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AS PECULIARIDADES DA PROFISSIONALIZAÇÃO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
Revista Tópicos Educacionais, vol. 26, núm. 1, pp. 1-20, 2020
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

Artigo


Recepção: 1 Dezembro 2019

Aprovação: 1 Abril 2020

DOI: https://doi.org/10.7440/res64.2018.03

Resumo: O presente artigo analisa o debate filosófico educacional brasileiro do final dos anos 1970 a meados dos anos 1980, se concentrando na recepção do marxismo no campo educacional. O nosso objetivo é dar visibilidade às variadas interpretações do marxismo pedagógico e a discussão produzida pelos pesquisadores desse campo, situando-as no debate filosófico- educacional do período. Por meio da revisão de literatura, verificamos a preponderância de um tipo de apropriação do marxismo gramsciano para abordar as questões pedagógicas, representadas pelas obras de D. Saviani, os questionamentos produzidos por essa interpretação desenvolvidos por Trigueiro Mendes e algumas outras alternativas indicadas por M. Chauí. Dessa forma contribuímos para reconstruir esse debate no campo, cujos ecos de sua repercussão são ouvidos até nossos dias nas produções intelectuais da área da Educação.

Palavras chave: filosofia da educação no brasil, marxismo pedagógico, concepção dialética.

Abstract: This article analyzes the Brazilian Educational Philosophical debate from the late 1970s to the mid 1980s, focusing on the reception of Marxism in the educational field. Our goal is to give visibility to the varied interpretations of pedagogical Marxism and the discussion produced by researchers in this field, placing them in the philosophical-educational debate of the period. Through the literature review, we verified the preponderance of a type of appropriation of Gramscian Marxism to address the pedagogical issues, represented by the works of Saviani, the questions produced by this interpretation developed by Trigueiro Mendes and some other alternatives indicated by Chauí. In this way, we contributed to reconstruct this debate in the field, whose echoes of its repercussion are heard until today in the intellectual productions of the Education area.

Keywords: philosophy of education in brazil, pedagogical Marxism, dialectical conception.

O sucesso obtido com a divulgação da obra ou da pedagogia de Paulo Freire em países da Europa e, parcialmente, nos Estados Unidos, além dos méritos próprios, ocorreu por suprir algumas expectativas nutridas pela discussão pedagógica e filosófica educacional nesses países. Em geral, a pedagogia de Paulo Freire apareceu nesses países como uma alternativa à didática tradicional e como um método de ensino que atendia as expectativas de uma educação capaz de formar a consciência crítica dos cidadãos e de envolvê-los com a práxis transformadora da sociedade, atendendo as reivindicações de uma concepção de escola que não se restringisse apenas em conformar- se à ordem social vigente. Após todo um movimento de crítica a escola enquanto aparelho reprodutor do Estado e de uma sociedade civil marcada pelas desigualdades, as propostas de Freire trouxeram um alento quanto a essas possibilidades de uma concepção de educação libertadora, com um forte tom politizador, antes que moralizador.

Nos países de língua inglesa, especialmente na Inglaterra, a teoria educacional de Freire surge num momento em que as proposições da filosofia analítica da educação começam a ser questionadas a partir do que representam enquanto ideologia e pelo seu distanciamento da prática educacional e social concretas. Juntamente com a redescoberta de autores marxistas como Gramsci, na Inglaterra, a teoria educacional de Freire representou não apenas a expectativa de ver criado um método de ensino que rearticulasse a teoria com a prática, como também a possibilidade de rever a metáfora da educação como crescimento formulada por Richard S. Peters (1964), nos anos 1960. Segundo Elliott (1992, p. 276), a teoria educacional de Freire contribuiu para estimular a metáfora de uma educação libertadora, durante os anos 1980, embora do ponto de vista do arcabouço conceitual e teórico a obra de Gramsci trouxesse mais elementos para a sua formulação. Ao que parece, a discussão pedagógica e filosófica educacional nos países de língua inglesa pareciam não estarem imunes às influências de seus vizinhos europeus, sobretudo, da Alemanha.

