Resumo: Este artigo tem como objetivo investigar a atuação do intelectual brasileiro Abílio Cézar Borges (1824-1891) no Congresso Pedagógico Internacional realizado em Buenos Aires no ano de 1882, enquanto representante do Império do Brasil. Abílio Borges nasceu no interior da Bahia, cursou a Faculdade de Medicina, atuou como diretor de instrução pública e fundou colégios na Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Publicou diversas obras destinadas a alunos e professores, e recebeu o título de Barão de Macahubas em 1881. Para a realização do estudo, buscamos responder aos seguintes questionamentos: quem foi esse intelectual da educação do século XIX? qual o percurso de sua formação e atuação profissional que lhe conferiram as credenciais necessárias para representar o Brasil no Congresso Pedagógico Internacional de 1882? e quais eram as suas ideias pedagógicas? Com base no método indiciário de Carlo Ginzburg, recorremos, principalmente, a fontes hemerográficas coletadas em repositórios digitais brasileiros e argentinos. Nos pautamos, sobretudo, nas contribuições de Michel de Certeau e Jean François Sirinelli que nos auxiliam na compreensão do percurso do intelectual. O Barão de Macahubas destaca-se no cenário educacional do período enquanto diretor de escolas, educador, autor de livros, preocupado em fazer circular suas ideias sobre a educação nacional.
Palavras-chave: Abílio Cézar Borges, Congresso Pedagógico, Ideias Pedagógicas, Século XIX.
Abstract: This article aims to investigate the performance of Brazilian intellectual Abílio Cézar Borges (1824-1891) in the International Pedagogical Congress held in Buenos Aires in 1882, as a representative of the Brazilian Empire. Abílio Borges was born in Bahia, studied at the Faculty of Medicine. He served as director of public instruction and he founded schools in Bahia, Rio de Janeiro and Minas Gerais. He published several works for students and teachers, and received the title of “Barão de Macahubas” in 1881. In order to carry out the study, we sought to answer the following questions: who was this nineteenthcentury educational intellectual? What was the course of your education and professional performance that gave him the necessary credentials to represent Brazil at the International Pedagogical Congress? and what were your pedagogical ideas? Based on Carlo Ginzburg's evidential method, we resorted mainly to hemerographic sources collected in Brazilian and Argentinean digital repositories. We are based, above all, on the contributions of Michel de Certeau and Jean François Sirinelli that help us to understand the path of the intellectual. The “Barão de Macahubas” stands out in the educational scenery of the period as a school director, educator, author of books, concerned with circulating his ideas about national education.
Keywords: Abílio Cézar Borges, Pedagogical Congress, Pedagogical Ideas, XIX century.
ARTIGO
ABÍLIO CÉZAR BORGES E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO CONGRESSO PEDAGÓGICO INTERNACIONAL DE BUENOS AIRES (1882)
ABÍLIO CÉZAR BORGES AND BRAZILIAN EDUCATION AT THE BUENOS AIRES INTERNATIONAL PEDAGOGICAL CONGRESS (1882)
Recepção: 14 Setembro 2021
Aprovação: 20 Novembro 2021
Inserida no campo da História da Educação e no domínio da História Intelectual, esta pesquisa teve como objetivo investigar a atuação do intelectual Abílio Cézar Borges4 no campo educacional brasileiro no século XIX. Nesse intuito, elegemos como foco para a nossa análise a participação do intelectual, enquanto representante do Império do Brasil, no Congresso Pedagógico Internacional realizado em Buenos Aires no ano de 18825 .
Abílio Cézar Borges, o Barão de Macahubas, na segunda metade do século XIX, ganha notoriedade na instrução nacional pela sua atuação enquanto diretor de escolas, educador e autor de livros e cartilhas escolares. Nosso interesse por este intelectual articula-se com a pesquisa em desenvolvimento no âmbito do doutorado em educação6 em que interessa-nos investigar a circulação das ideias pedagógicas em torno da organização e transformação da educação brasileira nas décadas finais do século XIX e início do século XX.
Trata-se de um intelectual que realiza viagens para a Europa em busca de inovações pedagógicas e dedica-se a registrar e propagar suas ideias e realizações no campo da instrução. Entre os trabalhos desenvolvidos no campo da historiografia da educação brasileira, destacamos a tese de doutorado produzida por Diane Valdez (2006), o artigo de Dermeval Saviani (2000) e o de Anísio Teixeira (1952).
O século XIX no Brasil é marcado por uma série de acontecimentos políticos que influenciaram significativamente os diversos campos sociais, desde a chegada da corte Portuguesa, passando pela Independência, pelo Primeiro e Segundo Reinado até a Proclamação da República. Em relação ao campo educacional, Saviani (2006) propõe uma periodização para a história da educação brasileira na qual o autor considera o período de 1827 a 1890 como o “breve século XIX”. Este período, na visão do autor, diz respeito às “primeiras tentativas, descontínuas e intermitentes, de organizar a educação como responsabilidade do poder público representado pelo governo imperial e pelos governos das províncias” (SAVIANI, 2008, p. 150).
Com o Brasil independente, a primeira Constituição do Império de 1824, previa “Instrucção primaria, e gratuita a todos os cidadãos” (BRASIL, 1824). Inicia-se um período de propostas para o ensino do país que irá originar a Lei de 15 de outubro de 1827 que “mandava crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império” (BRASIL, 1827).
Posteriormente, em 17 de setembro de 1854, é aprovado o Decreto nº 1.331-A que apresentava o “Regulamento para a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da Côrte” (BRASIL, 1854), que ficou conhecida como Reforma Couto Ferraz. Já em 1879, é aprovada nova reforma por meio do Decreto nº 7.247 de 19 de abril, que apresentava a “Reforma do Ensino Primário e Secundário do Município da Corte e o Superior em todo o Império” pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império Carlos Leôncio de Carvalho.
Elencamos essas legislações educacionais com o intuito de demonstrar as tentativas de organização e institucionalização da escola no período. Villela (2000, p. 103) assinala a existência do pensamento na elite intelectual e política de que “somente pela instrução se atingiria os estágios mais elevados da ‘civilização’ [...] entendiam que a falta de instrução do nosso povo era a verdadeira causa da distância existente entre o Brasil e as nações civilizadas”.
