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DE ALGUMAS CATEGORIAS TEÓRICO-METODOLÓGICO-JURÍDICAS: UM DIÁLOGO PÓS-DISCIPLINAR
ON SOME THEORETICAL-METHODOLOGICAL-LEGAL CATEGORIES: A POST-DISCIPLINARY DIALOGUE
DE ALGUNAS CATEGORIAS TEÓRICO-METODOLÓGICO-JURÍDICAS: UN DIÁLOGO POST-DISCIPLINARIO
Revista Opinião Jurídica, vol. 17, núm. 25, pp. 203-220, 2019
Centro Universitário Christus


Recepção: 11 Setembro 2018

Aprovação: 22 Outubro 2018

DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v17i25.p203-220.2019

Resumo: Este é um ensaio jushumanista pós-disciplinar, bebendo longinquamente na metodologia dos ensaios de Montaigne e Bacon e na pós-disciplinaridade de Gonçal Mayos e em sua escola. Este estudo pretende trazer à superfície elementos de Teoria e Metodologia do Direito nem sempre apercebidos e sublinhados, numa ótica perspetivista e crítica. Além disso, passa em revista questões, como a Aporia, o Tempo e o Modo, o problema da Teoria e vários tipos de abordagens metodológicas. Este é mais um levantamento para fazer pensar do que para doutrinar e fornecer dogmas pré-fabricados.

Palavras-chave: Aporia, simbologia jurídica, metodologia Jurídica, teoria do Direito, alienação, crítica.

Abstract: This is a post-disciplinary jushumanist essay, drinking far and wide in the methodology of the Montaigne and Bacon essays and in the post-disciplinarity of Mayos and his school. It intends to bring to the surface elements of Theory and Methodology of Law not always perceived and underlined, in a perspectivist and critical approach. It reviews issues such as Aporia, Time and Mode, the issue of Theory, and various types of methodological views.It is more a survey to make think than to indoctrinate and provide prefabricated dogmas.

Keywords: Aporia, legal Symbology, legal Methodology, theory of Law, alienation, criticism.

Resumen: Este es un ensayo jushumanista post-disciplinario, bebiendo largamente en la metodología de los ensayos de Montaigne y Bacon y en la post-disciplinaridad de Mayos y su escuela. Pretende traer a la superficie elementos de Teoría y Metodología del Derecho no siempre apercibidos y subrayados, en una óptica perspectivista y crítica. Se pasa revista a cuestiones como la Aporia, el Tiempo y el Modo, la cuestión de la Teoría, y varios tipos de enfoques metodológicos. Es más un levantamiento para hacer pensar que para adoctrinar y propor-cionar dogmas prefabricados.

Palabras clave: Aporia, simbología jurídica, metodología Jurídica, teoría del Derecho, alienación, crítica.

SUMÁRIO

1 Aporia e ação. 2 Os tempos e os modos. 3 Teoria: ver mais longe. 4 Metodologia da redução da complexidade. 5 Metodologia da estilização: Inutilia truncat. 6 Scripta Volant-juristas, artistas e intelectuais na sociedade da escrita e na sociedade da informação. 7 Para além da venda: senso comum, preconceitos, símbolos jurídicos. Referências.

1 APORIA E AÇÃO



Figura 1 – “Onda Invasora” – aguarela sobre papel, 2018
coleção particular do autor.

Tanto Pinharanda Gomes, na sua obra Pensamento e Movimento ( GOMES, 1974), em Filosofia pura, como Braz Teixeira, em Filosofia do Direito, no seu conhecido livro Sentido e Valor do Direito ( TEIXEIRA, 2006), avançam a questão da aporia, como algo de essencial, próprio da especulação, do viver e do fazer da Filosofia. Em síntese, ao contrário do que alguns pensam (e muitos juristas utilitaristas e apressados: e sem cultura, além do mais), a Filosofia não é um saber esotérico que forneceria soluções eventualmente mais complexas, mais meandrosas, mais escondidas dos profanos leigos, totalmente leigos, ou dos meio-profanos cientistas. Há quem julgue e inquira a Filosofia e a Filosofia do Direito sobre essas supostas verdades ocultas.

Nesse sentido, embora haja muitas coisas que a Filosofia desvenda e revela, o que contribui para a ilustração e, sobretudo, para o esclarecimento de quem a tais “segredos” (que o não são) seja capaz de aceder, o certo é que não se trata de um tesouro escondido de receitas, fórmulas mágicas, nem sequer dados e conclusões intocáveis a que se pudesse chegar e parar, contemplando. Também se não pode de tal data fazer uma aparatosa “revelação” [...].

O próprio da Filosofia é chegar-se à conclusão de que, uma vez formulada com rigor a problemática, ela aí está, podendo ser encarada por várias perspetivas, podendo ser glosada de várias formas, mas não sendo suscetível de solução. É uma encruzilhada. Porém, saber que é uma encruzilhada é saber mais que julgar que se cortam nós górdios à espadeirada, pensar que tudo tem solução por um ato voluntarista quantas vezes simplesmente ideológico. Para Aristóteles, as conclusões se contradizem, como que se equivalem nos pratos da balança, e, por isso, não se pode andar mais, senão em círculo, cercando o problema, no que poderá haver mais aprofundamento ou alguma redundância.