Na Alemanha do pós guerra predominou a busca pelas bases éticas e morais no discurso filosófico educacional com o intuito de estabelecer uma hierarquia dos objetivos educacionais, retomando a tradição do Iluminismo (Aufklärung) ou da formação (Bildung) no sentido de insistir, respectivamente, na necessidade da educação moral, do princípio da autoridade no ensino escolar, como meio de alcançar a emancipação, e da autoformação do sujeito, da predominância do princípio da liberdade no processo formativo, como fim a ser alcançado por intermédio da cultura e da formação da consciência. Contudo, não foram poucos aqueles que se voltaram contra essa tradição acusando seu traço idealista, sua desvinculação da prática social e educacional, tanto quanto elucidando os resultados dessa mesma tradição no mundo contemporâneo. Influenciados pela ontologia heideggeriana, pelo existencialismo, pelo marxismo e, desde os anos 1960, pela Escola de Frankfurt vários autores têm polemizado contra essa tradição, insistindo na ausência de uma base ontológica para a educação, sinalizando para sua desvinculação da vida e explicitando sua face ideológica. Desse modo plural, o debate filosófico educacional tem transcorrido nas últimas décadas em torno da crise educacional contemporânea, concentrando-se nessas correntes da Filosofia, quando não colocando sérios limites às pretensões da teoria da educação. Concentrando-se em problemas como os relativos ao conceito de educação, aos da possibilidade ou não de definir seus valores, ou então, como os atinentes a relação entre teoria e prática ou liberdade e autoridade a filosofia da educação se profissionalizou na Alemanha, como um ramo da Pedagogia e com fortes ligações com a Filosofia.

Nesse contexto, a obra de Paulo Freire foi recebida da Alemanha, tenho a impressão, com um misto de desconfiança e de simpatia. De um lado, faltava-lhe essa vinculação com as fontes filosóficas; de outro, produzia uma construção teórica educacional original, tentada inclusive por alguns filósofos alemães, que tentava sintetizar autores clássicos alemães como Heidegger, Jaspers e Marx, dentro de uma perspectiva crítica heterodoxa, assim como apresentava uma alternativa no campo da educação libertadora para os impasses gerados pelo privilegiamento da teoria em detrimento da práxis, próprio a esta tradição. Nos últimos anos, a teoria educacional de Freire vem sendo redescoberta, principalmente, após a virada pragmática promovida por Habermas e pelas exigências do próprio debate pedagógico atual nesse país, que teve o privilégio de acompanhar de perto as discussões da filosofia contemporânea, como os debates sobre a hermenêutica, a pós modernidade, entre outros.

Aliás, esta parece ser a tônica que alimentou o debate filosófico educacional em outros países, qual seja, o questionamento desta vinculação à filosofia para a mera discussão do conceito, da linguagem ou da associação da filosofia da educação à teoria educacional, isto é, como algo que deveria fundamentá-la ou formular sua base axiológica. Nos Estados Unidos, onde a filosofia da educação foi criada pelo pragmatismo e, depois, tendeu a aproximar-se da filosofia analítica ou mesmo do marxismo pedagógico, esse questionamento se deu muito mais por exigências que emergiram da própria prática educacional ou política do que propriamente filosóficas. Embora houvesse essas sutis divergências entre a discussão filosófica educacional ocorrida em diferentes países, durante o início dos anos 1980, parecia haver um problema comum: um profissionalismo que se afastava dos problemas práticos e que perdia contado com os educadores.

Este teria sido um dos pontos tocados no Simpósio sobre a Harvard Educational Review em 1981, segundo Smeyers E Marshall (2000, p. 100), questionando a transformação da filosofia da educação num sub campo da Filosofia. Para esses autores,

Os filósofos da educação, “perseguindo” legitimidade nas idéias da filosofia - por exemplo, em Raws, Marx, nos fenomenólogos e na Escola de Frankfurt - não estavam longe de se comunicarem com os educadores. Pelo contrário, eram escritores como Illich, Freire, Bowles e Gintis que estavam sendo discutidos em educação, e não Scheffler ou Soltis ou... mais recentemente, Apple, Giroux e MacLaren, cujos trabalhos estão sendo amplamente publicados e discutidos. (Smeyers & Marshall, 2000, p.100)

A publicação da obra de Freire, assim, parece Ter respondido a esta expectativa e ensinado um estilo próprio de comunicação com os educadores, que tem sido retomados por autores como Giroux e MacLaren nos últimos anos, ao ponto, inclusive, de reconstruírem a pedagogia de Freire pelo que ela possuí de filosófico educacional ou de atual no debate filosófico e educacional contemporâneo.

Esse momento em que a obra de Paulo Freire começa a ser conhecida nesses países, praticamente, coincide com o seu retorno ao Brasil, após o exílio. Aqui a continuidade da atividade intelectual de Paulo Freire propulsiona o desenvolvimento de um pensamento crítico em matéria de educação, desenvolvido sobretudo nos recém criados programas de pós graduação em Educação, adentrando ao meio acadêmico e, como não podia deixar de ser, também encontrando algumas resistências postas pela tradição pedagógica e filosófica educacional brasileira.

