Recepção: 10 Maio 2018
Aprovação: 05 Junho 2018
DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v16i23.p331-347.2018
Resumo: O parto anônimo se trata da liberalidade atribuída à gestante de garantir o seu anonimato ao dar a luz a uma criança e colocá-la para a adoção, esquivando-se de qualquer dever ou direito sobre o seu descendente, de modo imediato, sem identificação da genitora. É instituto adotado em alguns países, mas não o é no Brasil. O presente artigo destinou-se a verificar a compatibilidade do parto anônimo com o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de avaliar se é uma solução louvável e eficaz para evitar ou diminuir os casos de abortamento e crimes contra os neonatos, já que preserva a identidade da genitora. Para tanto, utilizou-se o método de estudo qualitativo, por meio de observação, colheita e análise de dados bibliográficos e documentais; o método indutivo-dedutivo e os métodos hermenêuticos teleológico, sistemático e sociológico.
Palavras-chave: Parto anônimo, Abortamento, Abandono de neonatos.
Abstract: Anonymous delivery refers to the legal contends of law that guarantees to pregnant women the possibility of anonymously giving their newborns to adoption, and losing their duties or rights related to these descendants, through a procedure designed to immediately put the child under the custody of the corresponding welfare institution, as well as protecting the secrecy of the genitor’s identity. Anonymous delivery was implemented in many countries, but not yet in Brazil. Thus, this article aims to address the suitability of the legal contend and categories related to the anonymous delivery to the Brazilian legal system, regarding the effect of the anonymous delivery law on the frequency of neonaticide, abandonment and illegal abortions practices, since the genitor’s identity is protected. For this purpose, the method of qualitative study was used, through observation, data collection and analysis of bibliographical and documentary data; the inductive-deductive method and the teleological, systematic, and sociological hermeneutical methods.
Keywords: Anonymous Delivery, Abortion, Newborn Abandonment.
Resumen: El parto anónimo se traduce como la liberalidad atribuida a la gestante para asegurar su anonimato al dar a luz un niño y colocarlo para la adopción, huyendo de los derechos o deberes sobre su descendiente, de modo inmediato, sin identificación personal de la madre. Aunque sea adoptado en algunos países, no lo es en Brasil. El presente artículo se ha destinado a verificar la compatibilidad del parto anónimo con el ordenamiento jurídico brasileño, a fin de evaluar si es una solución buena y eficaz para evitar o disminuir los casos de aborto y crímenes contra los neonatos, ya que preserva la identidad de las madres. Para ello, se ha utilizado el método de estudio cualitativo, por medio de observación, recolección y análisis de datos bibliográficos y documentales; el método inductivo-deductivo y los métodos hermenéuticos teleológico, sistemático y sociológico.
Palabras clave: Parto anónimo, Aborto, Abandono de los recién nacidos.
SUMÁRIO
1 Introdução. 2 Impasses para a legalização do abortamento: uma questão de saúde pública. 3 O parto anônimo e a prevenção dos crimes contra os recém-nascidos. 4 A relativização do direito à ascendência biológica do nascido de parto anônimo em prol da preservação da vida. 5 Conclusões. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Apesar de pouco difundido no Brasil, na atualidade, mas utilizado sob o termo de roda dos expostos ou enjeitados, o parto anônimo é um instituto vigente em outros países, a exemplo da França e da Bélgica, e corresponde a uma liberalidade atribuída à gestante para garantir o seu anonimato ao dar a luz a uma criança e colocá-la para a adoção, esquivando-se de qualquer dever ou direito sobre o seu descendente.
Em uma primeira análise, a possibilidade de negar a um vulnerável os direitos defendidos no âmbito do direito de família, no que tange à maternidade responsável, aparenta ser incompatível com o Estado Democrático de Direito, mas, para que haja a efetividade das normas positivadas, é necessária a sua consonância com a realidade social em que se inserem, para que se busque a compatibilidade entre o texto legislativo e os seus bens tutelados. Desse modo, de pouca valia é a instituição de normas que prevejam uma realidade ideal como campo de aplicação, se essa quimera em muito destoa do que existe faticamente.
A imposição de determinadas condutas que não são recepcionadas pelos seus destinatários no âmbito moral, faz com que tais atos fiquem comprometidos no campo da eficácia social, levando à necessidade de atualização do Direito em face das mudanças sociais. É sabido que as relações familiares passaram por várias transições, o paternalismo que, dantes, era quase absoluto, foi substituído por uma pluralidade de espécies de relações familiares, merecendo destaque para a presente problemática as famílias monoparentais, em sua maioria, constituídas por mãe e filho(s).
Com base nesse pensamento, pode constatar-se a tendência de o Direito se adequar às mudanças sociais, ampliando sua visão conforme as novas necessidades de proteção, priorizando uma interpretação teleológica e sistemática do ordenamento jurídico, em detrimento da tradicional análise estritamente gramatical.