A aporia foi também, de algum modo, associada ao impasse da “amecania”, que leva à indecisão ou à dúvida. Em contrapartida, não consideramos que a passagem de Hamlet, de Shakespeare (Hamlet, III, 1), seja uma verdadeira situação de impasse aporético. Pelo contrário, afigura-se-nos uma estratégia retórica incitadora à ação. Basta ler com atenção todo esse passo: “To be, or not to be, that is the question: Whether ‘tis nobler in the mind to suffer The slings and arrows of outrageous fortune, Or to take arms against a sea of troubles, And by opposing end them?” ( SHAKESPEARE, 1986, p. 812).

É claro que o seguimento desse texto é muito rico e pode dar a ideia de algo zigueza-gueante [...].

Porém, na verdade, o que vai ocorrer na peça, senão ação (Ser), podendo eventualmente não ser pela Justiça, pelo menos em nome da vingança?

Na ilustração, a onda que salta os paredões e parece estancar-se junto da cidadezinha costeira estará tomada por aporia? Morre na praia, ou quase [...] Dir-se-ia com propriedade.

Quanta coisa há que está para além do nosso entendimento! Repugna, profundamente, a sem-cerimônia, a petulância daqueles que, nos seus pedestais da comunicação social entronizada ou nas simples redes sociais, fulminam este e aquele, isto e aquilo, do alto de um saber meramente subjetivo, quantas vezes segregação linear dos seus interesses mais comezinhos (ou pretensos interesses, imediatistas), por reação a ódios elementares e entusiasmos viscerais, sem razão.

Antes a dúvida. As certezas são muito úteis para a ação, quando se sabe agir e quando são boas certezas. Entretanto, os que sempre possuem certeza de tudo normalmente estudaram pouco, meditaram pouco e acreditam que não sofrerão as consequências dos seus inevitáveis erros. Por vezes, escapam-lhes, é certo, mas também poderão vir a ter de pagar (por uma inevitável lei natural de reação) pela sua leviandade. Eles e outros por eles.

2 OS TEMPOS E OS MODOS



Figura 2 – “Barcos na praia”, aguarela sobre papel, 2018
coleção particular do autor.

Tempos e Modos são excelentes categorias concatenadas na Gramática, que propiciam metáforas tão apropriadas e sedutoras que “O Tempo e o Modo” foi nome de revista (emblemática) e de série de televisão, em Portugal, e certamente de algumas coisas mais.

Comecemos pelo Tempo.

Toda a gente conhece a fórmula de Santo Agostinho sobre o Tempo. Se não lhe perguntarem o que é o Tempo, ele saberia; se lhe perguntarem, não saberia responder. O tempo é realmente grande mistério que não cabe nos relógios, nos calendários, nem mesmo na História, sua narradora e “testemunha” (na verdade, dos tempos), como diria Cícero ( De Oratore, 46 a.C., II, 36): “Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur?”

O tempo como processo, decurso, acumulação de anos, envelhecimento, digamos que coisificado, tem sido sempre objeto do Direito. Prazos, prescrições (e desde logo a aquisitiva, ou usucapião), suspensões, termos, tudo isso faz parte do quotidiano jurídico.

Já o tempo da Arte é, sobretudo, (ou era, classicamente) mais subtil, e de maturação. Daí a necessidade de provas tipográficas repousarem para se evitar erros de simpatia, daí a conveniência de que o ponto final (por exemplo, a assinatura) na obra de arte seja adiado até um pouco depois (por vezes são anos), para que ela possa ser revisitada pelo artista com outros olhos. Antes de tudo, na Literatura (mas nada impediria que fosse aplicada a outras Artes), a recomendação do repouso dos originais, antes de virem a lume: deveriam ser nove anos, conforme recomenda Horácio, na sua Arte Poética ( 19 a.C., 388): porque, enquanto fechado assim na gaveta, ainda se pode ir limando (é o célebre labor limae), depois de vindo a público, não mais [...].

O nosso tempo acelera-se muito. É uma banalidade dizê-lo, mas sofre-se e perde-se muito com a falta de tempo e o desaparecimento vertiginoso de instituições, e mesmo simples comércios. A canibalização da concorrência, a tendência monopolista e de concentração fazem varrer do mapa inúmeras lojas que davam cor à paisagem das cidades, e serviços que lhes eram úteis desaparecem para dar lugar a muitos franchisings anônimos, nem sempre assumidos por pessoas experientes e competentes. Gravíssima e muito perigosa é a mudança vertiginosa das regras – dos sinais de trânsito aos regulamentos de tudo. É cada vez mais complicado saber “em que lei se vive”, haver um generalizado consenso sobre que lei se deva aplicar e confiança nos agentes da Justiça, que, nos meios de comunicação social, em alguns países ao menos, parecem ter aprendido Direito (ou não, por vezes) por cartilhas muito diferentes. O conceito que a pessoa comum faz sobre o Direito não parece cessar de ser negativo, ou, no mínimo, de generosa perplexidade.