E é nesse contexto que encontramos a figura de Abílio Cézar Borges. Anísio Teixeira (1952) afirma sobre o intelectual que
[...] nada faltou a Abílio César Borges para se fazer o lider educacional de um jovem país, nesses meados promissores do século dezenove. Detinha, com efeito, como se suas fôssem, tôdas as grandes idéias da educação do seu tempo e alimentava tôdas as ambiciosas aspirações que, então, medravam no espírito dos homens em relação às possibilidades entre-sonhadas da educação, humanizada nos seus métodos, enriquecida no seu conteúdo, pela expansão da ciência e, afinal, estendida a todos (TEXEIRA, 1952).
O pensamento do autor instiga-nos assim a investigar quem foi esse intelectual da educação do século XIX, qual o percurso de sua formação e atuação profissional que lhe conferiram as credenciais necessárias para representar o Brasil no Congresso Pedagógico Internacional de 1882 e quais eram as suas ideias pedagógicas. A partir destes questionamentos, organizamos nosso estudo em duas partes.
Inicialmente, apresentaremos o intelectual Abílio Cézar Borges e, para isso, recorremos às pesquisas desenvolvidas no âmbito da Historiografia da Educação Brasileira e às fontes coletadas. Interessa-nos conhecer seu percurso profissional e sua atuação no campo educacional. Ao analisarmos as fontes, pautamo-nos no paradigma indiciário de Ginzburg (2007) que nos auxilia a compreender os sinais e indícios que denotam a atuação do intelectual no contexto brasileiro do século XIX.
Nosso aporte teórico baseia-se nas contribuições de Michel de Certeau (1982) a partir da tríade proposta pelo autor: lugar de fala, prática e escrita. Do mesmo modo, o pensamento de Sirinelli (2003) permeia nossa escrita a partir da concepção de intelectual.
Em seguida, nos debruçaremos sobre a figura do Barão de Macahubas e suas ideias defendidas no Congresso Pedagógico de Buenos Aires, buscando identificar ainda indícios da repercussão dessa participação na imprensa nacional e em documentos da Argentina e do Uruguai. Por fim, apresentamos breves considerações acerca da pesquisa realizada.
Filho de Miguel Borges de Carvalho e Mafalda Maria da Paixão, Abílio Cézar Borges (FIGURA 01) nasceu em 9 de setembro de 1824, na vila do Rio de Contas, província da Bahia. Valdez (2006) aponta, pelos indícios encontrados, que a família de Abílio pertencia a uma elite local, o que permitiu os investimentos que foram feitos em sua educação. De acordo com a autora, aos quatorze anos, Abílio se muda para Salvador para realizar o curso preparatório no Colégio Conceição.
Na capital da província, Abílio faz o curso de humanidades e ingressa na faculdade de medicina na Academia Médica da Bahia, onde estudou durante cinco anos. No ano de 1846, mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 20 de dezembro de 1847, graduou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (DICCIONARIO BIBLIOGRAPHICO BRAZILEIRO, 1883).
No documento de sua tese, intitulado “Proposições sobre as sciencias médicas”, encontramos a apresentação do recém graduado, que aos 23 anos, era
cirurgião do 4º batalhão de Artilharia, Socio fundador da Academia Philomatica do Rio de Janeiro, Membro effectivo do Conservatório Dramatico Brasileiro, da Imperial Sociedade Amante da Instrucção, e Correspondente da Auxiliadora da Industria Nacional da mesma cidade; Socio effectivo da Associação Recreio Litterario, e fundador do Instituto Litterario da Bahia; Membro honorário do Instituto Litterario de Olinda, e Correspondente do Instituto Historico e Geographico do Brasil (BORGES, 1847, p. 01).
Valdez (2006) aponta que o intelectual foi sócio correspondente da Sociedade Geográfica de Paris, de Bruxelas e de Buenos Aires, correspondente da Sociedade dos Amigos da Instrução Popular de Montevidéu e da Sociedade Parisiense para o desenvolvimento da Instrução primária. A autora afirma ainda que o intelectual participava do movimento abolicionista.
Abílio Cézar Borges foi também cavaleiro da ordem de Cristo (1860), comendador da Ordem da Rosa (1867), pelos serviços prestados durante a Guerra do Paraguai, e comendador da ordem de São Gregório Magno de Roma (1879), títulos que denotam o reconhecimento social do intelectual, perante a Igreja Católica e o Império Brasileiro. Sirinelli (2003, p. 242) ao discutir a polissemia que envolve o conceito de intelectual aponta que existem duas concepções, “uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os ‘mediadores’ culturais, a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento”. No entanto, o autor exorta que não é necessário ao historiador optar por uma ou outra, ao contrário, adequar o seu olhar de acordo com o objeto investigado.
Nessa perspectiva, Carvalho (2007) auxilia-nos a compreender a atuação dos intelectuais no século XIX, à medida que a autora considera fundamental a atuação da monarquia brasileira para a formação e organização da inteligência brasileira no período. Ao se referir proliferação de academias e de agencias intelectuais sob a tutela do Império no período como forma de ampliação e centralização do poder, a autora afirma que “tomando a organização dos intelectuais para si, como elemento constitutivo do seu poder, a monarquia brasileira conferiu dimensão pública à atividade intelectual, e essa será a marca de origem da moderna inteligência no país” (CARVALHO, 2007, p. 19 grifo do autor).
Evidencia-se, assim, a imbricação entre os campos político e intelectual. Nesse sentido, auxilia-nos na investigação acerca dos percursos de Abílio Borges, a compreensão de que este se tratava de um intelectual típico de sua época, conforme os elementos apresentados por Nunes
Ser um intelectual típico, no final do século XIX, é falar de um ponto de vista particular: da elite branca, proprietária e letrada, com uma atitude intelectual característica, iluminista. É também possuir uma atuação polivalente [...]. É participar de um espaço de eleitos, escolhidos a partir de suas relações sociais [...] faziam parte de instituições criadas nos moldes das academias ilustradas europeias (NUNES, 1995, p. 53).
