nova summa divisio.

Note-se que até este momento, a tutela coletiva de direitos destinava-se apenas aos direitos difusos e coletivos stricto sensu. Foi o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) o diploma que ampliou o processo coletivo para nele compreender a defesa dos direitos individuais (art. 81, parágrafo único, inciso III), quando qualificados pela homogeneidade, conforme exposto no item “3” do presente estudo.

Gajardoni (2016, p. 136-137) comenta que a tutela coletiva dos direitos individuais decorre de uma escolha legislativa com vistas à uniformidade das decisões, evitando-se o “efeito loteria”; a diminuição dos custos econômicos e temporais, havendo racionalidade em processar uma demanda coletiva ao invés de várias individuais; economia processual; e a molecularização dos conflitos, isto é, uma visão global do fenômeno e de seus desdobramentos sociais econômicos.

Thamay (2011, p. 263) acrescenta que as ações coletivas “trouxeram maior acesso ao Poder Judiciário a milhares de cidadãos que antes não chegavam ao Judiciário para buscar e proteger seus direitos.”

Sobreleva-se, também, o fato de que o Código de Defesa do Consumidor determinou, em seu artigo 90, que as normas referentes à tutela coletiva de direitos (Título III) fossem aplicáveis à Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) e, para que houvesse perfeita harmonização, alterou o artigo 21 dessa lei para nela prever a aplicação daquele código, de modo que uma fizesse alusão à outra.

Em razão disso, nascia, no Brasil, o microssistema processual coletivo, composto essencialmente pela Constituição Federal, pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) e pela Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (conforme artigo 19 da Lei n. 7.347/1985) e outras leis esparsas, conforme o direito a ser representado em juízo (idoso, criança, meio ambiente etc.).

Consequentemente, a doutrina passou a reconhecer que as ações coletivas representariam um instrumento efetivo para o aperfeiçoamento do acesso à justiça, porque, por meio dela, os obstáculos com os custos processuais e o desequilíbrio entre as partes seriam superados (MENDES, 2014, p. 37).

A legislação brasileira sobre processo coletivo se mostrou tão avançada que passou a influenciar os demais países da América Latina. Em 2004, foi aprovado, em Caracas, o Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, o qual serviu de inspiração para os países vizinhos e contou com a contribuição dos juristas brasileiros Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Antonio Gidi e Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (MENDES, 2014, p. 185).

Como reflexo disso, surgiam, no Brasil, nos anos de 2004 e 2005, duas versões de anteprojeto de um Código Brasileiro de Processo Coletivo, sendo um coordenado pela Professora Ada Pellegrini Grinover junto ao programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo e o outro, pelo Professor Aluisio Gonçalves de Castro Mendes com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ) e a Estácio de Sá (MENDES, 2014, p. 208).

Subsequentemente, em 2008, o então Ministro da Justiça, Tarso Genro, formou uma Comissão Especial composta por juristas, representantes da magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e advogados para discutirem propostas de modernização de normas materiais e processuais em matéria coletiva. Essa Comissão optou, em 2009, por formular uma Nova Lei de Ação Civil Pública, a qual, contemplando disposições dos dois anteprojetos de Código Brasileiro de Processo Coletivo, seria o instrumento que unificaria as ações coletivas e que revogaria todas as disposições pertinentes ao tema dos vários outros diplomas (Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 7.347/1985, dentre outros).

O anteprojeto da nova Lei da Ação Civil Pública (PL 5.139/2009) recebeu, na Câmara de Deputados, contraditoriamente, parecer pela sua constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa, mas que, no mérito, opinava-se pela sua rejeição e, por isso, ele não se transformou em Lei.5 Constaram, no parecer vencedor como motivação da rejeição do PL 5.139/2009, os seguintes argumentos:

[...] a proposta cria processo em que o réu recebe tratamento desigual de um juiz que terá liberdade para tomar partido sempre e somente em favor do autor, inclusive alterando a ordem das fases processuais, e concedendo liminares (e antecipações de tutela) sem que o autor as tenha pedido e sem que tenha sido dada oportunidade de defesa ao réu.

[...] Ademais, o projeto dá excessivo poder ao Ministério Público e à Defensoria Pública, sendo crime a não apresentação de documentos eventualmente solicitados por esses órgãos (BRASIL, 2010, online).