A pedagogia marxista e a concepção dialética de filosofia da educação

Após a criação dos primeiros programas de pós graduação em Educação, durante os anos 1970, houve um crescimento da produção teórica e das pesquisas em educação. Para Gadotti (1987, pp. 07-08) o crescimento dessa produção demonstrou a “vitalidade do pensamento pedagógico brasileiro”, isto é, a constituição de uma “produção nova em matéria de teoria de educação” que teria levado a “marca da criticidade” e do “pensamento progressista”. Estas marcas de uma “nova teoria educacional” concorreriam, de seu ponto de vista, para uma “análise crítica do sistema capitalista” e da educação nele gestada, sendo que, ainda em processo de elaboração, as produções existentes no campo educacional já teriam forjados algumas “sínteses” - especialmente em relação ao “passado do pensamento pedagógico” que ainda continuariam presentes na teoria e na prática educacional. Para a formulação dessas sínteses teriam concorrido, segundo ele, a produção acadêmica desenvolvidas por pesquisadores que, a partir dos pressupostos teórico-metodológicos do marxismo, como numa “obra de arte coletiva”, estariam esculpindo o que denomina de “concepção dialética de educação”. Desse modo, esse autor procurou elucidar o processo de constituição de uma “concepção dialética de educação” e de uma “nova pedagogia” (“crítica” e “progressista”), a partir das pesquisas produzidas em vários campos da Pedagogia ou das Ciências da Educação e informadas pelos pressupostos teórico- metodológicos marxistas (GADOTTI, 1987, pp. 08-25).

Um dos precursores da “concepção dialética de educação”, para Gadotti, teria sido o próprio Paulo Freire, que desde os anos 1960 trazia em sua obra a marca dessa inflexão do “pensamento pedagógico brasileiro”, mas não só ele. Durante o final dos anos 1970 e 1980, outros intelectuais se destacaram, desenvolvendo trabalhos a partir da de uma certa uma leitura do marxismo para refletir sobre as concepções de filosofia da educação, escrever uma história crítica da educação, rever a política educacional e analisar criticamente a didática, a administração e a supervisão escolar, entre outros temas relacionados a prática pedagógica e educativa. Para esse autor, as inúmeras contribuições nesses vários campos do saber pedagógico teriam promovido a configuração de uma outra teoria educacional. Contudo, este sentido de unidade em torno de um mesmo propósito que transparece na versão de Gadotti nem sempre constituiu-se de forma isenta de divergências, senão políticas, ao menos teóricas.

No âmbito da filosofia da educação, em especial, a designação do que seria a “concepção dialética” ganhou voz e força nas produções teóricas escritas por Dermeval Saviani, durante o início dos anos 1980.

Saviani (1980, pp. 17-30) concebeu a filosofia da educação, em seu sentido estrito, como sendo o processo de “reflexão radical, rigorosa e de conjunto” sobre os problemas apresentados pela realidade educacional. Em seu sentido amplo, o autor a entendeu não apenas por esse processo reflexivo dos problemas educacionais, como também pelas suas várias concepções teóricas e metodológicas produzidas ao longo da história social, analisando-as criticamente a partir do que denomina de “concepção dialética”. Esta concepção seria, para ele, o ponto político e epistemológico privilegiado, a partir do qual esboça os limites das concepções humanistas “tradicional” e “moderna”, assim como a “concepção analítica” de filosofia da educação.

Tais concepções de filosofia da educação não teriam, segundo ele, pensado num “homem concreto” - produto das relações sociais -, nem pensado no condicionamento social da existência humana e nem refletido os fenômenos educacionais a partir do “contexto histórico-social”. Mas sim teriam forjado uma idéia de “essência humana” abstrata, sustentado uma adaptação às funções sociais e estabelecido um “tecnicismo” pedagógico concorrendo para reforçar, por intermédio das pedagogias fundadas por essas concepções, a dominação social existente no modo de produção capitalista e o caráter ideológico do discurso pedagógico. Essa crítica forjada a partir da “concepção dialética” da filosofia da educação poderia contribuir para desvendar a ideologia em que se pautaram as pedagogias tradicional, nova e tecnicista, bem como para se repensar a educação escolar não como uma conformação do homem à sociedade existente, mas como um meio de transformação social. A “concepção dialética” poderia superar os limites das concepções de filosofia da educação e as pedagogias existentes, segundo ele, concorrendo para a constituição de uma pedagogia que tem por horizonte os interesses da classe potencialmente revolucionária e que voltar-se-ia para a formação desses sujeitos históricos, desvelando a ideologia em que estes encontram-se imersos, tornando-os senhores de seu próprio destino e, consequentemente, atores de uma praxis social que os conduziria a sociedade sem classes (SAVIANI, 1983, pp. 19-47).