Não se sabe, realmente (e mesmo apesar de esforços de divulgação e até de explicação do conteúdo das leis por parte de alguns governos) em que lei se vive, e potencia-se assim a infração involuntária. Além disso, há pessoas que assumiram, ainda que só semiconscientemente,a perspetiva de uma vida movida apenas pelo interesse; outras pela moral e / ou pelareligião. É complicado que o Direito não cumpra, para estas, o papel de mínimo denominadorcomum do ordenamento social. Isso pode redundar em infrações – ora pelo descaso que selhe tributa, ora (mais grave ainda) pelo facto de alguns se pautarem por ordens sociais normativasque reputam superiores (e muito mais claras) ao mundo jurídico. Condenado, umsacerdote não nos recordamos de que denominação, ao ser entrevistado, terá dito algo como:“esta é a justiça dos Homens, mas aguardo a Justiça de Deus”. Já foi há anos, e a moda podepegar. Não se critica o direito de expressão do Homem de fé. Certamente o que se passariaentão, como dissemos já há alguns anos, é que não ocorreria a nenhum sacerdote dizer isso,nem a uma televisão teledifundi-lo.

De algum modo, anda-se à tona: o cidadão normal assim anda; felizmente, talvez, com pouca consciência dos riscos que corre numa sociedade hiper-regulada. No entanto, pouco melhor estará o próprio jurista, que, aliás, normalmente se diverte muito quando o leigo acha que ele deve saber as leis da sua específica querelazinha particular. Todos os honestos vão esperando que a honestidade básica chegue; mas não chega, muitas vezes, porque podemos ser apanhados “à traição” por uma norma qualquer que obviamente nos era impossível conhecer [...]. Os desonestos conseguem, por vezes, prosperar por entre as malhas da Lei, mas desonestos sempre encontram meio de se aplicarem e darem concretização à sua vocação.

Apesar de tudo, estamos, como diriam os chineses, num tempo muito interessante. Um tempo de mudanças, em que se joga o destino da Civilização sabe-se lá por quanto tempo. Basta atentar nos quatro cavaleiros do nosso apocalipse hodierno:

Primeiro, o perigo bélico de uma III Guerra mundial.

Segundo, o perigo antidemocrático, autoritário ( BAARS; SCHEEPERS, 1993) ou fascista ( RIEMEN, 2012), se preferirmos uma palavra forte, mas nem sempre consensual. Enfim, com uma ou outra roupagem local, trata-se do alastramento dos despotismos pelo mundo.

Terceiro, no perigo ambiental e sanitário, que nos inunda de lixo, de mudanças climáticas inesperadas e de doenças que nos deixam indefesos.

Quarto, o perigo da pobreza, da fome, da exclusão e do pauperismo social: que tem pontos altos nos escândalos das migrações das zonas mais pobres para as mais ricas, mas, nas próprias zonas ricas, há guetos e ameaças e concretizações de políticas de terra queimada no plano social.

It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair, we had everything before us, we had nothing before us, we were all going direct to Heaven, we were all going direct the other way — in short, the period was so far like the present period, that some of its noisiest authorities insisted on its being received, for good or for evil, in the superlative degree of comparison only ( DICKENS, 2012, p. 5).

Reconhecerão o início da História de Duas Cidades, de Charles Dickens, que é irresistível citar no original.

Apesar de vivermos atualmente certa sanha antimoderna e anti-iluminista, a ideia de que hoje é o melhor e o pior dos tempos é também absolutamente aplicável ao nosso século XXI que se abeira do fim da sua segunda década. O Iluminismo ( TODOROV, 2008) continua a ser, tal como a Fraternidade ( DEBRAY, 2009), uma promessa incumprida em grande medida.

É caso para meditar em todas as esperanças e dificuldades que os tempos da Revolução Francesa experimentaram, e ver como hoje, quando alguns a ignoram e outros execram o seu legado, sobretudo de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, pode-se continuar a reinventar o Progresso Humano, aprendendo, claro está, com os erros e as quedas do passado. Essa lição da História (que está em Cícero, mas tanto foi vilipendiada, afinal quiçá com razão) é que não se tirou. Não prevenimos nem conseguimos deter, de forma convincente, os Quatro Cavaleiros do nosso apocalipse atual. Será que ainda iremos a tempo?

Chegamos aos modos. Os modos são formas de fazer e de ser. O modo essencial de alguém é o seu estilo, a sua maniera. O estilo, como dizia Buffon, é o próprio homem, é a própria pessoa.

Os tempos de hoje têm os seus modos. Naturalmente.

Mas a expressão “modos”, brevitatis causa, vai remeter-nos aqui apenas para duas expressões correntes: bons modos e maus modos.