Verifica-se, com a devida vênia, que os deputados desconheciam a relevância dos direitos que estão em jogo no processo coletivo e o princípio da igualdade material, segundo o qual se deve tratar desigualmente os desiguais, como, a título de exemplo, a assimetria que é verificada entre uma grande empresa poluidora e a coletividade, bem como entre os consumidores e as instituições financeiras, fatos que requerem aplicações de normas protetivas e que sejam hábeis a restabelecer a equidade.

Salta aos olhos que a rejeição se deu por critérios políticos, notadamente o temor com a atuação do Ministério Público.

Ora, a constituição de crime pela não apresentação dos documentos solicitados em Ação Civil Pública seria norma perfeitamente harmônica com a regra constitucional que impõe ao Ministério Público o dever de promover as medidas necessárias para a efetiva garantia dos direitos assegurados na Constituição, nos quais se inserem os coletivos (CF, art. 129, inciso II). Sendo imperioso lembrar que o parquet é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (CF, art. 127, caput).

Além disso, o § 1º do artigo 11 do anteprojeto de nova Lei da Ação Civil Pública (PL 5.139/2009)6 também permitia que o autor da demanda coletiva propusesse a ação desacompanhada dos documentos, e o juiz, analisando os motivos do não fornecimento, poderia requisitá-los.

Portanto, a norma era perfeitamente compatível com o artigo 339 do Código de Processo Civil de 1973 - e que foi reproduzida no atual Código, em seu artigo 378 - segundo a qual “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade.” (BRASIL, 1973, online). Verifica-se, desse modo, a precariedade dos argumentos que fundamentaram a rejeição do Projeto da nova Lei da Ação Civil Pública (PL 5.139/2009).

5 COISA JULGADA

O processualista Zufelato (2011, p. 26) assevera que a atividade jurisdicional se desenvolve objetivando a pacificação social dos conflitos.

Nisso verificamos a instrumentalidade do processo, porque ele não é um fim em si mesmo, mas busca resolver uma dada situação de instabilidade existente na sociedade ou uma crise de incerteza sobre determinada relação jurídica, haja vista “que a lide pendente é um fator desestabilizante e desagregador do tecido social.” (MANCUSO, 2007, p. 123).

Essa pacificação social dos conflitos é assegurada pelo instituto da coisa julgada (resiudicata), a qual pode ser conceituada como “à projeção para o futuro da obrigatoriedade e vinculação do decisum.” (ZUFELATO, 2011, p. 28).

A coisa julgada se divide em material e formal, conforme classifica Mancuso (2007, p. 123) como espécies do gênero preclusão.

Por coisa julgada formal entendemos o fenômeno que ocorre quando da sentença não caiba mais recurso, sem, contudo, obstar o ajuizamento de nova e idêntica demanda. E, por isso, ela não se presta à estabilização das relações sociais.

Em contrapartida, a coisa julgada material é definida pela lei como a “autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (CPC/2015, art. 502) (BRASIL, 2015, online) e é essa espécie que emprega o caráter de definitividade à solução dada ao conflito.

Verifica-se que o atual Código de Processo Civil corrigiu o equívoco do diploma anterior, o qual conceituava a coisa julgada material como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário” (CPC/1973, art. 467) (BRASIL, 1973, online) e encampou a clássica Teoria de Liebman (2006, p. 5) sobre a coisa julgada.

Zufelato (2011, p. 32), explicando a Teoria de Liebman, afirma que “a sentença produz efeitos para todos, erga omnes, portanto, pois o exercício jurisdicional é dotado dessa eficácia natural, enquanto ato estatal que é.” E o autor acrescenta que a autoridade da coisa julgada “é a qualidade que se agrega aos efeitos da sentença para torná-los imutáveis” entre as partes em que é dada.

Verifica-se que a Teoria de Liebman trata dos limites subjetivos da coisa julgada, bem como que ela é aplicada apenas aos processos individuais, não servindo às demandas coletivas, tanto porque nestas há indivisibilidade do objeto tutelado (direitos difusos e coletivos stricto sensu), quanto em razão do tratamento molecularizado dos conflitos semelhantes (direitos individuais homogêneos).

