Resumo: O presente artigo versa sobre a importância da atuação do Poder Judiciário para o controle do tabagismo, tendo como objetivo principal contribuir e aprimorar o estudo do tópico, com enfoque na jurisprudência que trata de danos ocasionados pelo contato com os produtos derivados do tabaco. Pode concluir-se que, com base na coleta dos julgados nacionais, delimitado no período entre 1º de janeiro de 2010 a 30 de agosto de 2016, tornou-se claramente perceptível que, em sua grande maioria, a responsabilidade pelos danos é transferida para a sociedade civil, ficando, assim, a indústria do tabaco livre de qualquer ônus que a sua atividade econômica é capaz de gerar. Ainda, conclui-se que a atuação do Poder Judiciário pode contribuir para a redução dos danos ocasionados pelo uso de produtos derivados do tabaco. Para tanto, o presente estudo utilizou-se da técnica de revisão bibliográfica para instrumentalizar o artigo científico, por meio da base lógica indutiva para relatar os resultados do trabalho, como também da metodologia documental e legislativa.
Palavras-chave: Responsabilidade civil da indústria do tabaco, Decisões judiciais, Controle do tabagismo.
Abstract: This article discusses the importance of the Judiciary’s role in tobacco control, with the main objective of contributing and improving the study of the topic, with a focus on jurisprudence dealing with damages caused by contact with tobacco products. It can be concluded that, based on the collection of national judgments, delimited in the period between January 1, 2010 and August 30, 2016, it has become clearly noticeable that, for the most part, liability for damages is transferred to the Civil society, leaving the tobacco industry free of any burdens that its economic activity is capable of generating. Furthermore, it is concluded that the judiciary actions may contribute to reducing the damages caused use of tobacco products. For this, the present study used the bibliographical research technique to instrumentalism the present scientific article, through the inductive logic base to report the results of the work, as well as the documentary and legislative methodology.
Keywords: Civil liability of the tobacco industry, Judicial decisions, Control of smoking.
Resumen: El presente artículo trata sobre la importancia de la actuación del Poder Judicial para el control del tabaquismo, teniendo como objetivo principal contribuir y perfeccionar el estudio del tópico, con enfoque en las jurisprudencias que tratan de daños ocasionados por el contacto con los productos derivados del tabaco. Se puede concluir que, con base en colecta de juzgados nacionales, delimitada en el período comprendido entre el 1 de enero de 2010 al 30 de agosto de 2016, se ha notado claramente que, en su gran mayoría, la responsabilidad por los daños recae en la sociedad civil, restando a la industria del tabaco libre de cualquier obligación que su actividad económica sea capaz de generar. Sin embargo, se concluye que la actuación del Poder Judicial puede contribuir a la reducción de los daños ocasionados por el uso de productos derivados del tabaco. Para ello, el presente estudio utilizó la técnica de revisión bibliográfica para instrumentalizar el artículo científico, a través de la base lógica inductiva para relatar los resultados del trabajo, así como la metodología documental y legislativa.
Palabras clave: Responsabilidad civil de la industria tabacalera, Decisiones judiciales, Control del tabaquismo.
EVOLUÇÕES HISTÓRICAS DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CONTROLE DO TABAGISMO POR MEIO DE DECISÕES JUDICIAIS
HISTORICAL EVOLUTIONS OF THE JUDICIARY’S PERFORMANCE IN THE CONTROL OF TOBACCO THROUGH JUDICIAL DECISIONS
EVOLUCIONES HISTÓRICAS DE LA ACTUACIÓN DEL PODER JUDICIAL EN EL CONTROL DEL TABAQUISMO A TRAVÉS DE DECISIONES JUDICIALES
Recepção: 12 Dezembro 2017
Aprovação: 11 Abril 2018
1 Introdução. 2 Desenvolvimento. 2.1 Perfil das decisões proferidas pelos tribunais superiores. 2.2 Superior Tribunal Federal. 2.3 Superior Tribunal de Justiça. 3 Perfil das decisões proferidas pelos tribunais regionais federais. 3.1 Dos julgados envolvendo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). 3.2 Do julgado envolvendo a legalidade da doação da empresa Souza Cruz S/A ao Poder Judiciário. 3.3 Dos julgados envolvendo os benefícios previdenciários concedidos por força das doenças relacionadas ao tabagismo. 4 Perfil das decisões proferidas na esfera trabalhista. 4.1 Das decisões proferidas sobre a atividade profissional de “provador de cigarros”. 4.2 Perfil dos julgados envolvendo as doenças originadas no trabalhador oriundas do contato com a folha de fumo. 5 Perfil das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça dos Estados. 5.1 Aplicabilidade da prescrição quinquenal prevista no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. 5.2 Rompimento do nexo causal entre a conduta das empresas e o dano à saúde do consumidor – livre arbítrio. 5.3 Licitude da atividade de fabricar e de comercializar tabaco. 5.4 Inexistência de publicidade enganosa e abusiva ou violação do dever de informar sobre os malefícios do consumo de cigarro. 5.5 Inexistência de defeito no produto. 5.6 Ausência de nexo de causalidade direto e imediato entre a propaganda massiva de cigarros realizada pela empresa e a doença acometida. 5.7 Ausência de nexo de causalidade entre o ato de fumar e os danos ocasionados à saúde. 5.8 Julgados favoráveis ao consumidor. 6 Da desarmonia das decisões do Poder Judiciário sobre a responsabilidade civil da indústria do tabaco. 7 Considerações finais. Referências.
No intuito de entender o raciocínio e a evolução dos argumentos jurisprudenciais, o presente artigo busca retratar o panorama histórico das decisões judiciais que envolvem a responsabilidade civil da indústria do tabaco em âmbito nacional, como também, confrontar o tratamento dado à atuação desta, ao longo da história, entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Comum ( EFING; MOTTIN, 2017).
Frente à realidade de que as atividades de fabricar e de comercializar os produtos derivados do tabaco causam danos aos mais diversos setores da nossa sociedade civil, milhares de ações indenizatórias são propostas perante todas as esferas do Poder Judiciário.
Na esfera da Justiça Comum, o posicionamento majoritário da jurisprudência é no sentido de afastar a responsabilidade civil das indústrias, julgando improcedente o pedido formulado pelo consumidor que visa a ser indenizado pelos danos ocasionados pelo consumo do cigarro, sendo que tais decisões são fundamentadas em diversos argumentos já superados pela ciência.
Distintivamente, na esfera da Justiça do Trabalho, os julgados não ignoram a realidade apresentada pela comunidade científica, o que, por consequência, reconhecem a responsabilidade civil da indústria do tabaco, condenando-a ao pagamento de indenização pelos danos ocasionados aos trabalhadores que exercem a função de degustar cigarros.
Ainda, perante os Tribunais Regionais Federais, os casos envolvem desde a análise da legalidade da obrigação de veicular contrapropaganda na oferta dos produtos derivados do tabaco, até a análise da concessão do auxílio-doença, da aposentadoria por invalidez e da pensão por morte em razão das doenças oriundas do tabaco. Nesse aspecto, verifica-se a seguir se os julgados debatem ou não sobre a responsabilidade civil da indústria pelo encargo financeiro suportado pelo Estado, decorrente do setor previdenciário.
Assim, devido à inegável importância da decisão judicial para o controle do uso de produtos derivados do tabaco e ao fato de que o Brasil é carente de estudos jurídicos que tratem criticamente das decisões judiciais que envolvem a responsabilidade da indústria, em âmbito nacional, o presente artigo busca contribuir e aprimorar o conhecimento da importância da atuação do Poder Judiciário para o controle do uso de produtos derivados do tabaco.
Para tanto, buscando analisar todas as decisões eletronicamente disponibilizadas pelos Tribunais Estaduais, Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Superiores: Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho, adotou-se o método da análise documental de conteúdo, conjuntamente com uma abordagem qualitativa, posto que envolve a apreciação dos julgados de forma aprofundada.
Por fim, no intuito de delimitar o objeto da pesquisa, estabeleceu-se o período de julgamento entre 01 de janeiro de 2010 a 30 de agosto de 2016. Dessa forma, o estudo é retrospectivo, tendo em vista que os documentos analisados são julgados anteriores ao início da pesquisa.
O estudo visa, portanto, a aprofundar o estudo da jurisprudência e, posteriormente, analisar criticamente a atuação de cada esfera do Poder Judiciário no controle do tabagismo no Brasil.
De início, cumpre destacar a relevância dos entendimentos consolidados conferidos pelos Tribunais Superiores.
Com a vigência no Código Processual Civil, Lei nº 13.105 de 2015 ( BRASIL, 2015a), instituiu-se o artigo 927, obrigando as instâncias inferiores ao STJ e ao STF a observarem as manifestações das seguintes decisões:
Art. 927 Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados ( BRASIL, 2015a, online).
Assim, vislumbra-se o caráter vinculante dos entendimentos consolidados pelo STJ e pelo STF, no sentido de que tais decisões são de observância obrigatória para os Juízes e os Desembargadores ao exporem o seu entendimento diante do caso em concreto.
Perante o Supremo Tribunal Federal, constata-se que, em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4874 ( BRASIL, 2013a), a Ministra Relatora Rosa Weber, no ano de 2013, concedeu o pedido liminar para suspender a eficácia dos artigos 6º, 7º e 9º da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 14/2012 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que versam sobre a restrição do uso de aditivos nos produtos fumígenos derivados do tabaco. Tal decisão prioriza a operação da indústria do tabaco para impedir que a norma da ANVISA entre em vigor.
Até o momento, aguarda-se a posição definitiva do Supremo sobre permissão da utilização de aditivos e aromatizantes em produtos derivados do tabaco, o que certamente representará importante medida de controle do tabagismo no Brasil.
