Recepção: 14 Julho 2017
Aprovação: 08 Maio 2018
DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v16i23.p290-309.2018
Resumo: O objetivo do presente estudo é debater a importância da dimensão institucional dos entes públicos municipais no federalismo brasileiro. A promoção do município a ente federativo pelo Constituinte originário não foi acompanhada de um compromisso institucional consistente. Para minimizar essa questão, sustenta-se que a advocacia pública local pode assumir uma função central para os gestores públicos, contribuindo para um melhor incremento das políticas públicas municipais. A relevância do debate municipalista pode ser identificada no pensamento dos autores federalistas, para quem um bom governo se efetivaria não pelo plexo de competências que enfeixa, mas pela capacidade de distribuição de competências entre organizações políticas inferiores. Como unidades federativas, os Municípios demandam intensa reflexão. Isso porque não basta só entregar competências a eles, como fez o Constituinte brasileiro, é preciso também desenvolver mecanismos institucionais capazes de bem promover essas obrigações, com planejamento e alcance de resultados.
Palavras-chave: Municípios, Advocacia Pública, Instituições.
Abstract: The goal of this study is to discuss the importance of the institutional dimension of the local public entities in the Brazilian federalism. The promotion of the municipality to a federative entity by the original Constituent Assembly was not followed by a consistent institutional commitment. To minimize this issue, it is claimed that the Local Public Advocacy can assume a central role for public managers, contributing to an improvement on the local public policies. The relevance of the municipality debate can be identified in the thinking of federalist authors, for whom a good government would be effective not by the plexus of competencies that it encloses, but by the capacity of distributing competencies among lower political organizations. As federal units, the municipalities require intense reflection. However, it is not enough to deliver them only competencies, as the Brazilian Constituent Assembly did, it is also necessary to develop institutional mechanisms capable of promoting these obligations very well, with planning and achieving results.
Keywords: Municipalities, Public Advocacy, Institutions.
Resumen: El objetivo del presente estudio es debatir la importancia de la dimensión institucional de los entes públicos municipales en el federalismo brasileño. La promoción del municipio a ente federativo por el Constituyente originario no fue acompañada por un compromiso institucional consistente. Para minimizar esta cuestión, se sostiene que la abogacía pública local puede asumir una función central para los gestores públicos, contribuyendo a un mejor incremento de las políticas públicas municipales. La relevancia del debate municipalista puede ser identificada en el pensamiento de los autores federalistas, para quienes un buen gobierno se efectúa no por la red de competencias que encaja, sino por la capacidad de distribución de competencias entre organizaciones políticas inferiores. Como unidades federativas, los Municipios demandan intensa reflexión. Esto es porque no basta entregar facultades a ellos, como lo hizo el Constituyente brasileño, es necesario también desarrollar mecanismos institucionales capaces de promover bien esas obligaciones, con planificación y alcance de resultados.
Palabras clave: Municipios, Abogacía Pública, Instituciones.
SUMÁRIO
1 Introdução. 2 A complexidade federativa brasileira e o papel dos municípios. 3 A baixa dimensão institucional das municipalidades. 4 A centralidade da advocacia pública para um giro institucional dos municípios: uma proposta. 4.1 Aspectos teóricos da proposta. 4.2 Instituindo a advocacia pública municipal. 4.3 O giro institucional proposto: a centralidade da advocacia pública municipal na construção de municípios mais eficientes. 5 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O texto que ora se apresenta tem a finalidade de debater a importância da dimensão institucional dos entes públicos municipais no federalismo brasileiro. Isso contribui para incluir a questão municipalista no centro das discussões a respeito do aprimoramento da qualidade de políticas públicas diretamente associadas ao dia a dia do cidadão. A propósito, instituições importam. Elas fazem a diferença, não apenas no jogo político, mas também em termos de segurança, prosperidade e eficiência para as sociedades nas quais se encontram efetivamente constituídas. Nada mais apropriado, então, que estender a discussão ao âmbito das esferas de poder local.
A efetivação de direitos sociais depende de um trabalho prático que supere o binômio permissão/proibição do direito, passando a assimilar mecanismos de incentivos 1 e compensação, de modo a garantir que os programas levados aos destinatários do serviço público tenham utilidade real. Contudo, a formatação de tais mecanismos, mediante prognoses e empiria, exige instituições capacitadas. Em âmbito municipal, instituições capacitadas ainda são uma realidade limitada, especialmente pela característica heterogênea que marcam, sobretudo em termos fiscais, o municipalismo brasileiro. O investimento em excelência administrativa nos municípios é modesto. Seja como for, antes de a realidade representar um desestímulo à reflexão sobre a importância da dimensão institucional dos municípios, é possível defender um epicentro institucional de apoio à melhoria das gestões públicas comunais ( BRASIL, 2015).
Pela leitura da Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988), percebe-se que os municípios foram desenhados pelo Constituinte sem poder judiciário, sem ministério público e sem advocacia pública. Os municípios também não possuem instituições policiais nem defensoria pública. Não há previsão de órgão interno controlador de contas, embora o Constituinte tenha previsto um rol importante de gastos municipais. De fato, a única instituição prevista para os municípios é a guarda municipal, conforme dicção do artigo 144, §8º, da CRFB. Não se deve olvidar que, desde 1988, ficou proibida a criação de novos tribunais de contas locais, ressalvada a manutenção daqueles já existentes. Portanto, nos municípios, as instituições constitucionais típicas são apenas o Poder Executivo e o Poder Legislativo.