Dessa forma, nas ações individuais, a autoridade da coisa julgada se opera inter partes, nos moldes do artigo 506 do Código de Processo Civil7, e pro et contra, isto é, a decisão será imutável independentemente do resultado da lide ou de qualquer outra circunstância.

Situação diversa ocorre nos processos coletivos, porque nestes os limites subjetivos da coisa julgada são delineados pelo artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) - o qual será examinado no item “6” - e, também, pelos artigos 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor, os quais disciplinam a autoridade da coisa julgada conforme o direito tutelado em juízo.

Com efeito, nos direitos difusos, a autoridade da coisa julgada será erga omnes (CDC, art. 103, inciso I), enquanto, nos direitos coletivos stricto sensu, a autoridade da coisa julgada opera-se ultra partes, mas limitada ao grupo, categoria ou classe (CDC, art. 103, inciso II), sendo ambas as regras excepcionadas, se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, caso em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação.

Desse modo, verifica-se que, nas demandas coletivas que tutelam direitos difusos e coletivos stricto sensu, a autoridade da coisa julgada dependerá sempre do resultado da lide (secundum eventum litis) e a sua intangibilidade, com relação aos legitimados, estará condicionada à inexistência de prova nova (secundum eventum probationis). Assim, caso o pedido seja julgado improcedente por insuficiência de prova, qualquer legitimado poderá propor outra ação, com base em prova nova.

Situação diversa é a dos direitos individuais homogêneos, para os quais a lei estabelece que a decisão apenas será imutável em caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores (CDC, art. 103, inciso III). Dessa forma, a autoridade da coisa julgada é, exclusivamente, condicionada ao resultado favorável da lide (secundum eventum litis) e não se formará em caso de improcedência da demanda, independentemente da insuficiência probatória (NERY JÚNIOR, 2016, p. 84).

O tratamento diferenciado da coisa julgada nas demandas coletivas resulta de uma escolha legislativa, em razão da indivisibilidade do objeto da demanda (direitos difusos e coletivos stricto sensu) que não comporta qualquer cisão e, também, da relevância social dos direitos tutelados pelo processo coletivo (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos). Nessa perspectiva, a coisa julgada secundum eventum litis evita que a existência de conluio entre os legitimados e a parte contrária prejudique os titulares do direito que não participaram do processo (MANCUSO, 2016, p. 389).

Concordamos com a afirmação de Zufelato (2011, p. 272) de que a técnica legislativa empregada no regime da coisa julgada das demandas coletivas (se considerada a redação original do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública) observa a realidade brasileira e privilegia o acesso à justiça.

É importante observar, ademais, que diversamente do modelo brasileiro, na class action do direito norte-americano, os titulares do direito apenas não serão atingidos pela autoridade da coisa julgada, quando demonstrarem que não houve representação adequada ou que a notificação não foi suficientemente apropriada, de modo que fora dessas duas hipóteses, a coisa julgada se formará pro et contra (LEAL, 2014, p. 237).

Ocorre que, no Brasil, a sentença de mérito desfavorável em processo coletivo, em regra, não prejudica os titulares do direito que poderão ajuizar demandas individuais. Pois, aqui, a notificação tem outras finalidades, ou seja, oportunizar que os autores requeiram a suspensão de suas demandas individuais para aguardarem o julgamento da demanda coletiva e, sendo esta favorável, beneficiarem-se da extensão da autoridade da coisa julgada (CDC, arts. 97 e 104) - é o chamado transporte in utilibus da decisão (CDC, arts. 103, §§ 1º e 3º e 104) - ou ainda, para requererem sua intervenção no processo como litisconsortes (CDC, art. 94). (BRASIL, 1990).

Consequentemente, os titulares do direito somente serão prejudicados em três hipóteses: i) quando intervirem como litisconsortes em demanda coletiva que tutele direitos difusos ou coletivos stricto sensu e sobrevindo sentença coletiva de improcedência, não surja prova nova (CDC, art. 103, incisos I e II); ii) quando intervirem como litisconsortes em demanda coletiva que tutele direitos individuais homogêneos e sobrevenha sentença de improcedência, independentemente de seu fundamento (CDC, art. 103, § 2º); e iii) quando forem notificados da existência de demanda coletiva e não requererem a suspensão de sua demanda individual, sendo esta posteriormente julgada improcedente, o titular do direito não poderá se beneficiar da eventual sentença favorável proferida na ação coletiva (CDC, art. 104). (BRASIL, 1990).