Tem havido algumas sentenças judiciais, por aqui e por ali (depende muito dos contextos, não há uma jurisprudência universal), que ora atenuam a necessidade de sermos bem-educados, ora a acentuam para níveis verdadeiramente excessivos. Vocativos insultuosos são, por vezes, permitidos, enquanto se requerem, por vezes, salamaleques que chegam a surpreender. Não será, portanto, por uma suposta tendência jurídica que se poderá ir. O Direito, sem prejuízo de enquadrar e punir situações muito graves, deveria, na verdade, remeter-se ao mínimo denominador comum e deixar bagatelas do tipo cortesia e mesmo algumas questões morais e religiosas para outras instâncias (informais – não jurídicas, pelo menos) de regulação. Se alguém (que o devesse fazer) me não tira o chapéu, a menos que esteja em contexto militar ou de outra muito severa formalidade, posso, no máximo, não o cumprimentar da próxima vez – não creio que deva fazer gastar dinheiro aos contribuintes (e a mim mesmo) colocando um processo judicial por essa bagatela, para mais não jurídica. Portanto, bons modos e maus modos, cada vez mais, não deveriam ser uma questão jurídica, pelo menos macrojurídica.

Dizemos pelo menos macrojurídica, porque a realidade dos maus modos, a realidade da má educação está a invadir a nossa sociedade e há que se admitir que, por exemplo, em ambiente de algumas instituições, não possa ser facilmente permitida, sem alguma consequ-ência disciplinar, essa má educação que está hoje a raiar os limites do crime – com agressões. Portanto, são muito, muito maus modos.

Num hospital, numa repartição pública, numa escola, num tribunal, obviamente num quartel, não podem tolerar-se insolências entre iguais e entre hierarquicamente desiguais. Isso ocorre quer no sentido horizontal, quer no vertical, de cima para baixo como de baixo para cima.

É uma questão de bom senso e de bom gosto até. O volume de palavrões que se escutam hoje nos corredores de veneráveis instituições começa a ser de tal forma ensurdecedor que e a sua qualidade a tal ponto baixa que faria “um marinheiro corar”. Diga-se, para o policiamento politicamente correto: sem qualquer preconceito antimarinheiro, e apenas para usar a expressão do Prof. Henry Higgins, personagem do Pigmaleão (ou My fair lady, no cinema) de Bernard Shaw.

Não pode essa questão deixar de remeter para a sem-cerimônia com que a provocação verbal, a agressão pelo menos simbólica se faz sentir em algumas artes. Certos espetáculos de Teatro ou performances têm feito hoje prodígios que excitam os sentidos de forma exaltante e positiva, denunciam situações e são um regalo para a mente. Julgo que estamos aí em grandes tempos.

Entretanto, de igual modo, entre o plástico e o teatral (com incorporação ou não de outras artes, como o cinema, a fotografia, a pintura de cenário, etc.), alguns não só aboliram qualquer pudor tradicional (por palavras, atos e certamente também omissões e pensamentos – para elencarmos todas as atuais formas “canônicas” de “pecar”) como também certamente abusam da violência, e o público não se sente protegido pela quarta parede. Pelo menos, os mais tímidos terão apreensão, no mínimo. Por vezes, nem será nada de particularmente agressivo em si. É o efeito de surpresa e de abolição da distância e da intimidade do espectador. Não se pode dizer simplesmente que quem não quer prescindir dessa dimensão do direito de personalidade não vá: porque não é fácil prever o que poderá passar-se por vezes. Por exemplo, já nos leram a sina num teatro, sem o pedirmos. Para nós foi divertido, mas acreditamos que, para outros, possa ser incômodo ou perturbador. Não é uma questão simples.

Passemos à questão mais em geral. Em grande medida, muitos problemas se resolveriam por autocontenção, decorrente de educação familiar precoce e do treino do gosto. Há quem diga que o palavrão tem uma função terapêutica, e certamente o teatro pode ser um lugar para essa catarse, mas uma coisa é o ambiente protegido, enquadrado, do palco, outra é o quotidiano, e, por vezes, algum dia a dia a requerer um pouco de recato e cerimônia, respeito pelos outros. Então, no contacto entre países diferentes partilhando a mesma língua, mas não o mesmo uso de certas expressões-limite, os menos avisados poderão ter choques irreversíveis. Certamente, acrescentam-se preconceitos xenófobos apenas porque há uma sensibilidade diferente à conotação contextualizada de certas expressões. Jean Lauand é sempre um autor a revisitar nestas questões sociolinguísticas, especialmente no seu livro notável Revelando a Linguagem ( LAUAND, 2016).

Certamente, na raiz de todas essas desventuras e dificuldades, está a proletarização de toda a família, mesmo das famílias com mais posses (mas assalariadas ou empenhadas em negócio próprio, de exploração direta). É extraordinário; num certo sentido, é fascinante (e nunca ocorreu antes) que, numa família, todos, das crianças mais pequenas (ou pelo menos os adolescentes e jovens) aos velhinhos que ainda nela vivam, sejam ativos perseguidores de um projeto hiperindividualista, que os leve a considerar o apartamento doméstico como uma hospedaria ou albergue de passagem, onde muito pouco fazem já refeições e praticamente nenhumas em comum, e vão dormindo a horas desencontradas, quando dormem. É a ideia de família como grupo de detentores de chaves idênticas da mesma fração imobiliária, e, se tanto, encontram-se por festas, alguns aniversários, casamentos e funerais (mas mesmo isso está em decréscimo).