Ressaltamos, diante da apresentação feita por Nunes (1995), a compreensão que Abílio fazia parte de uma elite acadêmica do Império, tornando-se, por exemplo, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1847. Desde a juventude, Abílio Borges circulava nesses espaços de sociabilidade intelectual. Após concluir o curso de Medicina, ele retorna a Bahia, para exercer a profissão. Segundo Valdez (2006), de 1847 a 1855, o intelectual atuou na cidade de Barra do Rio Grande, no vale de São Francisco, como clínico e cirurgião chefe de um hospital de caridade. Casa-se com Francisca Antônia Wanderley no ano de 1850, com quem tem seis filhos. Se insere, então, na vida política, elegendo-se como vereador.
Sua atuação no campo educacional inicia-se quando ainda cursava medicina em Salvador. Conforme apresentado pelo próprio intelectual, em seu discurso proferido na inauguração do Ginásio Baiano em 1858, o interesse pela educação e em ser “preceptor da mocidade” iniciou aos dezoito anos quando passou a exercer o magistério no colégio Conceição na mesma cidade, permanecendo por cinco anos (BORGES, 1866, p. 06).
Neste mesmo discurso, Abílio Borges se refere a sua atuação na educação como “natural vocação” e “verdadeiro sacerdócio, que requer abnegação até o sacrifício”. A partir dessa fala do intelectual, evidencia-se a concepção do que para ele seria o ser professor, visão esta que justificaria a sua percepção de que os professores oriundos de localidades mais simples poderiam ganhar menos ao exercer a docência, uma vez que estariam cumprindo uma vocação.
Foi Diretor Geral dos Estudos da Bahia pelo período de dois anos, cargo do qual pediu exoneração para, no ano seguinte, em 1858, fundar o Ginásio Bahiano, “com o intuito de pôr por obra as suas idéas de progresso e reforma na instrucção publica e methodos de ensino” (DICCIONARIO BIBLIOGRAPHICO PORTUGUEZ, 1867). Nesse colégio, estudaram importantes personalidades da época como Rui Barbosa e Castro Alves. Abílio Borges fundou ainda dois outros colégios: O Colégio Abílio da Corte, em 1871, e o Colégio Abílio de Barbacena, Minas Gerais, em 1881.
Nesse sentido, Anísio Teixeira (1952), ao se referir ao intelectual, aponta que a área de atuação de Abílio Borges se estendia
[...] desde a cidade da Barra, no vale do S. Francisco, até Barbacena, em Minas, passando pela Bahia, e pelo Rio, como se todos estes centros fossem cidades de um país homogêneo e de igual civilização. Em todos eles, na verdade, fundou e dirigiu o singular educador os seus colégios, praticando uma educação revolucionária para o tempo (TEIXEIRA, 1952, p. 150-151).
A produção intelectual de Abílio Borges é composta por diversas obras, desde a compilação de seus discursos a livros destinados a alunos e professores do ensino primário e secundário. Entre estes, podemos destacar: Coleção de Discursos proferidos no Ginásio Baiano (1866), Vinte anos de propaganda contra o uso da palmatória e outros meios aviltantes no ensino da mocidade (1875); Dissertação lida no Congresso Pedagógico Internacional de Buenos Aires, em 2 de maio de 1882 (1882); A Lei Nova do Ensino Infantil (1884); além de uma coleção de livros de leitura que o intelectual publica de 1866 a 1888.
Abílio Borges realizou três viagens a Europa, em 1866, 1870 e 1879, com destino a Inglaterra, Itália, França e Bélgica. De acordo com Valdez (2006), essas viagens tinham como objetivo cuidar da saúde, participar de exposições, conhecer métodos de ensino, comprar materiais pedagógicos, além de publicar livros. Segundo a autora, essas viagens influenciaram os discursos do intelectual que sempre citava “autores e métodos que conhecera e aplicara, influenciado pela pedagogia vivenciada na Alemanha, Inglaterra e, sobretudo, na França e sua capital, Paris” (2006, p. 43).
O empréstimo das ideias a partir das viagens pedagógicas é abordado por Houssaye (2007) que ao tratar a pedagogia a associa ao movimento de importação-exportação. Na perspectiva do autor, a pedagogia não pode ser concebida sem ser sob o ângulo internacional e os pedagogos sempre foram viajantes, contribuindo para a circulação de ideias.
Encontramos menções às viagens e aos retornos de Abílio Borges na imprensa, inclusive anúncios escritos pelo próprio intelectual, nos quais ele menciona a sua volta da viagem à Europa afirmando achar “conveniente declarar aos interessados, que trouxe consigo novo material, juntamente com todos os mais modernos apparelhos e instrumentos para facilitar o ensino”. Abílio Borges menciona ainda que o colégio seria transferido para novo edifício, “segundo os preceitos da sciencia pedagógica actual nos paizes mais adiantados” (JORNAL DE RECIFE, PE, 1880, p. 02).
A relação que Abílio Borges constrói com a imprensa da época é intensa. Além de escrever e publicar artigos em diversos jornais e revistas, sua figura é presença constante nos diferentes impressos do país, seja fazendo menção as ações do intelectual no campo educacional, divulgando suas escolas e seus livros, ou ainda agradecendo as constantes doações de suas obras. Em relação a este último ponto, encontramos também críticas a essa postura filantrópica de Abílio Borges exaltada pelos jornais, conforme é lido
Esses jornaes que tão benevolamente se prestão a anunciar taes actos de filantropia, redigidos pelo próprio, farião melhor se inserissem por uma vez esta declaração: “O nosso illustre educandista Dr. Abílio Cezar Borges offertará generosamente cada semana, um certo numero de exemplares de seus compêndios, ás escolas das províncias ou das parochias do Brazil. No fim de cada anno, daremos a estatística das ofertas generosas; e os pomposos elogios de costume”. Assim pouparão aos seus leitores essa comoção hebdomataria, que nos causa a comemoração da philantropia do sr. Abílio (O PROTESTO, RJ, 1877, p. 19).