A “concepção dialética” seria superior as outras, para Saviani, possivelmente, em razão de sua relação com a praxis social e de seu conteúdo de verdade expresso a partir da reflexão dos problemas educacionais pelo método materialista histórico e dialético. Influenciado pelas categorias gramscianas de concepção de mundo, intelectual orgânico e hegemonia, Saviani constrói uma análise crítica das tendências e correntes da educação brasileira, desde as concepções de filosofia da educação supra citadas, que teve larga repercussão e influenciou durante a década de 1980 boa parte dos programas das disciplinas Filosofia da Educação ou História da Educação oferecidas nos cursos de formação de professores, tanto quanto em outros programas. Esta análise parte do mapeamento de algumas concepções de filosofia da educação como expressão de uma visão ou concepção de mundo, de homem e de educação, para depois demostrar que estas foram articuladas e sistematizadas por intelectuais com o intuito de expressarem não sua concepção em particular mas à da classe social ao qual estavam organicamente articulados. Alinhando essas tendências e correntes pedagógicas a determinados momentos históricos e a ideologia dominante, Saviani procura compreendê-las dentro do processo de constituição e de recomposição da hegemonia burguesa no modo de produção capitalista para, em seguida, transpô-los para a compreensão de seu desenvolvimento na história social brasileira.

Embora considere problemática o tipo de relação entre a filosofia da educação e as pesquisas em história da educação, onde a primeira indica o caminho e o método à segunda, para que, então, contribua para fundamentar uma teoria educacional sistemática e coerente -, tal relação parece ser algo bastante comum à produção do saber pedagógico dos anos 1980. Ela não foi algo comum somente por parte daqueles que compartilharam do quadro acerca das tendências e correntes da educação brasileira apresentado por Saviani ou tentaram completá-lo sem nenhuma problematização, como também por parte dos que o problematizaram, dizendo defenderem as mesmas aspirações políticas e epistemológicas. Todavia, essa aproximação da filosofia da educação da historiografia da educação brasileira, apareceram em nome de compreender a realidade educacional brasileira a partir de pressupostos próprios e de uma certa autonomia teórica, livre das influências estrangeiras. Ao menos, isso é o que sugere a introdução do livro “Filosofia da Educação Brasileira”, escrita por Durmeval Trigueiro Mendes.

Nessa introdução, Trigueiro Mendes desenvolve uma diferenciação entre as disciplinas “Filosofia da Educação no Brasil” e “Filosofia da Educação Brasileira” que parece ser o indicativo de uma nova perspectiva para os estudos nesse campo do saber pedagógico. Ele, argumenta que a disciplina “filosofia da educação no Brasil” incorria em duas reduções - em suas palavras:

Primeiro, a filosofia da educação maneja categorias e conceitos filosóficos sem o nexo intrínseco entre o corpus teórico da filosofia (na epistemologia contemporânea, deveria ser integrada nas ciências sociais) e a educação, e, nesse caso, ela está empobrecida sem a fertilização recíproca do saber filosófico e científico com a práxis educativa. A segunda é a redução da redução, isto é, filosofia da educação no Brasil, já que é mais remoto, ainda, o recorte filosófico e epistemológico de um saber definido e articulado com os aspectos cultural, social, histórico e político no Brasil. O que se pode dizer um compósito fragmentário no qual realça a pedagogia jurisdicista ou ideias importadas que se tenta integrar. (TRIGUEIRO MENDES, 1983, pp.09-10).

E, continua ele, definindo o papel da “filosofia da educação brasileira”:

Ao contrário disso, nosso intuito morder a substancialidade do pensamento brasileiro no que concerne a educação; inquirir fenômenos culturais e políticos; arrancar máscaras e romper moldes “pedagógicos” sufocantes como se fosse um saber per se, desvinculado da estrutura social”. Isso porque, continua o autor, esse saber per se, desinteressado e abstrato, representado pelas categorias e problemas abstratos da filosofia e pelas influências da filosofia da educação estrangeira, especialmente a americana. (TRIGUEIRO MENDES, 1983, p. 10).

É sob a perspectiva do que denominou de “Filosofia da Educação Brasileira” que Trigueiro Mendes procura analisar o “processo político educacional”, enfocando primordialmente o papel do Estado na solução do problema educacional brasileiro, num dos capítulos desse livro. Numa de suas passagens, Trigueiro Mendes argumenta que a vontade política do Estado em resolver o “problema educacional brasileiro” se consubstanciou apenas em uma “retórica”, em suas palavras:

A educação do povo, ou é um gesto romântico, como foi no século XIX - no caso brasileiro, na década de 30, seria a remanescência da ideologia liberal, expressa, sobretudo pelo Manifesto dos Pioneiros; ou é uma política realista e então precisa alcançar níveis de generalização e de qualidade que a definam como eficiente instrumento de promoção socioeconômica, política e cultural. (TRIGUEIRO MENDES, 1985, p. 50).