Em sua maioria, as decisões do Superior Tribunal de Justiça não enfrentaram o mérito da questão ao decidir que a prescrição regula-se pelo prazo de cinco anos do Código de Defesa do Consumidor ( BRASIL, 2010i) e ao afirmar que o exame da matéria fática é vedado ( BRASIL, 2010j).
Sobre o tema, o STJ decidiu, ainda antes da vigência do Código Civil de 2002 que, por se tratar de dano por fato de produto, ou seja, pelas doenças causadas pelo ato de fumar, a prescrição deve ser regida pelo artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor, e não pela regra geral, contida no CC/1916. Esclareceu, ainda, que a prescrição da ação de reparação dos danos por fato do produto é contada do conhecimento do dano e da sua autoria, não tendo influência a renovação da lesão no tempo. Já sobre a vedação da matéria fática, o STJ deixou de analisar o nexo causal, consistente no vínculo do ato de fumar e a patologia, em vista da necessidade de se analisar o laudo médico, entre outros dados, a fim de se auferir se o ato de fumar foi determinante para o surgimento da doença.
O STJ não analisa as questões que envolvem reexame de prova ou de matéria fática por força de impedimento gerado pela súmula 1 que trata dessas matérias.
Em 2010, o STJ julgou o Recurso Especial nº 1.113.804 - RS ( BRASIL, 2010a), constantemente empregado como fundamento nos acórdãos proferidos perante os Tribunais de Justiça Estaduais.
A decisão concluiu que (i) o cigarro é um produto de periculosidade inerente, eis que o defeito consubstancia-se na falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor e não na capacidade própria do produto de gerar danos, presente em todas as unidades.
Portanto, o STJ desconsidera a tese de que o cigarro seria um produto defeituoso, (ii) em relação ao “dever de informação” dos fornecedores, primeiramente, o STJ esclarece que a “ilicitude”, que rende ensejo à responsabilidade civil, não é sinônimo de “ilegalidade”, mas de violação a um dever jurídico contemplado pelo sistema, quer por meio de lei, quer por meio de princípios de leis decorrentes.
Assim, considera-se que antes da vasta legislação restritiva do consumo e da publicidade de cigarros, não havia dever jurídico de informação que impusesse às indústrias do fumo uma conduta diversa daquela por elas praticada em décadas passadas. Não sendo possível aplicar os princípios e os valores hoje consagrados, razão pela qual não há como imputar a responsabilidade da indústria pela omissão de informação dos danos advindos do cigarro.
Outro argumento sustentado pelo STJ se deu em razão da ausência de nexo de causalidade (iii), entre o tabagismo e a moléstia desenvolvida. Isso porque, segundo o Relator, a arte médica está limitada em afirmar a existência de fator de risco entre o fumo e o câncer, tal como outros fatores, como a alimentação, o álcool, a carga genética e o modo de vida da pessoa, sedentária ou estressante, o que, segundo o Relator, não podem dar lastro à responsabilidade civil em casos concretos de mortes associadas ao tabagismo, sem que se investigue, episodicamente, o preenchimento dos requisitos legais.
A premissa do livre arbítrio, sucessivamente defendida pelos Tribunais de Justiça, foi enfrentada pelo Ministro Honildo Amaral De Mello Castro ( BRASIL, 2010b), no Recurso Especial nº 886.347 - RS (2006/0159544-9), julgado em 25/05/2010. O julgado afastou a responsabilidade da indústria em razão do rompimento do nexo de causalidade sob dois aspectos. Primeiramente, asseverou que a publicidade não é enganosa ou abusiva, não havendo defeito de informação sobre os riscos à saúde, razão pela qual o consumidor se submete, conscientemente, a um risco que poderia ser evitado, se ele tivesse optado por não começar a fumar ou deixar de fumar, a partir do momento em que adoeceu. A segunda circunstância que rompe o nexo de causalidade é o fato de que o ato de fumar não é o único responsável pelas doenças causadas ao consumidor, não restando claro a relação de causalidade.
Por fim, em 2015, o Recurso Especial nº 1.101.949 - DF (2008/0255973-6) ( BRASIL, 2015b) cingiu-se à análise da publicidade de cigarros, na qual transmitiu a conduta de um jovem, incitando ao hábito de fumar, que associava tal prática ao sucesso e ao bem-estar, em período em que vigorava a Lei n° 9.294/96 ( BRASIL, 1996).
O STJ vislumbrou a ilicitude da publicidade sob o aspecto de que ela induziu o consumidor a erro, de modo que se adotasse a conduta indicada pela publicidade, independente das consequências, teria condições de obter sucesso em sua vida, ferindo o princípio da identificação da publicidade.
Aduziu que a publicidade só seria lícita se o consumidor pudesse identificá-la de plano, imediata e facilmente, tendo inclusive declarado que: “[...] o fato é que, à luz do art. 36, do CDC, assegura-se ao consumidor o direito de saber que aqueles dados e informações transmitidos não o são gratuitamente e, sim, têm uma finalidade específica, qual seja, a de promover a venda de um produto ou a utilização de um serviço.” ( MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, 2006, p. 526).
Logo, em razão da inexistência de uma mensagem clara e direta que pudesse conferir ao consumidor a sua identificação imediata (no momento da exposição) e fácil (sem esforço ou capacitação técnica) reconheceu-se a abusividade da publicidade.
A Constituição Federal, no capítulo referente à organização do Poder Judiciário, regulamenta no inciso I do artigo 109 as matérias de competência dos juízes federais para processar e julgar, destacando-se as seguintes: “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes [...].” ( BRASIL, 1988, online). Assim, considerando o objeto de nosso estudo, é oportuno analisarmos as demandas em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) forem partes na relação processual.
A relevância da análise dos julgados envolvendo a ANVISA se revela ao passo de que uma das competências da ANVISA é proteger a saúde da população e definir as características dos maços de cigarros, bem como a publicidade e a propaganda que devem ser veiculadas nas embalagens. 2 Já a análise dos julgados envolvendo o INSS se destaca ao passo de que milhares de pessoas estão impossibilitadas de trabalhar em razão das doenças causadas pelo contato com os produtos derivados do tabaco, muito embora estejam em idade economicamente ativa. Assim, a seguir, apresenta-se a análise se as decisões dos TRFs debatem ou não sobre a responsabilidade civil da indústria tabagista ligada aos custos arcados pela previdência social.
Ainda, se os critérios utilizados para a busca dos julgados foram:
a) publicidade de cigarro;
b) publicidade de tabaco;
c) aposentadoria e fumante;
d) aposentadoria e cigarro;
e) auxílio-doença e tabagismo.
Foram encontrados 05 julgados envolvendo a ANVISA e a indústria do tabaco. A distribuição das ações proferidas entre as regiões está representada pelo gráfico abaixo:
No TRF da 1ª Região, que compreende as seções judiciárias do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins, identificou-se a Apelação Cível nº 200334000078027 ( BRASIL, 2010c) interposta pela empresa Souza Cruz, com os seguintes propósitos: (i) de negociar os seus produtos via Internet, por meio de qualquer endereço eletrônico; (ii) de usar livremente seu nome comercial; (iii) e de usar livremente o nome e elementos de suas marcas em qualquer categoria de produtos.
Na análise dos pedidos, o Relator preliminarmente ensinou que a produção de fumígenos, ao contrário das demais atividades empresariais, é uma atividade apenas tolerada pela Constituição, não sendo pautada pelos princípios fundamentais, como a livre iniciativa. Considerou que seria impossível, mesmo ao não fumante, pensar na marca Souza Cruz sem “enxergar”, em primeiro lugar, uma carteira de cigarros, afirmando ser a marca o principal instrumento de propaganda. Também reconheceu que os catálogos e mostruários podem se transformar em instrumentos de propaganda, razão pela qual é vedada a exibição ou distribuição de catálogos e mostruários na parte interna dos locais de venda, porém ressaltou que tal proibição não alcança a remessa de catálogos e mostruários informativos, juntamente com a oferta de produtos derivados de tabaco, “diretamente por meio de portal de acesso restrito”, aos comerciantes distribuidores ou revendedores.
Nesse viés, o julgado afastou disposição da Resolução nº 15/2003-ANVISA, unicamente para possibilitar a comercialização de remessa de catálogos e mostruários informativos aos comerciantes, distribuidores ou revendedores, e indeferiu as demais pretensões da indústria.
No TRF da 2ª Região, que compreende as seções judiciárias do Rio de Janeiro e Espírito Santo, foram identificados dois julgados.
O julgado ( BRASIL, 2013h) mais recente analisou a ilegalidade da propaganda veiculada no interior da embalagem de cigarro “Hilton”. Em um primeiro momento, a Relatora considerou ilegal a conduta da empresa que se omitiu em apresentar a nova embalagem do cigarro “Hilton” ao processo de registro de dados cadastrais e aditamento junto à ANVISA. Em seguida, considerou que a mensagem veiculada no interior dos maços de cigarro: “a evolução que você tanto esperava” “[...], caracterizase como propaganda, direcionada a um público específico, isto é, aos consumidores habituais do cigarro, com a finalidade de mantê-los fiéis ao consumo do produto [...]”, ( BRASIL, 2013h, online) o que, para a Relatora, estimula o consumo de produto derivado do tabaco, razão pela qual consignou a legalidade do auto de infração lavrado pela ANVISA.