Evidencia-se assim, os esforços de Abílio Borges em distribuir e fazer circular suas produções intelectuais, de tal modo que chegaram a gerar inclusive o incômodo apresentado no recorte do jornal. O intelectual, dessa forma, legitimava-se no campo educacional e na sociedade de sua época enquanto educador, escritor de livros relevantes e sujeito dedicado a filantropia e ao ensino no Brasil.
Notoriamente, é assim que constatamos que o intelectual é apresentado pela imprensa da época. É possível citar, como exemplo, a reportagem a ele dedicada no Jornal “A Illustração” de Lisboa, publicado em outubro de 1884, que apresenta a imagem do intelectual que figura neste trabalho. A reportagem “O Barão de Macahubas”, de primeira página, compõe uma seção do jornal intitulada Galeria de homens úteis, descreve Abílio Borges como “illustre brasileiro, um dos mais beneméritos e inteligentes educadores dos nossos tempos que tão relevantes serviços tem prestado no império à instrucção da geração moderna” e acrescenta “é como preceptor e educador da mocidade que o barão de Macahubas tem conquistado reputação notável e prestado relevantíssimos serviços á causa do ensino no Brazil. Tendo se dedicado com ardor á carreira pedagógica desde 1850” (A ILLUSTRAÇÃO, 1884, p. 01).
Outro aspecto relevante sobre Abílio Borges refere-se ao fato de o intelectual possuir uma relação de amizade com D. Pedro II. De acordo com Valdez (2006), essa relação de proximidade inicia-se no ano de 1859, quando o Imperador visitou o Ginásio Baiano. De acordo com a autora, “a presença ‘augusta’ da majestade imperial era motivo de imenso orgulho para Abilio, que iniciou, neste período, uma relação de amizade com Pedro II, a qual o acompanharia em sua vida profissional, sendo determinante para seu êxito” (2006, p. 168).
Nesse sentido, Saviani (2000) aponta que Abílio Borges, tendo recusado o convite do Imperador para assumir o cargo de reitor do Colégio Pedro II, aceitou a indicação deste de abrir um colégio na corte, o que ocorreu em 1871. Ainda segundo o autor, D. Pedro II indicou o intelectual para integrar o Conselho de Instrução Pública da Corte, no qual permaneceu de 1872 a 1877.
Em 30 de julho de 1881, Abílio Borges recebe o título de Barão de Macahubas, embora no período, estes títulos fossem em sua maioria destinados aos proprietários rurais. Sobre este ponto da vida do intelectual, Valdez (2006) faz minuciosa investigação, apresentada em sua tese, sobre o caminho percorrido até que Abílio fosse agraciado com o título de Barão. De acordo com a autora, a mudança do intelectual para a cidade de Barbacena, a abertura do novo colégio na cidade, além das relações com o então presidente da Província Mineira foram essenciais para o recebimento do título.
Abílio Borges apresenta a trajetória e as características que evidenciam o reconhecimento social que adquire, bem como faz com que seja notadamente adequado referir-se a ele enquanto um intelectual do seu tempo. Ao nos debruçarmos sobre o estudo acerca do intelectual Abílio Borges, evidenciamos aspectos elencados por Sirinelli (2003) e reconhecemos a sua atuação na sociedade da época enquanto criador e mediador, uma vez que se insere em instituições, funda outras, escreve livros e faz divulgar as suas ideias, ideias também desenvolvidas a partir das leituras que realiza, leitura de obras diversas e também de espaços como, por exemplo, em suas viagens. Do mesmo modo, evidencia-se o seu engajamento, a sua notoriedade e reconhecimento social enquanto educador, o que faz com este seja escolhido pelo Império Brasileiro enquanto delegado no Congresso Pedagógico de 1882.
Importante destacar que para Sirinelli (2003), os intelectuais se configuram como atores do político o que denota a importância de compreendermos a sua atuação social a partir do contexto e das relações políticas que envolvem o intelectual. Assim, alguns dos elementos até aqui apresentados nos fazem perceber que as relações políticas desenvolvidas por Abílio Borges contribuíram para que este se legitima-se no campo. Nesse sentido, emerge o conceito de sociabilidade também apresentado por Sirinelli (2003) que, embora não possamos aprofundar nesse estudo, reconhecemos, como exposto pelo autor, que não é possível, ao se dedicar a História dos Intelectuais, “ignorar ou subestimar” as estruturas da sociabilidade (SIRINELLI, 2003, p. 248).
De acordo com Sirinelli (2003, p. 248), “o meio intelectual constitui, ao menos para seu núcleo central, um ‘pequeno mundo estreito’, onde os laços se atam”. Esse meio, que é variável, pode ser a redação de uma revista, uma associação, uma instituição de ensino, uma sociedade científica, por exemplo. Interessa-nos compreender assim que nesses espaços são construídas redes de sociabilidade que acabam por conferir características relevantes nas trajetórias desses sujeitos. Notoriamente, Abílio Borges integrava um meio intelectual, de uma elite intelectual, dos letrados, conforme já assinalamos.
Essa compreensão do intelectual Abílio Borges, a partir das relações que construiu e dos espaços em que atuava, remete ao seu lugar de fala. E, nesse sentido, Certeau (1982) nos auxilia acerca do entendimento do lugar social do intelectual. De acordo com o autor, este lugar “sócioeconômico, político e cultural [...] circunscrito por determinações próprias: una profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados [...] está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade” (CERTEAU, 1982, p. 65).
Na perspectiva apresentada por Certeau (1982), o lugar de fala é uma marca indelével a qual estão associados as práticas e os discursos. Conhecer assim, o lugar social ocupado por Abílio Cézar Borges nos auxiliará no entendimento de sua atuação e de suas ideias apresentadas e por ele defendidas no Congresso Pedagógico de Buenos Aires de 1882.