Ante essa perspectiva institucional minimalista conferida aos municípios, por onde começar um debate que leve a sério sua dimensão orgânica, apta a entregar políticas públicas de qualidade? A hipótese do artigo é o fato de que essa baixa dimensão pode ser contornada a partir do aprimoramento e da releitura do papel da advocacia pública no contexto das políticas públicas locais. A ideia é que todos os municípios possam instituir seus advogados públicos, de forma a resolver não apenas questões contenciosas da administração municipal, mas também promover ações governamentais eficientes dentro da juridicidade exigida pelo Estado de Direito.
A advocacia pública local pode ser um elemento catalisador de competências administrativas outorgadas pela Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988) aos entes públicos municipais. A tarefa, porém, não é exatamente singela. Ao contrário da advocacia pública da União, dos estados e do DF, a advocacia pública dos municípios não consta expressamente do texto constitucional. Assim, conceber a centralidade de um órgão facultativo à luz da leitura literal da Constituição exige um grande desafio, pois muitos gestores relutam em constituir procuradorias municipais republicanas, optando pelo recrutamento de advogados privados temporários sem concurso, ou, muitas vezes, sem licitação. 2
Mesmo com tantas incertezas, a advocacia pública municipal pode apresentar uma vantagem: ela não é um órgão sujeito à reserva constitucional, como acontece com o judiciário, com os tribunais de contas e, até mesmo, com as defensorias públicas. Nesse sentido, embora exista um silêncio da Constituição quanto à obrigatoriedade de os municípios constituírem seus órgãos de advocacia pública, o direito brasileiro não impede sua institucionalização por legislação infraconstitucional. A sujeição da Administração Pública ao princípio da legalidade e a previsão de um amplo acesso à Justiça acabam, implicitamente, permitindo que os municípios tenham seu próprio corpo de procuradores, ainda que sem disciplina formalmente constitucional.
Portanto, o interesse do presente trabalho é abordar a dimensão de um órgão jurídico próprio não apenas na defesa em Juízo das causas em que a municipalidade seja demandada ou na busca de recuperação de créditos fiscais inadimplidos, mas no que se refere ao conhecimento de tecnologia jurídica, fator que pode ser muito bem empregado na melhoria da qualidade de políticas públicas formatadas por gestores eleitos. Destarte, é imprescindível discutir municípios a partir de um giro institucional, a fim de que as ações locais possam ganhar futuramente mais consistência prática em relação ao que vem sendo produzido atualmente. 3
2 A COMPLEXIDADE FEDERATIVA BRASILEIRA E O PAPEL DOS MUNICÍPIOS
A forma de Estado Federal é comum em países com amplas dimensões territoriais. A partir da distribuição espacial do poder político, seria possível melhor equalizar a gestão do interesse público e a entrega de serviços essenciais à população. Isso porque territórios extensos envolvem algum tipo de diversidade. Em um país com extensões de terra muito significativas, um poder único e central seria inconveniente, sobretudo em função das peculiaridades que cada parcela das regiões encarta. Assim, o federalismo funciona em prol de uma melhor gestão de interesses territorialmente distribuídos, incluindo direitos em vez de exclui-los.
No caso brasileiro, o Constituinte de 1988 foi além e inovou no marco institucional federalista. Ao contrário de outros Estados federais, os municípios do Brasil foram alçados à qualidade de Entes federativos. De tal modo, além da União Federal e dos estados-membros, a federação brasileira passou a reconhecer ampla autonomia política aos municípios. O artigo inaugural da Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988) é categórico quando afirma que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
Autorizadas vozes do direito ( SILVA, 2006), entretanto, relutam em chancelar essa compreensão do texto constitucional brasileiro. Para a dissidência teórica, o Estado federal é marcado pela participação das entidades federadas na formação da vontade nacional. A existência de um Senado Federal é concebida justamente para congregar um foro de discussão sobre aspectos federativos. Como os municípios não têm assento no Senado Federal brasileiro, seria incongruente sustentar a existência de um membro da federação sem tal voz ativa. Ademais, as municipalidades não possuem sistema de Justiça próprio e não atraem a competência ori-ginária do STF em casos nos quais a existência de quebra do pacto federativo seja levantada.
Não obstante esses destaques, não é sustentável defender que os municípios não sejam Entes federativos só porque o desenho institucional a eles atribuído não é exatamente o mesmo dos estados-membros. O que marca o aspecto federativo brasileiro é o poder de autogoverno acoplado às autonomias administrativas, organizacional e financeira das Entidades politicamente descentralizadas. A Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988) entrega essas autonomias ao poder público local 4. Ocorre que, dadas as peculiaridades do território brasileiro, a federação é marcada pela heterogeneidade. De qualquer forma, o princípio da subsidiariedade, 5 o qual legitima a descentralização territorial do poder por meio de entidades que elegem seus dirigentes e recolhem tributos diretamente da população, inspirou inegavelmente o Constituinte de 1988.
A Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988) não foi apenas genérica ao entregar a gestão do interesse local aos municípios. Toda a carta desenha responsabilidades específicas para os entes municipais. O artigo 1º já determina, implicitamente, que compete aos municípios, pelo simples fato de integrarem a federação brasileira, respeitar a soberania nacional, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Ademais, são alguns dos objetivos fundamentais da República (artigo 3º da CRFB), dos quais as municipalidades também não se podem distanciar: a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação.
Além disso, o artigo 23 do texto constitucional combina esforços de todos os entes federados em torno da guarda da Constituição, da proteção do meio ambiente, do combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, entre outros. Para evitar dispersão de recursos e atentados contra a eficiência administrativa, com sobreposição de atuação, divide-se a responsabilidade pela gestão dessas políticas conforme o interesse correspondente a cada entidade federativa, mas nenhum ente pode renunciar a esses deveres. À União cabe a defesa de interesses nacionais, ao passo que aos estados-membros cabe a gestão regional e aos Municípios cabe a defesa daquilo que tiver aderência com seu interesse local ( BRASIL, 1988).
Finalmente, o artigo 30 da Constituição determina que aos Municípios, entre outras atribuições, cabe instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; e promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano ( BRASIL, 1988).
Tais atribuições não se encerram na Constituição, mas também são esmiuçadas na legislação infraconstitucional, até como forma de evitar conflito de competência entre a União e os estados-membros, já que muitas responsabilidades acabam sendo concorrentes. São dois grandes exemplos de legislação que define poderes municipais gerais, sem prejuízo de outros: o Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 2001 ( BRASIL, 2001), e a Lei Complementar 140, de 2011 ( BRASIL, 2011). Sem se distanciar das balizas impostas pela União, os municípios podem editar leis locais para seus órgãos administrativos bem executarem esses programas normativos, construindo um verdadeiro condomínio legislativo.
O Estatuto da Cidade, 6 por exemplo, regulamenta instrumentos variados de política urbana, objetivando assegurar a função social da propriedade; por sua vez, a Lei Complementar nº 140, de 2011 ( BRASIL, 2011), fixa normas para a cooperação entre a União, os estados-membros, o DF e os municípios em ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum sobre proteção das paisagens naturais notáveis, proteção do meio ambiente, combate à poluição em qualquer de suas formas e preservação das florestas, da fauna e da flora. A LC 140 define ainda como atividades administrativas do município, entre outras, controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, na forma da lei.
Como se pode perceber, os municípios possuem papel destacado dentro da República brasileira, o que os consagra como verdadeiros entes federativos. O fato de não contarem com Poder Judiciário próprio e demais prerrogativas conferidas à União e aos estados-membros não os desnaturam como integrantes da federação. Assim, a questão não é mais discutir se o município é ou não ente federativo, mas como pode ser um ente federativo institucionalmente mais incrementado. As grandes produções normativas brasileiras ainda provêm da União, o que até acaba enfraquecendo o federalismo brasileiro como um todo. Ao contrário dos Estados Unidos da América, que asseguram ampla autonomia a seus estados-membros, no Brasil, a União ainda é a grande idealizadora da cena pública. Contudo, fortalecer os municípios caminha no sentido de justamente equalizar o papel de tais entes no arranjo federativo nacional.
3 A AINDA BAIXA DIMENSÃO INSTITUCIONAL DAS MUNICIPALIDADES
O problema da questão municipal não é, conforme foi demonstrado acima, de índole normativa. Para além de compreensões ortodoxas sobre o Estado Federal, o fato é que o Constituinte não foi econômico ao outorgar competências, metas e objetivos aos municípios brasileiros. Além disso, diplomas legais explicitadores de normas jurídicas constitucionais são pródigos em atribuir às municipalidades toda sorte de encargos.
Normalmente, o debate levantado sobre o descompasso existente entre realidade normativa e capacidade de realização dos municípios toca ao aspecto financeiro. A União Federal é a unidade político-administrativa com maior concentração de recursos provenientes da arrecadação nacional, o que redunda em fatia menor do orçamento para estados e municípios. Conquanto a questão fiscal seja relevante, já que sem ativos financeiros nenhum projeto pode ser executado, é preciso destacar um aspecto até então negligenciado pelos pesquisadores do direito, o qual inclusive tem reflexos econômicos no quesito desperdício de recursos públicos. Faltou ao texto constitucional de 1988 disciplinar a criação de instituições propriamente municipais, dotadas de capacidade operacional para bem efetivar comandos legais.
Ao contrário dos estados e da União, os municípios possuem poucas instituições próprias no texto constitucional, sendo reduzidos apenas às instituições de representação política, como o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Essa omissão institucional se revela de forma ainda mais perversa quando faltam incentivos para os municípios criarem suas instituições de defesa do interesse local. A criação da advocacia pública, da administração fazendária e dos órgãos municipais de proteção e defesa do meio ambiente, tudo com autonomia técnica, não é estimulada por uma política nacional efetiva. A discrepância entre cada município em matéria de estrutura está diretamente relacionada à falta de um compromisso uniformizador, jogando à média dos municípios brasileiros para baixo em termos de institucionalização. As elites políticas locais dão pistas de que não possuem incentivos para incrementar a burocracia municipal.