Assim sendo e, sobretudo, sem pais e avós e tios que ensinem, e, sobretudo, eduquem desde tenra idade, é um milagre a sociedade estar como ainda está. Deveria estar muito pior. Deve-se isso a anjos da guarda, extraterrestres vigilantes, à ordem natural das coisas, à sorte? Cremos que se deverá ainda à lei natural, a tal que reside no coração de todos, mesmo sem ser ensinada. Porém, não se pode confiar demasiado nela, porque há pessoas com embotamento moral, amorais mesmo, para além dos psicopatas, mais estudados recentemente ( SILVA, 2008).

Bons modos, boas maneiras, dependem de certa delicadeza da alma, mas essa delicadeza é como o Direito Natural: não nos diz concretamente como fazer. É necessário o correspondente direito positivo. Querer ser simpático numa saudação é um impulso ou até uma decisão louvabilíssima, mas se aqui se saúda com aperto de mão, ali com vênia e mãos postas, sem tocar, acolá com um, dois, três e talvez mais beijos, conforme o acolá? Já assistimos pessoalmente a gaffes complicadas, quase incidentes diplomáticos, por não haver conhecimento dos códigos dos outros nem tolerância e adaptação a eles.

Para além da questão multicultural, dentro da mesma sociedade, tem havido problemas de transmissão de valores e de simples comportamentos de convivência ou trato social. Isso complica muito a vida social. Tanto mais que, enquanto em certos ambientes (até no escolar, hoje) as crianças, os jovens e os jovens adultos ainda gozam, em geral, de uma imensa simpatia e tranquila aceitação de plurais modos por parte de professores (salvo um ou outro mais bizarro ou embirrador maldisposto), na vida real do trabalho e das relações a sério, na vida fora da escola (ambiente hiperprotegido), há pessoas que levam muito a peito as suas reais e pretensas prerrogativas e não tolerarão que se lhe não façam as vênias todas e prestem as vassalagens mais absurdas. Tendo poder e dinheiro, será complicado a um descontraído (nem falamos de um insolente) adaptar-se. Obviamente, é em muitos aspetos positivo que a escola seja um microcosmo de liberdade e de pluralismo. Não pode é ser uma escola de maus modos.

3 TEORIA: VER MAIS LONGE



Figura 3 – “Farol negro”, aguarela sobre papel
coleção particular do autor.

A rua que leva, em Atenas, à Acrópole que domina a cidade chama-se Teorias. Poderia chamar-se via panorâmica, porque teoria é visão de longo alcance, vasta, por contraposição às miopias.

Por cima de princípios, atrás de princípios, na base de princípios, pode haver princípios mais fundos, mais englobantes ( CUNHA, 2012). É o caso dos princípios que, ao mesmo tempo, inspiram a proibição do retrocesso e a reserva do possível. Eles não são senão superficialmente incompatíveis, e, sobretudo, jogados por gregos contra troianos e por troianos contra gregos. É preciso ler a Constituição (todas as constituições) na sua unidade... mesmo na unidade dos seus princípios hermenêuticos, que não constam, obviamente, do seu texto, mas são constructos doutrinais e / ou jurisprudenciais ( CUNHA, 2007).

Do mesmo modo, as grandes autoridades da doutrina, por exemplo. São como grandes faróis, que, por vezes, iluminam gerações inteiras, em vários continentes. Contudo, essa idolatria de grandes nomes sonantes é uma espécie de totemismo. Pode haver mais ignorados doutrinadores que subam às escarpas mais altas e vejam ainda mais longe que os faróis que todos veneram, muitas vezes por moda, e sem terem mesmo assimilado a obra dos celebrados.

4 METODOLOGIA DA REDUÇÃO DA COMPLEXIDADE



Figura 4 – “Elegia norueguesa”, aguarela sobre papel
coleção particular do autor.

As aparências iludem muito. O formalismo e a burocracia do Direito, o seu hieratismo, as volutas e os arabescos verbais e conceituais (esse ritualismo que foi recuperado com maestria por Niklas Luhmann no seu Legitimation durch Verfaheren – Luhmann ( 1980) - como comentamos no final da nossa tese Constituição, Direito e Utopia – Cunha ( 1996)) não ajudam a que se vá ao fundo dos problemas e se simplifiquem os procedimentos.

Por outro lado, constroem-se famas baseadas apenas em pedestais (por isso tão pretendidos) e não na verdadeira altura dos protagonistas catapultados “em situação” pela situação. Há, nas sociedades atuais, uma verdadeira febre de famas e prestígios. O mundo do Direito é, pelo menos em algumas latitudes, bastante permeável ao marketing pessoal e institucional.