No impresso oficial da Comissão Nacional de Educação da Argentina intitulado “El monitor de la Educación comum” de dezembro de 1881, encontramos as resoluções realizadas a partir de novembro do mesmo ano que tratam da realização de um Congresso Pedagógico durante a Exposição Continental da Indústria que aconteceria no ano seguinte. Assim, de acordo com decreto publicado em 02 de dezembro de 1881, o governo da Argentina realizaria
[...] en la Capital de la Nacion, durante la Esposicion Continental y con ocasion de ella, un Congreso de Profesores y personas competentes para tratar en conferencias y em discusiones pedagójicas, cuestiones relativas á la enseñanza y á la educacion popular, con el objeto de impulsarla y mejorala (EL MONITOR, 1881, p. 84).
O Congresso Pedagógico Internacional foi realizado de 10 de abril a 08 de maio de 1882 na cidade de Buenos Aires, convocado pelo Ministro da Educação Manuel Dídimo Pizarro e por Domingo Faustino Sarmiento, que contou com a participação de mais de 250 pessoas. No entanto, a maioria destes participantes se referiam a professores de Buenos Aires, diretores de escolas normais e representantes das províncias da Argentina. Compareceram delegados do Uruguai, da Argentina, um do Paraguai, um da Bolívia, um delegado representando El Salvador, Costa Rica e Nicarágua, um dos Estados Unidos e um do Brasil (ARGENTINA, 1882).
Abílio Cézar Borges, enquanto delegado do Império do Brasil, é designado, durante a oitava seção no dia 19 de abril, vice-presidente honorário do Congresso (EL MONITOR, 1934). Na seção de 2 de maio, o Barão de Macahúbas apresentou sua conferência na qual discorria sobre duas teses “1ª Influencia dos Internatos Normaes sobre o melhoramento e a diffusão da instrucção primaria - 2ª Os melhores meios de nas escolas sustentar a disciplina, e de fomentar nos meninos o gosto pela instrucção”. Conforme é apontado nas atas das seções, neste dia
El señor Barón de Macahubas da lectura, en português, de una extensa disertación sobre la formación y condiciones de los maestros, de las características de la pedagogía para que la escuela llene su misión profundamente educadora y, refiriéndose a un caso particular, a la inconveniencia moral de los premios, como estímulo del trabajo de niño. Este trabajo, abundante en felices reflexiones, y que suscita en el auditorio repetidas señales de aprobación (EL MONITOR, 1934, p. 246).
Abílio Borges divide sua fala em dois momentos, correspondentes a cada tese. Após elogiar a iniciativa do governo argentino em promover o Congresso, o intelectual passa então a defender as suas ideias, prevenindo os demais participantes de não se tratar de um discurso ou peça oratória, mas “apenas uma singela e despretensiosa exposição de opiniões” (EL MONITOR, 1883a, p. 124). E acrescenta que “não consultei um só autor para escrevel-as - o que vou dizer é producto exclusivo da minha observação e da minha já bem longa experiencia” (1883a, p. 125).
O cerne de sua primeira tese articula-se com a importância do professor para o bom desenvolvimento do ensino primário. Assim, Abílio Borges afirma que
Fundai, senhores, quantas escolas quiserdes; ponde mesmo uma á porta de cada família; formulai para ellas os mais sábios programmas; dotai-as de casas apropriadas e dos mais aperfeiçoados e completos materiaes e instrumentos de ensino; mas entregai sua direcção a homens sem competência e sem vocação, e pouco aproveitados, sinão perdidos, seão os sacrifícios feitos, porque não medrará o ensino do povo, ou será prejudicado (EL MONITOR, 1883a, p. 125).
Abílio ressalta que sem bons mestres não poderiam existir boas escolas, nem um bom ensino. Ao elaborar o seu discurso, percebemos que o intelectual faz questão de acrescentar à sua escrita elementos que lhe conferem legitimidade e autoridade. Isso pode ser percebido, por exemplo, quando ele aponta que esteve diversas vezes nos países mais adiantados da Europa, em que “em todos relacionei-me com os homens mais eminentes e mais adiantados en materias de ensino” (1883a, p. 125). Do mesmo modo, quando o intelectual assinala a sua experiência como diretor de colégios ao longo de 24 anos.
Em relação a este último aspecto, percebemos que é a partir de sua vivência, sobretudo enquanto diretor, em uma função que envolve a organização geral do ensino escolar, que Abílio Borges escolhe as temáticas que discutiria no Congresso e sobre as quais já se preocupava anteriormente. Essa perspectiva articula-se com o exposto por Certeau (1982, p. 30-31), uma vez que o autor afirma que “deste lugar de onde falo, efetivamente prende-se ao assunto de que se vai tratar e ao ponto de vista através do qual me proponho examiná-lo”.
Ao longo do seu texto, Abílio Borges refere-se ao ser professor como vocação, como dom, como sacerdócio e ao ensino das crianças como santo apostolado. Dando continuidade as suas ideias, Abílio Borges defende que não seria possível formar bons professores que não tivessem nascido com essa vocação educativa. De acordo com ele, “os legítimos, os verdadeiros mestres, não os podem fazer os laboratórios sociaes, ainda os mais aperfeiçoados; - existem feitos: só a natureza os cria” (EL MONITOR, 1883a, p. 125). Ainda neste ponto, percebemos, mais uma vez, a perspectiva do intelectual sobre o professor, que nasceria pronto, o que descaracteriza o processo de formação profissional.
Nesse sentido, o papel do Estado seria descobrir essas vocações, encontrar os bons mestres da infância, por mais difícil que fosse, embora o intelectual aponte que a escola primária, entre os alunos, seria o lugar mais certo de encontrar esses futuros mestres, que Abílio Borges compara a diamantes e pérolas do ensino. Descobrir aqueles que se destacam entre os alunos seria então “o modo de revelação natural das vocações para o magistério” (EL MONITOR, 1883b, p. 148).