Nesse ponto, o Constituinte originário buscou proteger ao máximo a autonomia municipal ( MENDES; BRANCO, 2015), evitando se imiscuir, detalhadamente, na gestão operacional dos municípios. Contudo, o projeto constitucional brasileiro, ao mesmo tempo em que se preocupou com a autogestão, acabou negligenciando as necessidades de se incentivar a criação de órgãos e agências municipais com capacidades de empreender projetos emancipatórios da Carta de 1988. Enquanto a Constituição brasileira de 1988 foi altamente analítica com o Sistema Tributário Nacional, com a Administração Pública e com os direitos previdenciários dos servidores, por exemplo, com os municípios, por sua vez, o regramento foi deveras sucinto. A grande preocupação do Constituinte foi com a quantidade de vereadores nas Câmaras municipais e com seus respectivos parâmetros remuneratórios.
Ora, essa baixa densidade institucional dos municípios impacta a realidade local. Até hoje, há déficit de concurso público para atividades fins de inúmeras cidades brasileiras, predominando contratações informais; há extrema concentração de poder na figura do prefeito; e a Câmara de Vereadores exerce um papel meramente protocolar, já que a competência para iniciar projetos de leis relevantes recai sobre a esfera do Poder Executivo municipal por meio do instituto da iniciativa privativa no processo legislativo.
Além disso, existe uma impossibilidade de fiscalização adequada das atividades administrativas por órgãos de controle externo, pois são eles de outras esferas de poder (Estadual e Federal), acumulando trabalho, o que os obriga a selecionar apenas o que reputam relevante. Ademais, a ausência de previsão constitucional expressa sobre criação de órgãos de controle interno, tanto de legalidade quanto de legitimidade e economicidade, dificulta a sadia aplicação de recursos públicos em muitos municípios. O único exemplo indutivo de comportamento institucional foi criado pelo legislador nacional por ocasião da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal. O parágrafo único do artigo 11 da LRF 7 diz que é vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não efetivamente criar e arrecadar impostos de sua competência.
Ou seja, a mera previsão constitucional de competências e atribuições normativas não garante, por si só, que os governos sejam capazes de usar esse instrumental de forma efetiva. Distribuir tarefas sem dizer como será minimamente a estrutura que irá realizá-las é arriscado. Para superar o espaço vazio entre as prescrições legais e a necessária ação política, instituições capacitadas são exigidas. Só assim será possível operacionalizar todas as competências constitucionais outorgadas e torná-las uma realidade concreta. Porém, não basta a criação de instituições sem estrutura, sem corpo técnico, sem desenho institucional capaz de articular as políticas com o gestor. A criação de feudos eleitorais de nada serve aos ganhos incrementais que instituições podem proporcionar.
Autores norte-americanos reconhecem que a história da relação entre a Constituição e a política daquele país foi justamente a história de como o espaço entre elas foi sendo preenchido por instituições que se reivindicavam com capacidade de atuação nos segmentos operacionais de Estado ( GRIFFIN, 1996). O vácuo no texto constitucional brasileiro sobre a importância de instituições municipais tem consequências. Por exemplo, um estudo no âmbito do Ministério da Justiça, 8 cujo objetivo fora compreender o motivo pelo qual a aplicação de instrumentos de política urbana ainda é timidamente levada a efeito pelas cidades, concluiu que a complexidade da legislação brasileira, aliada à baixa capacidade institucional das prefeituras, simplesmente inviabiliza qualquer política eficiente de controle da especulação imobiliária e dos vazios urbanos. A falta de uma dimensão institucional não permite tirar da dimensão normativa os compromissos assumidos em torno da função social da propriedade. 9
Ora, desenvolvimento urbano, proteção do meio ambiente, infraestrutura de transporte, cultura, educação inclusiva, nada disso será efetivado mediante normas jurídicas, sobretudo as configuradas por meio do binômio permissão/proibição, típico do modelo de Estado liberal. Mesmo que o mercado seja convocado a participar em conjunto com o Estado na promoção de políticas públicas, mediante termos de parcerias e contratos de concessão, ainda assim todo um mecanismo regulatório será exigido. A exigência de capacidade técnica decorre da necessidade de formatar bons editais de licitação, de fiscalizar o cumprimento das metas e da própria prestação e julgamento de contas. Ou seja, o interesse público depende de uma inafastável processualidade administrativa, que só se concretiza dentro de um ambiente ins-titucionalmente adequado.
Tendo em vista essa necessidade de decodificar os comandos legais em procedimentos, de modo a viabilizar concretamente a dimensão normativa do direito, é imprescindível que se estruture nos municípios, pelo menos, corpos técnicos de profissionais com expertise jurídica. O objetivo não é diminuir a importância de outros componentes institucionais relevantes ou defender bandeira corporativa. Muito ao contrário. A ideia é fortalecer os mecanismos de interpretação e aplicação do direito, sem prejuízo do controle de legalidade, preservando a integridade jurídica tanto da cidadania quanto do gestor democraticamente eleito pelo voto. A institucionalização de procuradorias em todos os municípios brasileiros pode ser um passo relevante para diminuir a baixa dimensão institucional desses entes locais.