Seria interessante pensar um Direito mais simples e juristas mais ascéticos, em que a simplicidade e a ética de serviço fossem aprofundadas, em que fosse vaidade ser-se conciso, objetivo e irrepreensível no plano ético, em que se fizesse gala nesse despojamento e aticismo. No fundo, seria uma manifestação da boa austeridade (não o austeritarismo castigador) da Ética Republicana ( CUNHA, 2010).

5 METODOLOGIA DA ESTILIZAÇÃO: INUTILIA TRUNCAT



Figura 5 – “Arcos do jardim”, tinta da China e grafite sobre papel, 2018
coleção particular do autor.

Em alguns saberes e em muitos fazeres, a abundância realmente prejudica, ao contrário do brocardo jurídico quod abundat non nocet. As artes, ao pensarem esse problema, remetem para o excesso de informação, uma espécie de poluição de elementos numa composição.

O Direito é, em contrapartida, um dos exemplos mais acabados da incontinência verbal e procedimental (e mesmo processual): escreve-se demasiado, volumes enormes, determinam-se voltas, rituais, fórmulas em excesso. Mesmo assim, sempre há o espectro das lacunas [...]. O exagero de traços e de passos é visível em todas as dimensões do jurídico: normas a mais, factos a mais, invocação de valores a mais, ou a torto e a direito (ou em vez deles, mais notório ainda, princípios), e excesso, finalmente, de textos.

É claro que um minimalismo jurídico pode ter também os seus riscos, nomeadamente de falta de elementos para o princípio da legalidade, de falta de direitos, liberdades e garantias, que, mesmo postos “preto no branco”, não são respeitados em muitas latitudes.

Mas há que ter bom senso. Se se puder escrever um tratado de cem páginas, não o fazer como tijolo de mil. Há já ecos de que algumas Cortes limitariam o número de páginas de peças processuais das partes. Achamos muito, muito bem. Também limite de páginas das sentenças seria muito bom, porque, sem limite, tem-se assistido a uma pletora de palavras. Tudo o que é verdadeiro e real se pode resumir. Qui mieux abreuve mieux preuve.

Infelizmente, mesmo os jovens aprendizes de juristas são insensivelmente levados a crer que podem ter nota melhor por escreverem muito, ou falaram demais, e sempre de forma rebuscada, barroca, com bordões de linguagem identificadores da tribo dos juristas, mas, em geral, não significando grande coisa, ou coisa nenhuma. O verbo farfalhudo, mas, com ainda alguma qualidade literária, já não está de moda. Porém, em alguns casos, foi substituído pela farfalhice sem qualidade – o que é pior.

A simplicidade é um valor. Em tudo. Na Arte como na Justiça. Há naquela a ideia de não sobrecarga de informação (é preciso saber parar, também aqui – é o ananké stenai aristotélico). Nesta o adágio que radicalmente sentencia: “qui mieux abreuve mieux preuve”, que provém do séc. XVI, da pena de Loysel.

6 SCRIPTA VOLANT - JURISTAS, ARTISTAS E INTELECTUAIS NA SOCIE-DADE DA ESCRITA E NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO



Figura 6 – “O Escriba”, óleo sobre tela, 2018
coleção particular do autor.

Num final previsto por Flaubert para o seu inacabado romance satírico Bouvard e Pecuchet, os dois galhardos copistas aposentados, desiludidos com todas as tentativas (como, de algum modo, ocorre com Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto), acabariam por encontrar a possível felicidade em voltar a copiar coisas sem sentido (burocracias fictícias, já que estão aposentados). Se copiar burocracias ao serviço já é um absurdo, uma vocação impossível, repugnante até, para uma vida que se queira cheia e com sentido, imagine-se o quão lúdico pode parecer fazê-lo por desporto, por lazer, para passar o tempo que todo o enciclopedismo (hoc sensu) não conseguiu consumir de forma satisfatória. É verdade que há quem adiante que eles copiariam algo mais divertido, como o Dicionário das ideias feitas. Mas, como todas as obras irônicas, esse dicionário só é divertido para quem o leia com o distanciamento necessário a degustar (e antes disso a detetar) a ironia. Dois copistas, com toda a sua atitude servil, copiando o Dictionnare des idées reçues, é também um final de redobrada sátira.

O nosso imaginário judaico-cristão, mas também com uma vaga tintura de cultura egípcia, associa certamente escribas quer a fariseus e outras seitas judaicas (embora se compreenda bem que havia escribas de várias seitas) dos tempos bíblicos (com vantagem para o dos Evangelhos, eventualmente), quer aos funcionários letrados ao serviço do faraó, que o escriba acocorado do museu do Louvre sintetiza, e foi cantado por Rui Knopfli: um agelasta em sentido próprio (e não, como em Rorty e já em Rabelais, num sentido figurado), homem petrificado puro, que não tem individualidade.

