DOSSIÊ
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2016.118385
Resumo: As dinâmicas raciais no Brasil estão mudando. Antes considerado um país em que o danoso legado do comércio de escravos não era admitido, hoje esse gigante da América Latina começou a reconhecer oficialmente a discriminação étnico-racial, tanto como fenômeno histórico, quanto como questão contemporânea. Parte desse processo envolve um afastamento da celebração da ambiguidade racial e a adoção de status raciais bem delimitados: o termo relativo à miscigenação “moreno” cede lugar, em muitas esferas, ao termo afirmativo “negro”, que passa a ocupar lugar central. Mais significativo ainda é o fato de atores estatais terem implementado cotas raciais no país inteiro, cuja importância maior se dê, talvez, na educação superior. O motor por trás dessas dinâmicas em transformação parece ser a conjunção de atores estatais e dos movimentos negros para estabelecer uma estratégia de mudança legal. É importante observar que pesquisas de opinião pública sugerem que a maioria dos brasileiros apoiam os elementos centrais das novas políticas raciais do Estado. Na segunda metade do século XX, os trabalhos acadêmicos associavam o Brasil a uma falta de consciência racial; já nas primeiras décadas do século XXI essa associação é indefensável.
Palavras-chave: classificação racial, atitudes raciais, desigualdade racial, cotas raciais.
Abstract: Racial dynamics in Brazil are shifting. Once considered a context in which the pernicious legacy of the African slave trade had no comfortable home, today this giant of Latin America has begun to officially recognize both historical and contemporary ethnoracial discrimination. Part of this process involves a move away from celebrating racial ambiguity to embracing discrete racial statuses: the mixed-race term moreno has fallen out of favor in many spheres, and the racially affirmative term negro occupies center stage. Most significantly, state actors have implemented racial quotas across the country, perhaps most importantly in higher education. The motor behind these shifting dynamics appears to be the coming together of state and negro movement actors for strategizing a de jure turn. Importantly, public opinion research suggests that the majority of Brazilians support key elements of the State’s new racial politics. In the later part of the 20th-century, scholarship associated Brazil with a lack of racial consciousness; in the first decades of the 21st century, that association is untenable.
Keywords: racial classification, racial attitudes, racial inequality, racial quotas.
INTRODUÇÃO
Fernando Henrique Cardoso afirmou em um discurso proferido em 1996: “Nós gostaríamos de valorizar … a existência de distintas raças no Brasil.” A intenção de Cardoso era certamente chamar atenção para a diversidade da população no país e destacar seu valor, mas também afirmar a “raça” como um eixo central da interação e da desigualdade social1. Ele não nomeou as diferentes populações raciais, talvez considerando elas tão óbvias que uma especificação seria desnecessária. Contudo, a declaração por si só demonstra que algum reconhecimento da diversidade racial era, de fato, necessário, talvez para estabelecer um novo rumo para o Estado brasileiro e para o discurso oficial.
Esse reconhecimento pode ter parecido necessário em parte porque grupos raciais, enquanto coletividades unificadas ou bem delimitadas2, não foram centrais para a administração estatal ou para o discurso público mais amplo desde a fundação da República brasileira no final de 1800 (MARX, 1998; BAILEY, 2009)3. Além disso, parte do discurso da elite e do Estado sobre as dinâmicas raciais brasileiras da metade ao final do século XX encarava o contexto da época como uma democracia étnica ou racial. Embora esse seja um conceito impreciso, significava (para alguns) a relativa ausência dos efeitos perniciosos do racismo (CARDOSO, 1997; SANT’ANNA; SOUZA,1997). Enquanto outros lugares, especialmente os Estados Unidos da maior parte do século XX, tinham problemas raciais materializados em discriminação e segregação estabelecidas na lei, bem como em violência entre grupos (repressão estatal e linchamentos extrajudiciais), o Brasil, em comparação, claramente pertencia a uma categoria distinta (DAVIS, 1991). Ainda, observa-se que grande parte da elite internacional partilhava dessa perspectiva (MAIO, 2001).
A relativa ausência de foco legal à questão racial por parte dos atores estatais brasileiros, bem como a adoção da ideia de que o Brasil era uma democracia racial, não significa, porém, que as dinâmicas raciais e que a estratificação baseada na cor da pele não estivessem presentes. Na verdade, muitas dimensões da sociedade brasileira são racializadas, ainda que umas mais que outras; algumas são caracterizadas por uma adoção positiva dos enquadramentos raciais, como a valorização das contribuições afrodescendentes e indígenas à nação, enquanto outras são caracterizadas pela regulação hierárquica do sucesso socioeconômico pela cor da pele (SANSONE 2003; TELLES, 2004).
