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Recepção: 13 Maio 2020
Aprovação: 23 Abril 2021
DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v19i32.p117-147.2021
RESUMO
Objetivos: Diante do crescente protagonismo do Poder Judiciário na efetivação de políticas públicas de saúde, os Juizados Especiais Federais (JEFs) surgem como um importante instrumento de acesso à justiça para aqueles que necessitam de uma tutela envolvendo o direito à saúde. Na presente pesquisa, buscamos compreender o fenômeno da judicialização da saúde pública no Brasil, com ênfase nas peculiaridades desse tipo de demanda no âmbito dos Juizados Especiais Federais Cíveis. Analisamos os fundamentos éticos, fáticos, normativos e jurisprudenciais utilizados nas decisões dos JEFs de São Luís/Maranhão-Brasil, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019.
Metodologia: Partimos do método dedutivo com abordagem qualitativa e quantitativa, com procedimento bibliográfico e documental. Na abordagem qualitativa, para categorizar as informações obtidas, utilizou-se o método de análise de conteúdo, destacando-se como procedimentos metodológicos a categorização, a inferência, a descrição e a interpretação.
Resultados: Demarcamos que, diante da competência absoluta dos JEFs Cíveis, tornou-se fundamental a correta definição da expressão econômica pretendida com a causa, como forma de evitar retardamento na prestação da tutela de saúde. Observamos que há prevalência de motivação ética na fundamentação das decisões judiciais analisadas, constatamos, ainda, precária utilização dos instrumentos desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no aprimoramento da prestação jurisdicional nas hipóteses de demandas em saúde.
Contribuições: Levantamos a necessidade de construção de mecanismos capazes de garantir provimento jurisdicional análogo para situações semelhantes, como forma de eliminação de qualquer espécie de loteria judicial. Há necessidade de observância aos instrumentos desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Ministério da Saúde (MS), como forma de garantir a boa-fé e a segurança jurídica nas demandas sobre o tema.
Palavras-chave: Direito à saúde, Judicialização da saúde, Juizados especiais cíveis federais, Controle judicial de políticas públicas.
ABSTRACT
Objectives: In view of the increasing role of the Judiciary in the implementation of public health policies, the Federal Special Courts (JEFs) appear as an important instrument of access to justice for those in need of protection involving the right to health. In this research we seek to understand the phenomenon of the judicialization of public health in Brazil, with an emphasis on the peculiarities of this type of demand within the scope of the Special Federal Civil Courts. We analyzed the ethical, factual, normative, and jurisprudential foundations used in the decisions of the JEFs of São Luís / Maranhão-Brazil, from March 31, 2014 to March 31, 2019.
Methodology: We start from the deductive method with a qualitative and quantitative approach, with a bibliographic and documentary procedure. In the qualitative approach, to categorize the information obtained, the content analysis method was used, with categorization, inference, description, and interpretation as methodological procedures.
Results: We demarcate that, given the absolute competence of the Civil JEFs, it became essential to correctly define the economic expression intended with the cause, as a way to avoid delay in the provision of health protection. We observed that there is a prevalence of ethical motivation in the basis of the judicial decisions analyzed, we also found that the instruments developed by the National Council of Justice (CNJ) were precarious in improving the jurisdictional provision in the case of health demands.
Contributions: We raised the need to build mechanisms capable of guaranteeing similar judicial provision for similar situations, as a way of eliminating any kind of judicial lottery. There is a need to comply with the instruments developed by the National Council of Justice (CNJ) and the Ministry of Health (MS), as a way of guaranteeing good faith and legal security in the demands on the subject.
Keywords: Right to health, Judicialization of health, Federal special civil courts, Judicial control of public policies.
RESUMEN
Objetivos: Ante el creciente papel del Poder Judicial en la implementación de las políticas de salud pública, los Juzgados Federales Especiales (JEF) aparecen como un importante instrumento de acceso a la justicia para quienes necesitan protección que involucre el derecho a la salud. En esta investigación buscamos comprender el fenómeno de la judicialización de la salud pública en Brasil, con énfasis en las peculiaridades de este tipo de demandas en el ámbito de los Tribunales Civiles Federales Especiales. Analizamos los fundamentos éticos, fácticos, normativos y jurisprudenciales utilizados en las decisiones de los JEF de São Luís / Maranhão-Brasil, del 31 de marzo de 2014 al 31 de marzo de 2019.
Metodología: Partimos del método deductivo con un enfoque cualitativo y cuantitativo, con un procedimiento bibliográfico y documental. En el enfoque cualitativo, para categorizar la información obtenida se utilizó el método de análisis de contenido, con categorización, inferencia, descripción e interpretación como procedimientos metodológicos.
Resultados: Demarcamos que, dada la competencia absoluta de las JEF Civiles, se hizo imprescindible definir correctamente la expresión económica que se pretendía con la causa, como forma de evitar demoras en la prestación de protección de la salud. Observamos que existe un predominio de la motivación ética en la base de las decisiones judiciales analizadas, también encontramos que los instrumentos desarrollados por el Consejo Nacional de Justicia (CNJ) fueron precarios para mejorar la prestación jurisdiccional en el caso de demandas de salud.
Contribuciones: Planteamos la necesidad de construir mecanismos capaces de garantizar una prestación judicial similar para situaciones similares, como forma de eliminar cualquier tipo de lotería judicial. Existe la necesidad de cumplir con los instrumentos desarrollados por el Consejo Nacional de Justicia (CNJ) y el Ministerio de Salud (MS), como una forma de garantizar la buena fe y seguridad jurídica en las demandas sobre el tema.
Palabras clave: Derecho a la salud, Judicialización de la salud, Tribunales civiles especiales federales, Control judicial de las políticas públicas.
1 INTRODUÇÃO
Diante do fenômeno da judicialização da saúde pública, constata-se uma aparente desuniformidade quanto às decisões que enfrentam o tema, ora prevalecendo uma fundamentação mais teórica e genérica, ora destacando-se dados fáticos diversos que possam influenciar o direito aplicável à espécie (ALVES, 2017). Nessa seara, tem-se observado, ainda, dentre outros fatores, que a antecipação da tutela judicial, eminentemente de caráter excepcional na lei processual brasileira, transformara-se em ato de rotina no âmbito da demanda judicial de saúde, com significativos impactos para a efetividade do direito à saúde no Brasil (VENTURA et al., 2010).
Suscitam-se, com isso, debates não somente sobre a extensão do direito social à saúde, como também acerca dos limites e das possibilidades do controle judicial sobre as políticas públicas a ele referentes. Nesse contexto, o Poder Judiciário tem procurado desdobramentos para, cada vez mais, atender essas crescentes demandas, destacando-se a importância e atuação dos Juizados Especiais Federais, os quais, conduzidos por valores mais modernos e práticos, introduziram uma nova concepção aos meios de resolução de conflitos (BOCHENEK; NASCIMENTO, 2011).
Conduziu-se o estudo consoante uma abordagem qualitativa e quantitativa, sem, contudo, valorizar uma em detrimento da outra, na medida em que os dados quantitativos foram complementados com as informações emitidas pelos dados qualitativos (GAIO, 2008). Trata-se de pesquisa do tipo exploratória-descritiva (TRIVIÑOS, 2013). A abordagem quantitativa partiu de dados brutos recolhidos com o auxílio de instrumento padronizado do JEF Virtual1 e de informações disponibilizadas pela Diretoria do Núcleo Judiciário da Seção Judiciária do Maranhão (NUCJU). Esses dados foram traduzidos em linguagem matemática e apresentados estatisticamente. No entanto, deve-se ressaltar a utilização de raciocínio antidogmático por excelência, aberto, ademais, ao questionamento de si próprio (RAMOS, 2003), que levou em consideração a transitoriedade do objeto de pesquisa como veículo de transformação de sua realidade.