Registre-se, por fim, que, com relação aos limites objetivos da coisa julgada, a doutrina é uníssona em afirmar que ela se restringe à parte dispositiva da sentença, compreende-se nesta tudo quanto o juiz tenha resolvido sobre os pedidos feitos pelas partes (MANCUSO, 2007, p. 226-227).

6 ARTIGO 16 DA LEI N. 7.347/1985
6.1 ORIGEM DA REFORMA LEGISLATIVA

A extensão dos limites subjetivos da coisa julgada permaneceu inalterada de 1985 até 1997. Durante esse período, a coisa julgada era regulamentada pelos artigos 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) e 103 e 104, estes do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990), conforme exposto no item anterior.

O artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública tinha, originariamente, a seguinte redação: “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (BRASIL, 1985, online).

Da leitura desse dispositivo, verifica-se que ele era perfeitamente harmônico com a redação do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor.

Tudo caminhava bem, até serem proferidas decisões contrárias aos interesses do Poder Executivo. Isso porque foram instauradas Ações Civis Públicas em diversos Estados para obstarem a privatização de algumas empresas públicas, verbi gratia a Telebrás e a Vale do Rio Doce (LENZA, 2003, p. 263-264), e, também, para solucionar o pagamento de salários dos funcionários públicos (MORAES, 2000, p. 156). Em razão da abrangência da coisa julgada nas demandas coletivas (erga omnes ou ultra partes), as decisões proferidas, inclusive as liminares, tinham abrangência nacional. Chegando a questão ao Superior Tribunal de Justiça, esta Corte manteve a autoridade erga omnes dos julgados e, aplicando as regras de prevenção, extinguiu as ações concomitantes.

Assim, para evitar que a implantação de novas políticas econômicas continuasse sendo obstada pelo Poder Judiciário, o Executivo Federal editou a Medida Provisória 1.570, de 26.03.1997, que, após cinco reedições, foi convertida na Lei n. 9.494/1997, a qual alterou a redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, para limitar a autoridade da coisa julgada aos “limites da competência territorial do órgão prolator” e, com isso, impedir que as decisões proferidas tivessem alcance nacional.

As mudanças não pararam por aí, pois a Medida Provisória n. 2.180-35 de 2001 acrescentou o art. 2º-A à Lei n. 9.494/1997 para limitar ainda mais os limites subjetivos da coisa julgada, restringindo-os aos associados que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator (caput). E, ainda, as demandas coletivas propostas contra os entes políticos, e as suas autarquias e fundações passaram a ter que ser instruídas com a relação nominal dos associados representados e os seus respectivos endereços (parágrafo único).

Diante desse contexto, Almeida (2011, p. 228-229) verberou que:

O governo usou o seu poder de império para alterar a legislação da maneira como lhe convinha, desnaturando a principal marca da ação coletiva - a coisa julgada -, tão logo se sentiu ameaçado com algo que não deveria incomodá-lo: a defesa coletiva de cidadãos, contribuintes, funcionários públicos.

6.2 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE E APLICABILIDADE

Desde que o artigo 16 da Lei n. 7.347/1985 recebeu nova redação pela Lei n. 9.494/1997, surgiram várias opiniões divergentes, na doutrina e na jurisprudência, acerca de sua constitucionalidade e aplicabilidade, as quais ainda não foram solucionadas.

A primeira posição doutrinária defende a constitucionalidade e aplicabilidade da limitação da coisa julgada à competência territorial do órgão prolator, para as três espécies de direitos tutelados pela via coletiva. Como expoentes dessa posição, encontramos José dos Santos Carvalho Filho, Eduardo Arruda Alvim, Rennan Faria Kruger Thamay e Daniel Willian Granado.

Carvalho Filho (1999, p. 393-394) argumenta que pode haver críticas quanto à opção política do legislador, mas que elas não podem inquinar o dispositivo do vício de inconstitucionalidade, pois, para o autor, o que se pretendeu foi “demarcar a área em que poderão ser produzidos esses efeitos, tomando em consideração o território dentro do qual o juiz de primeiro grau tem competência para processamento e julgamento desses efeitos.”