A autonomia pessoal, em especial da mulher, mudou o contexto familiar, de modo que a normativa do Código Civil de 1916, que retratava uma sociedade eminentemente rural e patriarcal, já não seria capaz de reger as relações da atualidade, ao passo que o Código Civil de 2002, apesar de apresentar um progresso nesse sentido, demanda do jurista um esforço interpretativo maior, guiado pelo princípio da dignidade, pelo fato de não abarcar expressamente todas as entidades familiares existentes de fato.
O princípio da dignidade, devido à sua universalidade, abrange todos os entes participantes da família, e, em se tratando da família monoparental matriarcal, surgem conflitos éticos e jurídicos quando a proteção da mãe implica sacrifício do filho ou do embrião, ou vice-versa. Uma das polêmicas mais acaloradas reside no contraponto entre os direitos reprodutivos da mulher e o direito à vida do embrião em fase de gestação, sob esse prisma, discute-se se a iniciativa abortiva é de livre escolha da gestante.
É nesse contexto que se pretende analisar, por meio desta pesquisa, se o instituto do parto anônimo pode ser considerado um instrumento hábil e compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, capaz de dirimir o confronto entre direitos da gestante e direitos do nascituro, desestimulando o abortamento ao garantir o anonimato da mãe. Analisar-se-á se sacrificar o direito inerente ao filho de conhecer a sua origem genética pode ser relativizado em prol da prevenção às práticas abortivas e aos crimes contra os neonatos.
Para tanto, utilizar-se-á o método de estudo qualitativo, por meio de observação, colheita e análise de dados bibliográficos e documentais sobre o princípio do abortamento, o abandono de neonatos e sobre o parto anônimo e far-se-á uso do método indutivo-dedutivo para confrontar os direitos à ancestralidade genética com os direitos de liberdade da mulher; ademais, utilizar-se-á do método hermenêutico de interpretação sistemática, sociológica e teleológica para sopesar os benefícios da instituição do parto anônimo no ordenamento jurídico brasileiro.
2 IMPASSES PARA A LEGALIZAÇÃO DO ABORTAMENTO: UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA
Parte-se do pressuposto de que o ato de cessar a gestação antes do nascimento da criança se chama abortamento, do qual resulta o aborto. Apesar da imprecisão técnica do legislador penalista, tal conduta é tipificada no artigo 124 do Código Penal ( BRASIL, 1940), o qual prevê pena de detenção, de um a três anos, mas, como é sabido, a proibição tem o fito inibitório, não sendo capaz de evitar a prática.
O abortamento é uma questão de saúde pública, pois muitas mulheres que, em busca de autonomia, procuram alternativas precárias para realizar o ato, geralmente, recorrem a clínicas clandestinas, que, por terem tal característica, não são inspecionadas pela ANVISA e pelos órgãos de controle correlatos, fazendo com que haja a carência de suporte clínico para os casos críticos de gravidade do estado de saúde das gestantes, ocasionando, muitas vezes, a morte delas.
Ignorar tal realidade e repudiar a conduta com base em preceitos religiosos, paradoxalmente, mesmo no âmbito de um Estado laico, não são ações compatíveis com o pensamento jurídico centrado nos Direitos Humanos. Mister é se atestar que há um conflito ético e jurídico entre os direitos da mulher e os direitos do nascituro, e que o parto anônimo tem uma potencialidade de ser tido como forma eficaz de solução.
Conforme dados da Organização Mundial da Saúde ( 2011, p. 39-40), nos países de baixa renda, as três principais causas de óbito das mulheres, em idade entre a puberdade até a menopausa, são HIV/AIDS, condições maternas e tuberculose, que, juntas, representam um óbito em cada dois. Dentre as causas elencadas, destaca-se a materna, já que, ao longo da história, verifica-se que a gravidez e o parto acarretam óbitos e incapacidades entre as mulheres, sendo a mortalidade da mãe um indicador-chave do estado de saúde da mulher. A repercussão da pobreza em relação à vulnerabilidade da saúde da mulher é tanta que, considerando-se que mais de meio milhão de óbitos maternos ocorrem a cada ano, há de se frisar que 99% desses casos acontecem em países em desenvolvimento.
Sabe-se que, apesar de a gravidez e o parto não serem enfermidades, comportam riscos que podem ser dirimidos por intervenções de saúde, a exemplo da oferta de planejamento familiar, cuidados maternos e acesso ao abortamento seguro. As complicações advindas da prática abortiva insegura repercutem na morte de quase 70.000 mulheres anualmente devido a suas complicações, evidenciando que as restrições legais não são suficientes para evitar a prática e que a diminuição de restrições ao abortamento seguro causa a redução drástica de óbitos e demais complicações ( ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2011, p. 42).
Entretanto, apesar das repercussões gravosas para a saúde da mulher, o abortamento não recebeu regulamentação eficaz no Brasil. Preocupou-se em se criminalizar a ação, atendo-se à proteção da vida futura, da criança em gestação, mas a legislação se cegou para a tutela da vida já existente, a da mãe. O debate que deveria ser eminentemente jurídico acerca da legalização do abortamento se contamina com discursos religiosos e discriminatórios, dificultando sua análise em um contexto social com base em razoável argumentação.