Descobertos esses futuros mestres, Abílio Borges aponta as Escolas Normais e, especialmente, as com o regimento de internato, como o lugar propício para formar os professores. O intelectual defende que os normalistas possuam a preferência nos concursos, uma vez que estes possuíram maior conhecimento na arte de ensinar por terem realizado com dedicação o curso normal até a aquisição do diploma. Do mesmo modo, chama a atenção, mais uma vez, para a importância da discussão sobre a temática, que, segundo ele, até então não havia sido discutida no Congresso. Nesse sentido, afirma que
Hoje, senhores, que o ensino moderno se está por si mesmo impondo a todos os povos civilisados; hoje, que methodos novos, razoaveis, naturaes, teem espancado a rotina; hoje que as escolas nos primeiros anos não se devem mais chamar escolas de ler, escrever e contar, porém sim escolas de observar, de pensar e de fallar; hoje, que os mestres de escola não podem mais repousar emquanto trabalham os discípulos, e sim trabalhar tanto ou mais do que elles; hoje, digo, os Estados que não quiserem ficar na retaguarda dos outros na marcha que levam os progressos sociaes, devem cuidar com a maior solicitude em crear uma nova geração de mestres; - e eu não vejo outro meio melhor e mais rapidamente conseguil-o do que com o estabelecimento de internatos normaes, dirigidos com zelo e amor por homens ou mulheres de alta competência, por saber e por virtudes (EL MONITOR, 1883b, p. 149).
Nesse trecho, encontramos a ideia central defendida por Abílio Borges, bem como a sua perspectiva sobre a educação no período em que se configurava um ensino moderno para o qual seriam necessários novos professores. A partir disso, o intelectual passa então a explicar os motivos pelos quais acredita que as Escolas Normais deveriam funcionar no regime de internato. Seu primeiro argumento se refere à sua experiência pessoal, ao afirmar que “em meu paiz os melhores mestres que conheço são formados em um internato normal, que tive a fortuna de concorre para fundar” (1883b, p. 149). Acrescentamos a este aspecto, o fato de que os colégios que criou também funcionavam no mesmo regime.
Para Abílio Borges, nos internatos normais, seria possível desenvolver aspectos fundamentais para os mestres como a disciplina e a ordem, além de hábitos de trabalho e obediência ao dever, de concentração e de desprendimento do viver agitado da sociedade. Assim, este regime afastaria os alunos das Escolas Normais dos vícios e da desordem da sociedade, mantendo-os constantemente ocupados com rigor. Esses elementos do pensamento do intelectual aproximam-se de uma perspectiva higienista, uma vez que Abílio Borges apresenta os internatos como um modo de disciplinar os futuros mestres, modelando os seus comportamentos, afastandoos dos males da sociedade, adequando seus modos de vida e seus hábitos.
A proposta do intelectual incluía a criação de Internatos Normais gratuitos para homens e mulheres pobres das cidades, vilas e aldeias do interior que, ao concluir o curso, deveriam retornar às suas localidades para aí desenvolver o magistério. As despesas com deslocamento também deveriam ser pagas pelos Estados e municípios para contemplar os candidatos pobres.
Abílio Borges ressalta que estas vagas deveriam ser destinadas a meninos e meninas inteligentes e, em sua maioria, para a formação de mestras. Dessa forma, o intelectual acredita que “seriam em poucos anos levadas as luzes do ensino moderno a todos os pontos do interior dos paizes, com a mais feliz e a mais fructificadora elevação do espirito nacional” (1883b, p. 150). Com essa perspectiva, o autor aponta que seria possível solucionar o problema da falta de professores para atuarem nos interiores, problema não apenas do Brasil, mas de outros países.
Na defesa da sua tese, Abílio Borges propõe ainda uma argumentação econômica:
[...] os mestres, filhos das diversas localidades do interior, além de superiores a quaesquer outros em todos os sentidos, muito mais modestos seriam em suas aspirações, contentando-se e até julgando-se muito felizes, com metade dos honorários que ordinariamente se pagam a estranhos, e servindo incomparavelmente melhor. Demais disto, poderiam os mestres locaes indemnizar ao erário publico do valor de sua estada nos internatos, mediante uma pequena deducção ou desconto annual em seus vencimentos (EL MONITOR, 1883b, p. 151).
Percebemos assim que, ao mesmo tempo em que o intelectual propõe uma condição diferenciada para atrair o interesse dos futuros professores, pobres e moradores do interior, ele sugere que estes se contentariam em receber menos do que seus colegas que fossem trabalhar nas cidades maiores e capitais. Dessa forma, o Estado equalizaria os seus gastos com o investimento na instrução dos professores. Ao privilegiar os interesses do Estado, o discurso do intelectual denota o seu lugar social, membro de uma elite, representante do Império, proprietário de escolas que se opõe ao lugar do professor pobre que poderia se contentar a receber menos pela satisfação em exercer a sua vocação.
A segunda tese defendida por Abílio Borges insere-se na sua compreensão de que “tão desviados do verdadeiro caminho teen andado até a época actual os mestres acerca dos methodos de ensino, quanto acerca dos meios de manter a disciplina nas escolas e de desenvolver nos meninos o gosto pelo estudo” (1883b, p. 151). Assim, o intelectual caracteriza como rotineiro e brutal, antipático e aborrecido, lugar de suplícios, o ensino primário de todos os países. Para corroborar com seu pensamento, Abílio Borges apresenta uma reportagem de um jornal da Argentina que denunciava os maus tratos que um aluno teria sofrido de seu professor.
Essa configuração da escola, seus métodos e a figura do professor seriam contrários aos próprios objetivos da educação defendidos no período. Nesse sentido, Abílio Borges exorta
E o que quer, senhores, o ensino moderno, intuito, razoável, positivo, natural, e, portanto, agradável e convidativo, tão brilhantemente descripto e proclamado aqui, desta tribuna, por alguns dos illustrados membros desse Congresso? Quer redimir a infância da materialidade e das torthuras do velho ensino: - quer alliviala dos vexames, do martyrio do ensino rotineiro [...] imposto pela violência [...] quer tornar a escola amada, agradável e feliz, tanto para quem ensina quanto para quem aprende [...] quer esclarecer as intelligencias, quer formar os corações, quer fundar o império da razão (EL MONITOR, 1883b, p. 151).