O segundo julgado ( BRASIL, 2011g), concerne à ação ajuizada pela Souza Cruz S/A, com o intuito de não ser obrigada ao ônus de veicular, nas embalagens de seus produtos e no material publicitário, seis das dez novas imagens divulgadas pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 54/2008/ANVISA ( AGENCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2008). O pedido foi acolhido pelo Tribunal sob o argumento de que a frase prevista na embalagem de cigarros: “Fumar é prejudicial à saúde”, é o suficiente para a ciência dos males advindos do tabagismo, não sendo lícito, portanto, sujeitar as empresas a tratamentos degradantes, obrigando-as a veicular em seus produtos imagens que não guardam relação com a realidade, devendo o Poder Público dispor de outros meios de veicular contrapropagandas, e não da própria embalagem do produto.
No TRF da 3ª Região, que compreende as seções judiciárias de São Paulo e Mato Grosso do Sul, identificou-se a Ação Civil Coletiva ( BRASIL, 2013i), ajuizada pelo Instituto “Barão De Mauá” de Defesa de Vítimas e Consumidores Contra Entes Poluidores e Maus Fornecedores, em razão da prática abusiva da empresa Souza Cruz, consistente no ato de colocar, no interior das embalagens dos cigarros, uma cartela do tipo de uma carta de baralho, com a propaganda de uma nova embalagem de uma determinada marca de cigarro de sua linha comercial, a qual se encaixava perfeitamente sobre as cenas do atendimento ao enfermo.
O Relator reconheceu a ilicitude da conduta de encobrir as mensagens de advertência, eis que impede que estas tenham eficácia no ânimo do consumidor, dessa maneira, este não é estimulado a reduzir ou a eliminar um comportamento considerado prejudicial a sua saúde. Assim, diante da natureza abusiva da propaganda, nos termos do art. 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor 3, a empresa Souza Cruz foi condenada ao pagamento de danos morais coletivos.
Já no TRF da 4ª Região ( BRASIL, 2010k), que compreende as seções judiciárias do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, localizou-se uma demanda ajuizada pelo Sindicato da Indústria do Fumo no Estado do Rio Grande do Sul, a qual buscou assegurar às empresas de cigarros o direito de não veicular, nas embalagens de seus produtos e materiais publicitários, as imagens e as respectivas cláusulas impostas pelo Poder Público.
O TRF4 indeferiu o pedido ao considerar que o termo “advertência”, utilizado pela norma constitucional e pela norma legislativa, admite a transmissão de mensagem negativa quanto ao tabaco. Concluiu que a Administração Pública, ao escolher as imagens e as frases, agiu de acordo com a compreensão jurídica do ato de advertir, o qual é expressamente previsto e autorizado pela Constituição e pela legislação. Considerou que a introdução das imagens capazes de provocar repulsa não é uma atitude anti-informativa, nem contrária às condições para que o indivíduo possa deliberar de forma livre e autônoma, o que, segundo os estudos científicos, constata-se o aumento da precisão e da eficiência decisórias pelo influxo destes.
Desse modo, o TRF4 afastou a tese sustentada de que o Estado, ao valer-se do influxo de emoções de repulsa e nojo (imagens), estaria agindo além do comando constitucional e legal, e consignou que a política pública de combate ao consumo do tabaco tem fundamento científico, validando a utilização de metáforas fortes para atrair a atenção do consumidor.
Por fim, no TRF da 5ª Região, que compreende as seções judiciárias de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, não se localizou nenhum julgado envolvendo a ANVISA e a publicidade de tabaco.
Pela importância do julgado, muito embora a pesquisa restrinja-se aos julgados proferidos posteriormente ao ano de 2010, destacou-se a posição do TRF da 1º Região que, em 19 de setembro de 2005, ao julgar o Agravo de Instrumento ( BRASIL, 2005) interposto pelo Ministério Público Federal, suspendeu a execução do projeto denominado “Justiça Sem Papel”, em relação ao “Termo de Cooperação Técnica e Financeira”, firmado pelo Ministério da Justiça, pela Fundação Getúlio e pela empresa Souza Cruz S/A.
O Relator considerou que a doação realizada pela empresa Souza Cruz ao projeto colocaria em risco a imparcialidade do Poder Judiciário, notadamente por ser uma empresa produtora de bens nocivos à saúde pública. Destaca-se o trecho da fundamentação exposta pelo Ministério Público Federal:
Na verdade, a indústria Souza Cruz deveria colaborar com o Ministério da Saúde, de modo a auxiliar nos tratamentos e internações das vítimas do tabagismo. Teria, também, a opção de aliviar os pagamentos realizados pela Previdência, que concede benefícios aos que experimentaram a redução da capacidade laborativa, por força de doenças causadas pela nicotina.
No Judiciário brasileiro, existem inúmeras demandas indenizatórias contra a Souza Cruz. São ações propostas por pessoas que se consideram vítimas do consumo de tabaco, como fumantes ativos ou passivos. Fora, como acima frisado, as ações acidentárias-previdenciárias pagas pelo Estado ( BRASIL, 2005, online).
Considerando os argumentos do MPF, a decisão afastou o financiamento realizado pela Souza Cruz ao “Projeto Justiça Sem Papel”, afirmando que o Poder Judiciário “não deve envolver-se em parcerias espúrias, moralmente reprováveis e constitucionalmente repudiadas, a ponto de comprometer o bom nome, a moralidade e o grandioso ‘Papel da Justiça’ [...].” ( BRASIL, 2005, online).
Logo, o TRF reconhece que a participação da empresa do tabaco junto aos projetos conduzidos pelo Poder Judiciário afeta a imparcialidade e a independência dos juízes a ponto de influir nas decisões das causas, sendo incompatível qualquer interferência da indústria com a missão do Poder Judiciário no cumprimento de tutelar direitos. 4
As decisões proferidas pelos Tribunais Regionais Federais, na ocasião da análise da concessão do auxílio-doença, da aposentadoria por invalidez e da pensão por morte em razão das doenças oriundas do tabaco, não adentram ao mérito da responsabilidade civil da indústria pelo encargo financeiro suportado pelo Estado.
Entretanto, interessante notarmos que, considerando o laudo de perícia médica, as decisões se curvam ao raciocínio de que a doença acometida ao enfermo é oriunda do tabagismo ou então confessam que o tabagismo contribuiu para o surgimento da patologia, e, em alguns casos, reconhecem que de fato a atenuação dos sintomas da patologia é possível desde que o assegurado suspenda o tabagismo.
É o caso da Apelação Cível nº 0000302-22.2014.4.02.9999 ( BRASIL, 2014a), proferida pelo TRF da 2º Região que, ao consentir com o laudo pericial médico, afirmou que é possível atenuar os sintomas da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), desde que o assegurado cesse o uso de produtos derivados do tabaco.
Já na Apelação Cível nº 0803332-21.2010.4.02.5101 ( BRASIL, 2011a, online), proferida pelo TRF da 2º Região, que concedeu a aposentadoria por invalidez ao enfermo, considerou as declarações da médica-perita que afirmou ser o usuário do cigarro portador da “Doença pulmonar obstrutiva crônica severa” causada por “Enfisema pulmonar provocado pelo tabagismo crônico”.
A Apelação Cível nº 0016049-55.2014.404.9999 ( BRASIL, 2014b, online), ao conceder a aposentadoria por idade à trabalhadora rural, reconheceu os males ocasionados pelo contato com a nicotina, afirmando que:
[...] a chamada “doença do tabaco verde”, decorrente da intoxicação por nicotina, pelo contato da pele do fumicultor com a folha molhada do tabaco, seja na colheita, seja na elaboração das chamadas “bonecas” de fumo. Foi verificado que estes trabalhadores, como é o caso da autora, estão sujeitos a um maior risco de desenvolver problemas graves de saúde tais como câncer, doença pulmonar obstrutiva crônica e cardiopatias. 5
Percebe-se que o TRF não despreza os estudos realizados pela comunidade científica que comprovam que o simples contato da pele com folha do tabaco é capaz de desenvolver inúmeras doenças ao fumicultor.
Em face das decisões, assevera-se que, muito embora a indústria do tabaco usufrua do lucro decorrente da produção dos produtos derivados do tabaco, é o Estado, ou seja, a população, quem arca com o ônus ou prejuízos decorrentes dos produtos produzidos pela indústria, não havendo qualquer decisão judicial no sentido de responsabilizar as indústrias pelos danos ocasionados de sua atividade econômica.
Preliminarmente, a fim de se alcançar o melhor entendimento dos julgados na esfera trabalhista, torna-se necessário alguns esclarecimentos sobre a relação jurídica examinada.
O objeto dos julgados cinge-se a análise do “contrato de compra e venda de fumo em folha”, celebrado entre os representantes das indústrias do tabaco e os pequenos produtores rurais. Tais contratos são classificados como de adesão, visto que são impostas aos agricultores as condições que melhor atendem ao interesse da indústria, não permitindo qualquer negociação do conteúdo das cláusulas contratuais.
Segundo os relatos declarados na Ação Civil Pública ( ALIANÇA DO CONTROLE DO TABAGISMO, 2007, online), ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho da 9ª Região, o contexto econômico e social em que tais contratos são firmados retrata uma verdadeira relação de subordinação:
[...] os pequenos produtores são procurados por prepostos da empresa em suas residências e convidados a fazer parte do sistema de integração da produção do fumo. Em tais oportunidades são prometidas inúmeras vantagens econômicas aos pequenos produtores, que os técnicos certamente sabiam ser inverídicas, e, além disso, são omitidos aspectos importantes sobre os negócios jurídicos que estavam para ser realizados, principalmente quanto (1) à irremediável insalubridade desta produção, (2) à completa ingerência da Empresa na atividade (3) à obrigatoriedade de cumprimento das orientações dos técnicos da Empresa e de compra de insumos dela própria ou de locais por ela indicados, (4) à sempre duvidosa e insatisfatória classificação do produto final, (5) à constante incerteza sobre os valores do fumo, na prática determinados unilateralmente pela Empresa, e (6) às violações da ordem econômica em benefício da Empresa, possibilitadas por este tipo de contrato.