Quer o discurso e as ações de Cardoso tenham sido determinantes quer não, o fato é que o Estado brasileiro, tanto em nível local quanto federal, começou a se mover em direção a uma abordagem diferente durante seus anos como presidente. Pela primeira vez, o amplo aparato estatal se uniu a atores dos movimentos negros para focalizar explicitamente a “existência de raças”, para denunciar a hierarquia racial e o mito da democracia racial e para clamar por novas abordagens afirmativas. Como resultado, o Estado brasileiro passou por uma mudança de paradigma: em seu discurso e em sua administração, raça tornou-se uma identificação social central e passou a ser adotada como uma unidade básica para a construção de uma sociedade mais igualitária.
A intenção deste artigo é fornecer uma visão geral sobre as dinâmicas raciais no Brasil contemporâneo por meio de uma análise empírica de alguns de seus elementos centrais. A discussão inicia com o exame da origem e do significado do mito da democracia racial, passando a analisar a demografia e a desigualdade racial e, em seguida, as atitudes raciais contemporâneas, encerrando com uma análise da adoção estatal de ações afirmativas. Como meu objetivo é apresentar uma visão geral, acabo por sacrificar alguns detalhes. Não obstante, apresento cuidadosamente referências de pesquisas adicionais que contêm tais detalhes - algumas delas de minha autoria.
A IDEOLOGIA BRASILEIRA DA MISCIGENAÇÃO RACIAL
Os estudiosos das dinâmicas raciais no Brasil têm, de modo geral, visto o mito da democracia racial como algo que abrange, em grande parte, o senso comum nacional sobre cor e ancestralidade no país, mesmo no período contemporâneo (REIS, 1997; BAILEY, 2009; JOSEPH, 2015). Esse mito explica ou mapeia o terreno racial; ou seja, trata-se de uma “ideologia racial” (FIELDS, 1990). Gilberto Freyre (e.g., 1959; 1974) é frequentemente nomeado principal fonte acadêmica referente à democracia racial desde o começo dos anos de 1930, embora o termo “racial” date de época posterior. Confrontado com o racismo científico do período, que sustentava 1) a existência e a natureza intransponível das diferentes raças humanas; 2) a superioridade da raça branca; 3) a inferioridade da raça negra; 4) e que “sangue miscigenado” ou miscigenação racial causava degeneração, Freyre propôs algo completamente diferente. Ele virou o racismo científico de ponta cabeça, sustentando, ao revés, que o “cruzamento” entre as raças produzia vigor nos seres humanos. Essa virada sinalizou um futuro positivo para a até então condenada nação brasileira, escura e racialmente impura.
As declarações de Freyre podem ser consideradas ousadas tendo em vista o contexto da época de ênfase na pureza racial (expressa na “regra da uma gota de sangue4” [FIELDS, 1990; DAVIS, 1991]) nos Estados Unidos do Jim Crow e na Alemanha Nazista. Em parte por meio do foco na ampla miscigenação no Brasil, Freyre argumentou que brasileiros das três linhagens raciais - africanos, europeus e indígenas - estavam criando uma nova raça, uma “meta-raça” brasileira (FREYRE, 1974). Assim, ele previu uma crescente diminuição das diferenças entre um grande número de brasileiros, ou o amorenamento da população e a dominação de um tipo moreno (SILVA, 1996). Suas ideias também colocaram de ponta cabeça os ideais eugênicos brasileiros, que defendiam o embranquecimento da população por meio da miscigenação racial (AZEVEDO, 1950). Todavia, a mistura brasileira não era unicamente - ou talvez nem principalmente - uma questão de nivelamento da diferença de cor de pele. Ser brasileiro estava associado a um sentimento nacional de ser miscigenado, independentemente das diferenças de cor de pele (CARDOSO, 1997). Portanto, em contraste com a ideologia estadunidense de pureza racial, os brasileiros abraçaram mais amplamente uma ideologia de miscigenação racial (NOBLES, 2000, p. 87; TELLES; BAILEY, 2013).
O novo tipo mestiço brasileiro afloraria na “democracia étnica” daquele contexto, em que “homens reconhecem uns aos outros como cidadãos e cristãos independentemente de diferenças de cor ou de etnia” (Freyre, 1959, p. 7-8). Freyre defendia “a ampla, embora imperfeita, oportunidade dada a todos os homens do Brasil, independentemente de raça ou cor, de se afirmar como brasileiros plenos” (1959, p. 4). Essa perspectiva sobre direitos universais existia, porém, em uma sociedade incontestavelmente hierárquica, na qual desigualdades sociais extremas eram raramente questionadas (FIELDS, 2001). Não obstante, nessa leitura de Freyre, a miscigenação tornou-se o motor por trás das dinâmicas raciais no Brasil, bem como o fundamento sobre o qual se construiu a ideia de uma democracia étnica ou racial.
Um olhar a partir da perspectiva da democracia racial sobre a dinâmica da população no Brasil poderia sugerir que a cor da pele tem relativamente pouca importância na vida dos brasileiros, que eles superaram os problemas causados pelo preconceito e pela discriminação baseados nas diferenças étnico-raciais. Todavia, essa perspectiva é claramente inadequada para descrever a realidade brasileira contemporânea5. De modo a distinguir “mito de realidade”, esse artigo prossegue com uma caracterização da demografia racial ou de cor da população brasileira, seguida por uma análise da desigualdade racial no país.