No mesmo sentido, Alvim, Thamay e Granado (2014, p. 410) argumentam que a limitação introduzida no artigo 16 da Lei 7.347/1985 é norma expletiva8 do próprio sistema.

Por conseguinte, há uma posição intermediária, cujos integrantes advogam o entendimento de que a referida limitação territorial seria aplicável a somente algumas das espécies dos direitos que são coletivamente tutelados.

Zavascki (2017, p. 73) pode ser apontado como adepto dessa posição, o qual - realizando uma interpretação que ele chamou de sistemática e construtiva - reconhece a aplicação do artigo 16 da Lei 7.347/1985 somente para os direitos individuais homogêneos, em que a sentença poderia ser cindível em razão da divisibilidade desses direitos, ou seja, o critério metodológico que foi utilizado é o da natureza do objeto.

Curiosa é a posição defendida por Leal (2014, p. 209-284) que, embora admitindo que a restrição imposta pelo artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública atenta contra a lógica de acesso à Justiça das ações coletivas, sustenta que essa limitação seria aplicável às ações que tutelam direitos coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, em razão da possibilidade de individualização dos beneficiários da sentença. O autor cita como exemplo uma ação proposta pela Associação Paranaense de Direitos do Consumidor - APADECO para discutir os expurgos inflacionários de cadernetas de poupança, em que seriam apenas beneficiados pela sentença os correntistas do Estado Paraná, admitindo a existência de outras ações paralelas, divididas por grupos regionalizados. Para Leal, eventuais decisões conflitantes seriam pacificadas nas instâncias superiores. Verifica-se que, aqui, foi adotada a possibilidade de determinação dos titulares do direito como critério.

A terceira posição que, na doutrina, recebe maior acolhida, sustenta a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei n. 7.347/1985 com a redação dada pela Lei n. 9.494/1997 e, também, a sua total ineficácia.

Nery Júnior (1999, p. 168-171) argumenta que esse dispositivo está eivado do vício da inconstitucionalidade, tanto em seu aspecto formal quanto em seu aspecto material. Formal, porque a alteração teve origem em uma medida provisória que foi editada sem urgência e relevância. E, material, porque viola o direito de ação, o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade das leis.9 O autor acrescenta que o artigo 16 não tem eficácia, porque não foi alterado o artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor. Assim, Nery conclui que uma sentença coletiva tem valor em todo território nacional, porque o problema não reside na competência (quem proferiu a sentença), mas nos limites subjetivos da coisa julgada (quem é pela sentença atingido), o que é determinado pelo art. 103 do Código de Defesa do Consumidor.

No mesmo sentido, Mendes (2014, p. 278) afirma a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, porque afronta o poder de jurisdição dos juízes, a razoabilidade e o devido processo legal. Além disso, o autor assevera que, com o advento do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, o artigo 16 da Lei 7.347/1985 foi inteiramente revogado, por força da parte final do § 1º do artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de modo que a Lei 9.494/1997 modificou dispositivo que já não estava mais em vigor.

Camilo Zufelato e Rodolfo de Camargo Mancuso são os autores que melhor examinam a questão, sob a ótica das finalidades do processo coletivo.

Com efeito, Mancuso (2007, p. 398) adverte que o comando judicial deve ser uniforme e unitário por toda a extensão do interesse metaindividual tutelado na ação, sob pena de o conflito ser pulverizado em várias demandas individuais (atomizado), o que privaria que a tutela judicial fosse prestada em sua dimensão coletiva.

Zufelato (2011, p. 472), a seu turno, ressalta que “a extensão dos efeitos da coisa julgada representa uma grande arma para a efetividade do processo coletivo, sem desrespeitar os princípios constitucionais, pois consolida a substituição de inúmeras demandas individuais por uma única coletiva, sempre em benefício dos lesados” e arremata consignando que “restringindo os efeitos da coisa julgada, a Lei restringe a prestação jurisdicional”.

A incerteza sobre o tema, revela-se maior no âmbito da jurisprudência dos Tribunais, conforme passaremos a expor.

