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Trindade, Hélgio (2021). Uma Longa Viagem pela América Latina: Invenção, reprodução e fundadores das ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO.
Wirapuru Revista Latinoamericana de Estudios de las Ideas, núm. 4, pp. 1-4, 2021
Ariadna Ediciones

Reseñas

Trindade Hélgio. Uma Longa Viagem pela América Latina: Invenção, reprodução e fundadores das ciências sociais. 2021. Buenos Aires. CLACSO. 1750pp.

Uma viagem crítica pela da história de nossas ciências sociais

Da heterogeneidade dos países latino-americanos aos seus centros acadêmicos, do surgimento da sociologia à sua chegada na América Latina e, nela, seu processo histórico de institucionalização, Helgio Trindade faz um passeio pela região através de textos e autores que construíram, ao longo do último século, o que hoje temos como a espinha dorsal das ciências sociais latino-americanas. Seu livro Uma Longa Viagem pela América Latina: Invenção, reprodução e fundadores das ciências sociais, publicado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) em 2021, impressiona não só pelo tamanho, mas principalmente pela vasta literatura apresentada em suas quase 1800 páginas. Nele, Trindade busca apresentar a história das ciências sociais latino-americanas em quatro atos sem, no entanto, esgotá-la.

Refletir sobre o processo de produção e construção de um campo acadêmico regional, bem como de institucionalização das ciências sociais, é um empreendimento coletivo. Esse esforço é especialmente interessante quando observamos que as ciências sociais, quase sempre, estão associadas a certo tipo de pensamento legítimo, não raro, produzido no norte global. A produção acadêmica latino-americana nem sempre foi considerada um conhecimento capaz de produzir teorias com valores e aplicabilidade universais – ou ao menos universalizáveis –, num jogo geopolítico há muito denunciado.

Essa narrativa encontra-se em crise, tal como as ciências sociais também se encontram, sejam elas produzidas no norte ou no sul global. O livro de Helgio segue na esteira de obras que, de uma forma ou de outra, desmistificam a ideia de uma certa intransponibilidade da dependência acadêmica na região. Apesar das desigualdades estruturais existentes em nível global, a América Latina não ocupa um lugar de passividade dentro de uma lógica mais ampla de produção do conhecimento. As ciências sociais latino-americanas são um campo de pesquisa com uma tradição centenária, remontando ao início do século XX e com um longo processo de consolidação que culmina na emergência de uma agenda própria e de instituições regionais. Estabelecer um panorama que exponha a história das ciências sociais e seu percurso na América Latina é um movimento necessário para que possamos conhecer não apenas a disciplina em escala regional, mas também em escala global. E é isso que a obra de Helgio Trindade faz.

Poderíamos dizer que Trindade faz a mesma digressão que muitos autores dos manuais de sociologia ou ciência política fizeram na Europa e nos Estados Unidos; no entanto, sua preocupação está naquilo que é produzido abaixo da linha do Equador, em um esforço bastante distinto que produz efeitos singulares. O autor mergulha em uma viagem que se inicia no século passado na Europa até chegar à América Latina, e em seu trajeto cruza com momentos conturbados da região, imersa em movimentos de constante transformação. A obra em questão não pode, nem deve, ser reduzida a um trabalho de historiografia das ciências sociais, de sociologia do conhecimento, ou mesmo dos intelectuais. A utilização de entrevistas e o esforço de apresentar o perfil e as trajetórias dos pensadores têm como efeito aproximarem o leitor da obra, não sendo um acaso o fato de a última parte do livro ser intitulada “Atores em carne e osso”. Em um movimento astuto, o que Trindade faz em seu livro é o retraçar de um mapa, que só é possível quando percorrermos a multitude de processos e contextos históricos que perpassam e influenciam uma gama de pensadores, os quais, muito além de acadêmicos encastelados em determinas áreas, são autênticos pensadores das sociedades e das realidades da América Latina.

Helgio Trindade, cientista político e professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é o guia certo para a viagem a que convida o leitor a fazer, tendo dedicado grande parte de sua carreira ao estudo das ciências sociais latino-americanas. Sua atuação enquanto reitor da UFRGS e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) simboliza o papel que ocupou na academia brasileira ao longo de sua vida. É inegável sua importância para as ciências sociais, seja no papel de estudioso ou de produtor delas. Apenas um pesquisador da estatura de Trindade seria capaz de obter e compilar as entrevistas de tantos autores ilustres, decerto um dos pontos altos de uma obra irreplicável. Waldo Ansaldi sumariza esse sentimento na contracapa que elabora para a obra, ao declarar que ela é escrita por “alguém que fez e faz parte” do próprio processo que é descrito ao longo do livro.