Quanto aos procedimentos metodológicos, foi, ainda, um tipo de pesquisa bibliográfica e documental. Caracteriza-se como bibliográfica por se desenvolver com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos, com o propósito de promover uma revisão da literatura (CERVO; BERVIAN; SILVA, 2007). Coloca-se, ainda, como uma pesquisa documental, prevendo a construção do estudo com base em documentos, tanto nos analíticos ou de primeira mão quanto nos de segunda mão (GAIO, 2008).
Tal procedimento permitiu a coleta dos dados de normas federais, bem como de decisões nos processos judiciais que foram selecionados, com vistas a enumerar as linhas de discurso lá encontradas, optando-se por uma fragmentação dos espaços de enunciação, para uma compreensão mais ampla de sua formação, tornando possível a análise das falas presentes no estrato de análise selecionado.
A primeira varredura dos documentos foi realizada nos sistemas eletrônicos da Justiça Federal do Maranhão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), do Conselho da Justiça Federal (CJF), do CNJ, do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do Ministério da Saúde (MS) e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), entre outros.
Outrossim, parte da pesquisa embasou-se em dados colhidos a partir de uma análise secundária que, segundo Levin e Fox (2010), é aquela em que o pesquisador não coleta os próprios dados, mas utiliza dados de arquivos que já foram reunidos e que, por isso, tende a ser mais rápida e proveitosa.
Com efeito, o estudo inicialmente se valeu da coleta de dados existentes nos sistemas internos dos Juizados Especiais Federais de São Luís/MA, a fim de acessar relatórios e arquivos com informações sobre os processos ajuizados com o objeto “tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos”, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019.
Acerca do direito à saúde, o STF já reafirmou jurisprudência sobre a responsabilidade solidária dos entes federados no dever de prestar assistência à saúde, conforme decisão proferida na análise do Recurso Extraordinário (RE) 855.1782, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que teve repercussão geral reconhecida, por meio do Plenário Virtual.
Nesse cenário, destaca-se que o manejo de uma demanda de saúde que possua a União no polo passivo é fato principiador da competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109 da Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988). É Importante frisar, contudo, a competência absoluta dos juizados especiais federais, ou seja, havendo juizado federal na seção ou subseção judiciária, as causas que não superem o limite da alçada previsto (sessenta salários mínimos) serão necessariamente propostas nos juizados, e não nas varas, ainda que especializadas em matéria de saúde (ZEBULUM, 2017).
Com isso, justifica-se a construção do presente estudo e sua relevância para o contexto social e jurídico atual, ao buscar compreender conceitos predominantes relacionados ao estudo da judicialização da saúde pública no Brasil, bem como analisar algumas peculiaridades desse tipo de demanda no âmbito dos Juizados Especiais Federais Cíveis (JEFCs), com ênfase nos fundamentos éticos, normativos e jurisprudenciais utilizados na apreciação de demandas propostas perante os JEFs de São Luís - MA, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, a fim de contribuir para produção e divulgação de dados concretos nessa abordagem.
Salienta-se que o marco inicial escolhido, 31.03.2014, corresponde à data da instalação da 12ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão, com competência para processar e julgar feitos cíveis dos JEFs definidos na Lei n. 10.259/2001, nos termos da Portaria PRESI/SECGE nº 71, de 19 de março de 2014, e que, na data 31.03.2019, foi fixada como marco final, com vistas a delimitar o período coberto pela pesquisa.
A I Jornada de Direito da Saúde, realizada pelo CNJ em maio de 2014, constitui outro importante evento para o estudo, uma vez que deu início à formulação de uma série de enunciados interpretativos sobre o direito à saúde, capazes de auxiliar os magistrados nas decisões relacionadas a esses tipos de demandas (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014).
Na abordagem qualitativa, para categorizar as informações obtidas, utilizou-se o método preconizado por Bardin (2011), análise de conteúdo, destacando-se como procedimentos metodológicos a categorização, a inferência, a descrição e a interpretação (MINAYO, 2013). Buscou-se, assim, por meio da análise do conteúdo dos discursos proferidos no âmbito dos JEFs de São Luís/MA, identificar, em suas práticas concretas, quais intenções subjazem às emanações de poder que dele se distinguem no que tange à opção ético-sanitária do sistema normativo, no intuito de compreender a forma como as decisões jurídicas e políticas acerca do direito à saúde são afetadas por condicionantes sociais e econômicas, bem como em que medida estas condicionantes afetam sua realização.
Nessa perspectiva, as evidências captadas na pesquisa foram organizadas em categorias temáticas, submetidas aos mesmos critérios, a fim de proceder a análise do conteúdo, agrupando os resultados de acordo com a similaridade dos conteúdos em referência.
Com relação à judicialização do direito à saúde no âmbito do Tribunal Regional Federal - TRF da 1ª Região (TRF1), ao qual pertencem os Juizados Especiais Federais (JEFs) de São Luís estado do Maranhão (MA), o quantitativo de processos ajuizados nos Juizados Federais é bastante significativo. Em 2018, por exemplo, 5.078 (cinco mil e setenta e oito) casos novos de saúde foram distribuídos aos JEFs do TRF1, bem mais que as 3.285 (três mil, duzentos e oitenta e cinco) novas demandas de saúde ajuizadas na 1ª instância do Tribunal no mesmo período, conforme dados obtidos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na ferramenta “Justiça em Números Digital” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018)3.
Por fim, o presente estudo visa a revelar como tem sido o enfrentamento dessas demandas no âmbito dos Juizados Especiais Federais Cíveis (JEFCs) de São Luís-MA. Com isso, ao traçar o perfil dessas ações nessa realidade específica, são evidenciadas algumas falhas encontradas na atuação da advocacia privada e a questão do dissenso entre os magistrados acerca da legitimidade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) para figurar no polo passivo desses feitos, após o convênio firmado com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Na sequência, a presente pesquisa expõe o resultado da análise dos fundamentos utilizados pelos magistrados dos JEFs de São Luís-MA na apreciação dos pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde nos processos ajuizados no período estudado, com ênfase nos aspectos éticos, fáticos, normativos e jurisprudenciais levantados nas decisões, propondo, ainda, reflexões acerca dos argumentos levantados pelos julgadores nos casos de declaração de incompetência ex officio.
2 PERFIL DAS DEMANDAS
Durante o período 31.03.2014 a 31.03.2019, foram ajuizados nas 04 (quatro) Varas Federais da Seção Judiciária do Estado do Maranhão, com competência para processar e julgar feitos cíveis dos JEFs definidos na Lei n. 10.259/2001 (7ª, 9ª, 10ª e 12ª Varas), 244 (duzentos e quarenta e quatro) processos4 com o objeto “tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos”.
Para a pesquisa, contudo, contabilizaram-se 243 (duzentos e quarenta e três) demandas, considerando que uma delas5 teve sua autuação cancelada após distribuição em duplicidade decorrente de instabilidade no sistema do JEF VIRTUAL.