A DEMOGRAFIA RACIAL BRASILEIRA
Os dados do recenseamento nacional brasileiro oferecem uma primeira lente oficial para analisar a diversidade de cor ou raça. O censo nacional vem sendo realizado desde 1872 e a maioria dos levantamentos contiveram uma questão sobre a composição racial (NOBLES, 2000). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é responsável pelo censo, realizado a cada dez anos. Desde 1940 - à exceção do censo de 1970 no qual não foi incluída uma questão sobre cor - o IBGE utiliza as categorias branco, pardo, preto e amarelo. Em 1991 foi adicionada a categoria indígena.
Essas categorias aparecem como opções de resposta à pergunta em formado fechado: “Considerando as seguintes categorias, qual a sua raça ou cor?”. O termo raça foi adicionado em 1991 após mais de 100 anos de perguntas apenas sobre a cor. De acordo com Nobles, o termo raça foi instituído para abarcar apenas a inclusão da categoria indígena, talvez a pedido do Fundo Monetário Internacional (conferir também LOVEMAN, 2014, capítulo 7). Antes disso, pessoas de origem indígena eram frequentemente categorizadas como pardo ou entravam nas categorias mais antigas caboclo ou índio (NOBLES, 2000).
De acordo com o censo de 2010, e conforme apresentado na segunda coluna da Tabela 1, a composição racial ou de cor do Brasil é aproximadamente 48% branca, 43% parda, 8% preta e entre 1% e 2% amarela e indígena combinadas. Esses números diferem em importantes aspectos dos resultados do censo de 2000, que registraram brancos como 54%, pardos como 38% e pretos como 6%. Em outras palavras: brancos não constituem mais a maioria da população brasileira. As tendências de identificação racial, da forma como foram medidas pela autoclassificação racial ou de cor no censo nacional, parecem estar se movendo em direção a um “escurecimento” da população.
A autoclassificação como amarelo, embora percentualmente baixa, cresceu de modo substancial entre 2000 e 2010. Em contraste, o percentual de auto-classificados como indígenas permaneceu bastante estável. Considerando que as populações indígenas e amarelas abrangem percentuais muito pequenos da população brasileira, elas não são centrais para o resto deste artigo. Em minha análise, apoio-me fortemente em dados de pesquisas sociais realizadas a partir de amostras probabilísticas que não são ideais para o exame rigoroso de subpopulações pequenas.
Apesar de uma longa história de classificação oficial do censo por cor em branco, pardo e preto, houve, e continua havendo, uma divergência significativa quanto ao valor dessas categorias e até mesmo quanto ao que elas representam. Nas subseções que seguem, discuto três elementos centrais desse debate, ou três abordagens à questão da diversidade racial ou de cor brasileira.
CATEGORIAS DO CENSO COMO TERMOS REFERENTES A COR
Talvez a perspectiva mais comum do Brasil do século XX é a de que essas categorias do censo representam três agrupamentos de cor de pele mais amplos, não constituindo grupos raciais (SILVA, 1996, p. 93; PIZA; ROSEMBERG, 1999, p. 47). A visão das categorias do censo como descrição de cores em vez de designações de grupos raciais deve-se, em grande medida, aos dirigentes do IBGE. A instituição historicamente interpretou a população como sendo tão miscigenada em termos de “raça” que seria impossível classificar a população em raças bem delimitadas (NOBLES, 2000). Desse modo, os dirigentes do IBGE optaram por categorias de cor, em vez de categorias de raça, focalizando o fenótipo e excluindo o foco na ancestralidade entendida de acordo com a regra de que esta é definida a partir da regra de hipodescendência6 (OLIVEIRA et al., 1985, p. 12; NOBLES, 2000).
Em relação às cores especificadas pelas categorias do censo, a categoria branco é comumente entendida como formada por pessoas no extremo mais claro de um contínuo de cor, possivelmente percebidas como tendo maior ascendência europeia. É menos claro, porém, qual cor de pele corresponde à categoria pardo. Seu uso contemporâneo abrange a cor marrom e inclui diversos tons de pele intermediários, cada um com seu nome próprio. Em contraste, preto se refere estritamente ao extremo mais escuro do contínuo de cor. Portanto, preto não é equiparável diretamente ao status que agrupa a raça negra, como este é entendido nos Estados Unidos.
Mais recentemente, o registro de distinções de cores teve sua importância e legitimidade renovadas no estudo da diversidade étnico-racial pelas ciências sociais. Os levantamentos do AmericasBarometer na América Latina - incluindo o Brasil - incorporaram uma medida de escala de cor além das medidas de categoria racial. Pesquisas baseadas nesses levantamentos documentam de maneira única a diversidade de tons de pele no Brasil (BAILEY et al., 2014). Além disso, esses dados sobre a escala de cores revelam como as categorias do censo praticamente correspondem a três posições em um contínuo de cor (SILVA; PAIXÃO 2014; TELLES; FLORES 2014), sugerindo, assim, apoio à leitura da centralidade das três diferentes cores de pele nos termos do censo.