Em pesquisa promovida pelo IBOPE em 2014 ( BRAMATTI; TOLEDO, 2014), verificou--se que 79% da população brasileira é contrária à legalização da prática, dado que fundamenta o fato de que os projetos de lei que visam a disciplinar a matéria perduram por tantos anos em tramitação, sem se chegar ao objetivo que deveria ser almejado por todos: encontrar-se uma justa ponderação entre os direitos fundamentais em conflito.
Nesse sentido, conforme alerta a socióloga Pitanguy ( 2011, p. 39):
O campo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos sempre foi, e continua sendo, uma arena controversa, onde protagonistas poderosos se opõem ao avanço e consolidação destes direitos. A questão do aborto constitui um ponto, ainda hoje, nevrálgico dessa agenda, enfrentando dificuldades, mesmo dentro do próprio feminismo [...].
É necessário se atentar para o fato de que, no sentido amplo e contemporâneo, a saúde é, sobretudo, uma questão de cidadania e de justiça social, não se resumindo a um estado biológico. A atual concepção de direitos sexuais e reprodutivos abrange um conjunto de direitos humanos, individuais e sociais que devem interagir em busca do pleno exercício da sexualidade e da reprodução. Na sua dimensão individual, tais direitos devem englobar o di-reito à vida digna, à integridade física e psicológica; o direito à liberdade, à autodeterminação reprodutiva e à livre escolha sobre ter ou não ter filhos e os intervalos de seus nascimentos, o direito de constituir família, entre outros ( VENTURA, 2011, p. 310). A imposição de uma gestação não consentida é a tal ponto capaz de afetar os direitos humanos da mulher, que a legislação brasileira excetua a proibição do abortamento em caso de feto anencefálico e nas hipóteses em que há gravidez proveniente de estupro, mas se exime de tratar abertamente do ato voluntário, como se a ausência de regulamentação impedisse a prática do abortamento na realidade social.
O Brasil, por meio do Decreto 678, de 1992 ( BRASIL, 1992), promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, a qual, em seu artigo 4º, expressa que “toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.” ( COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969, online). Já por meio do Decreto 99.710, de 1990 ( BRASIL, 1990a, online), promulgou a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, explicitando que “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento.”
Vê-se que a maternidade indesejada, quando não respaldada, tem consequências muito mais graves. O principal argumento contrário ao abortamento é fundado na inviolabilidade do direito à vida, com posição topográfica no artigo quinto da Constituição Federal.
Apesar da previsão do direito à vida, há controvérsias quanto ao momento em que se inicia a existência. Os adeptos à corrente contrária ao abortamento defendem que a vida se inicia desde a concepção, sendo a prática do ato um verdadeiro homicídio; uma segunda corrente, diametralmente oposta, atesta que a vida se inicia com o nascimento, o que contribuiria para se preconizar a possibilidade da prática; uma terceira corrente argumenta que é possível se praticar o abortamento, desde que ainda não tenha havido a formação do sistema nervoso, rebatendo os argumentos dos que são contrários ao abortamento com base num possível sofrimento do feto.
A Lei n. 9.263, de 1996 ( BRASIL, 1996, online), em seu artigo 2º, expressa que o planejamento familiar é o “conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” e, no artigo seguinte, explicita que tal programação deve ser analisada dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde. Da análise global dos dois dispositivos, constata-se a preconização da liberdade reprodutiva da mulher e da preservação da sua saúde, demandando, pois, uma interpretação ponderada e sistêmica dos decretos sobre a proteção da vida desde a concepção, de modo a evitar a homogeneização dos institutos.
Ademais, cumpre frisar que a liberdade reprodutiva da mulher é condizente com o direito à criação e ao desenvolvimento de um projeto de vida, embasado na garantia de autonomia ao indivíduo e de liberdade para estabelecer metas e eleger os caminhos de sua vida, o qual exige do Estado os deveres de abstenção de ingerência e de oferecer prestações positivas, em prol da promoção de condições materiais para que a pessoa possa viver dignamente, exercendo plenamente os demais direitos e liberdades fundamentais assegurados pela Constituição ( HACHEM; BONAT, 2017, p. 95). A dignidade, ao embasar os Direitos Humanos, não requer a necessária adoção de um meio específico de vida ou de existência ( SANTOS; VARELLA, 2016, p. 174), em respeito à liberdade e à pluralidade das pessoas, inclusive em relação aos projetos parentais e à sexualidade.
Verifica-se que a polêmica de difícil solução, por envolver o bem máximo do constitucionalismo democrático, prolonga-se no tempo e que, conforme os dados da Organização Mundial de Saúde analisados, enquanto persiste a carência de atualização progressiva por parte do Direito, a saúde da mulher fica comprometida, por lhe ser negado o acesso a hospitais especializados. Precisar-se o momento do início da vida e identificar a dignidade de quem ela deve ser priorizada é um desafio, que, para ser sanado, justifica a análise sobre se é possível a adoção do parto anônimo como uma forma de compatibilizar os direitos da gestante com os do ascendente, evitando a contradição entre as leis que versam sobre liberdade reprodutiva e sobre a proteção da criança.