Ocorre que, além da abusividade dos contratos celebrados, os agricultores passam a desenvolver uma série de doenças durante colheita das folhas de fumo.
Ante ao contato da folha do tabaco, milhares de agricultores adquirem a chamada “doença da folha do tabaco verde” ou Green Tobacco Sickness (GTS), a qual, segundo o INCA, é uma espécie de overdose de nicotina, absorvida pela pele por meio do manuseio das folhas de fumo durante a colheita, sendo que “mesmo não sendo fumantes, os afetados chegam a ter uma quantidade da substância cotinina na urina maior do que a dos adeptos do cigarro.” ( BRASIL, 2011b, online).
Segundo matéria publicada da revista Galileu, ao entrevistar o Senhor Aloisio Storlarckz, ex-produtor de folha de tabaco, ele declarou que “na época nem sabíamos dessa história de doença do tabaco, o que sabíamos é que depois da colheita era hora de vomitar tudo o que tinha e o que não tinha no estômago, dia e noite, sem parar.” ( FROI , 2015, online).
Assim, as doenças originadas pelo contato com a nicotina vão além do consumo do produto do cigarro, atingindo também os pequenos agricultores intoxicados pela nicotina advinda da planta.
Ainda, na esfera trabalhista, não se pode deixar de lado a relação existente entre os trabalhadores que exercem a função de provar cigarros e a indústria do tabaco.
A função de tal profissão consiste basicamente em experimentar cigarros no denominado “painel de avaliação sensorial”, para a medição da qualidade dos cigarros produzidos. Segundo a reportagem publicada no Jornal da Folha de São Paulo, a atividade realizada se dá no seguinte contexto ( PROVADORES..., 2002, online):
[...] Eles ganham, em média, R$ 300 por mês (ou R$ 9,20 por sessão). Fumam, no máximo, o equivalente a quatro, cinco cigarros, segundo a empresa. Grávidas não podem integrar o chamado painel de fumo. São analisados cigarros que já estão no mercado, produtos em desenvolvimento e fumos da concorrência. A prova é feita às cegas. A marca do cigarro é coberta com uma fita adesiva vermelha ou preta para que o marketing não influencie na apreciação. São verificados cinco quesitos: aroma, gosto, potência (se é forte ou fraco), aspectos mecânicos (se acende fácil, se queima bem, se é fácil de tragar) e táteis. Máquinas de fumar não conseguiram fazer esse tipo de avaliação, segundo Caruso. A Souza Cruz possui essas máquinas, mas sua função é outra: medir o nível de nicotina, alcatrão e monóxido de carbono. O engenheiro agrônomo Alexandre Melo, 44, provador de cigarros há sete anos, acha que a função não é perigosa: “Sou fumante, conheço os riscos do cigarro e os testes não aumentam em nada esses riscos”. Para Melo, a função de testador deveria ser reconhecida oficialmente. É o grande temor da Souza Cruz. Se for oficializada como atividade de risco, os testadores teriam de se aposentar mais cedo e receber um adicional. O gerente do departamento de pesquisas da Souza Cruz não vê nenhum dilema ético em testar em humanos um produto de risco, que provoca mais de 50 doenças. “Não vejo nenhuma questão ética no teste. É um produto legal e todos os envolvidos conhecem o risco”, afirma Caruso.
Foi observado que a empresa tabagista defende a moralidade da conduta de contratar pessoas para o fim de testar a qualidade do cigarro, sob a alegação de que a produção e a comercialização de cigarros são consideradas atividades lícitas e de que todos já conhecem os eventuais riscos à saúde que a profissão pode acarretar.
Diante do conteúdo dos julgados, adotam-se os seguintes critérios para busca dos julgados: TRT 11
a) contrato de compra e venda de fumo;
b) plantação de fumo;
c) sistema integrado de produção de tabaco;
d) fumicultura;
e) fumo em folha;
f) provadores de cigarros;
g) painel de fumantes.
Feita a premissa inicial, passa-se para a análise dos julgados.
A partir dos critérios utilizados para a busca dos julgados “provadores de cigarros” e “painel de avaliação sensorial”, foram encontrados 03 julgados proferidos pelo Tribunal Superior do Trabalho a seguir expostos.
Em 2010, o Tribunal Superior do Trabalho julgou o Recurso de Revista nº 120300-89.2003.5.01.0015 ( BRASIL, 2010d) proposto em face do acórdão proferido na Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face da empresa Souza Cruz S.A, cujo objeto, dentre outros, foi a imposição de condenação à obrigação de abster-se de manter empregados no exercício da atividade de “provador de cigarros”.
Ao julgar o recurso, o TST manteve a decisão do Tribunal Regional da 1ª Região no sentido de obstar a utilização de empregados para a medição da qualidade dos cigarros produzidos.
No que tange à proteção à saúde do trabalhador, o Ministro considerou que entre proteger o direto à saúde e proteger a liberdade econômica, prepondera-se o direito fundamental à saúde humana. Argumentou que, em vista de toda a documentação produzida pela Organização Mundial de Saúde e pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), a qual revela os riscos potenciais altíssimos do consumo de cigarros, o fato de haver uma potencialidade do dano não afasta, por si só, o nexo de causalidade entre qualquer doença encontrada no organismo dos empregados e a função de provadores. Em seguida, o Ministro declarou que os danos advindos do consumo de cigarro não afetam tão somente aos empregados, mas sim toda a coletividade que resta prejudicada pela produção e comercialização do cigarro. Ainda, asseverou que o fato de a produção de cigarro ser considerada uma atividade lícita, não influi no reconhecimento da afronta aos direitos à saúde e à vida.
Já em 2013, ao julgar o Recurso de Embargos nº 120300-89.2003.5.01.0015 ( BRASIL, 2013b), proposto em face da decisão acima relatada, o Tribunal Superior do Trabalho decidiu pela licitude da atividade laboral no denominado “Painel de Avaliação Sensorial” e reestabeleceu a condenação ao pagamento de indenização por danos morais difusos e coletivos, no importe de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), reversíveis ao FAT (Portal de Fundo de Amparo ao Trabalhador).
Na decisão, o Ministro reconheceu a notoriedade de que o consumo do cigarro acarreta prejuízos à saúde do usuário, entendendo ser desnecessária qualquer produção de provas para auferir se o consumo de cigarros causou ou não as doenças ao trabalhador, e também reconheceu que, “segundo inúmeras pesquisas científicas, não há níveis seguros de exposição às substâncias nocivas componentes do cigarro.” ( BRASIL, 2013b, online). Ocorre que o reconhecimento da licitude da profissão se deu sob o aspecto de que não cabe ao Poder Judiciário inviabilizar o exercício de uma atividade empresarial lícita, mas tão somente ao Poder Legislativo.
Ainda, na mesma decisão, o TST declarou que “na atividade econômica lícita e no desempenho de ofício lícito, como na espécie, pode sobrevir ato ilícito suscetível de gerar responsabilidade civil” ( BRASIL, 2013b, online), ao considerar que o desenvolvimento da profissão ao contato com agentes fumígenos acarreta lesão ao direito à saúde e à vida, o que caracteriza ato ilícito praticado pela indústria, e consequente obrigação de indenizar à coletividade indeterminada de empregados potencialmente sujeitos à atividade de experimentação de cigarros.
Em fase de cumprimento de sentença da Ação Civil Pública mencionada, o TRT da 1ª Região, julgou, em 16 de setembro de 2014, o Agravo de Petição ( BRASIL, 2014c, online), determinando o prosseguimento da execução parcial do acórdão das seguintes condenações impostas à indústria tabagista:
b) na obrigação de fazer consistente em manter e garantir, exclusivamente às suas expensas, a prestação de assistência, por 30 (trinta) anos, a cada um dos trabalhadores - empregados, próprios ou de terceiros, inclusive de cooperativas, que desempenham e/ou desempenharam os testes referidos na exordial, para a realização periódica de exames médicos minuciosos, com especialistas de confiança dos referidos trabalhadores, mediante fiscalização e supervisão do MPT, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00, por trabalhador não assistido, reversível ao FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador (grifo no original); c) na obrigação de fazer consistente em manter e assegurar, exclusivamente às suas expensas, tratamento médico e/ou hospitalar a cada um dos trabalhadores - empregados, próprios ou de terceiros, inclusive de cooperativas, que desempenham e/ou desempenharam os testes referidos na exordial, para a realização periódica de exames médicos minuciosos, com especialistas de confiança dos mesmos, mediante fiscalização e supervisão do MPT, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00, por trabalhador não assistido, reversível ao FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador (grifo no original); d) na obrigação de fazer consistente em manter e assegurar, também às suas expensas, tratamento antitabagista aos trabalhadores - empregados, próprios ou de terceiros, inclusive de cooperativas, que desempenham e/ou desempenharam os testes referidos na exordial, que assim o desejarem, com especialistas da confiança dos mesmos, mediante fiscalização e supervisão do MPT, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00, por trabalhador não assistido, reversível ao FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador.
O Relator considerou o trânsito em julgado das matérias não submetidas à análise do TST, visto que parte das condenações impostas à empresa Souza Cruz não foram objeto de impugnação específica no Recurso de Revista, e determinou o cumprimento das obrigações, decidindo desfavoravelmente à indústria.
Em 2013, no julgamento do Recurso de Revista nº 129100-11.2006.5.01.0045 ( BRASIL, 2013c), interposto em face do acórdão proferido pelo Tribunal Regional, o TST manteve a decisão no sentido de condenar a indústria a indenizar o trabalhador em virtude da doença desenvolvida no ambiente de trabalho.