Apesar de estar divido em quatro partes principais, a organização do livro pode ser melhor descrita como estando fundamentada em dois eixos complementares. O primeiro eixo comporta as duas primeiras partes da obra: “Ciências sociais: origens e reprodução na América Latina” e “A construção das ciências sociais latino-americanas: contribuições internacionais e transnacionais”. Esta primeira parte diz respeito a uma análise histórica institucional das ciências sociais, em um movimento de fora para dentro; o segundo eixo, composto pelas partes “América Latina & Europa” e “Atores em carne e osso”, se dedica a uma análise em escala individual, concentrando-se em apresentar os autores/atores, indo além de suas respectivas obras, incluindo, de forma fascinante, seus perfis biográficos e entrevistas magistrais. São esses os eixos que tecem o pano de fundo da jornada proposta pelo autor.

Destarte, a primeira parte do livro “Ciências sociais: origens e reprodução na América Latina” dá o tom da obra ao nos introduzir à sociologia como um saber que surge na Europa em meio aos seus processos de transformação e em estreita relação com a modernidade. A sociologia como disciplina se institucionaliza já na primeira metade do século XX na Europa e nos Estados Unidos. No entanto, quando olhamos para a institucionalização da sociologia na América Latina, nos deparamos com duas questões centrais, a saber, as da importação e da transplantação. Os dois primeiros capítulos desta parte são dedicados a realizar uma digressão sobre o surgimento das ciências sociais e sobre como ela veio a se estabelecer na América Latina. No terceiro e último capítulo dessa primeira parte somos introduzidos aos impasses que perpassam a construção do campo acadêmico na região, tendo como foco o Brasil, o México, a Argentina, o Chile e o Uruguai.

O tema no qual se assenta essa primeira parte, por si só, seria capaz de produzir uma obra de fôlego, já que ao descrever as origens eurocêntricas das ciências sociais, Trindade constrói um cenário para que possamos, de forma mais cristalina, compreender os próprios entraves enfrentados pelas ciências sociais em seu processo de crescimento na América Latina. Ele também joga luz sobre momentos chave, as crises e as experiências importantes que condicionaram e determinaram a sua institucionalização, especialmente a partir da segunda metade do século XX. Desde as ditaduras às investidas neoliberais que solaparam a região, um número de novos dilemas foram (e ainda são) apresentados.

A segunda parte do livro “A construção das ciências sociais latino-americanas: contribuições internacionais e transnacionais” mantém o foco nos processos de institucionalização das ciências sociais na América Latina. A ênfase aqui está no papel desempenhado por organismos internacionais e transnacionais que foram fundamentais para a formação de profissionais e pelo estabelecimento de uma rede regional de acadêmicos. Projetos financiados e desenhados por instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Fundação Ford foram responsáveis pelo estabelecimento de instituições que deram impulso a um espaço de pesquisa regional.

Cada capítulo desta parte é dedicado à apresentação e consolidação das mais importantes instituições transnacionais que promoveram o fluxo e o intercambio acadêmico na região. No Chile, em 1948, foi formada a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que tem, entre outras coisas, um grande impacto no desenvolvimento de uma cooperação acadêmica interdisciplinar, tendo inclusive produzido uma escola própria de pensamento, a Escola Cepalina. Foi também no Chile que, em 1957, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) foi fundada, vindo a ser a principal instituição de formação acadêmica para estudantes e pesquisadores de toda a região através de um sistema significativo de financiamento e concessão de bolsas. O CLASCO nasce em 1967, na Argentina, no amanhecer de um dos capítulos mais sensíveis para as ciências sociais na região. A sucessão de golpes e instauração de ditaduras militares produz um grande fluxo migratório de acadêmicos, espalhando cientistas sociais por toda a região e até para fora dela. Paradoxalmente, é preciso salientar que seria errôneo afirmar que houve um bloqueio total do campo acadêmico nas décadas que se seguem. Nesse sentido, é importante pensar a reconfiguração do horizonte de possibilidades em tais contextos e seus efeitos, especialmente se nos voltarmos a casos como o brasileiro.

Inaugurando o segundo eixo no qual a obra se baseia, a terceira parte, intitulada “América Latina e Europa”, não apenas introduz autores e seus pensamentos, como também apresenta o corpo da produção realizada na região. A partir desse momento, o autor se volta à análise e organização de uma série de autores que se conectam a partir de suas contribuições críticas. Trindade deixa claro que o movimento de uma sociologia crítica, tal qual ele a concebe nesta obra, faz parte de um movimento transnacional que se une, sobretudo, através da análise da colonização e seus efeitos. Desse modo, não está a se falar de sociologia crítica em sua vertente bourdieusiana, por exemplo, em um eterno movimento de ruptura epistemológica, mas de uma sociologia capaz de se distanciar e romper com as amarras que a colonialidade impõe, buscando sair de uma situação de subalternidade. É importante ressaltar que Trindade não toma a parte pelo todo, ele não iguala sociologia crítica à teoria anticolonial e pós-colonial ou vice-versa; pelo contrário, mesmo que a influência anticolonial e pós-colonial apareça de distintas formas, explicitamente ou transversalmente, nas obras dos autores elencados, ele assume a heterogeneidade existente em ambas em seu intento de produzir uma assemblagem coesa de um conjunto de autores.