Conforme apontado pelo próprio autor, essas ideias eram defendidas por ele desde a sua inserção no campo educacional. Abílio Borges cita o seu discurso proferido na criação do Ginásio Baiano (1858) em que afirma que a educação da mocidade, em vez de proporcionar amor pelas ciências e letras, fazendo os alunos passarem por castigos, infundia horror pelas escolas e pelos mestres. Em relação a estes últimos, o intelectual afirma que estes eram carrancudos e que mereceriam muito mais o nome de inimigo ou carrasco.
Mais uma vez a experiência pessoal do intelectual perpassa suas concepções acerca da educação. Abílio Borges escreveu o livro “Vinte anos de propaganda contra o uso da palmatória e outros meios aviltantes no ensino da mocidade” no ano de 1875 e já em seu relatório da Instrução Pública de 1856, o intelectual ao afirmar que “as escholas antigas infundem horror e terror á puerícia”, relata a sua própria experiência mencionando que “nunca me hei-de esquecer do como se me gelava o corpo inteiro ao pôr pés na soleira da porta da minha primeira eschola do mestre João Baptista, e do horror que me tomava ao ver a enorme palmatoria preta do Padre Mestre Ignacio com quem principiei a aprender o Latim” (BAHIA, 1856, p. 56).
Para Abílio Borges, “para se educar o espirito, que é uma emanação de Deus, de Deus que é todo puro amor, em vez de amor, só há de empregar rigor? Não haverá meio de reger a alma humana sinão fazendo padecer o corpo?” (EL MONITOR, 1883b, p. 152). Assim, na perspectiva do autor, o ensino deveria então ser pautado na sabedoria e no amor e assim, produziria “em um tenro coração, esta docilidade, que o faz conservar a liberdade na obediência; e infunden-lhe plena confiança naquelles que o educam” (1883b, p. 152). Tal perspectiva aproxima-se da apresentada por Pestalozzi, um dos autores que ele menciona em seu texto.
Assim, o principal cuidado que o mestre deveria ter, segundo Abílio Borges, seria desenvolver em seus alunos sentimentos elevados e o amor ao estudo. Nesse intuito, o rigor exagerado, as palavras duras e os atos violentos deveriam ser evitados, pois provoca o efeito contrário ao desejado. Para corroborar com sua ideia, o intelectual apresenta sua própria experiência ao relatar que “quando me sentei nos bancos escolares, que o mestre que falava com mais gravidade e mais docemente era o mais ouvido, mais respeitado e mais amado” (EL MONITOR, 1883b, p. 153).
Neste ponto, identificamos ainda as concepções de Abílio Borges acerca das definições de criança e de pedagogia
A criança é um ente pensante, activo, moral, influído por affectos e paixões, que convem regular, mas nunca violentar pela coacção ou destruir pela tyrania; A criança tem uma dignidade que será um dia a dignidade do homem; e é necessário engrandecel-a em logar de a envilecer. A pedagogia tem por fim cultivar a ração, sem martyrizar a sensibilidade: a sua missão é alumiar o espirito com o facho da sciencia, e confortar o animo com os perfumes do amor (EL MONITOR, 1883b, p. 153).
A partir dessas concepções e apresentando o pensamento de filósofos, perpassando os ensinamentos de Jesus Cristo e citando outros autores, o intelectual defende que os meios violentos deveriam ser evitados e que deveria ser desenvolvido o ensino de formar atrativa para estimular os discípulos a amar o estudo. O segredo, apresentado por Abílio Borges para que os alunos conseguissem amar o estudo, seria, primeiramente, fazer os alunos amarem os mestres. Isso exigiria uma postura totalmente diferente da de professor carrancudo apontada por ele.
Outro aspecto exortado pelo intelectual na sua fala se refere a sua compreensão de que a educação deveria ser desenvolvida independente do temor pelos castigos ou do estímulo de prêmios. Nesse intuito, o autor questiona “que valor moral pode ter a boa acção praticamente somente para evitar o castigo ou para se ganhar um premio? (EL MONITOR, 1883b, p. 155).
De acordo com Abílio Borges, após distribuir prêmios em seus colégios durante dezesseis anos, ele percebeu que a estratégia não surtia os efeitos esperados, ao contrário, quase todos os alunos ficavam abatidos por não terem sido contemplados, sentindo-se humilhados, enquanto aqueles que recebiam os prêmios “se enchiam de soberba e de vaidade, que acabavam por estragar-lhes o caracter” (1883b, p. 156).
Abílio Borges encerra sua fala no Congresso Pedagógico de Buenos Aires trazendo alguns elementos que nos auxiliam a identificar a compreensão do intelectual acerca do ensino. Assim, ele exorta aos mestres a ensinarem “a virtude; ensinem-lhes a verdade; animen-se lhes os naturaes estímulos; fecundem-lhes no coraçãos os germens das grandes aspirações; derpertem-lhes emfim as energias da alma: pois os meninos precisam mais de amor e conselhos” (EL MONITOR, 1883c, p. 184).
O intelectual denota assim o que se esperar do ensino, a importância deste na formação do homem e da sociedade, bem como ressalta o papel dos professores nesse intuito. Abílio Borges acrescenta ainda que considera “a missão dos bons mestres de escola mais elevada e mais digna de veneração do que a missão dos militares ou de qualquer outro funccionario publico [...] a meu ver, os Estados, por mais que os recompensem, nunca os recompensarão na proporção que merecem” (1883c, p. 184).
Se nesse momento da sua fala, Abílio Borges ressalta a importância dos professores e aborda o reconhecimento que estes deveriam ter por parte do Estado, anteriormente, ele propõe uma “solução econômica” indicando, a possibilidade dos Estados ou municípios pagarem menos aos normalistas que atuarem nas cidades e vilas dos interiores. O reconhecimento merecido pelos professores esbarraria, dessa forma, na limitação dos gastos com a educação.
Após cada dissertação e apresentação dos projetos correspondentes, o Congresso discutia e votava as resoluções. Interessante notar que a proposta de Abílio Borges em relação a criação de Internatos Normais provocou diferentes pontos de vista. Por exemplo, enquanto Agustín Alió, exreitor do Colégio Nacional do Uruguai, se posicionava contra a existência de qualquer tipo de escola no regime de internato, Jacobo Varela, delegado do Uruguai, demonstrava-se à favor do projeto, afirmando inclusive que, ao término do Congresso, iria “inaugurar en mi patria el primer internado normal de señoritas” (EL MONITOR, 1883d, p. 281).