A tese que Trigueiro Mendes defende nesse texto é a de que o Estado deveria desenvolver uma “política realista” nos termos acima referidos e a política educacional compreendida a partir de sua relação com este plano mais geral.

Em outro artigo de sua autoria intitulado “Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil” (publicado em 1987), Trigueiro Mendes esclarece não apenas o modo como entende a “Filosofia da Educação Brasileira”. Ainda que esta, reitere uma aproximação exagerada dos aspectos político-ideológicos e pretenda formular uma teoria educacional capaz de apreender a realidade do problema da educação brasileira, nos termos que irei mostrar, ela relativiza a síntese apresentada anteriormente sobre a concepção de filosofia da educação e tendência pedagógica que influenciaram o movimento pela “escola nova” no Brasil e mesmo a imagem negativa de seus protagonistas transmitidas por Saviani. Mais do que isso, essa versão procura se contrapor a crítica de Saviani em alguns de seus pontos e àquilo que entende ser a “síntese superadora” da “pedagogia nova” e das outras tendências pedagógicas. Nesse sentido, a exporei aqui como um contraponto à síntese anterior acerca desse manifesto e como uma tentativa de deslocar o seu eixo de leitura para o contexto político-filosófico e para a filosofia da educação, porém, numa perspectiva distinta daquela esboçada por Saviani.

Nesse artigo, Trigueiro Mendes procura avaliar “o pensamento educacional brasileiro”, especialmente, aquele expresso por Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, representando o movimento pela “escola nova” no Brasil e os críticos desta no presente: aqueles que aproximaram das categorias marxistas e gramscianas para refletir o problema educacional brasileiro, bem como os partidários da “pedagogia crítico- social dos conteúdos”. Para ele, tanto os “pioneiros da educação nova” quanto os seus críticos tiveram algo em comum: não teriam percebido o movimento pela “escola nova como epifenômeno cultural e histórico” que emergiu nos Estados Unidos e na Europa, representando uma tentativa de conciliar conteúdos e métodos de ensino, escola e trabalho, “sociedade de classes” e “regime político”, fiando-se numa oposição entre “Escola Tradicional” e “Escola Nova”, em perspectivas diversas, porém, sem levar em conta que ambas pressupunham uma separação entre o educacional e o político- econômico. Ambos os grupos de intelectuais, segundo ele, não teriam percebido o papel desempenhado por um país dependente, cuja política e economia seriam definidas pelos países hegemônicos do capitalismo, privando o Estado Brasileiro de um projeto autônomo. Além disso, eles não teriam levado em conta que, ao pensar a realidade educacional e social brasileira por categorias e por métodos estrangeiros, no plano cultural e pedagógico, reproduziriam o seu conteúdo e, consequentemente, a alienação imposta a partir desses países centrais aos países periféricos. Reiterar-se-ia, assim, no plano cultural e pedagógico a dominação imposta no plano político e econômico.

A separação entre esses dois planos começa a se observar, segundo ele, no “pensamento educacional brasileiro” após a “Revolução de 1930” graças a ação de Fernando de Azevedo e de Anísio Teixeira e, sobretudo, aparece expressa no “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”. Em suas palavras:

Percebe-se nesse documento a separação entre a educação, de um lado, e a economia e a política de outro. A educação não está problematizada no País - está submersa, ou quase imóvel, frente às modificações sociais -, ao passo que a economia e a política são problematizadas. Um dos truques da educação não problematizada consiste na Escola Nova no Brasil: ela não mexe nos conteúdos (transformações sociais via educação) e sim nos métodos e técnicas. Ou melhor, os conteúdos existem, mas frequentemente embutidos do exterior para o Brasil, lubrificados pelos métodos e técnicas, destinados, sobretudo, à industrialização e à modernização. Por isso, o Estado não tem projeto político, precisamente por ser país dependente, condicionado pelos centros hegemônicos no plano político e econômico, enquanto que, no plano cultural e pedagógico, a intelligentsia se contenta com modelos europeus e norteamericanos como uma das formas de alienação. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, p. 494).