Por fim, chegamos à quarta e última parte do livro, adequadamente intitulada “Atores em carne e osso”. Ela é, talvez, a parte mais excitante da obra, justamente por realizar uma incursão nas ciências sociais latino-americanas através de depoimentos coletados ao longo de quase duas décadas. Os autores aqui devem ser vistos como atores que têm em suas trajetórias de vida pequenos elementos responsáveis pela construção desse mosaico acadêmico latino-americano. A cada capítulo desta última parte, fazemos um passeio pelas academias de países como o Brasil, o México, a Argentina, o Chile, o Uruguai e por último a Bolívia e o Paraguai. Trindade se concentra em apresentar aqueles autores que fazem parte da primeira e segunda geração de cientistas sociais em cada um desses países, o que resulta em uma lista irretocável de autores.

O protagonismo de tais autores não está concentrado apenas naquilo que foi colocado em papel e tinta por indivíduos, mas fundamentalmente naquilo que foi experienciado e que é capaz de construir uma coleção de experiências compartilhadas. Cada autor é, portanto, um ator em ação nesse projeto de fluxo ininterrupto de construção de um campo acadêmico. Seus deslocamentos, interlocuções, cada ato de sua trajetória particular, são também atos em uma trajetória coletiva. E isso revela o quanto a produção do conhecimento não se dá em um ambiente estéril, mas um ambiente de criação plural e integrada. Antes de se aventurar a proferir palavras finais e sem a pretensão de realizar uma conclusão desta obra, Trindade introduz um debate muito sensível para as academias periféricas, versando sobre as falácias da narrativa universalista e o lugar que a produção acadêmica destas regiões ocupa dentro dela. São citados três documentos, o Relatório Gulbenkian (1996), as Cartas Abertas do Presidente da Associação Internacional de Sociologia aos seus membros (1994-1998) e os Relatórios Mundiais sobre as Ciências Sociais da UNESCO (2010-2016). A mobilização de tais documentos evidencia o caráter crítico que move o trabalho de Helgio Trindade. Seu esforço ao longo desta obra vai além do simples ato de apresentar uma história das ciências sociais na América Latina, ele também é um esforço de expô-las. É a partir desse movimento de exposição que ficam nítidas as barreiras e as desigualdades que permeiam o campo acadêmico.

O desafio, portanto, é reconhecer e construir ferramentas que sejam capazes de reduzir as desigualdades e deslegitimações históricas sofridas pelas ciências sociais produzidas fora dos países centrais. Tendo isso em vista, todo autor que queira, genuinamente, produzir uma leitura histórica sobre as ciências latino-americanas deve estar consciente de que a melhor forma de observar o histórico de desenvolvimento e crescimento das ciências sociais na América Latina está diretamente relacionada à observação de sua capacidade endógena de produzir conhecimento. O que por vezes se dá às margens de uma dinâmica imposta de relações de poder, estabelecendo assim padrões alternativos, autóctones, referentes à agenda e à circulação.

É inegável a robustez que apresenta a obra aqui comentada. Mais do que um trabalho de fôlego, o livro construído por Helgio Trindade pode ser tido como um manual das ciências sociais latino-americanas e de seus processos de transformação e conformação ao longo de décadas. Isso porque ilustra como a institucionalização das ciências sociais na América Latina é um projeto regional, e desse modo, é em si um projeto transnacional. A obra fornece então um testemunho sobre o impacto das ciências sociais não apenas no continente europeu, mas além dele, ao oferecer uma vasta exploração que desvela as nuances e facetas da sociedade na América Latina e apresenta, portanto, um panorama dos processos de transformação, das crises e mudanças de paradigmas dentro da região, e com isso um estado da arte das ciências sociais. Ao lançar mão de textos e entrevistas, Trindade logra o efeito de dirigir a atenção do leitor para questões inerentes ao debate, como desenvolvimento, desigualdade, opressão e representação, deixando explícito o que constitui (ou deveria constituir) as ciências sociais em seus termos mais autênticos: um saber crítico voltado a observar e entender o mundo ao seu redor e, em certa medida, comprometido com a mudança social. Mesmo que em meio a crises, como o autor aponta em suas considerações finais, as ciências sociais devem seguir persistindo em sua tarefa de conhecer o mundo e a si mesmas.

Em determinado momento do texto, Trindade declara que a obra é resultado de uma experiência particular, uma espécie de relato de viagem. Partindo dessa declaração, o que temos em mãos pode ser visto como um caderno de campo de um etnógrafo dedicado ao estudo de seu objeto, mas também comprometido com sua própria experiência em meio à sua jornada. O livro entregue é um testemunho de fé e confiança na capacidade crítica e no potencial ainda não esgotado das ciências sociais latino-americanas. Sem um tom de definição, que encerraria a discussão, o livro não apenas termina em aberto, mas como um convite a todos aqueles que se interessam em pensar e em produzir sobre e desde a América Latina.

Notas de autor

* Brasileira, doutoranda em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).

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