Esse quantitativo de processos de saúde ajuizados nos JEFCs de São Luís representa 61,52% do número total de demandas de saúde processadas na Seção Judiciária do Maranhão no período estudado6, conforme Tabela 1, o que reforça a importância de estudos em torno das peculiaridades desses tipos de demandas nessa atividade jurisdicional diferenciada.
Nos 243 (duzentos e quarenta e três processos) processos, a maior parte dos autores, 178 (cento e setenta e oito) deles possuíam assistência da Defensoria Pública da União (DPU), representando 73, 25% (setenta e três vírgula vinte e cinco por cento) do total dos processos ajuizados.
Do restante, 28 (vinte e oito) autores tiveram o auxílio de advogados privados e 37 (trinta e sete) se valeram da atermação, ou seja, ajuizaram suas demandas sem a intervenção de advogado, por meio do reconhecido jus postulandi. Diante de suas condições de saúde, alguns se fizeram representar, inclusive, por terceiros, com esteio no art. 10 da Lei n. 10.259/2001. Dessa forma, o polo ativo dessas demandas pode ser caracterizado conforme o Gráfico 1.
O Gráfico 1 demonstra, portanto, o alto grau de judicialização da saúde nos JEFs de São Luís por pessoas que se declaram hipossuficientes, nos termos da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950 (BRASIL, 1950), e dos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil de 2015 (BRASIL, 2015), os quais estabelecem normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, contrariando alguns entendimentos, como o de Leão (2017), de que as pessoas com mais recursos financeiros, e, por consequência, jurídicos são as maiores beneficiadas pela atuação judicial nessas matérias.
Em um desses processos7, inclusive, havia uma estrangeira (argentina) como parte autora, sendo assistida pela DPU. No polo passivo, por outro lado, na maior parte dos casos - 230 (duzentos e trinta) processos -, a União figura como parte Ré. Na maioria deles, em 157 (cento e cinquenta e sete) processos, o Estado e o Município também estão como demandados, conjuntamente com o ente federal, sob a alegação de responsabilidade solidária entre todos, seguindo o entendimento reafirmado pelo STF.
Após a União, o Estado e o Município, a UFMA e a EBSERH são os outros entes mais demandados nesses tipos de ações: a UFMA aparece como parte Ré em 140 (cento e quarenta) processos, enquanto a EBSERH consta no polo passivo de 59 (cinquenta e nove). A propósito, observa-se divergência entre os juízes quanto ao reconhecimento da ilegitimidade passiva da UFMA nessas demandas.
Como pedidos nas demandas envolvendo o direito à saúde ajuizadas nos JEFCs de São Luís-MA, encontram-se os seguintes pleitos: fornecimento de medicamentos; transferência entre hospitais públicos e/ou privados; internação em hospitais da rede pública ou privada; vaga em leito de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) de hospital público ou privado; realização de exame; fornecimento de material cirúrgico; realização de cirurgia; outros, como fornecimento de cadeira de rodas, tratamento do tipo home care, reembolso de despesas hospitalares, transporte para continuidade de tratamento em hospital público, fisioterapia em leito de UTI, tratamento do tipo “fora do domicílio” (TFD), fornecimento de fraldas geriátricas, pagamento de consulta privada, fornecimento de suplemento alimentar e pagamento de parecer de geneticista para fins de transplante hepático.
Geralmente os pedidos de fornecimento de medicamentos ou de materiais cirúrgicos, estes últimos cumulados ou não com a solicitação de realização de procedimento cirúrgico, vêm acompanhados do pedido subsidiário de bloqueio judicial do montante correspondente nas contas públicas, em caso de descumprimento da obrigação de fazer eventualmente concedida. Os pedidos de internação ou transferência para hospitais públicos também normalmente aparecem seguidos de pedidos subsidiários de tratamento em hospitais privados ou de TFD em hospitais da rede pública ou privada.
Um tipo de pedido bastante recorrente nos JEFs da capital maranhense é o de fornecimento de material cirúrgico, o qual aparece em 22,22% (vinte e dois vírgula vinte e dois por cento) do total de processos analisados, somando 54 (cinquenta e quatro) processos ajuizados no lapso temporal de 31.03.2014 a 31.03.2019. Entre eles, destacam-se os seguintes insumos: Stent Farmacológico - 14 (catorze) processos; e Válvula de Ahmed - 10 (dez) processos.
O pedido de fornecimento de medicamentos, por sua vez, encontra-se presente em 50 (cinquenta) processos, representando 20,57% (vinte vírgula cinquenta e sete por cento) do número total de ações distribuídas para os JEFs no período estudado. Entre eles, destacam-se: Ranibizumabe (Lucentis) - 19 (dezenove) processos; Fosfoetanolamina8 - 8 (oito) processos; Insulina Lantus - 4 (quatro) processos; Enoxaparina Sódica - 3 (três); e Canabidiol - 1 (um).
3 AS FALHAS IDENTIFICADAS NA ATUAÇÃO DA ADVOCACIA PRIVADA
A atuação dos advogados privados nos processos envolvendo a saúde pública, ajuizados nos JEFCs de São Luís-MA, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, cenário e período abrangido pelo estudo, chama a atenção diante de algumas impropriedades técnicas e procedimentais encontradas.
Com efeito, dos 28 (vinte e oito) processos ajuizados por intermédio de advogados privados, apenas 3 (três), ou seja, apenas 10,71% (dez vírgula setenta e um por cento) não se incluem nessa observação, consoante Gráfico 2.
Uma das dificuldades encontradas diz respeito à questão da definição da competência para processar e julgar essas demandas. Em 7 (sete) processos, os advogados não observaram o regramento legal da competência absoluta e protocolaram as ações na Vara Comum Federal, o que ocasionou o declínio de ofício dessas demandas para as Varas com competência de JEF, em razão de o conteúdo patrimonial ou proveito econômico não ultrapassar 60 (sessenta) salários mínimos.
Em um deles9, inclusive, atribuiu-se à causa o valor de R$ 954,00 (novecentos e cinquenta e quatro reais), meramente para efeitos fiscais, com a alegação de que o valor real e total da demanda não poderia ser mensurado naquele momento processual.10
Em outros casos (quatro processos), ocorreu o inverso: deram entrada em Vara de JEF quando a demanda deveria ter sido ajuizada em Vara Comum, em virtude de o valor econômico ultrapassar os 60 (sessenta) salários mínimos previstos legalmente, o que acarretou a alteração de ofício do valor da causa, bem como o declínio de ofício, com a remessa dos autos para redistribuição a uma das Varas Cíveis da Seção Judiciária.
Ressalte-se que, em um desses casos11, o declínio ocorreu após a solicitação de apreciação do pedido subsidiário de internação em leito de UTI de hospital da rede privada, diante do descumprimento da decisão que antecipou os efeitos da tutela para compelir os réus a transferir o demandante para um leito de UTI pediátrica.
Diante da complexidade alcançada pela demanda e da potencialidade financeira prática requerida pelo caso, haja vista o pedido de internação em UTI da rede privada por tempo indeterminado, o magistrado afirmou não ser razoável estimar o valor da causa dentro da alçada dos juizados federais e, por essa razão, declinou a competência para uma das Varas Cíveis da Seção Judiciária.
Em outra hipótese12, o equívoco foi maior: o processo foi ajuizado em Vara Estadual da Fazenda Pública de São Luís - MA, mesmo com a União no polo passivo da demanda e com valor inferior ao teto dos JEFs. Diante disso e do regramento legal da competência absoluta dos JEFs, a magistrada, reconhecendo a incompetência do Juízo, determinou a remessa dos autos para uma das Varas com competência de JEF da capital.