3 O PARTO ANÔNIMO E A PREVENÇÃO DOS CRIMES CONTRA OS RECÉM-NASCIDOS
Na redação do artigo 227 da Constituição Federal ( BRASIL, 1988), encontram-se elencados os deveres da família, da sociedade e do Estado, perante a criança, o adolescente e o jovem: assegurar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, protegendo-os de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dois desses direitos merecem destaque para a presente problemática: o direito à vida e à convivência familiar.
Os deveres inerentes à maternidade se pautam nos princípios da solidariedade e do melhor interesse da criança, visando a garantir que a criança desfrute do seu direito à vida de modo eficaz e digno, entretanto, numa ponderação entre o direito à vida e o direito à convivência familiar, o primeiro deve prevalecer, e, em regra, não é passível de relativização; tanto é verdade que a adoção é instituto lícito e com previsão expressa no Código Civil. Em face dessa perspectiva, questiona-se se a instituição do parto anônimo seria mais um exemplo de alternativa que pode ser utilizada para se proteger a existência, em detrimento da convivência em família, evitando o abandono, os maus-tratos e o infanticídio, condutas tipificadas no Código Penal, mas tão comumente noticiados na realidade brasileira.
Dispõe o artigo 136 do Código Penal ( BRASIL, 1940) que a exposição a perigo da vida ou da saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância é punível com pena de detenção, de dois meses a um ano, ou multa, podendo ser aumentada se resultar em lesão corporal grave ou morte. Já a morte do filho causada pela mãe, sob a influência do estado puerperal, durante o parto ou logo após, é punível, conforme preceitua o artigo 123 do mesmo diploma, com detenção de dois a seis anos.
Outra conduta típica que diz respeito ao dever de guarda dos pais está prevista no artigo 133 ( BRASIL, 1940), o qual estabelece a pena de detenção de seis meses a três anos, para quem abandonar pessoa que esteja sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: ademais, o 3º, II, alerta que as penas aumentam-se de um terço, se o agente for ascendente da vítima. Ademais, mais especificamente em relação à matéria, o artigo 134 tipifica a exposição ou abandono de recém-nascido, para ocultar desonra própria, expressando como pena a detenção de seis meses a dois anos, sendo aumentada, se causar lesão corporal grave ou morte ( BRASIL, 1940).
Da exegese dos excertos do diploma penalista, verifica-se o reconhecimento da vulnerabilidade da criança, e mais propriamente do recém-nascido, bem como se confessa que condutas de abandono ou maus-tratos são capazes de inclusive ceifar a vida dos indefesos e se evidencia o risco que o estado puerperal da mãe pode causar para os seus filhos, inferindo-se, portanto, a necessidade de acompanhamento médico e psicossocial.
Assim como se constatou com o abortamento, a previsão de tais condutas típicas não as impede de acontecerem. A máxima popular segundo a qual o amor materno aflora ao se ter o primeiro contato com o filho não é compatível com a realidade de mulheres que vivem apartadas da sociedade, muitas vezes sob efeito de entorpecentes e álcool. Nesse sentido, Albuquerque ( 2008, p. 149) alerta que, apesar de o planejamento familiar pressupor o acesso aos meios de contracepção e à informação em tempo real, bem como a elaboração de políticas públicas afirmativas, capazes de controlar a natalidade e reduzir o abandono de crianças, o plano dos fatos se contradiz com esse plano jurídico, já que há pessoas excluídas de qualquer traço de dignidade e de cidadania, vivendo na miséria, que de fato não exercem a autonomia sobre seu corpo e sobre sua sexualidade.
Tampouco o mito do amor materno se coaduna com outra realidade diametralmente oposta, das mulheres abastadas, mas para as quais a gravidez proveniente de um relacionamento infiel colocaria em risco seus planos pessoais, ou seu status perante a sociedade. Não se está justificando a prática, já que para tais pessoas, o acesso aos meios contraceptivos não é de grande impasse, mas se está alertando para uma realidade fática, que existe independentemente do esforço do legislador brasileiro em punir a sua realização. Admitir a existência do problema social é o primeiro passo para se buscar meios legais para coibi-los.
Os porquês de as mães, por muitas vezes, não fazerem uso dos meios legais para dispor os filhos para adoção são os mais diversos, considerando-se a individualidade de cada uma. Julgá-las com um preconceito a priori não é atitude que se coaduna com a universalidade dos direitos humanos. Nessa perspectiva, pode-se afirmar, conforme dizeres de Motta ( 2006, p. 21), que “configura-se assim a postura paradoxal que caracteriza a atitude em relação a essas mulheres no decorrer de todo o processo: de um lado, a expectativa para que a entrega se concretize; de outro, a censura feroz em relação à mesma.”