Em 2008, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 411.529/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se posicionou, por maioria de votos, no sentido de que o artigo 16 da Lei 7.347/1985, não poderia ser aplicado aos direitos individuais homogêneos, em razão da previsão do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor.10

Todavia, em face desse acórdão, foram opostos embargos de divergência e a 2ª Seção da Corte, por unanimidade, reformou a decisão para limitar a sentença proferida em Ação Civil Pública à competência territorial do órgão prolator, aplicando indistintamente o artigo 16 da Lei 7.347/1985.11

A questão parecia ser solucionada com o julgamento do recurso especial representativo de controvérsia nº 1.243.887, no qual a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, afastou o dispositivo em comento, por entender que “os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo.” (BRASIL, 2011, online).

Porém, após, continuaram a existir decisões que aplicaram o artigo 16 da Lei n. 7.347/1985.12

Ainda, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, apreciando o tema n. 499 da repercussão geral, por maioria de votos, declarou a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei n. 9.494/1997,13 fixando a seguinte tese jurídica:

A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes de relação juntada à inicial do processo de conhecimento (BRASIL, 2017, p. 7).

A questão foi levada à Corte Suprema por meio de ação coletiva proposta contra a União, a qual tinha por objeto a repetição de valores descontados a título de imposto de renda de servidores, incidente sobre férias não usufruídas por necessidade do serviço. O mais espantoso é que a discussão acerca dos limites da coisa julgada foi levantada em sede de cumprimento de sentença, no qual o Tribunal Regional Federal da 4ª Região determinou a necessidade de a execução ser instruída com documentação comprobatória de filiação do associado em momento anterior ou até o dia do ajuizamento da ação de conhecimento. Em face dessa decisão, foi interposto Recurso Extraordinário, que, dentre outras matérias, alegava a inconstitucionalidade do artigo 2º-A, parágrafo único, da Lei n. 9.494/1997.

Ocorre que, em decorrência da tese jurídica fixada - que é de aplicação obrigatória, nos moldes do inciso V do artigo 927 do Código de Processo Civil - poderão se beneficiar da autoridade da coisa julgada aqueles que tenham, até a data da propositura da ação de conhecimento, residência no âmbito da jurisdição do órgão prolator e, cumulativamente, estejam filiados à Associação autora da demanda coletiva.

Note-se que a mesma consequência decorreria da aplicação do artigo 16 da Lei 7.347/1995, porque exigir que os beneficiários tenham “residência no âmbito da jurisdição do órgão prolator” tem a mesma implicação prática que restringir os limites subjetivos da coisa julgada “a competência territorial do órgão prolator”. (BRASIL, 1985).

Assim, no caso examinado pelo STF, somente poderão executar a sentença aqueles servidores que residam no âmbito da competência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e que sejam filiados à Associação autora da demanda coletiva.

Como corolário, aqueles outros servidores, que, apesar de terem sofrido a mesma retenção indevida de imposto de renda, mas que residam em outro local e/ou que não estejam filiados à Associação e/ou que se filiaram no curso da demanda, serão obrigados a proporem nova ação de conhecimento.

Não se perca de vista que o artigo 2º-A da Lei n. 9.494/1997 tem origem naquelas séries de Medidas Provisórias tomadas em favor dos interesses fazendários, conforme exposto no item “6.1”, o que nos permite afirmar, permissa vênia, que a decisão do Supremo Tribunal Federal é eminentemente política e que se afastou das diretrizes do processo coletivo, notadamente, do tratamento molecularizado do conflito.

6.3 POSIÇÃO ADOTADA

Comungamos do entendimento de Nery Júnior (1999), Mendes (2014), Zufelato (2011) e Mancuso (2007), no sentido de ser inconstitucional e inaplicável o artigo 16 da Lei 7.347/1985 (com a redação dada pela Lei n. 9.494/1997).

Quanto à inconstitucionalidade, entendemos que a limitação da coisa julgada pela competência do órgão prolator fere o princípio da isonomia (CF, art. 5º, caput) ao impor tratamento diferenciado aos indivíduos que não obstante residirem em locais diferentes, encontram-se, pela violação do direito, em situações semelhantes; bem como porque, ao impedir que os indivíduos se beneficiem da sentença favorável coletiva, o artigo 16 da Lei n. 7.347/1985 (com a redação dada pela Lei n. 9.494/1997) se constitui em obstáculo ao acesso à justiça, entendida sob a perspectiva da tutela jurisdicional adequada.