Em 3 (três) demandas, remanesceu a incompetência do JEF, após a declaração de ilegitimidade passiva de algum dos entes do art. 6º, II, da Lei dos JEFs13, ocasionando a extinção dos processos sem resolução do mérito, com amparo no art. 485, VI, do CPC/201514. Em outro caso,15 não havia nenhum dos entes elencados no referido artigo no polo passivo do feito, o que também ensejou a extinção do processo sem resolução do mérito.
Vale destacar que, em outras 2 (duas) hipóteses, também houve a extinção dos processos, após a homologação do pedido de desistência formulado pela parte autora. Contudo, nessas duas demandas, apenas o Estado do Maranhão constava no polo passivo dos feitos, o que também poderia ter acarretado a extinção dos processos, diante da incompetência do JEF, em razão da pessoa, em virtude de o referido ente não constar no rol dos legitimados do art. 6º, II, da Lei dos JEFs.
Em outros 7 (sete) processos, o vício envolveu a capacidade de estar em juízo de algumas partes apontadas, pressuposto processual de validade do processo que, embora sanável16, também revela algumas das imprecisões técnicas encontradas nesses processos.
Dois desses feitos envolviam os interesses de menores, embora as suas genitoras constassem como autoras no polo ativo das demandas. Sabe-se, contudo, que os menores, conquanto não possuam capacidade de estar em juízo, são detentores da capacidade de ser parte, necessitando apenas do acompanhamento de um representante processual na demanda (NEVES, 2019).
A rigor, portanto, o menor quem deve figurar como parte no cadastro processual, representado por sua mãe, conforme retificado de ofício pelo magistrado em um desses processos17. Nos outros cinco processos, o vício se apresentava no polo passivo dos feitos: um apontava uma prefeitura como parte Ré, enquanto os outros quatro indicavam o Hospital Universitário do Maranhão (HUUFMA) como parte demandada.
Tais figuras, porém, não possuem personalidade jurídica, por serem órgãos administrativos da pessoa jurídica de direito público a qual são vinculados. Nesse caso, ensina Carvalho Filho (2014) que, em regra, um órgão não pode constar em nenhum dos polos de uma relação processual, por faltar-lhe o pressuposto processual relativo à capacidade de estar em juízo. Leciona, assim, que apenas excepcionalmente tal personalidade judiciária é aceita, quando se tratar de órgãos com envergadura constitucional que estejam defendendo suas próprias prerrogativas e competências, o que não corresponde com a realidade dos autos mencionados (CARVALHO FILHO, 2014).
Embora, na maioria desses processos, tal fato tenha passado despercebido, em um deles18, de forma acertada, o magistrado determinou de ofício a exclusão do HUUFMA do polo passivo do feito.
Conclui-se, assim, que todos esses casos, (em alguns, inclusive, mais de uma dessas questões foram observadas em um mesmo processo), ao mesmo tempo em que evidenciam o despreparo técnico por parte desses profissionais, revelam a importância de estudos como o presente.
4 A QUESTÃO DA (I)LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO (UFMA)
A questão da legitimidade passiva da UFMA para figurar nos processos envolvendo o direito à saúde é um tema recorrente e controverso nos processos ajuizados nas 04 (quatro) Varas com competência de JEFC de São Luís - MA, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019. Ressalta-se que, aqui, não se incluem os casos de alegação da UFMA de ilegitimidade para figurar no polo passivo sob a justificativa de não ter se negado a prestar a assistência de saúde pleiteada, atribuindo a não realização do serviço ao Estado, em virtude da falta de material para o procedimento respectivo.
A polêmica envolve a legitimidade ou não da UFMA para constar como parte Ré dessas demandas, após o convênio firmado com a EBSERH. Quanto a esse fato, na contestação apresentada no processo com autuação mais recente19, a UFMA alega, em síntese, que:
a) . A Fundação Universidade Federal do Maranhão - UFMA firmou, em 17 de janeiro de 2013, contrato com a EMPRESA BRASILEIRA DE SERVIÇOS HOSPITALARES, a EBSERH, empresa pública com personalidade jurídica de direito privado criada por autorização da Lei 12.550/2011 e tem por finalidade ‘a prestação de serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico à comunidade, assim como a prestação às instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres de serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, observada a autonomia universitária.’ (art. 3º);
b) . Com a adesão da UFMA à EBSERH foram transferidos à empresa a gestão do HUUFMA, compreendendo a oferta de assistência médica no âmbito do SUS e apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, importando também a transferência de responsabilidade de bens móveis e imóveis, cessão de servidores e sub-rogação de contratos;
c).. Com a adesão à EBSERH, por força de lei e de contrato, todas as atividades relacionadas à prestação de serviços médico-hospitalares foram transferidas à referida empresa;
d) . Os recursos que antes eram destinados à UFMA para a execução dos fins do HUUFMA hoje são transferidos diretamente à EBSERH em atendimento ao art. 8º da Lei nº 12.550/201120 e à Cláusula Oitava do Contrato;
e) . Por força do contrato firmado, a UFMA cedeu à EBSERH todo o patrimônio relativo às atividades do HUUFMA; assim, atribuir à UFMA a responsabilidade em prestar o serviço de saúde somente pode retardar qualquer provimento judicial;
f) .. A UFMA não tem recursos orçamentários ou financeiros para adquirir equipamentos médicos, não é gestora do SUS nem presta serviços hospitalares;
g) . Embora o Hospital Universitário mantenha popularmente o nome da universidade por motivos históricos, toda administração do nosocômio e prestação de serviços médico-hospitalares é realizada pela EBSERH através de sua unidade HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE SÃO LUÍS, inscrito no CNPJ nº 15.126.437/0004-96, sendo que a UFMA não o administra, não mantém relação de hierarquia com seus diretores e responsáveis nem presta serviços atendimento à saúde. É a EBSERH quem presta serviços ao Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2019b, on-line).
Dos 243 (duzentos e quarenta e três) processos distribuídos aos JEFs no período estudado, 139 (cento e trinta e nove) incluíram a UFMA no polo passivo das demandas, representando mais de 50% do total de processos ajuizados. Desses, 24 (vinte e quatro) foram declinados para a Vara Comum, 15 (quinze) ainda estão em tramitação21 e a maioria, 67 (sessenta e sete), acabou extinta sem resolução do mérito. Em um desses casos, o juiz acatou a preliminar de ilegitimidade arguida pela UFMA, retirando a entidade do polo passivo e extinguindo o feito sem mérito, por não haver outras partes demandadas.
Os processos restantes, 33 (trinta e três), foram resolvidos com a análise do mérito. Em 23 (vinte e três) deles, a UFMA apresentou contestação, sendo que, em 18 (dezoito), a referida entidade citou a EBSERH e alegou a ilegitimidade passiva para figurar no feito. Em 4 (quatro) deles, o juiz não se pronunciou sobre esse ponto, em 9 (nove), decidiu pela legitimidade da Universidade e, em 5 (cinco), pela ilegitimidade. Em outro caso22, ajuizado pela atermação, o juiz reconheceu de ofício a ilegitimidade da UFMA, na decisão que antecipou os efeitos da tutela, determinando a exclusão da entidade e a retificação do polo para fazer constar a EBSERH.