4 A CENTRALIDADE DA ADVOCACIA PÚBLICA PARA UM GIRO INSTITUCIONAL DOS MUNICÍPIOS: UMA PROPOSTA
Primeiramente, é preciso assentar as premissas até então trabalhadas. Os municípios são entes federativos, nos termos da Constituição de 1988. Como parte integrante da federação brasileira, a ordem jurídica entrega ao poder público local uma série de competências tanto legislativas quanto administrativas. Contudo, a ainda baixa dimensão institucional dos municípios impede uma adequada realização de comandos legais e constitucionais, o que afeta a realização do interesse público, gera gastos de recursos financeiros e joga em descrédito a ação governamental.
A saída para esse impasse entre normatividade e realidade institucional não se resume a alocar mais recursos financeiros para as prefeituras. Embora a questão fiscal tenha relevo, é importante pensar em incrementar instituições tipicamente locais, até mesmo como forma de evitar desperdícios e pressões políticas para o mau emprego dos recursos públicos. Enfim, não há fórmula mágica. É preciso começar de algum lugar. E uma importante institucionalização, capaz de contribuir para o incremento do controle de legalidade e o melhoramento na efetivação de políticas públicas, é a criação de uma advocacia pública profissional nos municípios.
4.1 ASPECTOS TEÓRICOS DA PROPOSTA
A Administração Pública toma decisões todos os dias ( BUCCI, 2013). O plexo de competências que ela reúne e as demandas que lhe são formuladas exigem interpretação da legislação vigente por parte dos inúmeros agentes incumbidos da gestão pública. Mesmo assim, a Constituição de 1988 não desenha um modelo a respeito de como essas decisões serão efetivadas no interior do Estado-Administração. Com efeito, o texto constitucional disciplina analiticamente questões envolvendo servidor público, concurso público, remuneração e aposentadoria no regime próprio de previdência social, mas não sinaliza qualquer forma de decisão no interior do Estado brasileiro.
Por outro lado, a teoria do direito no Brasil ainda tem-se ocupado pouco de questões relativas ao Estado administrativo. Basicamente, o enfoque do estudo jurídico envolve jurisdição constitucional 10 e teorias de direitos fundamentais ( BOLONHA; SOUZA, 2013).
Diante disso, teóricos desenvolveram uma crítica dirigida a diversas propostas interpretativas (normativas), justamente pelo fato de elas não concentrarem esforços em um aspecto essencial, qual seja, a definição de quem estaria em melhores condições institucionais de fornecer respostas para casos controvertidos ( SUNSTEIN; VERMEULE, 2002). A crítica aos modelos de interpretação do direito procurara evidenciar que as teorias hermenêuticas acabam por concentrar suas atenções em uma imagem idealizada do Judiciário e, de outra parte, em uma projeção muito negativa do Executivo.
Uma forma de mitigar essa visão estigmatizada do Executivo e da Administração Pública passa por fortalecer o aparato institucional dos órgãos de execução ( WALDRON, 2016). Como se sabe, a administração atua conforme o princípio da oficialidade, possui autoexecutoriedade e gere a política de acordo com um plano de governo sujeito ao escrutínio periódico das urnas. Defender o fortalecimento institucional da máquina pública não significa defender hipertrofia do quadro de servidores, tampouco desmedida intervenção do Estado na vida do cidadão. Significa aprimorar os mecanismos decisórios dentro do aparato organizativo do Estado. Para tanto, é preciso instituições adequadas.
A “guinada institucionalista” não foi acompanhada pelas teorias hermenêuticas, além de não ter sido realizada por completo no constitucionalismo contemporâneo. Para autores institucionalistas, temas como o controle de constitucionalidade possuem um amplo retrospecto de cegueira institucional. Desde sua fundação, com Marbury v. Madison (1803), o controle de constitucionalidade é um instituto que presta pouca atenção para questões institucionais, ao ignorar os riscos dos erros advindos do Judiciário e de suas respectivas consequências. A conclusão de que é um dever do domínio do Judiciário dizer o que é o Direito, com fulcro na cláusula da supremacia da jurisdição, está amparada por inferências textuais e estruturais fracas, dependendo qualquer avaliação sobre tais argumentos de considerações institucionais ( CLÈVE; LORENZZETO, 2016).
Portanto, os órgãos de advocacia pública podem ocupar maior papel nesse cenário. A aposta decorre do fato de que eles possuem proximidade com a realidade e, portanto, ostentam melhor posição institucional para avaliar situações concretas, as quais outros profissionais ad hoc da advocacia não teriam. Nesse sentido, a advocacia pública local poderia promover maior consistência e credibilidade na interpretação interna do direito pelas municipalidades. A proposta deste artigo é contribuir para a superação da posição de fragilidade que muitos organismos administrativos locais se encontram em função de uma cegueira institucional.