Já com relação à ineficácia, ela é decorrente da incompatibilidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública com toda a sistemática da tutela coletiva, acabando por inviabilizar sua própria finalidade: o tratamento molecularizado dos conflitos. Prova disso é que o anteprojeto da nova Lei da Ação Civil Pública (PL n. 5.139/2009) previa, em seu artigo 32, que “a sentença no processo coletivo fará coisa julgada erga omnes, independentemente da competência territorial do órgão prolator ou do domicílio dos interessados.” (BRASIL, 2010, online).

Além disso, a garantia constitucional da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) ganhou destaque no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), o qual aplicou a técnica de vinculação obrigatória dos precedentes (art. 927) e do julgamento por atacado, como a decisão proferida no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e dos Recursos Repetitivos (art. 928), os quais autorizam a suspensão de todas as demandas, incluindo-se as coletivas, para posterior aplicação da tese jurídica fixada (arts. 982, I e § 3º; 985; 987; 1.035, § 5º), ou seja, a decisão tomada como base em demandas individuais será aplicada às demandas coletivas.

Grinover (2017, p. 20-24) ressalva, contudo, que as técnicas anteriormente mencionadas se destinam a “agrupar demandas e julgar algumas delas por amostragem, aplicando às demais, que ficam suspensas, a mesma tese (exclusivamente de direito). As ações ainda são individuais e as decisões, embora uniformes, só operam inter partes.” É, por isso, que a autora conclui destacando que “embora o incidente de resolução de demandas repetitivas possa ser aplicado para casos futuros, haverá um julgamento novo para cada caso repetitivo que aparecer.”

Consequentemente, se revela muito mais razoável, que, com a ocorrência de lesão a um direito difuso, coletivo ou individual homogêneo, seja proposta uma ação coletiva e que a decisão nela proferida faça coisa julgada erga omnes ou ultra partes, nos moldes do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, ao invés de se esperar pela proliferação de demandas, para na via individual pacificar a questão, por meio do sistema de vinculação obrigatória dos precedentes (CPC, artigos 926 a 928). A adoção da tese ora defendida acarretará a prevalência da tutela jurisdicional efetiva (CF, art. 5º, XXXV) de forma mais célere que a tese contrária.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o advento da Constituição Federal de 1988, uma nova summa divisio foi instaurada para classificar os direitos em coletivos e individuais, conciliando o plano da titularidade com o da proteção e da efetividade.

Desse modo, verificou-se a existência de conflitos coletivos, que, por abrangerem uma coletividade, classe ou um grande número de pessoas, não poderiam receber tutela jurisdicional adequada pelas regras do processo individual, mas que reclamavam um tratamento molecularizado do fenômeno.

Nessa perspectiva, o Código de Defesa do Consumidor surgiu como um importante diploma para o aperfeiçoamento da tutela coletiva de direitos e, com a Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), formou um microssistema de processo coletivo.

A partir de então, o Brasil passou a ter uma moderna legislação de processo coletivo, notadamente, em razão do tratamento dispensado à coisa julgada.

Todavia, o Poder Executivo se sentiu ameaçado e editou a Medida Provisória n. 1.570, posteriormente convertida na Lei n. 9.494/1997, para restringir a extensão do julgado aos limites da competência territorial do órgão prolator. O que, em última análise, constituiu-se em um obstáculo ao acesso à justiça.

Subsequentemente, uma comissão especial de juristas se reuniu e elaborou um anteprojeto de uma nova Lei da Ação Civil Pública, a qual, dentre outras medidas, impediria qualquer tentativa de restringir os limites da coisa julgada (PL n. 3.139/2009, art. 32). Contudo, conforme desenvolvido no item “4”, os esforços foram frustrados com a rejeição do projeto de lei.