NEGRO E BRANCO: RELAÇÕES RACIAIS
Um número importante de acadêmicos, bem como setores do governo e atores dos movimentos negros, discorda fortemente de que categorizar a população em branco, pardo e preto seja a melhor forma de apreender e discutir as dinâmicas raciais e a diversidade no Brasil. Como alternativa, eles reúnem os termos pardo e preto em uma categoria unificada: negro (BAILEY; TELLES, 2006). Nesse sentido, é interessante observar os estudos etnográficos de Sansone (2003) que abordam o entendimento popular da categoria negro no Brasil. O autor oferece a seguinte definição aproximada de negro em contraste com a categoria preto adotada pelo censo. Segundo ele, preto é um termo tradicional que se refere principalmente à cor, ao passo que negro é originalmente uma palavra extremamente ofensiva que nas duas últimas décadas passou a ser adotada como termo de afirmação étnica ou racial. Observa-se que essas duas definições deixam implícito que preto se refere ao extremo mais escuro do tradicional contínuo de cor brasileiro e que a afirmação étnica se refere à classificação baseada na ancestralidade africana. Embora essa divisão entre preto como cor e negro como etnia ou raça possa acabar simplificando dinâmicas que são complexas, ela não deixa de ser útil.
A categoria coletiva “negro” representa uma estratégia politizada para corrigir o que atores dos movimentos negros e outros veem como o mascaramento intencional e danoso de relações raciais binárias no Brasil, isto é, entre os grupos raciais negro e branco (NOBLES, 2000; BAILEY; TELLES, 2006). Dentro desse discurso, negros constituem o grupo racial majoritário, cujo pertencimento é definido por qualquer característica fenotípica de origem africana (imitando, dessa forma, a “regra da uma gota” que define a classificação da raça negra nos Estados Unidos [FIELDS, 1990, 2003; DAVIS, 1991]). O uso estatal da “regra da uma gota” para o seu programa racial ainda está no começo e se mostrou um pouco confuso, conforme evidenciam alguns exemplos, como a criação de comissões para definição de status raciais e o uso de formulários oficiais para documentar marcadores raciais de negros, de modo a auxiliar o estabelecimento jurídico do status racial (MAIO; SANTOS, 2005; BAILEY, 2009). Embora seja muito cedo para avaliar a capacidade do Estado brasileiro em ajudar a esclarecer as ambiguidades raciais e em difundir essa visão da população baseada na raça, teorias sociais de “construção racial” demonstram seus efeitos simbólicos e reais (BAILEY, 2009).
Apesar de já oficializada em parte das políticas e da estrutura estatal, a categoria negro não é um termo oficial do censo. Além disso, ela permanece relativamente impopular entre os brasileiros como um termo escolhido na auto-classificação, embora essa impopularidade esteja diminuindo. A Tabela 1 (acima) apresenta dados de dois levantamentos do Datafolha, instituto de pesquisa ligado ao jornal Folha de São Paulo. O primeiro levantamento corresponde ao ano de 1995 e o segundo ao de 2008. Em ambos, o questionário utilizado apresentava perguntas em formato aberto sobre a cor e a raça dos respondentes. A quarta coluna da Tabela 1 revela que somente 3% da população em 1995 preferia a classificação negro. A sexta coluna revela que 13 anos mais tarde a preferência pela autoclassificação como negro subiu para 7% no ano de 2008. Entretanto, em relação a outras categorias, esse percentual permanece baixo, especialmente considerando que na visão dicotômica da dinâmica racial brasileira (isto é, a que une pretos e pardos na categoria negro), os negros constituem mais da metade da população do país. Assim, negro ainda parece ser mais uma classificação imposta do que um termo escolhido para autoidentificação, embora haja tendência de afirmação do termo no discurso e na política estatais, bem como em outras esferas. Espera-se que sua popularidade cresça como classificação escolhida em um futuro próximo (BAILEY, 2009).
MISCIGENAÇÃO RACIAL: A FIGURA DO MORENO
Uma última cor ou visão racial sobre a diversidade da população no Brasil é representada pelo termo moreno. Esse termo é emblemático da fluidez do sistema brasileiro e é bastante utilizado, tanto para autoidentificação quanto para a identificação de terceiros em interações sociais, embora não seja um termo oficialmente adotado pelo censo. Pesquisadores de campo concluíram que o termo é suficientemente ambíguo para substituir qualquer categoria de cor. Seu significado inclui: pessoas de pele clara com cabelo escuro; pessoas miscigenadas que geralmente têm cabelo escuro; e pessoas de cor de pele escura. Pesquisadores demonstram, também, que parte da popularidade desse termo advém do fato de que permite aos brasileiros minimizar diferenças raciais. “Todos aqui são morenos” e expressões semelhantes são comumente utilizadas por grande parte da sociedade brasileira, parecendo referir-se a uma identidade inclusiva e não delimitada por especificidades raciais rígidas.