A indústria do tabaco, no intuito de afastar a sua responsabilidade, alegou que a atividade desempenhada pelo empregado é voluntária e que não há nexo de causalidade entre a doença desenvolvida no organismo do trabalhador e o consumo de cigarros.
Na decisão, o Ministro afastou o Laudo Pericial que concluiu pela inexistência de nexo de causalidade entre o consumo de cigarros e a doença pneumotórax desenvolvida, considerando equivocado em tal conclusão. Nas palavras do Ministro:
[...] mesmo se tratando de doença ‘comum’, podendo ocorrer de forma espontânea, como sustentado no Laudo Pericial, em regra desvinculada da atividade laboral, quando o tipo de labor revelar-se sua concausa ou agravante, determinando a relação direta entre a doença e a atividade desempenhada, há efetiva configuração de doença ocupacional. Também não há que se falar, conforme afirma o Ministério Público, que o fato de a suposta vítima consentir na lesão a seu próprio direito excluiria a ilicitude da conduta do reclamado e, consequentemente, o direito à indenização resultante do dano experimentado. Os fabricantes de cigarro de todo o planeta sempre tiveram conhecimento de que o cigarro vicia e causa inúmeras doenças. Assim, diante do conhecimento e da consciência dos malefícios causados pelo cigarro à saúde, não há dúvida de que a reclamada criou conscientemente o risco do resultado, assumindo, portanto, a obrigação de ressarcir ( BRASIL, 2013c, online, grifo nosso).
Desse modo, o TST é claro ao dispor que os fabricantes de cigarros sempre tiveram conhecimento de que o consumo de cigarro vicia e causa inúmeras doenças, e é, em razão de tal conhecimento, que o TST reconheceu a culpa da empresa, que criou o risco do resultado, na medida em que tinha consciência do mal à saúde do empregado que estava ocasionando.
Ainda, para o TST, a mera circunstância de que a pessoa não é obrigada a exercer a função de provador de cigarros, eis que possui o livre arbítrio, não afasta a responsabilidade do empregador de reduzir os riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Por fim, o TST considerou que, em razão da função de provador de cigarros ser exercida em benefício da empresa, mediante incentivo financeiro, cuja nocividade é conhecida e traz inegável prejuízo à saúde, é o suficiente para caracterizar a culpa e o ato ilícito, sendo irrelevante o fato de o empregador ter ou não começado a fumar antes de exercer a atividade.
Após a análise dos julgados proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho, constata-se que a relação entre os produtores de tabaco e os agricultores da folha do tabaco, é vista como uma relação jurídica de contrato civil, devendo ser julgada a partir do Código Civil e não a partir das normas que regem a relação de trabalho.
Os julgados declaram tratar-se de uma efetiva relação comercial de compra e venda, sustentam que o fato de os agricultores serem detentores dos meios de produção e assumirem os riscos de seu empreendimento econômico, não caracteriza o vínculo trabalhista na relação, visto que, para a caracterização da relação de emprego, requer-se a configuração dos 04 elementos constantes dos artigos 2º e 3º da CLT, quais sejam: a pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. Por consequência, conclui-se que a justiça do trabalho é incompetente para julgar e processar as demandas envolvendo o agricultor da folha de fumo e a empresa do tabaco ( BRASIL, 2012a).
Nesse sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, que compreende o Estado da Paraíba, não vislumbrou a caracterização do vínculo trabalhista, ao afirmar que o agricultor da folha de tabaco assume o risco do próprio negócio, controla o seu próprio horário e a atividade do cultivo e de colheita da planta pode ser exercido por qualquer membro da família do agricultor, o que afasta os requisitos da pessoalidade e da subordinação ( BRASIL, 2013d). Além disso, o TRT da 9ª Região considera que o fato de os pagamentos serem efetuados pela venda do fumo, no final de cada safra, e não pela prestação de serviço, não se caracteriza a onerosidade, característica essencial dos contratos de trabalho.
Diante da atual jurisprudência no sentido de desconsiderar a relação trabalhista existente entre o agricultor da planta do fumo e a indústria do tabaco, o Ministério Público do Trabalho do Estado do Paraná e o Ministério Público do Trabalho do Estado de Santa Catarina ajuizaram Ação Civil Pública, com o principal intuito de impedir a indústria de pactuar novos contratos de compra e venda de fumo em folha que contenham cláusulas abusivas firmadas com os pequenos agricultores e também com o intuito de que fosse reconhecida a relação empregatícia entre a empresa e os produtores rurais por ela contratados.
Ocorre que, considerando que a produção do fumo no Brasil não se restringe apenas ao estado de Santa Catarina e ao estado do Paraná, mas se faz presente em outras unidades da Federação, como no Rio Grande do Sul, na ocasião do julgamento do Recurso de Revista nº 1954566-51.2008.5.00.0000 ( BRASIL, 2010e), o TST reconheceu que, de fato, o contrato de compra e venda de fumo em folha envolve danos suprarregionais ou nacionais, o que, por consequência, a região competente para julgar o feito é o Distrito Federal, e não no local do dano, razão pela qual se determinou a remessa dos autos para a 6º Vara do Trabalho de Brasília ( BRASIL, 2010e).
Em consulta perante o sítio do TRT do Distrito Federal, conforme informações contidas no item de andamentos, na data de 1º de março de 2011 foi homologado acordo firmado entre as partes, que se encontra arquivado desde 14/03/2011 ( BRASIL, 2018a).
Por sua vez, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, que compreende o estado de Santa Catarina, ao julgar o Recurso Ordinário, oriundo da reclamação trabalhista ajuizada em face da empresa Souza Cruz S.A, que envolvia a relação de trabalho, reconheceu o nexo de causalidade entre as atividades desempenhadas pelo empregado e os seus problemas pulmonares.
No caso analisado, as atividades desempenhadas consistiam na manipulação direta das folhas de fumo entregues pelos fumicultores para o seu processamento e, nesse processo, o empregado tinha contato direto com todos os elementos naturais e químicos da folha do fumo. No julgado, o Relator sustentou a responsabilidade civil da empresa do tabaco pelos problemas de saúde da autora, citando inúmeras pesquisas científicas acerca da relação entre as doenças respiratórias e os trabalhadores expostos ao pó do tabaco, reconheceu que, de fato, o simples contato com a nicotina é capaz de originar inúmeras doenças, razão pela qual manteve a condenação consistente na obrigação de indenizar o trabalhador ( BRASIL, 2010f).
No âmbito das decisões judiciais proferidas pelos Tribunais de Justiça Estaduais, foram identificados 162 acórdãos proferidos no período analisado, sendo que, dentre os critérios selecionados para a busca de julgados (tabagismo e indenização; indenização e cigarro; cigarro; tabagismo; Souza Cruz e Philip Morris), não se localizou nenhum acórdão em 12 estados, quais sejam, Tocantins, Sergipe, Rondônia, Maranhão, Alagoas, Amapá, Amazonas, Pará, Pernambuco, Mato Grosso, Espírito Santo e Acre. A distribuição das ações proferidas está representada pelo gráfico abaixo:
Pode-se observar que o maior número de decisões está concentrado no estado do Rio Grande do Sul e no estado de São Paulo, sendo que os argumentos jurídicos que retratam o posicionamento dos Tribunais Estaduais são as teses defendidas pelas indústrias tabagistas: prescrição, ausência de nexo causal em razão da culpa exclusiva da vítima e em razão da insuficiência de elementos probatórios que a doença acometida pelo fumante originou-se do ato de fumar, a licitude da atividade de comercializar e vender o produto derivado do tabaco, a ausência de publicidade enganosa ou abusiva, a inexistência de defeito jurídico no produto, e, por fim, a ausência de nexo de causalidade direto e imediato entre a propaganda massiva de cigarros realizada pela empresa e a doença acometida. O índice de tais fundamentos empregados nos acórdãos está demonstrado pelo gráfico abaixo:
Em 17 julgados, reconheceu-se a prescrição do direito do consumidor com fulcro no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.” ( BRASIL, 1990, online).
No voto proferido perante o TJPA, o Relator Des. Frederico Martinho da Nóbrega Coutinho, na Apelação nº 2200.2009.027892-61001, julgada em 09/08/2011 ( BRASIL, 2011c, online), reconheceu a prescrição da seguinte maneira:
In casu, o promovente tomou conhecimento da doença (câncer de laringe), através da biópsia realizada em 02 de abril de 1996, ajuizando a presente ação, apenas, em 23 de julho de 2009, prazo, portanto, superior ao previsto em lei, operando-se a prescrição da pretensão autoral, como bem decidido às fls. 955/960.
Logo, os acórdãos asseveram que a contagem do prazo prescricional inicia-se quando o consumidor do tabaco realizou os exames e iniciou os tratamentos, assim as demandas propostas após o período de 05 anos à ciência do prejuízo, foram extintas em razão da prescrição do direito do autor.
Este foi o principal argumento sustentado nas decisões judiciais analisadas, segundo o qual o rompimento do nexo causal entre a conduta das empresas e o dano à saúde do consumidor ocorre diante do reconhecimento da culpa exclusiva da vítima pautada no seu livre-arbítrio, o que exclui a responsabilidade da indústria e consequentemente o seu dever de indenizar.
Segundo os Tribunais, a razão pela qual se reconhece a culpa exclusiva da vítima se dá devido ao fato de que o consumidor possui livre-arbítrio, eis que qualquer pessoa possui certeza dos malefícios gerados pelo cigarro e se o consumidor decide iniciar o hábito de fumar e mantê-lo faz por ato livre seu.
No TJPR, o Relator Des. José Augusto Gomes Aniceto, no acordão nº 882083-7 ( BRASIL, 2012b, online, grifo nosso), sustentou o livre-arbítrio do fumante nas seguintes palavras:
O consumidor, ao ser fumante, exerce o seu livre-arbítrio. Ele faz a escolha de consumir o produto, mesmo sabendo que poderia ser prejudicial à sua saúde.