Destacando as diferenças entre os protagonistas da “Escola Nova”, assim como suas principais influências ou inspirações filosóficas e teóricas, escreve o seguinte:

Anísio Teixeira era educador, pensador, com lastro filosófico às vezes lacunosos, precisamente pelo precário nexo entre pragmatismo e outras tendências, não só dos Estados Unidos, mas sobretudo da Europa (a não ser algumas vertentes da Inglaterra). Por exemplo, ele era seduzido, ao mesmo tempo, pela concepção de Dewey e pela de Whithead, bastante diferentes, e que não foram articuladas. Fernando de Azevedo, educador, reformador do ensino, erudito ambicioso, às vezes resvalava para a incongruência, por exemplo, ao associar, de um lado, o racionalismo cartesiano e o iluminismo kantiano e, de outro, o positivismo durkheimiano e a escola socialista, convivendo com Dewey e outros protagonistas da Escola Nova. (...) Quanto a Lourenço Filho, é um pedagogo, organizador do ensino e administrador capaz e exigente, tentando articular a pedagogia com a psicologia, no mesmo diapasão da Escola Nova. Em relação a Fernando de Azevedo, é significativo o retorno da Ilustração, que norteia, em grande, parte a concepção da USP em 1934. Iluminismo e idealismo autoritário, através das metamorfoses históricas desde o século XVIII. [...] Esses pensadores difundem o saber (cultura e educação) para o povo, de cima para baixo, segundo o código hegemônico das classes dominantes; mas eles têm uma tarefa, naquela época, cuja organicidade era eficaz numa sociedade de classes. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, p. 495).

Partindo dessas considerações, Trigueiro Mendes, aponta os equívocos do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, do papel político da Escola Nova e das influências teóricas destas. Para ele, esse manifesto não postulou um modelo político econômico explícito para o Brasil, por isso, o Governo Getúlio Vargas o teria utilizado como um meio, incorporando alguns ingredientes da “Escola Nova” e não como um fim (político). Nesse sentido, por pautar-se nos pressupostos históricos e epistemológicos da “Escola Nova” que não postula nenhum modelo político, acabou, segundo ele, numa “organização social autoritária”, ter sua iniciativa anulada. Aliás, esta seria uma das características da “Escola Nova”, e de todas “doutrinas pedagógicas” nas “democracias liberais ocidentais”: não terem “compromisso político explícito”, porém, em função dessa ambiguidade correm o risco de ver a liberdade pedagógica pregada cerceada por um regime autoritário ou mesmo usadas ideologicamente. Isso ocorreria, ainda, em função da noção de experiência apropriada pela “Escola Nova” basear-se no pragmatismo de Dewey que, por sua vez, segundo ele, “não tem um fio condutor da conjuntura social e histórica, estabelece ajustes e reajustes espontâneos, como faz a economia capitalista, contornando a sociedade de classes”. Estes teriam sido, segundo Trigueiro Mendes, os principais equívocos desse manifesto e dos pressupostos da Escola Nova em que se baseou.

Esse diagnóstico acerca dos equívocos políticos do “Manifesto de 1932”, de seus fundamentos e influências teóricas apresentado por Trigueiro Mentes, apesar de estar estreitamente vinculado à polêmica idéia de que esse texto seria desprovido de intenção política- como procurei mostrar anteriormente entre os próprios “pioneiros” e na discussão historiográfica -, têm o mérito de tentar apontar as incoerências teóricas do pensamento de alguns de seus signatários. Embora seja bastante breve quanto a essas incoerências e os apontamentos sejam vagos demais2, elas sugerem algumas pistas para compreendê-los e relativizam a unidade das influências filosóficas da “Escola Nova” em torno de uma determinada concepção de homem e de mundo - como apresentada por Saviani. Procura, como esta última, compreender essas influências levando em conta o contexto político-ideológico, porém, em conta o que denomina de “epifenômeno da Escola Nova” em termos culturais e históricos em nível mundial e tentando compreender como este chegou a um país dependente como o Brasil. Com efeito, não deixa de pautar- se num outro modelo teórico-social para compreender o desenvolvimento político dos países dependentes, a posição do Estado, deslocando-o para compreender sua formação cultural - como o procedimento utilizado por Saviani na versão anteriormente apresentada, porém, partindo de um paradigma diferente. O que seria também problemático, promovendo uma certa conformação do objeto a um modelo sociológico pré-concebido, como assinalei anteriormente ao problematizar a “transposição” desenvolvida por Saviani para mostrar as influências das concepções de filosofia da educação na história da educação brasileira. Só que, agora, esse procedimento é realizado para postular uma maior relação entre política, sociedade e educação. Mas o que importa é que, ao fazer isso, apresenta uma outra versão acerca desse manifesto e do movimento da “Escola Nova” no Brasil, com o mérito de deslocar a leitura destes para suas influências filosóficas, compreendendo-os a partir da situação política de um país dependente. É a partir deste ponto de vista que, como mostrarei a seguir, Trigueiro Mendes procura mostrar como que alguns de seus signatários posicionaram-se frente ao Estado Nova e analisar se na sua prática, pensaram ou não, concretamente, o problema educacional brasileiro por métodos e conteúdos norte-americanos ou europeus, assim como entenderam a relação método-conteúdo no ensino.