Comprovando a importância dessa categoria, um levantamento nacional realizado em 1976 revelou que 34% dos brasileiros, em resposta a uma pergunta aberta, escolheram o termo moreno para classificar sua própria cor. Devido a sua popularidade, alguns pesquisadores chegaram a defender a inclusão de “moreno” como categoria oficial do censo. Esses pesquisadores ressaltaram não só sua popularidade, mas também o fato de que essa ambiguidade representa algo essencial sobre o que significa ser brasileiro. Posteriormente, sustentaram também que a possibilidade de as pessoas se autoidentificarem no censo de acordo com seu termo de preferência constitui um direito importante (HARRIS et al., 1993; BYRNE et al., 1995). De fato, o levantamento nacional do Datafolha apresentado na Tabela 1 mostra que o termo moreno continuou popular nos 1990 e 2000. Em 1995, quase um terço dos brasileiros elegeu o termo para designar sua cor ou raça (31%), representando o único termo diferente de “branco” (o mais escolhido) a ser adotado em percentuais significativos. Após, em 2008, 27% dos brasileiros escolheram moreno como a categoria que os designa. Esse percentual é quase quatro vezes maior do que o daqueles que escolheram o termo negro no mesmo ano.
No entanto, o termo moreno caiu em desuso nos discursos estatais, acadêmicos e dos movimentos sociais nas duas últimas décadas. Com sua ambiguidade e capacidade de minimizar distinções raciais (como alguns argumentaram), “moreno” é, de certa forma, considerado a antítese do termo “negro”. Enquanto “negro” afirma a raça, como na oposição negro e branco, “moreno” parece promover a dissolução das fronteiras raciais (NOBLES, 2000; BAILEY, 2009). Como muitos pesquisadores e atores de movimentos sociais veem a afirmação do termo negro e a definição clara de fronteiras raciais como necessárias para a mobilização social contra a exclusão racial, bem como para a documentação e o monitoramento da descriminação e da desigualdade (e.g., TELLES, 1995), o termo “moreno” é geralmente rejeitado no âmbito estatal, acadêmico e dos movimentos negros, embora sua popularidade entre grande parte dos brasileiros permaneça.
DESIGUALDADE RACIAL
Mapear a demografia racial brasileira não consiste apenas em legitimar uma visão sobre a diversidade humana (ou afirmar a existência de distintas raças, para utilizar a terminologia de Cardoso), mas, talvez, fundamentalmente, trata-se de documentar, de analisar e de enfrentar a desigualdade social estruturada em marcadores étnico-raciais. Na verdade, a desigualdade racial é bastante significativa no Brasil (PAIXÃO et al., 2011), e cada vez mais pesquisadores analisam suas proporções e mecanismos. A pesquisa de Carlos Hasenbalg (cf. LIMA, 2014) e Nelson do Valle Silva (1985) foi extremamente influente em determinar o rumo das atuais abordagens acadêmicas e do discurso sobre desigualdade racial no Brasil. Os autores começaram a publicar, no final dos anos 1970 e nos anos 1980, detalhadas análises de correlações entre status socioeconômico (SSE) e cor da pele no Brasil. Eles encontraram diferenças substanciais entre as populações formadas por brancos, pardos e pretos em uma ampla gama de resultados de SSE, incluindo renda e educação. Além disso, suas análises corroboraram a hipótese de que pardos e pretos apresentavam status socioeconômicos muito semelhantes em contraste com o dos brancos. Desse modo, os pesquisadores defenderam que a desigualdade social deve ser analisada a partir de uma abordagem dicotômica, dividindo a população entre brancos e não brancos (i.e., pretos e pardos). Atualmente, tal abordagem é predominante, e quase todos os atores dos movimentos negros referem-se a essa separação dicotômica como sendo entre negros e brancos, isto é, entre raças e não entre cores (e.g., OLIVEIRA et al., 1985).
Em relação às dimensões contemporâneas da desigualdade racial e de cor no Brasil, dados de um recente levantamento nacional mostram que os não brancos ganham em média cerca de 60% do que ganham os brancos (LOVEMAN; MUNIZ; BAILEY, 2012). Essa análise bivariada demonstra, porém, que pardos e pretos, de fato, diferem substancialmente, sendo que aqueles recebem cerca de 65% do que ganham os brancos, ao passo que estes recebem apenas 40%.
Contudo, ao se ir além das estatísticas descritivas e empregar uma análise de regressão para controlar variáveis básicas - como, por exemplo, educação região, sexo, idade - ângulos interessantes são revelados:
Estimativas de diferenças de renda diminuem consideravelmente utilizando-se modelos de regressão com variáveis de controle. Em média, brasileiros não brancos ganham cerca de 80% da renda média de brasileiros brancos (BAILEY et al., 2013).