O escriba teria que ser, na verdade, homem de pedra, porque é como que na pedra que ele grava, escrevendo. Escrever (salvo Jesus, que teria escrito na areia apenas) é querer que a escrita permaneça. “Está escrito” é quase como dizer “dura lex sed lex”. Ius redigire in artem o que é? É o processo de criação epistemológica do Direito, o corte do nó Górdio do Direito, com o chamado Isolierung, pelo qual a juricidade se separa das suas congéneres na primeira função dos indo-europeus. Tudo isso se dá, em grande medida, por três processos de individualização:

Primeiro, a compreensão de que nem tudo o que é permitido é honesto (non omne quod licet honestum est) e que o Direito precisa apenas de não abrir mão de um mínimo denominador de normatividade, laicizando-se, despolitizando-se, estabelecendo os seus limites da própria moral.

Segundo, criando um corpo próprio de oficiais do ofício jurídico, que, no caso, foram, ao que parece, inicialmente desviados do exército, criando uma congregação epistémica, pois não há especialidade, arte, estudo sem quem mantenha vivo o seu fogo sagrado.

Terceiro, colocando por escrito leis, e, mais tarde, a própria doutrina (mas essa é outra e curiosa história). A Lei das XII Tábuas, que Cícero diz outrora haver sido ainda sabida de cor (reminiscência da cultura oral no monumento jurídico de cultura escrita), é a grande manifestação, como depois serão o Corpus Iuris Civilis, o Decreto de Graciano, os Coutumes, em França (mais presentes nos lares gauleses que as próprias Bíblias), e finalmente as Constituições escritas modernas. Todos esses textos estão associados à cultura de escrita do Direito.

De vez em quando, há, evidentemente, manifestações de oralidade no Direito, como a oralidade processual, que, entre nós, terá sido inspirada na ordenação processual austríaca de Klein, e certamente as novas tendências de mediação têm de privilegiar alguns aspetos de oralidade. Contudo, que brocardos recordamos sobre o assunto? Scripta manent, verba volant. E ainda: quod non est in actis non est in mundo. Esses brocardos (mesmo, como é o caso, quando não correspondem à estilização de princípios) são sociológico-juridicamente interessantes, porque revelam os tópicos em curso, em cada época e lugar. Tudo teria que estar no proces-so, para poder existir. Porém, há hoje poderes judiciais para conhecer mais, investigar mais, para suprir as deficiências e lacunas.

Vivemos, é verdade, em civilizações de escrita. Basta lembrar que as três grandes religiões que conviviam no lago mediterrânico são todas “religiões do Livro”, e a palavra da Divindade é fixada em todos esses casos por escrito (há apenas raríssimas exceções: como em Mt. XIII, 17). Além disso, embora tenha uma repercussão de massas muito escassa, e disso os não especialistas, como nós, se arrisquem a dizer muitas barbaridades, pode haver correspondências esotéricas, nomeadamente cabalísticas (judaicas ou cristãs, pelo menos), entre letras, números e conceitos com significado transcendente... como é o caso da fantástica chave ou máquina do mundo que é a árvore da vida ou dos sefirot.

Contudo, se a nossa matriz é de escrita (uma Constituição grega dizia que não se poderia alterar um “j” da Bíblia), o mundo da sociedade da informação tudo mudou. Esse é um dos sérios e profundos problemas que temos, desde logo, na comunicação política e na educação. Estávamos habituados a que o pregoeiro lesse no pelourinho (oralidade mas sobre escrita), que o tribuno tivesse decorado o seu discurso previamente escrito, ou que o lesse mesmo (sendo o improviso admirado, porque raro), que, mesmo sabendo de cor os textos da liturgia ao cabo de recitação tantos anos, o sacerdote os proclamasse olhando o livro. O conhecimento transmitia-se pelo escrito, o escrito adquiria uma magia e uma dignidade especiais. Mas os tempos atuais são de frenética sucessão de imagens-sons, mais aquelas que estes, e um Vilém Flusser, agudo filósofo deste Brave new world, já prevê que os nossos netos vivam grudados às telas de computadores ( FLUSSER, 2008), numa espécie de permanente aventura virtual que faz lembrar a Cidade dos cães (City), de Clifford D. Simak, em que os homens, nos seus “paraísos artificiais”, aposentaram-se da vida ativa, e esse protagonismo passou para os cachorros ( SIMAK, 1955).

O Direito, a Literatura (por maioria de razão) e a Arte (especialmente a pintura, no Extremo Oriente, aliás, tão próxima da caligrafia) de uma sociedade de escrita, isso conhecemos. Como serão numa sociedade de imagens feéricas e efêmeras aquelas realidades, isso já é muito complexo afirmar. Contudo, é desafio que se tem pela frente e a que se não pode virar a cara. A situação, agora, é que os escritos passaram a voar, a não permanecer: não apenas pela sua transformação em imagem, como em tantas (e, normalmente, salvo raras exceções) adaptações literárias ao cinema, ao vídeo, à televisão, porque as imagens em si mesmas desbancaram o escrito. A desmaterialização dos livros e das revistas, mesmo nos meios acadêmicos, traz um mundo totalmente novo. Será que os nossos descendentes, já educados nessa impossibilidade de tocar e cheirar o papel, deixarão de ter necessidade dessa intermediação desses sentidos? Bastar-lhes-á a imagem fugaz na tela de um computador ou até de um telemóvel (no futuro num implante no braço ou algo similar)?