Os males do consumo do cigarro são sabidos por qualquer homem médio. Se, mesmo sabendo destes males, o consumidor opta por consumi-lo, assume os riscos inerentes a tal ação.
[...]
Ainda, não serve como argumento o fato de que a nicotina, com o seu uso constante, causa dependência e, assim, retira o livre arbítrio do consumidor. Em que pese ser viciante, a nicotina não é capaz de retirar a autodeterminação das pessoas.
[...]
Ainda, incabível a arguição de que a vítima começou a fumar numa época que não se sabia dos males causados pelo cigarro. Em que pese nas décadas anteriores não haver uma conscientização acerca dos malefícios do consumo do produto, os prejuízos advindos dele eram sabidos, ainda que não demonstrados com tanto vigor, como hoje em dia.
Assim, o TJPR manifestou-se no sentido de que o vício da nicotina não reduz o discernimento do usuário em optar por manter o hábito de fumar, sendo que a dificuldade em deixar o hábito está ligada à falta de motivação e não efetivamente à dependência provocada pela nicotina, não havendo óbice, portanto, para o reconhecimento da culpa exclusiva do consumidor do cigarro pelas doenças surgidas em seu organismo.
As palavras do Relator Desembargador Mário Dos Santos Paulo, no acórdão 0007423-12.2002.8.19.0042 ( BRASIL, 2010g, online), ilustram bem esta concepção: “seja como for – e não descarto a participação do fumo – uma certeza posso realçar: o vício do tabagismo pode ser vencido com força de vontade, e mesmo sem medicação, o que já foi constatado também por muitas outras pessoas.”
É nessa linha que o TJRS, na apelação nº 70039884853 ( BRASIL, 2011d, online), proferida pelo Relator Túlio De Oliveira Martins, sustentou: “mais ainda, o tabagismo não afeta a capacidade de julgamento e não induz comportamentos autodestrutivos, ou seja, não é uma droga psicoativa.”
Logo, entende-se que o ato de fumar decorre exclusivamente de uma decisão livre do indivíduo, não havendo qualquer influência da indústria ou das substâncias contidas no produto capaz de determinar a escolha do fumante, razão pela qual se afasta a culpa da empresa pelas patologias oriundas do uso do cigarro.
Também se desconsidera o argumento de que a publicidade enganosa do cigarro afetaria o livre-arbítrio do consumidor, eis que a informação de que o cigarro potencialmente poderia causar males à saúde já era difundida desde 1940, razão pela qual se entende que o fato de as propagandas de cigarro da época fazerem alusão a situações de status e glamour, além de vincular-se a circunstâncias relacionadas à saúde e ao sucesso, não subtrai o livre-arbítrio de escolha entre fumar ou não. É nesse sentido que o TJCE sustentou o julgamento da apelação nº 0428563-94.2000.8.06.000 ( BRASIL, 2010h).
Assim, a tese que prevalece é no sentido de que os danos oriundos do consumo do cigarro decorrem do livre-arbítrio do fumante em aderir ao uso do produto, e não da publicidade, porque ela já vem inserida das advertências impostas pelas autoridades sanitárias.
O entendimento foi reiterado em todos os Tribunais Estaduais, com exceção do estado de Goiás, que justificou o seu entendimento pautado em outros argumentos.
Outro argumento repetidamente sustentado nos julgados foi o fato de que a produção e a comercialização de cigarros possuem regulamentação legal, não havendo qualquer ato ilícito praticado pela indústria do tabaco, sendo inclusive a atividade autorizada pela Constituição Federal no § 4º do artigo 220:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...]
§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso ( BRASIL, 1988, online).
Os julgados consideram que a produção e comercialização de cigarros não violam nenhuma norma constitucional ou infraconstitucional, sendo inclusive regulamentada pelo Poder Público, razão pela qual não se preenche um dos pressupostos para que haja o dever de indenizar, qual seja, a ocorrência de um ato ilícito.
Nesse ponto, sustenta-se também que a fabricação e a comercialização de cigarros não violam o artigo 6º, inciso I, do CDC, o qual determina que “são direitos básicos do consumidor a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.” ( BRASIL, 1990, online). O Relator Des. José Augusto Gomes Aniceto, em decisão proferida no acórdão nº 727416-6 ( BRASIL, 2011e, online), perante o TJPR, considerou que:
Primeiramente, cumpre ressaltar que a fabricação do cigarro é atividade lícita e regulamentada pelo poder público, inexistindo qualquer violação ao art. 6º, inciso I, do CDC. Isto porque o cigarro não se encontra na categoria dos produtos nocivos, mas sim dos potencialmente nocivos, cujos efeitos não são determinantes para toda e qualquer pessoa. Ou seja, ao fumar, pode-se ou não desenvolver doenças em decorrência da utilização do produto. Além disso, o simples fato do cigarro poder vir a ser nocivo não caracteriza defeito ou vício, não podendo a empresa ser responsabilizada pela simples comercialização do seu produto, principalmente porque sua atividade atende às normas do Poder Público.
Logo, o cigarro não é visto pelos Tribunais Estaduais como um produto perigoso ou nocivo, mas sim como um produto potencialmente nocivo, não violando as normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor.
Os Tribunais Estaduais não consideram a oferta de tabaco como uma publicidade enganosa e/ou abusiva, eis que, segundo o entendimento prevalecente, nunca houve qualquer violação do “dever de informar” sobre os malefícios do consumo de cigarro por parte do fabricante, já que, para os Tribunais, a norma reguladora da publicidade é amplamente observada pela indústria.
Sustenta-se que as indústrias de cigarros sempre atenderam aos limites legais impostos pelo Código de Defesa do Consumidor e pelas regras contidas na Lei nº 9.294/96 ( BRASIL, 1996) 6, razão pela qual não há o que se falar em responsabilidade civil relativa aos danos suportados pelo usuário do tabaco.
Sobre o tema, o Relator Des. José Augusto Gomes Aniceto, no acórdão nº: 727416-6 ( BRASIL, 2011e, online) esclareceu que:
[...] não se pode sustentar que as empresas se valiam de propaganda enganosa naquela época, pois estamos falando de meados dos anos sessenta, onde ainda não vigia o Código do Consumidor. Portanto, a empresa de cigarros agia de acordo com as normas vigentes naquele tempo, como costuma fazer hoje em dia.
Portanto, para os Tribunais Estaduais, a divulgação do cigarro sempre respeitou todas as normas impostas pelo Poder Público, sendo que, nas décadas passadas, nas quais havia uma ampla manipulação do consumo do cigarro, não havia qualquer norma impondo encargos às empresas ou norteando a sua conduta, razão pela qual se afirma que não há base jurídica para que a indústria seja responsabilizada por omissão em informar ou advertir o consumidor ou, até mesmo, por manipular a compreensão dos malefícios do cigarro pela população em geral.
Além da ausência de norma legal vigente à época, sustenta-se que as propagandas do cigarro veiculadas devem ser analisadas sob as regras vigentes no tempo em que o consumidor iniciou o hábito de fumar, qual seja, o Código Civil de 1916. Assim, o TJ do Ceará sustentou que não houve qualquer violação ao princípio da boa fé, visto que a única função atribuída à boa fé, na época, era a função interpretativa ( BRASIL, 2010h).
Quanto ao período de vigência do Código de Defesa do Consumidor, o qual expressamente veda a oferta e publicidade abusiva e enganosa, o TJ PR afirmou que ( BRASIL, 2012d, online):
[...] não se vislumbra a existência de propaganda abusiva ou violação ao dever de informar, até porque ausente os requisitos necessários à sua caracterização - falsidade do conteúdo da mensagem e potencialidade para induzir o consumidor em erro – pois, difícil acreditar que alguém, mesmo em épocas mais remotas, desconhecesse os malefícios do consumo do cigarro.
Nessa seara, o TJRS, na apelação nº: 70063792303, declarou que ( BRASIL, 2015c, online):
Também não é caso de propaganda enganosa por omissão, pois o artigo 37, §3º, do Código de Defesa do Consumidor a conceitua como aquela que não refere dado essencial do produto, hipótese que a informação é capaz de alterar a intenção de compra, no entanto, as rés veiculam contundentes anúncios quanto aos riscos do consumo do cigarro.
Assim sendo, atualmente, a oferta de cigarros apresenta todos os dados essenciais do produto e não contém qualquer mensagem falsa ou capaz de induzir qualquer consumidor a erro, não havendo o que se falar em publicidade abusiva ou enganosa à luz do Código de Defesa do Consumidor.
Nessa questão, os consumidores defendem que o defeito do cigarro se revela diante das inúmeras substâncias nocivas à saúde contidas no produto. Entretanto, o entendimento que prevalece em todos os julgados é que tais substâncias não consistem juridicamente em defeito.
Cogita-se que, em consonância com o art. 9º do CDC ( BRASIL, 1990) 7, o cigarro é tido como produto “potencialmente nocivo” ou perigoso à saúde dos seus consumidores, e não como um produto defeituoso, visto que o defeito jurídico é aquele capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que dele ordinariamente se espera, não sendo o caso do cigarro.
Na Apelação nº 9247635-59.2008.8.26.0000 ( BRASIL, 2012c, online, grifo nosso), julgada pelo estado de São Paulo, afirmou-se que o cigarro:
Trata-se de produto que intrinsecamente implica perigo à saúde, na medida em que é de conhecimento público há décadas e vem sendo advertido aos consumidores dos últimos anos, de modo que os riscos à saúde são razoavelmente esperados pelo consumidor, que somente poderia considerar defeituoso o produto se o cigarro viesse sem nicotina, ou se a bebida alcoólica fosse vendida sem álcool.