Não obstante a utilização política de algumas propostas e ideias do “Manifesto de 1932” pelo Governo Vargas, Trigueiro Mendes pondera que nem todos os “pioneiros da educação nova” posicionaram-se favoravelmente ou serviram ao Estado Novo - faz questão de registrar. Entre os três que citou anteriormente, Anísio Teixeira teria sido “fulminado pelo arbítrio fascista”, regressando a “administração pública depois da ditadura”, Fernando de Azevedo teria elogiado a atuação do Estado Novo e este teria integrado a “Escola Nova” por intermédio de Lourenço Filho. D’ entre eles, ainda destaca não só o pioneirismo das propostas e das análises de Anísio Teixeira como também a contradição entre a apropriação que faz do método e da teoria da educação de Dewey e a sua “visão crítica do Brasil”. Para Trigueiro Mendes, seria difícil imputar a Anísio Teixeira e, parcialmente, a Fernando de Azevedo uma transposição mecânica dos métodos estrangeiros para compreender a realidade educacional brasileira, pois,

[...] é complicada a postura de Anísio, sobretudo revelada pela diferença entre ideologia dewyana e a sua visão crítica do Brasil. Não há o deslocamento mecânico entre o conteúdo norte-americano e os métodos transpostos de lá para o Brasil. Ele estava interessado no conteúdo (como também Fernando de Azevedo) e no método, nas matérias de ensino e na aplicação, ilustradas, por exemplo (no caso de Anísio), no Instituto de Educação. Esse assunto está fartamente documentado, mas alguns estudiosos o criticam e, ao mesmo tempo, o desconhecem. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, p. 496).

E continua dizendo que, quanto aos problemas de conteúdo e de método,

Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, embora com paradigmas diferentes, apropriaram a concepção pragmatista de educação; seria o estado-maior, com seus aliados, que comanda a infantaria. O grave, entretanto, é que a apropriação, a germinação, a capilaridade, em termos históricos e sociológicos, não aconteceram. A infantaria não incorporou sua concepção; uma vertente, bastante vincada na cultura brasileira, não tem o ritmo da germinação, atropelado pelos modelos estrangeiros e mesmo pelos do nosso País. Categorias e métodos se transformam em estereótipos. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, pp. 497-498).

Trigueiro Mendes procura destacar, assim, a atuação desses dois protagonistas da “Escola Nova” no Brasil, para em seguida, elucidar o que esta possui de positivo e de negativo:

Entretanto, volto a afirmar: o conteúdo da Escola Nova é precário, salvo apenas pela contribuição desses dois protagonistas que, em certa medida, o superaram. A parte positiva da Escola Nova contém o projeto, a experiência, a criatividade, a interrogação e a problematização; a parte negativa, a rota de reconstrução da experiência individual e social, política e econômica dentro da contradição, isto é a homogeneidade falsa e a heterogeneidade real, na qual o inconsciente ideológico encobre a sociedade de classes, a despeito do empenho de Anísio e Fernando em situarem a escola única como instrumento de justiça social. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, p. 498).

Essa versão acerca do movimento pela “Escola Nova” no Brasil destaca, assim, não apenas o posicionamento político de Anísio Teixeira, como também a sua capacidade e a de Fernando de Azevedo de conseguirem através de leituras distintas do pragmatismo, pensarem criticamente os problemas da educação brasileira. De acordo com essa versão ainda, esses protagonistas da “Escola Nova” no Brasil, fizeram isso, sem incorrer numa apropriação mecânica do método juntamente com o conteúdo do pragmatismo americano, transpondo para o ensino essa mesma indissociação. Desse modo, avalia como positiva a intenção de criatividade e de especulação da “Escola Nova” e negativa a reconstrução individual e social que procura desenvolver em função disso resultar num encobrimento ideológico das contradições sociais existentes em nossa sociedade.

Gostaria de registrar que esse procedimento é polêmico, havendo inclusive outras versões que se contrapõem justamente a idéia de que da utilização da “escola única como instrumento de justiça social”3 no período. No entanto, considero que essa versão procura contrapor-se à imagem negativa acerca das influências filosóficas e da concepção de filosofia da educação apresentada por Saviani. Além do mais, na sequência desse artigo, como tentarei mostrar, Trigueiro Mendes questiona inclusive à análise e aos esquemas forjados em nome da “concepção dialética de filosofia da educação” e mesmo a separação entre forma e conteúdo adotada pela pedagogia “histórico-crítica” ou “crítico social dos conteúdos”.