É mais difícil perceber as diferenças entre as rendas de pardos e pretos em comparação à de brancos utilizando modelos de regressão com um conjunto básico de variáveis de controle do que a partir de uma lente bivariada (BAILEY et al., 2013).
Alguns pesquisadores empregam uma técnica de regressão mais específica que permite uma visão além do modelo MQO: a regressão quantílica.
Com a utilização da regressão quantílica, os resultados revelam que a desvantagem racial sofrida por não brancos em comparação aos brancos é maior nos níveis mais altos de renda (entre os 10% e os 20% com maior renda). Dito de outro modo, a cor parece importar mais quando os indivíduos alcançam posições de classe mais altas (BAILEY et al.., 2013; e conferir também ARIAS et al., 2004).
Em parte, o tamanho das diferenças étnico-raciais mostradas pelas pesquisas supramencionadas é reflexo do alto nível de desigualdade social no Brasil. Em realidade, a análise de decomposição da renda revela que, ainda que desigualdades étnico-raciais sejam grandes, elas contribuem modestamente para a desigualdade geral no Brasil (LOVEMAN et al., 2012). Assim, esses resultados apontam para uma estrutura mais profunda da desigualdade social brasileira que agrava as diferenças de status socioeconômico entre os grupos raciais. Nesse sentido, Telles aborda o efeito dessa estrutura mais profunda, comparando a desigualdade racial do Brasil com a dos Estados Unidos:
O fato de que homens pretos e pardos ganhem 40% e 50% do que recebem homens brancos no Brasil, enquanto que homens negros ganhem 75% do que recebem homens brancos nos Estados Unidos, poderia simplesmente ser um reflexo da maior desigualdade de renda no Brasil (TELLES, 2004, p. 107-109).
Um terceiro complemento para a nossa “caixa de ferramentas” para entender a estratificação étnico-racial no Brasil contemporâneo é uma abordagem multidimensional. Ela aproveita a comparação de múltiplas medidas de distinção étnico-racial em relação à medida de status socioeconômico para obter ganhos teóricos e empíricos. Por exemplo:
Comparar a autoclassificação com a classificação atribuída pelo entrevistador em análises de desigualdade de renda revela, em oposição ao que sustenta Silva (1985), que existem diferenças significativas entre as rendas de pretos e de pardos (TELLES; LIM, 1998; BAILEY et al., 2013; SILVA; PAIXÃO, 2014).
A Figura 1 demonstra o poder dessa abordagem multidimensional. Ela se baseia em dados disponibilizados recentemente sobre os Estados Unidos e sobre 18 países da América Latina em uma análise de desigualdade de renda familiar nas Américas, utilizando duas medidas: cor da pele percebida e autoclassificação racial (cf. Bailey et al., 2014). Os resultados mostram hierarquias de cor e de raça nos países analisados. A vantagem de brancos e a desvantagem de indígenas manifestam-se de modo semelhante entre os países, ao passo que negros em alguns países possuem maior média de renda que outros grupos raciais. A desigualdade racial de renda pode ser mais bem compreendida em alguns países a partir de categorias raciais, como no caso da Costa Rica e talvez até mesmo do Brasil e dos Estados Unidos. Em um número maior de países, porém, a cor da pele parece fornecer uma lente melhor sobre a desigualdade. Entre esses últimos, estão incluídos Venezuela, Uruguai e Paraguai.
O caso específico do Brasil é bastante difícil e deve ser tratado com certa cautela devido ao fato de os intervalos de renda apresentados como opção de resposta serem falhos. É provável que esse erro produza menores diferenças de renda entre os que ganham mais, principalmente entre os que têm tom de pele mais claro, devido ao truncamento7. Apesar disso, o cenário que o caso brasileiro apresenta utilizando a lente multidimensional revela uma complexidade que abordagens que se valem de medidas únicas usando categorias raciais amplas não conseguem capturar8.
ATITUDES RACIAIS NO BRASIL
A mudança no discurso e na política estatal sobre raça coloca um destaque necessário no papel que marcadores étnico-raciais exercem na estruturação de uma sociedade desigual. Será que a população brasileira, em geral, reconhece a existência de uma discriminação racial estrutural? Se sim, essa população é a favor de políticas públicas direcionadas à questão étnico-racial para combater a desigualdade racial? Para responder a tais questões, este trabalho aborda dados de opinião pública obtidos a partir de grandes amostras sobre explicações para a desigualdade racial e sobre o apoio de políticas direcionadas à questão étnico-racial. Explicações para a desigualdade ou crenças sobre estratificação são dimensões importantes para entender o senso comum brasileiro sobre cor/ raça, bem como para avaliar a possibilidade de um movimento em direção a um contexto mais igualitário. Ou seja, ambas estão profundamente conectadas: pesquisas das ciências sociais revelam que os indivíduos que reconhecem a existência de discriminação racial e de desvantagens estruturais são mais propensos a apoiar políticas de enfrentamento à desigualdade, como as ações afirmativas (KLUEGEL; SMITH, 1986).