No período estudado, portanto, observou-se o seguinte panorama quanto ao enfrentamento do tema pelos magistrados dos JEFs de São Luís, o que demonstra a controvérsia com que se reveste a questão (QUADRO 1):
Duas das sentenças23 favoráveis à legitimidade da Universidade colacionaram um julgado do TRF da 1ª Região e defenderam a personalidade jurídica própria da UFMA, sem, contudo, mencionar a questão do convênio da entidade com a EBSERH. Uma delas24 aduziu que “[...] não merece prosperar a preliminar de ilegitimidade passiva do HUUFMA, haja vista a sua qualidade essencial como entidade prestadora de serviço de saúde.” (BRASIL, 2018a, on-line). Isso significa que, citando HUUFMA, ao invés de UFMA, mais uma vez, não mencionou a EBSERH. No mesmo caminhar, sem enfrentar a questão da EBSERH, assim dispôs um trecho de outra sentença25:
Outrossim, também não merece guarida a defesa da UFMA considerando que o objetivo do autor é o fornecimento de insumos e realização de procedimento cirúrgico em seu olho direito, bem como o seu atendimento clínico ter sido realizado por profissionais vinculados à UFMA. Por tais razões, reputo a instituição de ensino superior possui legitimidade passiva (BRASIL, 2016, on-line).
Uma das sentenças26 apenas mencionou a personalidade jurídica própria da UFMA e a responsabilidade da EBSERH pela administração do HUUFMA, conforme segue: “Já a UFMA, esta detém personalidade jurídica própria, devendo responder pelo HUUFMA, bem como é responsável pelo procedimento cirúrgico pretendido. Além disso, a EBSH [sic] é a responsável pela administração do HU.” (BRASIL, 2019b, on-line) Outras duas27aduziram que, mesmo com o contrato com a EBSERH, permanece a titularidade da UFMA pela prestação dos serviços médico-hospitalares, nos termos do trecho citado abaixo:
Rejeito, ainda, a alegação de ilegitimidade aduzida pela UFMA. Ora, o contrato firmado entre a UFMA e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) diz respeito, tão somente, à prestação de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico, o que não exclui a titularidade da UFMA na prestação dos serviços médico-hospitalares (BRASIL, 2016, on-line).
Nesse mesmo sentido, em duas sentenças,28 o juiz ponderou que a contratação com a EBSERH “[...] não implica em alteração da natureza jurídica do HUUFMA e de seu papel de execução de serviço de saúde [...]” (BRASIL, 2017, on-line, 2018b). Por outro lado, os sete casos que excluíram a UFMA do polo passivo justificaram a ilegitimidade com base na administração dos serviços hospitalares pela EBSERH.
Em três29 delas, o juiz fundamentou essa posição no art. 3º da Lei n.º 12.550/2011, em outra,30 invocou o inciso I do art. 4º da mesma lei e, em três,31 apenas alegou o contrato firmado em janeiro de 2013 entre as entidades (BRASIL, 2011). Em nenhuma delas, citou algum julgado que embasasse seu entendimento. De fato, observa-se a precariedade de decisões sobre o tema.
Em pesquisa realizada na ferramenta “Jurisprudência Unificada”32, disponível no site do Conselho da Justiça Federal, utilizando-se a expressão de busca “legitimidade e universidade e EBSERH”, apesar dos 14 resultados encontrados em todos os órgãos julgadores, apenas dois33 se referem ao tema em discussão, ambos no sentido da legitimidade da Universidade, a despeito da criação da EBSERH. Um deles, inclusive, foi citado em duas das sentenças analisadas acima.
Da análise dessas decisões, infere-se que, apesar da controvérsia instalada e da superficialidade da maioria dos fundamentos invocados, o entendimento pela legitimidade da Universidade Federal do Maranhão para figurar no polo passivo dessas demandas parece seguir a tendência das poucas decisões encontradas sobre o tema.
Vê-se, contudo, que a temática carece de decisões mais robustas, notadamente nos JEFs de São Luís-MA, demandando um maior enfrentamento da matéria pelos magistrados (frise-se que, em quatro processos, apesar da preliminar de ilegitimidade passiva levantada pela UFMA, o magistrado nem sequer mencionou tal fato na sentença), a fim de ensejar maior segurança jurídica quanto ao assunto e evitar transtornos com discussões acerca da legitimidade passiva ou não da UFMA, que possam eventualmente retardar uma prestação de tutela jurisdicional envolvendo um direito tão importante como o da saúde.
5 FUNDAMENTOS UTILIZADOS NAS DECISÕES LIMINARES
Devem ser motivadas todas as decisões proferidas em processo administrativo ou judicial, sendo obrigação dos julgadores exteriorizar as razões de seu decidir, demonstrando concretamente o raciocínio fático e jurídico que desenvolveu na decisão. É o que prevê o art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988 (NEVES, 2019).
A justificativa para a necessidade de motivação das decisões ganha relevo não apenas do ponto de vista jurídico, por possibilitar a elaboração e o julgamento de eventuais recursos, por exemplo, mas também por apontar o aspecto político da decisão, ao evidenciar a correção, imparcialidade e lisura do julgador, permitindo um controle da própria atividade do juiz ao proferir sua decisão (NEVES, 2019).
Em conflitos que envolvem a temática da saúde mais especificamente, enunciar os motivos que nortearam a escolha do magistrado, assim como compreender a justificação da decisão, ganha extrema importância, representando elemento fundamental tanto para a garantia do sistema público de saúde quanto para a efetivação desse direito fundamental (RAMOS; DELDUQUE, 2017).
O presente estudo visa, assim, a demonstrar os motivos éticos, fáticos, normativos e jurisprudenciais que sustentaram as decisões dos magistrados dos JEFs de São Luís-MA, oriundas da análise dos pedidos de antecipação dos efeitos da tutela nas demandas de saúde, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, bem como analisar a logicidade das fundamentações judiciais.
A escolha por esse tipo de decisão, e não pelas sentenças proferidas nos processos, está associada a uma característica frequente desses tipos de demandas de saúde, em que normalmente as petições iniciais vêm acompanhadas de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela. Tal peculiaridade também marca a realidade das demandas de saúde ajuizadas nos JEFs da capital maranhense, uma vez que, do total de 243 (duzentos e quarenta e três) processos, em apenas um,34 não houve a formulação desse tipo de pedido.
Para categorizar as informações obtidas, utilizou-se o método de análise de conteúdo, destacando-se como procedimentos metodológicos a categorização, a inferência, a descrição e a interpretação (MINAYO, 2013). Bardin (2011, p. 38) destaca que tal método consiste “[...] em um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objectivos [sic] de descrição do conteúdo das mensagens.”
Nessa perspectiva, as evidências captadas na pesquisa foram organizadas em categorias temáticas, submetidas aos mesmos critérios, a fim de proceder à análise do conteúdo, por meio do agrupamento dos resultados de acordo com a similaridade dos conteúdos em referência, observando-se o frequenciamento dos argumentos nas decisões. Com isso, foram definidos os seguintes critérios de inclusão e exclusão dos elementos da pesquisa:
a) foram validadas apenas as decisões de apreciação de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde proferidas nos processos distribuídos aos JEFs da sede da Seção Judiciária do Maranhão (São Luís-MA), no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, não incluindo, portanto, as Varas das Subseções Judiciárias do interior do Estado;
b) apenas as primeiras decisões de apreciação de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde proferidas nos processos foram consideradas para a pesquisa, excluindo-se outras prolatadas no curso das demandas em virtude da renovação de pedidos.