Nessa linha, o Relator Miguel Ângelo Da Silva, em seu voto proferido na Apelação nº 70057340960 ( BRASIL, 2015d, online), defende que inexiste defeito quanto ao dever jurídico de informação:
Descabe cogitar, na espécie, de inobservância de um dever específico de informação do fabricante quanto aos malefícios do cigarro e sua correlação com inúmeras doenças advindas do seu consumo por tempo prolongado, daí não se inferindo o defeito do produto.
Nesse aspecto, o fato de o consumidor conhecer e ser advertido dos males do tabaco, e, mesmo assim, ao seu livre arbítrio, optar por consumi-lo, não há defeito do produto, visto que os riscos à saúde são razoavelmente esperados pelo fumante, e não há defeito de informação sobre os riscos à saúde.
Há de se ressaltar que o defeito jurídico no produto do cigarro não é reconhecido, inclusive, em algumas demandas julgadas favoráveis aos consumidores ( BRASIL, 2011f).
No entanto, pode haver uma contradição entre a alegação da ausência de defeito do produto e a redação da Constituição Federal, que visa à concretização do direito à saúde:
Ao Estado é imposta uma dupla obrigação, pois deve abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros, bem como deve adotar políticas que visem à concretização do direito à saúde. ‘Logo, o direito à saúde está vinculado ao desenvolvimento de políticas públicas que objetivem a existência digna das pessoas, que é efetivada por meio de prestações positivas. O direito à saúde também pode ser classificado como direito de defesa, já que o Estado não pode causar danos à saúde dos indivíduos’ (ALMEIDA; ACIOLI, 2012). ( POTTUMATI; MEIRELLES, 2014,p. 132).
O TJSP e o TJRS afirmam que a publicidade veiculada pela indústria do fumo não induz necessariamente ao hábito de fumar, eis que nem todas as pessoas expostas à publicidade do tabagismo se tornam viciadas. Assim, entende-se que não há nexo causal necessário entre a conduta de fumar e a publicidade veiculada, visto que esta não é capaz de criar o hábito ao consumidor. Sobre esse aspecto o TJRS ( BRASIL, 2013e, online) esclarece que:
A demandada age regularmente e em observância à lei ao alertar, nos maços de cigarros, acerca dos danos provocados pelo seu consumo. Além disso, sabe-se que a nicotina causa dependência. Ora, ninguém adquire o vício em decorrência das “sedutoras” propagandas de cigarro, mas, sim, por ato volitivo. Incorreto, assim, afirmar que a propaganda, inexoravelmente, leva alguém ao tabagismo.
Logo, os Tribunais acreditam que a simples publicidade do tabaco não é capaz de influir na decisão entre consumir ou não consumir o produto.
Ante a ausência de elementos probatórios de que o uso contínuo do cigarro ocasionou a doença ao consumidor, os Tribunais manifestam-se no sentido de que a enfermidade suscitada pelos autores da demanda não encontra nexo de causalidade necessária com o uso do cigarro. Argumenta-se que há não fumantes que também são acometidos de câncer de pulmão e fumadores que não contraem essa doença.
Sobre a questão, consta de forma expressa no voto do Relator Miguel Ângelo da Silva, na Apelação nº 70057340960 ( BRASIL, 2015d, online):
De sublinhar, também, que a constatação genérica de que o cigarro contém substâncias capazes de produzir dependência química e males à saúde não é bastante, por si só, para estabelecer o indispensável nexo causal entre a conduta de fumante inveterado do autor e a eclosão do enfisema pulmonar.
Nesse mesmo viés de entendimento, o TJGO destacou ( BRASIL, 2013f, online): “In casu, seguramente não se pode afastar a incidência de outras possíveis causas de origem patológica (alcoolismo, carga genética e modus vivendi do consumidor), sobretudo face à inexistência de laudo pericial conclusivo a respeito da etiologia da causa mortis da fenecida.”
Assim, pelo simples fato de o usuário ter feito uso contínuo de cigarro ao longo de vários anos não se conclui que a doença se originou das substâncias maléficas contidas no cigarro, podendo, inclusive, ter origem de outros fatores, como o modo de viver do consumidor, o alcoolismo ou o fator genético.
Dentre 162 julgados, foram localizadas 5 decisões favoráveis ao consumidor do tabaco, sendo 2 proferidas pelo TJRS ( BRASIL, 2011h, 2012e), a seguir distribuídas:
No TJDF, a Relatora Vera Andrighi ( BRASIL, 2016) vislumbrou o ato ilícito praticado pela empresa em razão de diversas condutas. No período anterior às normas regulamentadoras do cigarro, reconheceu o ato ilícito da campanha publicitária que associava o tabaco a uma vida saudável e prazerosa, por serem propagandas enganosas e omissas quanto aos danos advindos do produto e de seus componentes.
Posteriormente, na vigência das normas regulamentares do Ministério da Saúde, quando os fabricantes passaram a divulgar a informação de que o fumo faz mal à saúde, o ato ilícito é caracterizado pela presença das mensagens subliminares nas carteiras de cigarros, bem como devido ao fato de que a publicidade continuou a fazer a associação do uso do cigarro com um estilo de vida saudável, tais afirmações foram comprovadas pela perícia técnica.
Desse modo, a relatora reconheceu que tais práticas comerciais ensejaram a dependência física à fumante. Nesse aspecto, afirmou que “colocar no mercado produto com substâncias que causam vício e reconhecidos riscos à saúde é também fonte de responsabilização do fabricante.” ( BRASIL, 2016, online). A suposta alegação do livre-arbítrio do consumidor na escolha entre manter o vício ou não é afastada da seguinte maneira:
Essa alegação de defesa da ré já foi por diversas vezes, analisada em outros julgamentos restando clara a influência sofrida pelo consumidor para iniciar o uso do produto oferecido no mercado. Quanto ao livre arbítrio de interromper o uso, é de conhecimento notório que a presença de nicotina impede ou pelo menos dificulta muito ao consumidor fazer opção totalmente livre e consciente de sua vontade e deixar de consumir o cigarro ( BRASIL, 2016, online).
Logo, a tese da culpa exclusiva do consumidor, que sustenta que o abandono ao vício se trata de uma simples escolha do usuário, não é aceita, visto que a doença crônica adquirida ocorreu em razão das substâncias tóxicas contidas no cigarro, e não em razão do ato voluntário e consciente do consumidor.
No TJRJ, a relatora Mônica Maria Costa, ao reconhecer a responsabilidade da indústria do tabaco, consignou que, de fato, no período vigente do Código Civil de 1916, não existia norma ao fornecedor de produtos e serviços impondo o dever de informar sobre os riscos e malefícios daquilo que inseria no mercado de consumo, porém não ignorou a existência de outros vetores axiológicos, como os princípios da boa-fé e da lealdade contratual, os quais certamente foram violados, quando as informações sobre os males causados pelo uso contínuo do tabaco não foram passadas ao consumidor, sendo certo que, mesmo que não o soubessem, tinham o dever legal, ao introduzirem o produto no mercado, de conhecer tal circunstância, devendo ser responsabilizados por sua omissão. Por fim, concluiu que a simples licitude da atividade da indústria não pode afastar a sua responsabilidade, devendo a empresa reparar o dano ao consumidor ( BRASIL, 2011f).
O Relator Stanley da Silva Braga do TJSC consignou que, em consonância com o parágrafo único do artigo 927 do CC ( BRASIL, 2002) 8, o dano advindo do consumo do cigarro é um risco inerente da atividade desenvolvida pela indústria fumageira, por isso, a responsabilização transborda a análise da licitude ou não da conduta do agente. Sobre a oferta do produto, o relator reconheceu a conduta comissiva de propagandear enganosamente e a conduta omissiva da empresa, ante o dever de informar, sob o manto da boa-fé objetiva e da eticidade, princípios que sempre estiveram presentes nas relações contratuais. Por fim, o relator considerou que, em razão da informação tardia acerca de seus malefícios, ocultada propositadamente do público por tantos anos, o cigarro deve ser considerado como defeituoso pela ausência de informação clara e precisa ( BRASIL, 2013g).
A partir da coleta da jurisprudência brasileira, revelou-se a contrariedade dos fundamentos expostos nas decisões entre as esferas, em diversos fatores a seguir evidenciados.
O ponto que merece destaque é o tratamento dado ao nexo de causalidade entre a doença desenvolvida e o contato com a nicotina, ou seja, se é possível reconhecer que o uso contínuo do cigarro é capaz de ocasionar, ou então agravar ou contribuir, para o surgimento das mais diversas patologias, para fins de responsabilização da indústria do tabaco.
Nessa questão, o entendimento conferido pelo Tribunal Superior do Trabalho é no sentido de que o simples contato do indivíduo com a nicotina é capaz, por si só, de originar inúmeras doenças. Nesse viés, a produção de provas se revela desnecessária para se auferir se o consumo de cigarro foi determinante ou não para ocasionar os danos à saúde. Tal posição se fundamenta, perante as inúmeras pesquisas científicas, que revelam os riscos potenciais altíssimo do consumo de cigarro. Ainda, para o TST, mesmo que o laudo pericial revele a ausência de nexo de causalidade, a responsabilidade da indústria é caracterizada sob o aspecto de que o consumo de cigarro é visto como uma concausa ou agravante para o acometimento da patologia.