Entretanto, convém recordar que algumas aportações do tempo do papel ainda são úteis.

Roland Barthes, nas suas Mitologias, chama a atenção para a figura do escriba como escrevente ( BARTHES, 1957), não verdadeiramente escritor, nem intelectual, mas decerto nos faz lembrar tantos que parece escreveram a soldo ou na mira de uma prebenda, uma benesse... Hannah Arendt, Walter Benjamin, e o mais antigo Julien Benda, com o seu impressivo título La trahison des clercs ( BENDA, 1927) dão-nos etapas e ângulos primeiro da criação da figura do intelectual, emergindo do letrado e do artista na sombra do mecenas, mas também de como alguns (muitos, decerto) se foram acomodando, burocratizando, tornando-se aparelhos ideológicos do Estado ( ALTHUSSER, 1974) ou do partido, do contra-Estado, etc.. Alain Caillé fala da demissão dos intelectuais, Habermas chama a atenção para a ilusão do cientismo nas ciências sociais (o que é outra armadilha em que os intelectuais – hoje muitos com a profissão de professores e pesquisadores – caem). O grande historiador da Arte Ernst Gombrich adverte, no seu opus magnum, logo nas primeiras páginas, para o risco de um meio-saber sobre arte, que é a fonte do snobismo nessa área, coisa detestável e que se detecta à légua ( GOMBRICH, 1995). Quando teremos juristas e artistas, que, para além do métier concreto, se possam elevar a esse posto de consciência social informada e informadora, formada e formadora, que seria o de intelectual? Há trabalho a fazer, de cidadania e de pós-disciplinaridade.

7 PARA ALÉM DA VENDA: SENSO COMUM, PRECONCEITOS, SÍMBOLOS JURÍDICOS



Figura 7 – “Prótese ótica”, grafite sobre papel, 2018
coleção particular do autor.

O senso comum, entre nós estudado por um Pinharanda Gomes e por nós abordado em Desvendar o Direito ( CUNHA, 2014), é uma falsa consciência do mundo, dos outros, de si próprio. Anda de mãos dadas com muitos preconceitos. Embora nos tempos em que corre o estigma de preconceituoso seja também uma forma de ver a tranca no olho do vizinho, apontando males de que o próprio frequentemente padece e por vezes de forma redobrada. Uma das ainda mais eficazes formas de paralisar um adversário bem-intencionado é acusá-lo de preconceito, o que o deixa baralhado e sem reação. É uma espécie de feitiço Petrificus totalus da saga de Harry Potter, utilizado logo no primeiro volume da heptalogia (A Pedra Filosofal), também depois. Além disso, frequentemente o confundido ficará (pela sua boa-fé) com complexo de culpa, que normalmente nem tem tempo para reagir de forma articulada. Por vezes, o alegado preconceito é apenas a projeção de outro preconceito, pois pode haver preconceitos simétricos: e assim quem diz qual é o bom e qual é o mau preconceito? Um assunto a estudar em grupo e com frieza. Sem preconceitos, se possível, ou, ao menos, com a consciência daqueles que cada um tem, porque, realmente, se, muitas vezes, se pode ser acusado abusivamente de ter algum, é rara a pessoa que se consegue elevar tão pura e objetivamente da sua circunstância de forma a poder dizer-se totalmente limpa, isenta de preconceitos. O problema é que há alguns que são ou podem redundar até em crime. E outros são veniais, podendo até ser, por vezes, curados com ironias e afins, de forma pedagógica e não punitivista.

A situação do Direito, num mundo de luta de preconceitos contra preconceitos, não é nada fácil. Ele deveria constituir um corpo de normalidade mínima e diálogo básico entre as pessoas. Por muito ideológico que fosse, havia que pacificar a sociedade com base nalguns tópicos comuns. Isso cada vez ocorre menos.

A tarefa jurídica fica mais complexa pelo solipsismo e egoísmo dos sujeitos e pelos antolhos que têm.

Desde sempre, o Direito remeteu para uma imparcialidade que se traduziu metaforicamente na venda da Justiça. Sabemos hoje que não terá sido uma invenção antiga, nem sempre significou o que hoje significa. Mas, afinal, à falta de poder ver bem, não se via nada. Escutava-se.

Talvez um novo símbolo do Direito precise de óculos, telescópio e microscópio.

REFERÊNCIAS

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Autor notes

* Professor Catedrático e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Licenciado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutor pela Universidade Paris II, Agregado pela Universidade do Minho, Pós-Doutor pela USP, Prémio Jabuti de Direito. E-mail: <lusofilias@gmail.com>. http://orcid.org/0000-0002-3602-8502. Este artigo foi revisado com o auxílio da Senhora Dr.ª Ana Patrícia Gonzalez, e adaptado ao português do Brasil.

lusofilias@gmail.com



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