Com a aplicação desses critérios, chegou-se à quantidade de 185 (cento e oitenta e cinco) processos válidos, selecionando-se os fundamentos apresentados pelos juízes nas decisões de deferimento, deferimento parcial e indeferimento dos pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde. Na apreciação desses pedidos, os juízes dos JEFs de São Luís - MA decidiram pelo deferimento em 82 (oitenta e dois) casos, pelo deferimento parcial em 38 (trinta e oito) e pelo indeferimento em 65 (sessenta e cinco) processos. Em termos percentuais, tais números podem ser visualizados no Gráfico 3.
Na maioria desses processos - 108 (cento e oito) -, a apreciação do pedido de tutela se deu de forma inaudita altera parte, o que sobreleva a importância dos fundamentos levantados pelos juízes nessas decisões, de forma a justificar a prolação de decisão sem a oitiva da parte contrária.
Destes, em apenas quatro, a apreciação ocorreu em horário de plantão judicial, 3 (três) deles pelo deferimento total e um pela concessão parcial da antecipação dos efeitos da tutela de saúde.
Os fundamentos das decisões judiciais foram classificados em 5 (cinco) categorias: éticos, fáticos, normativos, jurisprudenciais e outros. Entendeu-se por fundamentos éticos todos os argumentos valorativos e principiológicos levantados pelos juízes nas decisões, notadamente aqueles relacionados aos direitos previstos na Constituição Federal de 1988. Como fáticos, consideram-se os argumentos relacionados à urgência do pedido, bem como aos fatos específicos do caso concreto.
Na identificação dos fundamentos normativos, por sua vez, foram considerados todos os regramentos provenientes do Poder Legislativo ou do Poder Executivo. Como fundamentos jurisprudenciais, foram identificados todos os precedentes judiciais que embasaram as decisões. Por fim, dentro da categoria “outros”, foram elencados outros argumentos relevantes que não se enquadraram em nenhuma das categorias acima.
Os principais fundamentos utilizados nas decisões de deferimento de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela foram classificados entre as 5 (cinco) categorias retromencionadas. Entre os fundamentos éticos, foram identificadas três classes: direito à saúde como dever do Estado e direito de todos (A1), fundamentalidade do direito à saúde (A2), princípio da dignidade humana (A3).
Na categoria de fundamentos fáticos, foram identificadas duas possibilidades: configuração de risco de agravamento ou risco de morte do paciente (B1) e demonstração da inexistência ou ineficácia de tratamento alternativo pelo SUS (B2).
Os achados indicaram 3 (três) classes de argumentos da categoria normativa: preceitos legais relacionados à antecipação dos efeitos da tutela (C1), regramento específico da saúde, representado pela Lei n. 8.080/1980 (C2), e Portarias ou Resoluções administrativas relacionadas à saúde (C3). Na categoria de jurisprudências, foram consideradas as seguintes classes: julgados do TRF1 (D1), julgados do STF (D2), julgados do STJ (D3) e julgados de outros Tribunais (D4).
Na categoria “outros”, por fim, foram localizadas três classes: Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde (E1), Recomendações da CONITEC (E2) e Ensinamentos Doutrinários (E3).
O Quadro 2 demonstra o percentual dos fundamentos das decisões de deferimento da antecipação dos efeitos da tutela de saúde.
Da análise da tabela acima, observa-se a predominância dos fundamentos éticos e jurisprudenciais no embasamento das decisões de deferimento da antecipação dos efeitos da tutela de saúde. Entre os argumentos jurisprudenciais, contudo, notou-se um alto índice de julgados repetidos relacionados à questão da responsabilidade solidária entre os entes federados nesses tipos de demandas.
Com efeito, dos 146 (cento e quarenta e seis) fundamentos jurisprudenciais constatados nessas decisões, 89 (oitenta e nove), que correspondem a 60,95% (sessenta vírgula noventa e cinco por cento), referiam-se a esse ponto, evidenciando a carência quanto ao uso de julgados mais específicos ao caso concreto.
Os principais argumentos utilizados nas decisões de deferimento parcial de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde também foram classificados entre as 5 (cinco) categorias acima, com algumas diferenças nas classes observadas.
Entre os fundamentos éticos, foram identificadas três classes: direito à saúde como dever do Estado e direito de todos (F1), fundamentalidade do direito à saúde (F2) e princípio da dignidade humana (F3). Na categoria de fundamentos fáticos, foram observadas duas possibilidades: configuração de risco de agravamento ou risco de morte do paciente (G1) e necessidade de observância da fila administrativa (G2).
Os achados indicaram, ainda, 3 (três) classes de argumentos na categoria normativa: preceitos legais relacionados à antecipação dos efeitos da tutela (H1), regramento específico da saúde, representado pela Lei n. 8.080/1980 (H2), e Portarias ou Resoluções administrativas relacionadas à saúde (H3).
Na categoria de jurisprudências, foram consideradas as seguintes classes: julgados do TRF1 (I1), julgados do STF (I2), julgados do STJ (I3) e julgados de outros Tribunais (I4). Por fim, na categoria “Outros”, foram localizadas 3 (três) classes: Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde (J1), Recomendações da CONITEC (J2) e ensinamentos doutrinários (J3). O Quadro 3 vislumbra o percentual dos fundamentos das decisões de deferimento parcial da antecipação dos efeitos da tutela de saúde.
Por fim, os principais fundamentos utilizados nas decisões de indeferimento de pedidos de antecipação dos efeitos da tutela também foram classificados nas mesmas 5 (cinco) categorias: éticos, fáticos, normativos, jurisprudenciais e outros.
Entre os fundamentos éticos, foram verificadas 5 (cinco) classes: direito à saúde como dever do Estado e direito de todos (K1), fundamentalidade do direito à saúde (K2), princípio da dignidade humana (K3), separação dos poderes (K4) e princípio da isonomia (K5). Na categoria de fundamentos fáticos, foram consideradas quatro possibilidades: não comprovada a urgência ou imprescindibilidade do medicamento/insumo/tratamento (L1), necessidade de observância da fila administrativa (L2), off label, experimental ou sem evidências científicas (L3) e não demonstrada a inexistência ou ineficácia de método alternativo pelo SUS (L4).
Os achados indicaram 3 (três) classes de argumentos da categoria normativa: preceitos legais relacionados à antecipação dos efeitos da tutela (M1), regramento específico da saúde, representado pela Lei n. 8.080/1980 (M2) e Portarias ou Resoluções administrativas relacionadas à saúde (M3).
Na categoria de jurisprudências, foram consideradas as seguintes classes: julgados do TRF1 (N1), julgados do STF (N2), julgados do STJ (N3) e julgados de outros Tribunais (N4). Na categoria “outros”, foram localizadas 4 (quatro) classes: Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde (O1), Recomendações da CONITEC (O2), Ensinamentos Doutrinários (O3) e Normas Técnicas elaboradas por algum NatJus (O4). O Quadro 4 apresenta o percentual de fundamentos das decisões de indeferimento da antecipação dos efeitos da tutela de saúde.
Da análise dos dados apresentados, observa-se como ponto comum a prevalência dos motivos éticos para fundamentar as decisões dos magistrados dos JEFs de São Luís - MA na apreciação dos pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde.