Registre-se, ainda, que o Poder Judiciário ainda não resolveu a questão de forma definitiva, pois o Supremo Tribunal Federal declarou, via controle difuso,14 a constitucionalidade do artigo 2º-A da Lei n. 9.494/1997, contrariando a posição do Superior Tribunal de Justiça, firmada em sede de recurso especial representativo de controvérsia nº 1.243.887, o qual já havia afastado as limitações previstas no artigo 16 da Lei n. 7.347/1.985, sendo que ambos os dispositivos levam a mesma consequência prática, conforme demonstrado alhures. Assim, nem mesmo a aplicação da jurisprudência das Cortes Superiores é capaz de dirimir a celeuma quanto à extensão da coisa julgada.

Por isso, mostra-se correta a afirmação de que o Brasil ainda vive uma situação de incerteza, dando ensejo a decisões de cunho político e ao casuísmo.

Diante do exposto, concluímos que a solução para o problema será de lege ferenda, com a revogação expressa do artigo 16 da Lei 7.347/1985 e, também, da Lei n. 9.494/1997, pondo termo às decisões conflitantes, nos moldes do artigo 2º, caput e § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.15

Contudo, os entraves para as mudanças legislativas já foram denunciados por Grinover (2017, p. 213-218): elas não ocorrem, principalmente, “por falta de vontade política”.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
ALVIM, Eduardo Arruda; THAMAY, Rennan Faria Kruger; GRANADO, Daniel Willian. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Presidência da República, Brasília, DF, 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 5 out. 2017.
_______. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Emendas Constitucionais. Atos Complementares. Atos Institucionais. Presidência da República, Brasília, DF, 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 5 out. 2017.
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Notas
Notas
1 Rezava o § 4º do artigo 141 que “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” (BRASIL, 1946, online).
2 Cf. art. 150, § 4º: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” (BRASIL, 1946, online).
3 Que renumerando para o artigo 153, § 4º, manteve inalterado o seu teor.
4 Nesse sentido: Pedro da Silva Dinamarco afirma que as class actions têm origem no Bill of Peace, do direito inglês, desde o século XVII, cujo caso mais famoso foi o Brow vs. Vermuden, de 1676, em que os mineradores discutiam o imposto cobrado pela igreja. (DINAMARCO, 2001, p. 24-25 apud LOUREIRO, 2004 p. 111-112).
5 Nesse sentido: (BRASIL, 2010).
6 Previa o § 1º do artigo 11 do Projeto de Lei n. 5.139/2009 que: “Não fornecidas as certidão e informações referidas no caput, poderá a parte propor a ação desacompanhadas destas, facultado ao juiz, após apreciar os motivos do não fornecimento, requisitá-las.” (BRASIL, 2010, online).
7 Estabelece o art. 506: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.” (BRASIL, 2015, online).
8 Expletivo é a palavra ou expressão que é desnecessária ao sentido da frase, mas que lhe dá mais força ou graça - cf. (FERREIRA, 2010, p. 901) -. Assim, concluímos que, para os mencionados autores, a norma expletiva é aquela que não precisava constar no texto, porque é corolário de uma interpretação sistemática.
9 Sobre o conceito e a distinção entre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, confira-se a obra: (FERREIRA, 2009. p. 155-169).
10 STJ, 3ª Turma, REsp 411.529/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.06.2008, DJe 05.08.2008.
11 STJ, 2ª Seção, EREsp 411.529/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 10.03.2010, DJe 24.02.2010.
12 Cf. STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 1.134.957/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.12.2012, DJe 17.12.2012; STJ, 3ª Turma, REsp 1.304.9553/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.08.2014, DJe 08.09.2014; STJ, 2ª Turma, AgRg no REsp 1.353.720/SC, rel. Min. Herman Benjamin, j. 26.08.2014, DJe 25.09.2014; STJ, 3ª Turma, REsp 1.331.948/SP, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 14.06.2016, DJe 05.09.2016; STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1.378.579/SC, rel. Min. Regina Helena Costa, j. 16.05.2017, DJe 22.05.2017.
13 Cf. STF, Tribunal Pleno, RE 612.043, rel. Min. Marco Aurélio, j. 10.05.2017, DJe 12.05.2017.
14 Acerca dos efeitos da decisão no controle difuso consultar a obra: (FERREIRA, 2016, p. 101-110).
15 Estabelece o artigo 2º, caput e § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. (BRASIL, 1942).
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