Ademais, outros fatores contribuem para o distanciamento entre as mulheres que abandonam seus filhos e as instituições que poderiam acolhê-los, tais como o despreparo dos profissionais do sistema socioeducativo; a demora para se concretizar a adoção institucionalizada, o que resulta no abandono de crianças nas portas de residências, para serem adotadas rapidamente por dada família; e a necessidade do anonimato necessário à manutenção do segredo da existência da gestação ( LIMA, 2011, p. 36). Nesse diapasão, o mito do amor materno influencia na construção de estigmas contra as mães que visam a entregar os seus filhos, o que, muitas vezes, dificulta a entrega oficial para adoção. Ao se tomar o conceito de abandono na concepção de enjeitar, esquece-se que muitas entregas são protetivas da criança ( MOTTA, 2006, p. 28).
O amor gratuito que causa um recém-nascido, pelo simples fato de existir, na maioria das pessoas volta-se em ódio para a mãe que o abandonou, impedindo um julgamento contextual das condições em que ela se insere e, na maioria dos casos de abandono, tanto a criança quanto a genitora são vítimas das circunstâncias desfavoráveis, de modo que existe uma vulnerabilidade dupla, que, apesar de nem sempre ser reconhecida, pode ser constatada nas notícias divulgadas na mídia sobre crianças abandonadas.
Na China, país conhecido pelos problemas populacionais, de acordo com notícia publicada na agência de notícias BBC ( CHINA..., 2014), o Centro Chinês para o Bem-Estar e Adoção das Crianças inaugurou mais de duas dezenas de postos para abandono de bebês, desde 2011. As crianças são colocadas em uma incubadora, dez minutos após alguém pressionar o botão de alarme, um funcionário recolherá o bebê para a adoção. Cumpre ressaltar que, no país, o abandono também é ilegal, no entanto as autoridades sanitárias defendem que as incubadoras proporcionam um ambiente seguro, aumentando as chances de sobrevivência dos recém-nascidos. A medida foi tão procurada pela população, que um dos postos, em Guangzhou, recebeu 79 bebês nos primeiros 15 dias de funcionamento.
No contexto brasileiro dos séculos XVIII e XIX, o frequente abandono e a exposição dos recém-nascidos nas principais cidades e vilas ensejaram a utilização de um instrumento que primeiramente se destinava a preservar o anonimato da caridade cristã na Idade Média, mantido pelas Misericórdias, também chamadas Santas Casas, o qual, posteriormente, passou a ser utilizado para acolher recém-nascidos abandonados, em muitos casos ilegítimos, “frutos do pecado”. O instrumento tratava-se de uma caixa cilíndrica, que girava sobre um eixo vertical, para que os doadores, geralmente penitentes, colocassem na parte externa alimentos, remédios e mensagens, e, quando giravam a roda, as doações eram transportadas para o interior da instituição. O artefato continuou sendo o mesmo, mas passou a ser utilizado para o transporte de crianças que seriam abandonadas e passou a ser conhecido como roda de expostos ( TRINDADE, 1999).
Nesse sentido, o instituto possui como vantagem a proteção da vida e a saúde da mãe e da criança, pois, ao garantir o anonimato da genitora, desestimula o abortamento tardio e o infanticídio, tratando-se, pois, de uma necessidade social ( CARLUCCI, 2004, p. 78). Urgente se mostra a ampliação das possibilidades a serem apresentadas às gestantes que ostentam uma gravidez involuntária, para retirá-las da marginalização da imposição de condutas tidas como corretas pela maioria tratando-as como pessoas, alvos da proteção do Direito, dotadas de dignidade e de individualidade, sujeitos de direitos da personalidade, de direitos fundamentais e humanos.
Com base nessa perspectiva, tramitaram no Brasil o Projeto de Lei nº 2.834, proposto por Carlos Bezerra; o Projeto de Lei nº 3.220, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro e o Projeto de Lei nº 2.747, de autoria do Deputado Eduardo Valverde, todos datados de 2008. O primeiro projeto, mais sucinto, previa a conceituação do parto anônimo, como sendo aquele em que a mãe, assinando termo de responsabilidade, deixaria a criança na maternidade, para ser encaminhada à Vara da Infância e da Adolescência, para fins de adoção.
Proposto na Câmara dos Deputados, o PL 3.220 tinha o fito de instituir o parto anônimo no Brasil, assegurando à mãe a possibilidade de não assumir a maternidade da criança gerada; garantindo à mulher a realização de pré-natal e parto de forma gratuita e a preservação do segredo de sua admissão e de sua identidade pelo estabelecimento de saúde. Interessante teor contido na propositura diz respeito às questões de ordem prática, visto que o dispositivo 9º expressava que a criança seria registrada pelo Juizado da Infância e da Juventude com um registro civil provisório, recebendo um prenome, e que não seriam preenchidos os campos reservados à filiação; ademais, o artigo 11 estabelecia a impossibilidade de a mulher submetida ao parto anônimo, ser autora ou ré em qualquer ação judicial de estabelecimento da maternidade.