Diante do impasse provocado pela discussão, por fim, é aprovada a proposta apresentada por Wenceslao Escalante, membro da comissão organizadora do Congresso, que, ao afirmar que o Congresso não poderia resolver a questão, sugere que os internatos normais fossem destinados aos alunos oriundos das vilas e cidades do interior. Na seção de 05 de maio, por sua vez, o Congresso vota sobre a segunda tese de Abílio Borges, mais uma vez permeada por diferentes posicionamentos sobre os prêmios e castigos. Encerrado o debate,
Se procede a la votación del artículo por partes. La primera: “Que se proscriban de las escuelas toda clase de premios” es aprobada por una votación varias veces rectificada, y cuyo resultado final es de 52 votos por la afirmativa y 50 por la negativa. El resto del artículo es sancionado por gran mayoría (EL MONITOR, 1884, p. 343, grifo do autor).
No “Informe acerca del Congreso Pedagógico” na Revista Anales del Ateneo de Uruguay (1882), encontramos também aspectos sobre as discussões acerca das ideias defendidas por Abílio Borges. Na segunda parte do documento, no qual os autores se dedicam a tratar das declarações sancionadas definitivamente pelo Congresso em sua última seção, encontramos que a declaração de número quatro, capítulo segundo, referia-se ao projeto sobre os prêmios e castigos. Segundo os autores, esta foi uma das questões mais delicadas tratadas no Congresso.
Ao discorrer sobre o posicionamento de Abílio Borges, os autores apontam que
[…] las proposiciones del Barón de Macahubas y de la Comisión especial son negativas: proscriben los castigos y los premios, y no dicen más. Pero, […] ¿Cuáles son los resortes que han de usarse para mantener la disciplina de la escuela y educar los sentimientos y la voluntad de los niños? Faltaba en aquellos proyectos una disposición positiva destinada á satisfacer esta necesidad importantísima (ANALES DEL ATENEO, 1882, p. 380).
De acordo com o exposto pelos autores, um dos representantes do Uruguai, Francisco Berra, delegado da Sociedade Amigos da Educação de Montevideo, apresentou uma emenda complementar a proposta do Barão de Macahubas, que resultou na versão final da resolução apresentada no Congresso que respondia ao questionamento sobre como educar e manter a disciplina. Assim, aos professores, caberia apelar, “como medios disciplinarios, a la influencia de los sentimentos morales del alumno y a la convicción de las consecuencias naturales de sus actos” (EL MONITOR, 1934, p.270). Para os representantes do Uruguai, essa declaração apresentada no Congresso constituía-se como uma das mais avançadas sobre a temática, discutida até aquele momento nos congressos pedagógicos.
Além das teses apresentadas por Abílio Borges, encontramos registros de suas falas acerca de outros temas debatidos pelos congressistas, hora a favor, hora contra. Assim, encerra-se a participação do intelectual brasileiro no Congresso Pedagógico da Argentina. Ao retornar ao Brasil, o intelectual preocupa-se em divulgar a sua participação no Congresso, publicando as teses apresentadas com um apêndice no qual constavam notícias veiculadas na imprensa sobre as discussões (FIGURA 02).
Ao longo de nossa pesquisa apresentada neste trabalho, nos deparamos com a trajetória intelectual de Abílio Cézar Borges que, atuando na sociedade do Império do Brasil do século XIX, destacou-se no campo educacional, sobretudo pela sua atuação enquanto criador e diretor de escolas e pela sua escrita. Seu reconhecimento enquanto educador nos auxilia a compreender a escolha de seu nome para representar o Brasil no Congresso Pedagógico Internacional realizado em Buenos Aires no ano de 1882.
Ao defender suas teses no Congresso, o intelectual busca dar credibilidade às suas ideias embasando-as na sua experiência de mais de vinte anos à frente de instituições de ensino. Assim, ele defende a criação de internatos normais e a extinção nas escolas de prêmios e castigos humilhantes. Embora seus projetos não tenham sido aceitos completamente no Congresso, conforme apontamos, a discussão que ele apresenta nos auxilia a compreender o seu pensamento educacional.
Ao valorizar os professores como a base para a construção da educação, Abílio Borges propõe aquela que seria a melhor forma em sua opinião para formar professores competentes, norteada por uma perspectiva higienista, que poderia modelar o comportamento, proporcionando disciplina e ordem. O regime de internato, modelo que seguia em seus colégios, poderia garantir também a possibilidade de os futuros mestres oriundos do interior terem acesso ao ensino normal.
Sobretudo, ao fazer a defesa pela extinção dos castigos, Abílio Borges ressalta um ensino moderno que educasse o espírito por meio de amor e sabedoria, apontando a construção de uma relação diferente entre alunos e professores daquela pautada no medo e na punição. A educação moral, por sua vez, também é destacada pelo intelectual. Compreendemos, ao analisar as duas teses, que ambas são permeadas pela preocupação do intelectual com a formação e o fazer dos professores que, para ele, eram essenciais para a construção do ensino nos moldes modernos.
Ao analisarmos a participação do intelectual no Congresso Pedagógico desperta a atenção o destaque que o intelectual adquire sendo eleito como vice-presidente honorário. Embora não tenhamos elementos para discutir as relações construídas por Abílio Borges com os educadores presentes no Congresso, entendemos que as credenciais com as quais o intelectual se apresenta, sua trajetória na educação brasileira e sua produção intelectual, abriram as portas frente aos representantes dos países participantes.
A pesquisa apresenta, assim, indícios da relevância que o intelectual adquire no campo educacional brasileiro e as potencialidades da investigação sobre esse sujeito. Apontamos que o olhar sobre os intelectuais e suas ações no campo educacional no século XIX poderá propiciar aos estudiosos das História da Educação pistas e indícios da circulação de ideias e práticas pedagógicas que contribuíram nas tentativas de organização do ensino sobretudo no século seguinte.