Percebeu-se, contudo, a nítida tendência de repetição dos argumentos, com os mesmos fundamentos organizados em trechos similares ou idênticos, revelando pouca flexibilidade do órgão julgador na análise casuística. Constatou-se, ainda, a precária utilização de argumentos baseados nos Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde do CNJ e nas recomendações do CONITEC, bem como a utilização mínima de notas técnicas elaboradas pelo NatJus, o que evidencia a pouca adesão dos magistrados dos JEFs de São Luís às tentativas de aprimoramento da prestação jurisdicional nessas hipóteses.
No geral, apesar do alto índice de concessão total ou parcial da antecipação dos efeitos da tutela de saúde, observou-se uma preocupação recorrente dos magistrados com a fila administrativa estabelecida com base em critérios médicos, considerando-se como a forma mais isonômica para a prestação dos serviços de saúde.
Em 3 (três) casos, contudo, um, em 2017,35 e 2 (dois), em 201836, o juiz entendeu haver o discrímen autorizador da imediata internação, independentemente da fila existente, o que se traduz em medida temerária, diante da possibilidade de internação do demandante em detrimento de paciente com quadro mais grave que aguarda na regular fila de espera.
Apesar de terem sido poucas as decisões nesse sentido, considerando a universalidade das 185 decisões analisadas, tal cenário revela a difícil missão da atuação do julgador na apreciação desses tipos de demandas, bem como evidencia a importância do preparo técnico desses profissionais, de forma a melhor fundamentar suas decisões, a fim de evitar que uma única solução individual prejudique gravemente outras pessoas que não ingressaram judicialmente, mas também têm sua vida e sua saúde em risco.
6 FUNDAMENTOS UTILIZADOS NOS CASOS DE DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA
A indicação correta do direcionamento da petição inicial para o JEFC assume grande relevância, uma vez que, dependendo do caso, pode ser excepcionada em resposta da parte Ré ou mesmo pelo próprio juiz, ex officio. O presente tópico visa, assim, a analisar os fundamentos utilizados nas decisões dos magistrados dos JEFs de São Luís - MA nos casos em que lançaram mão dessa possibilidade, declarando de ofício a incompetência do juízo para processar e julgar as demandas envolvendo a saúde pública, com base na inadequação do valor atribuído à causa - maior causa de reconhecimento de incompetência de ofício.
Nessas hipóteses, a regra geral prevista para o microssistema dos JEFs envolve a extinção do processo sem resolução do mérito, com esteio na aplicação subsidiária do art. 51 da Lei 9.099/1995, em detrimento da mera declaração de incompetência e redistribuição dos autos à justiça comum (TOURINHO NETO; FIGUEIRA JÚNIOR, 2018). Em casos excepcionais, contudo, “[...] é juridicamente possível a opção do juiz pela redistribuição dos autos, por questão de celeridade e economia processual [...]” (TOURINHO NETO; FIGUEIRA JÚNIOR, 2018, p. 389). É nesse sentido que têm decidido os magistrados dos JEFs de São Luís - MA na maioria dos processos envolvendo o direito à saúde.
Com efeito, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, dos 41 (quarenta e um) processos em que houve o reconhecimento da incompetência do JEF, apenas 9 (nove) acabaram extintos sem resolução do mérito, 8 (oito) deles após o reconhecimento da incompetência em razão da pessoa e apenas um motivado pela inadequação do valor. Os outros 32 (trinta e dois) foram remetidos para redistribuição dos autos a uma das Varas Cíveis Comuns da Seção Judiciária, após a declaração de incompetência do juízo, em razão do valor atribuído à causa.
Os fundamentos das decisões judiciais de declínio de competência foram classificados em cinco categorias temáticas: éticos, fáticos, normativos, jurisprudenciais e outros. Entenderam-se por fundamentos éticos todos os argumentos valorativos e principiológicos levantados pelos juízes nas decisões. Como fáticos, consideraram-se os argumentos relacionados à incompetência do juízo, considerando os fatos específicos do caso concreto. Na identificação dos fundamentos normativos, por sua vez, foram consideradas as normas legislativas mais citadas. Como fundamentos jurisprudenciais, foram identificados todos os precedentes judiciais que embasaram as decisões. Por fim, dentro da categoria “outros”, foram elencados argumentos relevantes que não se enquadraram em nenhuma das categorias acima.
Entre os fundamentos éticos, foram identificadas 2 (duas) classes: princípio da celeridade processual (A1) e princípio do devido processo legal (A2). Na categoria de fundamentos fáticos, foram observadas 6 (seis) possibilidades: dados constantes no processo demonstram a superação do valor do teto dos JEFs, permitindo a alteração do valor de ofício (B1); complexidade da causa ou potencialidade de o valor econômico superar o limite de alçada previsto para os JEFs, considerando pedidos subsidiários (B2); complexidade da causa ou potencialidade de o valor econômico superar o limite de alçada previsto para os JEFs, considerando orçamentos constantes no processo (B3); complexidade do procedimento médico pleiteado, mesmo sem esclarecimentos sobre valores (B4); idade e/ou condições clínicas do estado de saúde do demandante contribuem para a elevação dos custos, com base em regra de experiência ou no que ordinariamente acontece (B5); e afastamento de ato administrativo não incluído na competência dos JEFs (B6).
Os achados indicaram seis classes mais frequentes de argumentos da categoria normativa: competência absoluta dos JEFs e possibilidade de declaração de ofício (C1); competência para o julgamento de causas cíveis de menor complexidade (C2); possibilidade de alteração de ofício do valor atribuído à causa (C3); inaplicabilidade do art. 10 do CPC/201537 (C4); inaplicabilidade do inciso VIII do art. 292 do CPC/201538 (C5); e incompetência para o afastamento de ato administrativo que não seja de natureza previdenciária ou de lançamento fiscal (C6).
Na categoria de jurisprudências, foram consideradas as seguintes classes: julgados do TRF1 (D1) e julgados do STJ (D2). Na categoria “outros”, por fim, foram localizadas 2 (duas) classes: Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde (E1) e Enunciados do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (FONAJEF) (E2). O Quadro 5 demonstra os fundamentos utilizados nas decisões de declínio de competência.
Com o Quadro 5, percebe-se que a maioria dos fundamentos utilizados pelos juízes dos JEFs de São Luís - MA nas decisões de declínio de competência disseram respeito aos argumentos normativos, seguidos dos argumentos jurisprudenciais e fáticos. Contudo, algumas observações merecem destaque. Em alguns processos, o magistrado ressaltou, de forma acertada, que o valor da condenação em danos morais deve ser considerado para fins de verificação da competência dos JEFs.
Com efeito, deve ser definido de forma expressa o montante pretendido com esse pedido. Nesse sentido, também o Enunciado 114 do FONAJEF39: “[...] havendo cumulação de pedidos, é ônus da parte autora a identificação expressa do valor pretendido a título de indenização por danos morais, a ser considerado no valor da causa para fins de definição da competência dos Juizados Especiais Federais.” (ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL, 2019, on-line).
Um ponto de grande insegurança jurídica nessas decisões, entretanto, residiu nos casos em que os pedidos subsidiários foram determinantes para a conclusão acerca da potencialidade de o valor econômico pretendido superar o valor do teto dos JEFs.
Isso porque, em 20 (vinte) processos, ou seja, em 62,5% (sessenta e dois vírgula cinco por cento) dos casos declinados, tal constatação se revelou essencial na fundamentação das decisões de declínio em razão do valor. Em 14 (quatorze) deles, inclusive, a declaração da incompetência se deu na primeira decisão do processo.