Os projetos em questão foram apensados ao PL 2.747 ( BRASIL, 2008b), que visava a criar mecanismos para coibir o abandono materno e discorria sobre o instituto do parto anônimo, incumbindo às unidades gestoras do Sistema Único de Saúde a obrigação de criarem um programa específico para o acompanhamento e a realização do parto anônimo. Entretanto, em junho de 2011, os projetos de lei foram arquivados, impedindo a evolução da matéria na realidade jurídica brasileira.
A relatora da Comissão de Seguridade Social e Família, deputada Rita Camata, defendeu que, com base no reconhecimento constitucional da criança como sujeito de direitos; na prioridade absoluta das crianças para a família, a sociedade e o Estado; baseando-se no direito do indivíduo obter as informações referentes à sua pessoa e ao seu passado, o parto anônimo não seria passível de acolhimento, já que há a opção de se instituir a adoção, logo após o parto, e já que toda mulher já tem direito à assistência médica. A comissão rejeitou por unanimidade as proposituras de alteração legislativa.
Quanto à alegação de ser desnecessário o parto anônimo e a implementação de programas de saúde especificamente destinados ao apoio à gestante, mostra-se gritante a sua incongruência com a realidade expressada no cotidiano do Brasil e comprovada pelos dados estatísticos da Organização Mundial de Saúde. É sabido que a saúde sexual e reprodutiva é tema da Lei 9.263, datada de 1996 ( BRASIL, 1996), que regulamentou o direito ao planejamento familiar, prevendo, dentre os serviços a serem disponibilizados para a mulher, a assistência à concepção e à contracepção; o atendimento ao pré-natal, ao parto, ao puerpério, também prevendo assistência ao neonato. Entretanto, carecem de eficácia social os ditames previstos na lei já em vigor, de modo que, se fosse estabelecido um programa específico para tal fim, haveria uma possibilidade maior de preservar a mãe e o fruto de sua concepção.
Ademais, ainda no que toca ao pronunciamento da relatora, há de se frisar que, já que o parto anônimo preconiza justamente a tutela da criança, com base em informações sociais realísticas, dessa forma, é óbvio que a considera como sujeito de direitos. Coadunando com esse pensamento, Albuquerque ( 2008, p. 153) afirma que o instituto deve ser enfrentado como uma política pública de proteção à criança, em consonância com o artigo 227 da Constituição Federal.
Defende, ainda, a relatora da Comissão ser inadequado determinar aos estabelecimentos de saúde responsabilidades e atribuições que não lhes dizem respeito, como o encaminhamento de filhos anônimos para adoção, sem a intervenção do Ministério Público e das Varas de Infância e da Juventude, instituições competentes para atuar nesses casos. Ora, designar novos corresponsáveis pelo manejo inicial dos trâmites burocráticos em relação ao parto anônimo não implica eximir de responsabilidade e de atuação os promotores de justiça e os juízes, mas sim em solicitar a cooperação integrada de ambos, para que, em conjunto com a equipe multidisciplinar de saúde, ofereçam à mãe e ao recém-nascido todo o respaldo de que necessitem.
Inicialmente, caberia à Comissão de Seguridade Social e Família a análise do mérito, e à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania a apreciação da constitucionalidade, juridicidade e da técnica legislativa, mas, devido ao fato de ter sido apensado o PL nº 3.220/2008, o despacho inicial foi revisto pelo Presidente da Casa, para que ele também se manifestasse sobre o mérito e para que as proposições fossem apreciadas pelo Plenário.
O deputado Luiz Couto, relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, entende que todos os projetos afetam o direito constitucional da criança à proteção integral, prevista no art. 227 da Carta Maior; que contraria o direito à informação e a garantia de convivência familiar. Entende que a não responsabilidade civil e criminal da mãe que opte pelo parto anônimo implica violar a proibição de que a lei exclua da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito individual e alega que o instituto contraria o sistema de proteção integral à criança e ao adolescente.
Quanto ao mérito, apesar de reconhecer a importância dos propósitos que embasaram as proposituras legais, afirma que a adoção do parto anônimo seria um retrocesso ao tempo das “rodas de enjeitados” medievais, época em que o anonimato era importante devido ao fato de a maternidade fora do casamento ser considerada socialmente abominável, assim como seus frutos. O relator afirma que, na atual conjuntura social, na qual a maternidade fora do casamento não é mais vista como maldição ou nódoa, seria um absurdo se retornar a esses tempos de discriminação. Nesses termos, a comissão em enfoque opinou pela inconstitucionalidade, injuridicidade, falta de técnica legislativa e pela rejeição do Projeto de Lei nº 2.747/2008 ( BRASIL, 2008b) e, no mérito, pela rejeição dos Projetos de números 2.834 e 3.220.
O que aparentemente foge à percepção do relator é que a pretensão do parto anônimo não é incentivar a desresponsabilização de qualquer pessoa que lese direito individual, mas é a de contextualizar a mulher, que é tida como agressora, dentro da sua realidade de vulnerabilidade. O julgamento míope de uma sociedade que parece só enxergar problemas se estes estiverem acontecendo dentro da sua classe social (e com pessoas que lhe são próximas) desumaniza a análise das mães abandonadas, dos pontos de vista financeiro e social. Acusar e incriminar parecem ser posturas mais verossímeis que a busca pela compreensão dos motivos dos outros.