Em relação às explicações para a desigualdade racial, acredita-se que no centro do mito da democracia racial esteja uma crença na ausência de discriminação racial no Brasil. Ou seja, pesquisadores têm afirmado há muito tempo que o aspecto mais danoso de um senso comum marcado pelo mito da democracia racial é a negação do racismo que ele provoca naqueles que aderem a ele (TWINE, 1997). Além disso, pesquisadores e atores dos movimentos negros apontam a negação da discriminação racial pela população como causa para a ausência de mobilização antirracista e para a baixa participação nos movimentos negros, bem como para a inexistência de uma forte subjetividade racial por parte de pretos e pardos como negros (HANCHARD, 1994; WINANT, 1999; GUIMARÃES, 2001).
Inúmeras pesquisas de opinião pública, porém, revelam que faltam bases empíricas quantitativas robustas para caracterizar as atitudes cotidianas de brasileiros como marcadas pela negação da discriminação racial (BAILEY, 2009; TELLES; BAILEY, 2013). Tomemos, por exemplo, a pesquisa de 1995 do Datafolha baseada em uma amostra probabilística. Os respondentes foram perguntados: “Os negros deixaram de ser escravos no Brasil há pouco mais de cem anos. Na sua opinião quem é mais responsável pelo fato de que em geral a população negra ainda viva em piores condições que a população branca? O preconceito e a discriminação que existe dos brancos contra os negros? Ou os negros que não aproveitam as oportunidades que têm para melhorar de vida?”. Essa pesquisa de 1995 pode ser vista como uma fotografia do senso comum brasileiro sobre raça antes da mudança no discurso, na estrutura e nas políticas estatais, ou seja, ainda supostamente mergulhado no tradicional mito da democracia racial. Contraintuitivamente, a grande maioria dos brancos e dos não brancos (72%) culparam a discriminação por parte dos brancos pelas desvantagens sofridas pelos negros.
Todavia, esses resultados de 1995 não foram apenas casuais. Questões semelhantes em duas pesquisas específicas (em São Paulo em 1986 e no Estado do Rio de Janeiro em 2000) revelam resultados muito parecidos (HASENBALG; SILVA, 1993; TURRA; VENTURI, 1995; BAILEY, 2009). Ao comentar essa pesquisa eleitoral de São Paulo de 1986, Hasenbalg asseverou que: “Estes resultados levam a relativizar a noção de democracia racial na medida em que há uma clara percepção de que as pessoas recebem um tratamento diferenciado segundo a sua cor” (1998, p. 245).
Além disso, quase duas décadas após o começo da mudança de paradigma estatal no Brasil, os percentuais daqueles que reconhecem a discriminação em pesquisas de amostras grandes permanece mais ou menos constante. Por exemplo, a pesquisa de 2010 do AmericasBarometer no Brasil, utilizando uma amostra nacional, incluía a seguinte questão: “O(A) sr./sra. acredita que as pessoas negras são tratadas (1) muito melhor, (2) melhor, (3) igual, (4) pior ou (5) muito pior que as pessoas brancas? Um total de 72% dos respondentes escolheram as opções 4 ou 5, isto é, que negros são tratados de modo pior ou muito pior do que brancos no Brasil (TELLES; BAILEY, 2013). Questão e resultados semelhantes podem também ser encontrados na pesquisa de 2012 do AmericasBarometer sobre o Brasil (BAILEY et al., 2015). Portanto, como resumido na Tabela 2, abaixo, a suposição sustentada pela academia de que brasileiros negam a existência de descriminação racial não é correta, conforme mostrado por meio de pesquisas baseadas em grandes amostras, as quais são especialmente qualificadas para capturar posturas generalizadas (BAILEY, 2009). Além disso, a Tabela 2 demonstra que tampouco há fundamentos para apoiar a perspectiva de que o reconhecimento da discriminação observado nas pesquisas dos últimos 5 a 10 anos reflete uma mudança na opinião pública10.
POLÍTICAS DIRECIONADAS À QUESTÃO RACIAL
Embora pesquisas de opinião pública revelem que brasileiros são bastante conscientes da discriminação racial, a mudança na orientação estatal sobre raça não parece ser o produto de uma pressão social generalizada. Ao contrário, a literatura atribui essa mudança à união inédita entre o Estado e atores dos movimentos negros no Brasil, acompanhada de organizações e de atores internacionais e não governamentais (SOUZA, 1997; CARDOSO, 1997; TELLES, 2004; BAILEY, 2009; LOVEMAN, 2014). É possível que o acontecimento que afetou mais claramente a mudança da postura estatal quanto à questão racial tenha sido a participação do Estado junto com atores dos movimentos negros na Conferência Mundial contra o Racismo da Organização das Nações Unidas sediada por Durban, na África do Sul, em agosto e setembro de 2001. A conferência e seus encontros preparatórios serviram como uma estrutura de acesso político específica, unindo o Estado e os atores dos movimentos negros de forma inédita e legitimando as reivindicações destes em relação à centralidade da raça na sociedade brasileira.