Em 6 (seis) casos, o juiz levantou a inaplicabilidade do inciso VIII do art. 292 do CPC/2015 no âmbito dos JEFs, o qual define que o valor da causa deve corresponder ao valor do pedido principal, na ação em que houver pedido subsidiário. A justificativa seria que sua utilização poderia resultar em sentença cujo proveito econômico ultrapassaria o limite de 60 (sessenta) salários mínimos, na hipótese de acolhimento do pedido subsidiário.
A incoerência, contudo, ficou evidenciada quando, em vários processos, observaram-se os mesmos pedidos subsidiários, não sendo, porém, cogitada a potencialidade de superação do limite de 60 (sessenta) salários mínimos como fator impeditivo do processamento normal dessas demandas nos JEFs., ou seja, mesmo se tratando de casos semelhantes, o provimento jurisdicional acabou sendo diferente caso a caso, em uma espécie de loteria judicial, gerando uma nítida desigualdade.
Outro argumento que acompanhou 10 (dez) desses processos considerou regras de experiências e aquilo que ordinariamente acontece. Em seis deles, a expressão “sem sombra de dúvidas” acompanhou essa fundamentação, concluindo-se que o tempo de internação nessas situações seria considerável, com base nas condições e no quadro de saúde narrado pela parte demandante.
De fato, o juiz pode se valer de regras de experiência para fundamentar suas decisões, nos termos do art. 5º da Lei n. 9.099/1995, com aplicação subsidiária aos Juizados Federais. Isso significa que o julgador pode levar em consideração o seu conhecimento privado de certas circunstâncias, com base no que normalmente acontece no meio social, prescindindo de investigações ou perícias para saber que assim acontecem (ALVIM; CABRAL, 2018).
Ocorre que, diante da possibilidade de valorações axiológicas, escolhas discricionárias e interpretações de conceitos indeterminados por parte do magistrado, Godoy (2019) alerta para a importância da consideração pelo julgador da chamada verdade processual, reconstruída com base nas provas existentes no processo, por meio da reconstituição da versão da realidade, conformada aos interesses das partes. Em sete casos, os juízes reforçaram a decisão de remessa imediata dos autos a uma das Varas Cíveis Comuns com base na irrecorribilidade da decisão, nos termos do art. 5º da Lei n. 10.259/200140, não tendo sido verificado nenhum caso de tentativa de impugnação de tais decisões de declínio.
Da análise dessas decisões, nota-se, portanto, a importância da utilização de critérios claros e objetivos na fundamentação, em consonância com os princípios do devido processo legal, da isonomia e da boa-fé do julgador, notadamente, nesses casos de eventual declínio de competência, a fim de evitar prejuízos para a parte demandante, em virtude da urgência, muitas vezes, envolvida e do bem da vida que se pretende tutelar nesses tipos de processos.
7 CONCLUSÕES
Com a presente pesquisa, objetivou-se compreender o fenômeno da judicialização da saúde pública no Brasil, com ênfase na análise de algumas peculiaridades desse tipo de demanda no âmbito dos JEFCs. Considerando os aspectos normativos, jurisprudenciais e éticos trabalhados ao longo do texto, analisaram-se, de forma crítica, os fundamentos utilizados nas decisões dos JEFs de São Luís - MA, no período de 31.03.2014 a 31.03.2019, com o escopo de contribuir para reflexões e estudos acerca da atuação judicial nessa temática.
Diante do regramento legal da competência absoluta dos Juizados Federais Cíveis, buscou-se alertar para a importância da correta definição da expressão econômica pretendida com a causa, a fim de evitar eventual retardamento com relação à prestação da tutela de saúde, em virtude de transtornos decorrentes do início de um trâmite equivocado.
Da análise dos dados coletados, observou-se como ponto comum a prevalência dos motivos éticos para fundamentar as decisões dos magistrados dos JEFs de São Luís - MA na apreciação dos pedidos de antecipação dos efeitos da tutela de saúde. Constatou-se, ainda, a precária utilização de argumentos baseados nos Enunciados das Jornadas de Direito da Saúde do CNJ e nas recomendações do CONITEC, bem como a utilização mínima de notas técnicas elaboradas pelo NatJus, evidenciando a pouca adesão dos magistrados dos JEFs de São Luís - MA às tentativas do CNJ de aprimoramento da prestação jurisdicional nessas hipóteses.
No geral, apesar do alto índice de concessão total ou parcial da antecipação dos efeitos da tutela de saúde, observou-se uma preocupação recorrente dos magistrados com a fila administrativa estabelecida com base em critérios médicos, considerada a forma mais isonômica para a prestação dos serviços de saúde. Percebeu-se, contudo, a nítida tendência de repetição dos argumentos, com os mesmos fundamentos organizados em trechos similares ou idênticos, revelando pouca flexibilidade do órgão julgador na análise casuística.
Por outro lado, na averiguação da inadequação do valor atribuído à causa pelos magistrados dos JEFs de São Luís, notadamente nos casos envolvendo pedidos subsidiários, observou-se a utilização de critérios distintos para a mesma questão processual em diferentes processos, comprometendo a boa-fé e a segurança jurídica em algumas dessas demandas.
Dessa forma, o estudo revelou que, em casos semelhantes, o provimento jurisdicional acabou sendo diferente caso a caso, em uma espécie de loteria judicial, gerando uma nítida desigualdade.
O regramento legal da competência absoluta dos JEFs e o alto índice de judicialização de demandas de saúde, contudo, indicam a necessidade de aprofundamento do debate nessa área, a fim de propiciar maior previsibilidade quanto à interpretação e aplicação das respectivas normas processuais nessa realidade específica.
Com isso, longe de tentar exaurir o tema da judicialização da saúde no âmbito dos JEFs, a pesquisa almejou contribuir para o aprendizado dos principais aspectos envolvendo o direito à saúde, buscando possibilitar a compreensão de alguns dos limites e possibilidades das demandas envolvendo esse direito no âmbito dos microssistemas jurisdicionais, de forma a suscitar reflexões acerca da maneira mais justa para conciliar tanto o direito individual da parte autora dessas ações quanto o direito coletivo daqueles que também aguardam a proteção desse direito pelas vias administrativas.
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Notas
Declaramos para os devidos fins que o artigo intitulado A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E OS FUNDAMENTOS UTILIZADOS NAS DECISÕES DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CÍVEIS DE SÃO LUÍS - MA, submetida à Revista Opinião Jurídica, representa fruto direto das pesquisas desenvolvidas pelos autores junto ao Núcleo de Estudos em Direito Sanitário (NEDISA) e ao Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça de Universidade Federal do Maranhão (PPGDir), sobretudo no âmbito do Hospital Universitário Federal do Maranhão, tendo os autores (membros permanentes do NEDISA), realizado, concomitantemente, as tarefas de planejamento, pesquisa de campo, execução e revisão do artigo, notadamente da seguinte forma: 1) Jémina Gláucia Serra de Araújo desenvolveu o processo de redação textual com especificidade na coleta de informações de detalhamento científico da proposta; 2) Felipe Costa Camarão desenvolveu o processo de reestruturação da escritura na remodelação lógica dos dados e distribuição dos capítulos em conformidade com as exigências da revista e a professora doutora Edith Maria Barbosa Ramos forneceu o material bibliográfico e parte do arcabouço documental, indicou o formado de construção do texto com exemplos de material próprio já desenvolvido, participou atividade de remodelagem do material construído, fez indicativos de complementação e, por fim, realizou a revisão final para publicação.
Autor notes