Por mais que a visão da mãe solteira não seja tão maculada de estigmas como era na época medieval, dizer que não há preconceitos e que o parto anônimo implicaria retomar uma discriminação hoje inexistente são afirmações que não condizem com a realidade brasileira. Ora, se não houvesse discriminação, se existisse amparo suficiente legal e social, os números de casos de abandono de crianças e de abortamento não seriam tão alarmantes como verdadeiramente o são.
4 A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO À ASCENDÊNCIA BIOLÓGICA DO NASCIDO DE PARTO ANÔNIMO EM PROL DA PRESERVAÇÃO DA VIDA
Na Constituição Federal brasileira ( BRASIL, 1988), no artigo quinto, é possível encontrar-se embasamento para o direito de informação, tanto no inciso XIV, que dispõe genericamente sobre esse direito; quanto no XXXIII, o qual preceitua ser direito de todos receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, sob pena de responsabilidade, mas prevê que são ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, ou seja, em outros termos, já alerta que se trata de direito não absoluto.
Em relação especificamente à criança, a Lei nº 8.069, de 1990 ( BRASIL, 1990b), que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê, em seu artigo 10, ser obrigação dos hospitais e dos demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes a manutenção de registro das atividades desenvolvidas, por meio de prontuários individuais, pelo prazo de dezoito anos; bem como efetuar a identificação do recém-nascido, mediante o registro de sua impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe; e fornecer declaração de nascimento em que constem, necessariamente, as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato, entre outros deveres.
Como se pode constatar, há a preocupação em manutenção de dados das crianças, inclusive no tocante à identificação da genitora, coadunando com os artigos 15 e 17 do mesmo diploma, que preveem, respectivamente, a dignidade da criança e do adolescente, devido ao seu reconhecimento como sujeitos de direitos; e a preservação da imagem, da identidade. É com base nesses dispositivos que se fundamenta o direito à ascendência biológica, ou à ancestralidade genética, ou de forma mais simples, direito a conhecer sua origem biológica, que transcende o direito a ter acesso a uma tabela de dados expresse a prospecção genética para contrair determinadas enfermidades, para abranger também o direito a conhecer a identidade da gestante.
No entanto, cumpre salientar que, conforme expressa Campos ( 2008, p. 84), há situações em que a criança pode ter o direito de conhecer os seus progenitores, mas não tem o direito de ser reconhecida por eles, no sentido de não caber obrigações parentais perante ela. É sob essa perspectiva que Paiva ( 2016, p. 104) defende que, independentemente se a reprodução é natural ou assistida, não se pode retirar do filho o direito de investigar a sua ancestralidade, por esse direito decorrer do princípio da dignidade da pessoa humana e ser ligado à sua identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à integridade da saúde física e mental.
Ainda sobre a informação, a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990 ( BRASIL, 1990a), estabelece no seu sétimo artigo, item 1, que, imediatamente após seu nascimento, a criança deverá ser registrada, incumbindo-lhe o direito, na medida do possível, de conhecer seus pais e de ser cuidada por eles. Ora, esse artigo, que foi suscitado nos pareceres das Comissões de Seguridade Social e Família e Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, para respaldar negatória ao parto anônimo, em nada se contradiz com o instituto. De grande razoabilidade é que se priorize, quando for possível, que a criança não só conheça seus pais, mas também goze da educação advinda deles; em uma concepção ideal, o melhor local em que uma criança pode ser inserida, é em seu seio familiar. Entretanto, no dispositivo, alerta-se que nem sempre essa postura é possível, abrindo margem para se relativizar o direito, em face de outro de maior hierarquia.
Em complemento, o artigo seguinte, no seu item 2, prevê o dever de atuação estatal de assistência e proteção adequadas com vistas a restabelecer rapidamente sua identidade, na hipótese em que a criança venha a ser privada ilegalmente de algum ou de todos os elementos que configuram sua identidade. Desse modo, evidencia a preconização da atuação do Estado na proteção da identidade da criança, argumento este que é utilizado para se priorizar o direito à ascendência biológica e para se repudiar o parto anônimo.
Devido ao fato de o anonimato fazer parte da designação do instituto, em uma visão não fundamentada, pode-se acreditar que se nega o total conhecimento do nascido do parto anônimo sobre seu nascimento, entretanto há que se ponderar que um dos projetos de lei sobre a matéria que foram arquivados, o PL 3220 ( BRASIL, 2008a), visava a estabelecer, conforme seu artigo 6º, que a mulher deveria fornecer e prestar informações sobre a sua saúde e a do genitor, as origens da criança e as circunstâncias do nascimento, dados que permaneceriam em sigilo na unidade de saúde em que ocorreu o parto, sendo passíveis de revelação a pedido do nascido de parto anônimo e mediante ordem judicial.