4.2 INSTITUINDO A ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL
A baixa dimensão institucional dos municípios, com exceção de algumas capitais de estados membro e cidades mais desenvolvidas economicamente, não deve servir para desacreditar o projeto municipalista tal como configurado em 1988. Pelo contrário, a baixa institucionalidade nos municípios pode ser trabalhada, quer do ponto de vista econômico, quer do ponto de vista político, com o mínimo de trauma possível. A proposta equalizadora consiste na institucionalização de órgãos de advocacia pública em todos os municípios brasileiros, independentemente de tamanho ou capacidade financeira, eis que pelas próprias características do Estado de Direito é inconcebível um ente estatal esvaziado em sua dimensão de organização jurídica. 11
Os juristas brasileiros têm grande influência no modo como políticas públicas são moldadas, ajustadas e implementadas (na qualidade de legisladores, juízes e burocratas, respectivamente). De igual modo, é preciso reconhecer que são também importantes as habilidades que lhes permitam conhecê-las em suas peculiaridades setoriais. Particularmente negligenciada pelo Constituinte brasileiro, a advocacia pública municipal pode assumir o papel de coordenadora e articuladora na modelagem institucional necessária à implementação de políticas públicas de âmbito local. No entanto, surge uma dúvida: como fazer isso sem previsão constitucional expressa?
Embora a redação original da Constituição não contemple, expressamente, a previsão de procuradores municipais, isso não significa que os municípios estejam proibidos de constituírem suas próprias procuradorias à semelhança do modelo previsto para as procuradorias estaduais e até mesmo conforme o modelo adotado para a Advocacia-Geral da União. Essa possibilidade já facilita o discurso de aperfeiçoamento institucional das municipalidades, pois a ausência de previsão de procuradores municipais no texto constitucional não representa vedação à sua criação. Dessa forma, não há óbice jurídico. Inclusive, inúmeras cidades e capitais possuem já seu corpo de procuradores há mais de 30 anos. 12
Ademais, a possibilidade de uma advocacia pública ser constituída independe de recorte financeiro. Como a Constituição é silente a respeito dos procuradores municipais, a remuneração desse corpo de servidores está sujeita às regras de capacidade econômica de cada realidade local. O que não é possível é cogitar que um dado território possa ter autonomia política, organizacional, administrativa e financeira, com prefeito e Câmara Municipal, mas não deva ter um órgão jurídico profissional, para servir de suporte ao controle de legalidade desses agentes, até como mecanismo de prevenção democrática. Um gestor sem apoio jurídico ou com apoio jurídico deficiente corre muitos riscos de sofrer ações judiciais e, com isso, comprometer seu projeto político. Então, a inerência federativa da advocacia pública é patente e independe do porte financeiro da referida unidade.
Cabe o registro de que a advocacia pública local, como o próprio nome já indica, deve ser estatal. Isto é, seus membros devem ser recrutados via concurso público de provas e títulos condizentes com a complexidade do cargo. Não é possível uma advocacia pública recrutada no estrito interesse do gestor, estando submetida ao poder discricionário de livre nomeação e exoneração do chefe do executivo. Caso contrário, o órgão jurídico municipal não passaria de um mero verniz de legalidade. A independência técnica é fundamental para um trabalho de consultoria jurídica efetiva, e não há independência técnica possível se o advogado do ente governamental ocupar a função pública de forma precária.
A permanência, a independência técnica e a necessidade de memória das ações governamentais não combinam com contratação de escritórios terceirizados. A boa aplicação da lei e a conformação dos atos públicos ao direito não podem ser concebidas como uma atividade meio, passível de delegação contratual perante terceiros. A atividade jurídica do Estado, seja ele de que tamanho for, é sempre fim, não comportando terceirização a escritórios cujo trabalho estará, necessariamente, sujeito a prazo de duração do contrato administrativo.
Assentada a necessidade de um corpo próprio de procuradores, é chegado o momento de debater como as procuradorias dos municípios podem elevar as capacidades locais e efetivar a autonomia municipal. A título de pura cautela, deve-se insistir em um ponto. A premissa do artigo é que a baixa dimensão institucional dos municípios é uma realidade decorrente da Constituição, é sentida na prática como um entrave e, por isso, configura um problema. Sem dimensão institucional, é difícil efetivar, com segurança jurídica e eficiência, todo o arcabouço obrigacional ao encargo dos Municípios. Mesmo assim, há saída. A construção de um projeto municipalista mais efetivo pode começar pela constituição de um órgão jurídico próprio, técnico e autônomo, o que não tem qualquer objeção de índole procedimental.
4.3 O GIRO INSTITUCIONAL PROPOSTO: A CENTRALIDADE DA ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL NA CONSTRUÇÃO DE MUNICÍPIOS MAIS EFICIENTES
O ordenamento jurídico, desde 1988, deu dois passos fundamentais em relação aos municípios brasileiros e à consagração da ideia de subsidiariedade da gestão pública. O primeiro passo consistiu na transformação das municipalidades em verdadeiros entes federativos. De tal forma, assegurou-se à população das cidades a possibilidade de, periodicamente, eleger seus prefeitos, seus vereadores e administrar, de acordo com as prioridades locais, seu orçamento e seus próprios projetos. O segundo passo foi entregar responsabilidades legais a esses entes, a fim de que pudessem concretizar de maneira satisfatória os objetivos do Constituinte, que dividiu a gestão do interesse público conforme a abrangência das unidades federadas (à União coube o interesse geral, aos Estados, o regional, e aos Municípios, o local).