Inverso é o tratamento dado pelos Tribunais Estaduais e pelo Superior Tribunal de Justiça, ao acreditarem que o fato de haver fumantes que desenvolvem a patologia e fumantes que não desenvolvem a mesma patologia, não é possível reconhecer que o uso contínuo do cigarro ocasionou ou concorreu para o surgimento da patologia no organismo do fumante. Ainda, reconhecem que a simples incidência de outros fatores para o surgimento da patologia, como a carga genética, o alcoolismo e o modo de viver do consumidor, é motivo capaz de afastar a existência do nexo de causalidade e, consequentemente, a responsabilidade civil da indústria.
Ainda, sobre o nexo de causalidade, os Tribunais Regionais Federais, ao concederem os benefícios previdenciários aos enfermos, curvam-se no raciocínio de que a doença acometida é oriunda do tabagismo, ou então confessam que o tabagismo contribuiu para o surgimento da patologia, e em alguns casos, reconhecem que a atenuação dos sintomas da patologia é possível desde que o assegurado suspenda o tabagismo. Dessa forma, aceitam o nexo de causalidade entre a doença e o contato com o tabaco.
Também, sob o aspecto do nexo de causalidade, a esfera trabalhista afirma que o fato de o cigarro ser considerado um produto potencialmente nocivo não afasta, por si só, o nexo de causalidade. Já para os Tribunais Estaduais, a potencialidade nociva do produto não pode dar ensejo à responsabilidade pela produção e pela comercialização do produto.
A tese da licitude da atividade de fabricar e de comercializar os produtos derivados do tabaco também é tratada de forma bem dessemelhante entre as esferas.
Para o Tribunal Superior do Trabalho, a circunstância de a atividade ser permitida pelo Poder Público em nada influi no reconhecimento da afronta aos direitos à saúde e à vida, ou seja, o TST não ignora o fato de que, no desempenho de uma atividade lícita, pode sobrevir à ocorrência de um ato ilícito praticado pela indústria, suscetível de gerar o dever de indenizar o dano.
Contrariamente, os Tribunais Estaduais se posicionam no sentido de que se a fabricação e a comercialização dos produtos derivados do cigarro são regulamentadas pelo Poder Público, ou seja, consideradas atividades lícitas, não é possível que, no desempenho de tais atividades, a indústria seja responsabilizada pelo ato de fabricar e comercializar, ignorando os atos ilícitos praticados no desempenho de tal atividade.
A questão do livre-arbítrio entre a opção de consumir ou não os produtos derivados do tabaco e entre a opção de exercer ou não a função de provador de cigarros também é tratada de forma distinta entre as esferas.
Para o TST, o fato de a pessoa possuir liberdade de escolha entre exercer ou não a atividade de provador de cigarros em nada influi na responsabilidade da indústria em reduzir os riscos inerentes da atividade de usar o cigarro. Já os Tribunais Estaduais e o STJ acreditam que o ato de fumar decorre exclusivamente de uma decisão livre do indivíduo, o que importa no reconhecimento da culpa exclusiva do consumidor e no afastamento da responsabilidade civil da indústria pelas patologias oriundas do uso do cigarro.
Também outro contrassenso se refere à valoração da conduta da empresa tabagista ao omitir os dados sobre os malefícios oriundos do consumo do cigarro.
O Tribunal Superior do Trabalho não ignora a notória realidade de que as indústrias sempre tiveram conhecimento de que o consumo de cigarro vicia e causa inúmeras doenças, porém maliciosamente omitiram tal informação. Assim, as decisões consideram que, em razão dessa consciência, é possível afirmar que a indústria criou o risco de produzir o resultado, qual seja, o surgimento de inúmeras doenças, e assumiu o ônus de ressarcir os danos ocasionados à pessoa.
Já os Tribunais Estaduais consideram que, na época em que a indústria omitiu as informações sobre os males do tabaco, não havia lei que obrigasse a divulgação das características do produto. Por efeito, a indústria não praticou qualquer conduta contrária à lei, capaz de gerar a responsabilidade civil. Nesse viés, para os Tribunais Estaduais, é compreensível a conduta de manipular a compreensão dos malefícios do cigarro pela população em geral, desde que anteriormente às normas reguladoras do tabaco.
Por fim, destaca-se que o Tribunal Superior do Trabalho é expresso no sentido de que entre proteger o direito à saúde ou proteger a liberdade econômica, deve prevalecer o direito à saúde. Já os Tribunais Estaduais e o Superior Tribunal de Justiça, muito embora não declarem expressamente a opção em proteger a iniciativa econômica, os parâmetros de suas decisões revelam a proteção da liberdade econômica em detrimento da proteção da saúde. Já os Tribunais Regionais, ensinam que a atividade de produção de fumígenos é uma atividade apenas tolerada pela Constituição, não havendo que se falar em livre iniciativa nessa seara.
Diante de tais premissas, observa-se que o tratamento jurídico dado aos consumidores do cigarro e o tratamento jurídico dado aos provadores de cigarro se contrariam em inúmeros aspectos, o que, por consequência, os danos advindos do contato com os produtos derivados do tabaco apenas são ressarcidos aos trabalhadores, ficando, assim, inviabilizado o ressarcimento aos consumidores, muito embora sejam decorrentes do mesmo fator determinante da doença.
A partir da coleta dos julgados que envolvem os danos ocasionados pelo contato com os produtos derivados da nicotina, em âmbito nacional, tornou-se claramente perceptível que, com exceção aos julgados da Justiça do Trabalho, a responsabilidade pelos danos é transferida para a sociedade civil, estando, assim, a indústria do tabaco livre de qualquer ônus que sua atividade econômica é capaz de gerar.
Nesse aspecto, não há dúvidas de que a premissa jurídica dos Tribunais de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça não está em consonância com o desenvolvimento da ciência e do direito privado contemporâneo, sendo motivada pelos argumentos apresentados pelas empresas fabricantes de cigarro.
Ocorre que a inobservância do ordenamento jurídico, como das disposições do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e da Convenção-Quadro para controle do tabaco, bem como a dissonância com a realidade fática apresentada pela comunidade científica e a desconsideração, ou até mesmo a ignorância das estratégias adotadas pela indústria tabagista, afeta intensamente toda a população brasileira e contribui negativamente para o controle do tabagismo.
Em primeiro lugar, os custos com o tratamento de saúde e os custos com o setor previdenciário são unicamente suportados pela população, sendo que, até o momento, não se constata qualquer debate no âmbito do Poder Judiciário sobre a patente obrigação da indústria em arcar com os prejuízos gerados pelo seu ato.
Ainda, os danos materiais e morais atribuídos pelo consumo do cigarro são ignorados pelos tribunais. Constantemente, afirma-se que a nicotina não é capaz de retirar a autodeterminação da pessoa; que a simples possibilidade de concorrer outros fatores para o acometimento da patologia, além do uso contínuo do cigarro, é capaz de isentar a responsabilidade civil da indústria; também, o simples fato de que, nas décadas passadas, não havia regulamentação jurídica da oferta dos produtos derivados do tabaco, justifica-se a conduta maliciosa de manipular a compreensão dos malefícios do cigarro pela população em geral e desconsidera-se o poder persuasivo da publicidade, afirmando que ninguém adquire o vício em decorrência das ofertas de cigarro, mas, sim, por ato volitivo. Certamente tais crenças lesam os direitos fundamentais do consumidor, em ser ressarcido pelos danos que o consumo do produto ocasionou à saúde e, inegavelmente, contribuíram para o retrocesso ao combate ao tabagismo no Brasil. Em contrapartida, a premissa jurídica dos Tribunais Regionais Federais e da Justiça do Trabalho é oposta ao acolherem as pesquisas científicas, os valores éticos e a boa-fé objetiva. De forma majoritária, os Tribunais Regionais Federais, em consonância com a realidade fática e científica, reconhecem o poder persuasivo da publicidade, afirmando que a introdução das imagens capazes de provocar repulsa não é uma atitude anti-informativa nem contrária às condições para que o indivíduo possa deliberar de forma livre e autônoma, nas quais, segundo os estudos científicos, constata-se o aumento da precisão e da eficiência decisórias pelo influxo destes. Dessa forma, é certo que a oferta do cigarro é capaz de contribuir para adquirir o vício oriundo do consumo da nicotina; e, ainda, ao concederem os benefícios previdenciários ao enfermo, os Tribunais afirmam que, de fato, o tabagismo contribuiu para o surgimento da doença, reconhecendo o nexo causal entre a patologia e o tabagismo.
Nessa linha, em consonância com o ordenamento jurídico, o Tribunal Superior do Trabalho e os Tribunais Regionais do Trabalho consideram que a concorrência de outros fatores para o acometimento da doença não afasta, por si só, o nexo de causalidade entre a doença e o contato com a nicotina. Também, em consonância com o Código Civil, reconhecem a responsabilidade da indústria pela omissão da divulgação das características essenciais dos produtos derivados do tabaco, afirmando que, mesmo se a indústria não tivesse consciência, ela tinha o dever jurídico de saber, razão pela qual ela criou o risco de produzir as lesões e assumiu o ônus de indenizar os danos. O que, em razão de inúmeros outros fundamentos jurídicos e científicos, inconcebível é a isenção da responsabilidade da indústria.
Assim sendo, considerando que o maior índice de danos é decorrente do consumo dos produtos derivados do tabaco, visto que, somente entre o ano de 2010 e 2016, encontraram-se 162 julgados, apreende-se que a atuação do Poder Judiciário em pouco contribui para o combate ao tabagismo no Brasil, muito embora possua todos os suportes fáticos e jurídicos para atuar de uma maneira oposta e alterar o cenário que se vivencia atualmente.
Por fim, reitera-se que a atuação do Poder Judiciário em muito poderia contribuir para a redução dos danos ocasionados pelo tabagismo, isso se superasse a ideia de que a atividade de fabricar e comercializar tabaco contribui para gerar maior arrecadamento de impostos e riquezas, e não dissociasse a realidade fática da norma jurídica.
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