Para que haja o pleno reconhecimento da personalidade jurídica, não é possível limitar-se a identificação da pessoa no tocante ao sexo, ao estado ou à sua filiação legal, ignorando características que são capazes de afetar sua identidade cultural, ou seja, sua verdade biográfica. Em um Estado Democrático de Direito, o direito a conhecer sua origem biológica trata-se de um direito fundamental, derivado da dignidade e da identidade da pessoa, já que o indivíduo é individualizado na sociedade pelo conjunto de atributos e informações de caráter biológico e outras, que dizem respeito a sua personalidade própria ( MARTÍNEZ, 2005, p. 80).
É evidente que não é compatível com o parto anônimo o mesmo rol qualitativo e quantitativo de informações previstos no ECA, no entanto também não é condizente com a Constituição se cegar para o número de mulheres que morrem por práticas abortivas em ambientes insalubres e sobre as quais aparentemente a lei só se ocupa para punir; mulheres estas, que, quando não efetuam o abortamento, levam a gravidez a termo, mas abandonam suas crias, muitas vezes como um gesto de amor, com a esperança de que, longe delas, encontrem melhores condições de vida.
É em face dessas situações paradoxais, que os direitos se concretizam por meio de esforços de ponderação. Se o direito à vida é o mais supremo dentre os direitos fundamentais, do qual decorrem todos os demais, pode-se afirmar que, apesar da importância que ostenta o direito a conhecer as origens genéticas, inerente ao nascido do parto anônimo, a negatória a tal direito secundário se justifica quando a sua mitigação implicar preservação da vida.
A legalização do parto anônimo resulta em afirmar que basta a vontade da mãe, para que a criança seja retirada de sua família biológica, eliminando suas possibilidades de estabelecer vínculos filiativos e de conhecer a sua origem genética ( CARLUCCI, 2004, p. 79). O ponto mais controvertido do parto anônimo pode aparentar ser o de ignorar qualquer posicionamento do pai, entretanto, da análise das práticas do abortamento e do abandono de crianças, vê-se em ambas as hipóteses que a iniciativa seria individual da gestante, desse modo, o instituto não contribuiria para a exclusão do pai, que já seria excluído de toda forma. Ademais, há de se frisar que, em muitos casos, a exclusão foi prévia, mas partiu do homem genitor que se recusou antecipadamente a arcar com suas responsabilidades, deixando a mulher a ermo.
5 CONCLUSÕES
A minoria silenciosa das mulheres sem respaldo para a gestação alarma por meio dos seus gestos, enquanto os legisladores afirmam que o Brasil apresenta um cenário favorável para o desenvolvimento da gestação e para o estímulo da oferta de filhos para adoção.
O abortamento é uma realidade, assim como o é o abandono de neonatos. A autonomia individual é priorizada pelas mulheres, sendo de pouca efetividade os dispositivos do Código Penal que visam a desestimular as práticas, evidenciando uma contradição entre o que está positivado e as reais necessidades sociais.
O Direito, como instrumento para a concretização da moral, não deve representar a opinião uníssona de quem for detentor de maior poder. A grande incumbência das Ciências Jurídicas é a de tutelar os vulneráveis, destinando a eles um trato isonômico, de modo a equipará-los aos que se encontram em posição mais favorável, seja econômica, seja social; e, na problemática em questão, há vulneráveis nos dois polos, a mãe e o filho.
O contexto de exclusão em que se inserem as mulheres que se submetem a cometer crimes tipificados contra a sua prole deve ser considerado. As condutas ilícitas, conforme a legislação em vigor, são feitas no silêncio e como consequência do abandono, pautadas em uma pluralidade de razões individuais. O fato é que permeia nessas gestantes a dúvida de saber se terão uma segunda chance social, na comunidade que hipocritamente afirma apoiar as mães solteiras, que diz acreditar que os estigmas da maternidade solitária foram legados à Idade Média.
Desincumbir-se dos deveres maternos, paradoxalmente, pode ser um ato de afeto e de cuidado, e, acima de tudo, um gesto de salvação. O neonato que seria abandonado, sem proteção alguma, em situação de hipervulnerabilidade e com poucas chances de sobrevivência, será salvo por meio das estruturas de acolhida, sem que para tanto, a mãe tenha que pagar com a sua exposição.
Ademais, o parto anônimo mostra-se uma alternativa para salvar a vida das mulheres que, devido aos desafios da descriminalização do abortamento, o praticam clandestinamente em situações insalubres, bem como, por ser uma alternativa à gestante desesperada e despreparada, pode vir a contribuir para a opção por manutenção da gravidez, segura de que conseguirá o anonimato ao seu termo.
Normas voltadas para um mundo ideal não são suficientes para reger o mundo real. Há a necessidade de adequação entre necessidades sociais e as previsões legais, para que se garanta a efetividade do corpo normativo, sendo, portanto, injustificável o arquivamento dos projetos de lei que disciplinam o parto anônimo, já que se trata de instituto plenamente condizente com os direitos à liberdade sexual e reprodutiva, planejamento familiar, tutela da vida e proteção da criança.
REFERÊNCIAS
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