Contudo, passadas quase três décadas do empreendimento municipalista, constata-se que faltou ao ordenamento jurídico brasileiro dar o terceiro passo: consolidar um núcleo institucional mínimo para que todas as cidades possam reunir capacidades institucionais para melhor desenvolver o projeto constitucional. Esse passo carente é representado, entre outras coisas, pela omissão quanto à necessidade de os municípios constituírem seus órgãos jurídicos próprios. É verdade que muitas cidades já contam com suas procuradorias, mas a grande massa de municípios no Brasil ainda é carente de um sistema jurídico estatal devidamente organizado.
Mas por que a insistência em um sistema jurídico específico, próprio de cada município? A resposta é simples. Não se sustenta, atualmente, a ideia de que as ações governamentais sejam realizadas por meio de puros atos administrativos. A teoria dos atos administrativos, embora ainda tenha valor e utilidade em temas ligados à nomeação de servidor público e à autorização de uso de bem público, deixa de atender às necessidades do Estado Democrático de Direito quando em jogo formulação de políticas de larga escala, ações preventivas de combate ao câncer, planejamento urbano, combate ao déficit habitacional e controle de poluição ambiental. Sabe-se que a construção desse perfil de projeto não comporta medidas unilaterais e destituídas de uma processualidade interna mínima. Essa processualidade vai envolver uma série de atividades, todas elas sujeitas aos princípios do devido processo legal.
Não é possível sustentar em face do Poder Judiciário, diante de alguma provocação na Justiça, gerada por alguma insatisfação com o resultado alcançado pelo agir administrativo, que as escolhas do braço governamental decorram de instituições capacitadas sem que o formulador da ação estatal seja realmente institucionalmente capacitado. Se a análise jurídica da política pública for levada ao processo jurisdicional, as chances de manutenção do programa vão depender da qualidade de como ele foi planejado e executado. Apesar do atual Código de Processo Civil ampliar as hipóteses de cooperação processual, o raciocínio jurídico nesse foro de discussão ainda apresenta um elevado preconceito em face das ações da Administração Pública.
Por isso, é muito importante que, independentemente da natureza da política, haja a presença de uma equipe jurídica em cada etapa do projeto em desenvolvimento, de modo a assessorar as autoridades de acordo com as exigências do Estado de Direito, sobretudo procedimentais, como a abertura de espaços destinados ao exercício do contraditório social, o compromisso com a legislação orçamentária e a publicidade das formas jurídicas. Ora, política pública envolve um conjunto de decisões e ações relativas à alocação de valores financeiros e morais, tudo como forma de expressão do compromisso público de atuação de longo prazo. A consistência de cada uma dessas ações só ganha em densidade se houver um apoio de legalidade/legitimidade do órgão capacitado institucionalmente para promover segurança entre os planejadores. Não é possível pensar em deferência judicial aos comportamentos da Administração Pública sem que ela tenha deferência ao Estado de Direito. Essa deferência só vai ocorrer se internamente as administrações incrementarem seus órgãos de controle de juridicidade.
Debatendo a respeito da Advocacia-Geral da União, pesquisadores chamam atenção para o fato de que o chefe do Poder Executivo (Presidente da República) é, simultaneamente, o titular de três funções estatais: a chefia de governo, a chefia de Estado e a chefia da Administração Pública ( MACEDO, 2009). Estando todas essas funções reunidas no plexo funcional denominado “Poder Executivo”, a especialização funcional é vítima de uma excessiva politização do aparelho burocrático.
Nesse contexto, agentes públicos nomeados com base em critérios predominantemente políticos passam a ocupar postos estratégicos no aparelho administrativo do Estado, sem qualquer intuito incremental, causando prejuízo à profissionalização do serviço público (a qual é verdadeiramente garantida quando a escolha dos profissionais que integram a Administração se faz com base em critérios técnicos, de natureza objetiva). É justamente por objetivar garantir a aplicação dos princípios da legalidade e da legitimidade que a consultoria jurídica desempenhada pela advocacia pública se caracteriza como uma verdadeira função de controle no processo político democrático.
Deve-se também destacar que a atividade de consultoria jurídica exercida pela advocacia pública possui, além dos objetivos já mencionados, uma finalidade nitidamente preventiva. Ela impede que políticas formuladas venham a ser, na posterior fase de implementação, questionadas judicial ou extrajudicialmente, por serem consideradas contrárias ao ordenamento jurídico, à impessoalidade administrativa ou a outros valores consagrados pelo regime democrático.
É necessário, pois, que os entes municipais criem, à semelhança da Advocacia-Geral da União e das Procuradorias-Gerais dos Estados membros, seus próprios órgãos jurídicos estatais. O tema relacionado ao agir administrativo envolve a probidade da Administração Pública, a qualidade dos gastos e a própria sustentabilidade da democracia. Com um corpo de profissionais do direito concursado, é possível iniciar, em âmbito municipal, discussões viáveis sobre capacidades institucionais. A elevada politização da máquina pública derrete, diante do Poder Judiciário, qualquer credibilidade em argumentos empreendidos pelo gestor público, ainda que bem intencionados.
Critérios subjetivos de recrutamento e compromissos unicamente partidários daqueles que executam a atividade administrativa reduzem a credibilidade de uma Administração carente de bons quadros ( ZOCKUN, 2012). Afinal, nem sempre o mérito técnico é o critério de escolha utilizado pelas indicações políticas. Hoje, em muitos municípios, o concurso público não é praticado para cargos de advogados públicos, comprometendo o bom desempenho das políticas locais e retardando o avanço institucional local.