Telles (p. 72, 2004), entre outros, aponta esse evento como central para o início de uma “transformação pós-Durban” da política pública no Brasil. Assim, atores estatais brasileiros que historicamente deixaram a questão racial de fora da esfera pública passaram a promover e a instaurar políticas públicas afirmativas. Os primeiros casos incluíram o Ministério do Desenvolvimento Agrário (setembro de 2001), seguido pelo Ministério da Justiça (dezembro de 2001) e pelo Ministério da Cultura (agosto de 2002). A primeira legislação voltada à questão racial na educação superior foi adotada em outubro de 2001 em duas universidades estaduais no Rio de Janeiro. No ano seguinte a Universidade do Estado da Bahia também estabeleceu cotas raciais.
Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência (2003-2010) e seu mandato assegurou a continuação da abertura política e a posterior solidificação de estruturas de acesso que unem Estado e atores dos movimentos negros. Dessa forma, a histórica distância entre o Estado e os movimentos negros começou a diminuir no governo Cardoso, encolhendo ainda mais no governo Lula. Entre as muitas iniciativas voltadas à questão racial propostas ou adotadas em diferentes âmbitos, talvez a que representa o ganho político mais importante até o momento seja a adoção de cotas raciais em universidades públicas federais e estaduais. Como exemplo, pode-se citar a lei pioneira na educação superior no estado do Rio de Janeiro, que estabeleceu:
Fica estabelecida a cota mínima de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda11 no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). (RIO DE JANEIRO, 2001).
A política de cotas da Universidade de Brasília oferece mais um exemplo: “Para concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negros”.
Em 2005, 24 das 95 universidades públicas brasileiras haviam adotado uma variedade de políticas afirmativas em seus processos seletivos, algumas por critério de classe, outros de cor ou raça e algumas por ambos. Em 2007, esse número cresceu para 37 e, em 2011, 73 universidades já possuíam algum tipo de ação afirmativa em seus processos seletivos. Em 2012, o Estado brasileiro estabeleceu cotas raciais para todas as universidades federais. Além disso, em uma decisão paradigmática, o Supremo Tribunal Federal, a corte mais alta do país, declarou a constitucionalidade das cotas raciais nos processos de seleção das universidades em um caso envolvendo a Universidade de Brasília. Desse modo, percebe-se que a guinada brasileira em direção a uma abordagem orientada a partir da questão racial vem se dando de maneira acelerada (PERIA; BAILEY, 2015).
Embora pesquisas demonstrem que a população brasileira reconhece a existência de discriminação, como discutido acima, sua percepção sobre políticas públicas afirmativas é importante e pode condicionar o sucesso dessa nova abordagem. A população brasileira apoia ações afirmativas? De modo a ilustrar essa questão, o questionário aplicado pelo AmericasBarometer de 2010 trazia a pergunta: “Diga até que ponto o(a) sr./sra. concorda ou discorda da seguinte frase: É justo que as universidades públicas reservem vagas para pessoas afro-descendentes (pessoas negras ou mulatas)”. Um total de 55% de brasileiros concordou com a assertiva (BAILEY; FIALHO; PERIA, 2015). Em uma pesquisa conduzida pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em janeiro de 2013, 64% dos respondentes se disseram a favor de cotas raciais para negros em universidades públicas. Portanto, em comparação com outros contextos, como o dos Estados Unidos - onde a tendência é claramente contrária às políticas de ações afirmativas e onde cotas raciais vêm sendo consideradas inconstitucionais há muito tempo -, sua ampla adoção e apoio público no Brasil podem ser considerados incrivelmente excepcionais (BAILEY et al., 2015)12.
CONCLUSÃO
Em suma, parece que na terra da democracia racial, o Estado vem modificando sua abordagem em relação à diversidade étnico-racial. Ele celebra a “existência de distintas raças”, a branca e a negra, e rejeita a ambiguidade racial; reconhece oficialmente a discriminação e a desigualdade raciais generalizadas, evidenciada por uma ciência social rigorosa; e delineia o status racial negro de modo semelhante à “regra da uma gota” adotada nos Estados Unidos, apesar de o termo negro não ser o preferido entre a vasta maioria dos brasileiros à qual ele é imputado. Mais importante, porém, é o fato de que atores estatais conduzem uma variedade de abordagens potentes direcionadas à luta contra a desigualdade étnico-racial, utilizando tanto categorias raciais quanto de cor, e de que a maioria da população parece apoiar a orientação dessas políticas. Essa guinada arrojada das políticas públicas pode fazer com que o campo acadêmico deixe de associar o Brasil a uma falta de consciência racial, para considerá-lo um modelo de políticas públicas contra a desigualdade.
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Notas