Um Estado administrativo mais eficiente passa pela profissionalização dos municípios, sobretudo de seu sistema jurídico. O ideal seria que toda a Administração Pública fosse recrutada de forma ótima, com profissionais sujeitos a um plano de carreira e a remuneração condizente com a complexidade de suas funções, a fim de executar a enormidade de tarefas outorgadas pela Constituição.
Contudo, se o cenário ideal tem suas limitações no plano concreto, é possível pensar em um cenário intermediário. Tal cenário consiste em edificar dentro dos municípios, especialmente nos retardatários, sistemas jurídicos compostos por advogados públicos que exerçam o controle de juridicidade dos atos estatais, contribuindo para empreender projetos de utilidade social. Isso seria um passo importante na melhoria da dimensão institucional desse ainda jovem ente federativo criado pelo Constituinte de 1988. A advocacia pública não representa um órgão messiânico, mas pode contribuir para concretizar um Estado de Direito Democrático mais eficiente.
5 CONCLUSÃO
O artigo buscou debater a baixa densidade institucional dos municípios brasileiros. Reflexo de uma heterogeneidade identificada no plano econômico, inúmeros municípios ainda não conseguiram desenvolver boas estruturas administrativas para empreender suas obrigações, tudo ao argumento de baixa autonomia no campo fiscal. Além disso, o próprio texto constitucional de 1988 é minimalista quanto a esse aspecto. De fato, a Constituição apresenta baixos mecanismos de incentivo ao aprimoramento institucional dos entes municipais, reduzindo as instituições locais a dois poderes políticos: o executivo e o legislativo.
Nada obstante a delicada questão de disponibilidade financeira, o texto da Constituição de 1988 ( BRASIL, 1988), quando trata dos municípios, entrega a esses, sem critérios de distinção, responsabilidades no plano da educação, da saúde, do meio ambiente, do transporte público etc. A legislação infraconstitucional disciplina questões tributárias, financeiras e urbanísticas, as quais devem ser seguidas pelas administrações locais. Nesse sentido, a concretização prática desse plexo de responsabilidades não se resolve por meio de teorias interpretativas do direito. Tampouco tais teorias respondem como em um território heterogêneo e plural – como o brasileiro –, a lei encontra um denominador comum para sua aplicação. Na verdade, as teorias interpretativistas do direito ignoram que a efetivação de direitos fundamentais, muitas vezes, não se sujeita ao binômio proibição/permissão do direito, dependendo de uma construção administrativa de limites e possibilidades.
A tese do artigo sustenta que a concretização no plano fático das normas jurídicas, sob responsabilidade dos Municípios, depende minimamente de um componente institucional. A ideia dessa dimensão institucional está atrelada à busca de eficiência no agir administrativo, que não comporta gastos irresponsáveis e ações que impactem o tecido social sem análise de custo/benefício. Por outro lado, exortar para que mais de cinco mil Municípios, ou pelo menos os mais rudimentares, sejam chamados à realidade, tornaria o texto um manifesto e não um debate jurídico. A esse respeito, a ideia aqui debatida passa pela uniformização dos órgãos jurídicos de cada municipalidade.
A institucionalização de advocacia pública, em todos os municípios, já foi aprovada pela Câmara dos Deputados, aguardando agora apenas deliberação e votação no Senado Federal. A efetivação de órgãos jurídicos em todas essas entidades, à semelhança do modelo dos estados membros e da AGU, independe de aspectos fiscais significativos. Um empreendimento municipal, por menor que seja, não pode desenvolver suas atividades sem estrutura jurídica própria. Trata-se de um corolário lógico do regime republicano brasileiro, no qual a coisa pública não está sujeita à ampla disponibilidade das autoridades eleitas pelo voto.
A partir da institucionalização desses órgãos de competência consultiva e representativa no campo do direito, é preciso ainda enxergá-los como centrais na condução das políticas de governo, e não como órgãos a serem acionados apenas nos casos de litígio judicial. Não é possível hoje uma boa execução de políticas públicas sem um controle prévio de conformação da vontade do gestor com a ordem jurídica democrática. A existência desse diálogo interno fortalece os argumentos de capacidades institucionais, assegurando a credibilidade da construção de modelos locais de distribuição e a efetivação de direitos. Com isso, evita-se uma exagerada intromissão do poder judiciário em assuntos sujeitos à competência administrativa.
REFERÊNCIAS
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Notas
I – planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; II – planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual; f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social; IV – institutos tributários e financeiros:
a) Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU);
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros; V – institutos jurídicos e políticos:
a) desapropriação;
b) servidão administrativa;
c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;
e) instituição de unidades de conservação;
f) instituição de zonas especiais de interesse social;
g) concessão de direito real de uso;
h) concessão de uso especial para fins de moradia;
i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
j) usucapião especial de imóvel urbano;
l) direito de superfície;
m) direito de preempção;
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
o) transferência do direito de construir;
p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária;
r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e os grupos sociais menos favorecidos; s) referendo popular e plebiscito;
t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária; u) legitimação de posse. ( BRASIL, 2001, online).
Autor notes
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