Analisando o pensamento dos críticos da “Escola Nova” e as configurações do “pensamento educacional” contemporâneo no Brasil, Trigueiro Mendes procura denunciar o “discurso especulativo” e “abstrato”, mesmo entre aqueles que se consideram “dialéticos”, contrapondo-se às análises que, ao discutir educação, “se prendem mais a conceitos e formas um tanto esquemáticas de compreender as relações sociedade-educação, distanciada dos fatos, atores e processos que fizeram a educação brasileira”. Para ele, os críticos da “Escola Nova”, tanto quanto seus protagonistas, justapõe e sobrepõe categorias e modelos teóricos produzidos em outros países para compreender a realidade educacional e social brasileira. Entende ser necessário superar esse “distanciamento” e a “justaposição” e “superposição” de categorias e métodos apropriados de teorias estrangeiras para compreender a realidade educacional brasileira através de pesquisas dos “fatos” e “dados” elucidados pela “teoria brasileira no sentido preciso”, isto é, a partir de categorias apropriadas estabelecidas de um ponto de vista filosófico, epistemológico e histórico que poderiam ser produzidas por pesquisadores de outros países e também brasileiros para compreender nossa realidade. Essa teoria deveria, ainda segundo ele, “focalizar estilos e regimes políticos e ideológicos” que reduzam as distâncias entre saber e poder, elucidando essa intersecção e apontado as relações entre a “visão acadêmica e política”, concorrendo para a compreensão da “totalidade concreta” para além do “empirismo” e do “factual”.

Desse ponto de vista, Trigueiro Mendes diz contrapor-se a “alguns críticos da Escola Nova, sobretudo os teóricos da pedagogia crítico-social dos conteúdos”, pois entende que eles promovem um corte abrupto nas raízes históricas e culturais desse movimento, não elucidando suas origens iluministas e, sua conversão, num “idealismo autoritário, através das metamorfoses históricas, desde o século XVIII”4. Para ele, alguns desses “discípulos e seguidores de Gramsci, (...), são paradoxalmente especulativos e abstratos, sem se aterem, concretamente, à conjuntura brasileira”: defenderiam os conteúdos da “escola tradicional” do método da “escola nova”, num procedimento não dialético, para contrapor-se “aparentemente” ao “dogmatismo pedagógico”, quando, na verdade, propõe uma homogeneização cultural, não criativa e nem plural que nada tem a ver com o movimento da realidade brasileira. Desse modo, conclui o seguinte:

Apesar da contribuição importante dos pedagogos brasileiros ligados à teoria crítico-social dos conteúdos, as falhas fundamentais dessa teoria correspondem precisamente aos seus principais critérios norteadores, isto é, à função e o papel do educador, à especificação e à relativa independência da escola face a sociedade. Além disso, considero rígida a distinção entre Escola Tradicional e Escola Nova. A parte positiva desta última consiste na diferença como categoria do saber, isto é, o outro, o projeto, a interrogação, a criatividade, a experiência, a problematização. Atualmente, se revela o pensamento organizatório de uma vertente poderosa da cultura ocidental, precisamente para achatar a diferença. É a ideologia que corrói o conteúdo, substituído pela racionalidade técnica. Quanto aos problemas das discriminações sociais, poderia ser aprofundada a análise: a rota de reconstrução da experiência individual e social contrapõe-se à rota da conjuntura social, política e econômica dentro da contradição, isto é, a homogeneidade falsa e a heterogeneidade real, na qual o inconsciente ideológico encobre a discriminação social. É a parte negativa da Escola Nova. (TRIGUEIRO MENDES, 1987, p. 502).

Essa versão apresentada por Trigueiro Mendes, assim, contrapõe-se aos críticos da “Escola Nova”, polemizando quando a rigidez da distinção entre esta e a “Escola Tradicional”, assim como enunciando seus pontos positivos e negativos. Embora seja polêmica em muitos pontos, essa versão relativiza a síntese anterior, indicando um aspecto positivo e outro negativo da “Escola Nova” a partir do qual o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” poderia ser retomado: talvez elucidando o paradoxo entre uma filosofia da educação que leva em conta as diferenças culturais e propõe-se problematizadora e que realiza-se no sentido de adaptar à realidade social e encobrir as contradições sociais, alinhando-se a “racionalidade técnica”. Além disso, destaca a capacidade crítica de um de seus protagonistas, Anísio Teixeira, em pensar criticamente a realidade educacional brasileira a partir dessa filosofia da educação ambígua, informada pelo pragmatismo e pela teoria educacional de Dewey, de seu ponto de vista. Todavia, um ponto que não fica muito claro: é que outros estudos, desenvolvidos nesse mesmo período, já haviam tomado o pensamento e a prática desenvolvida por Anísio Teixeira durante os anos 1930, como o de Raquel Gandini, justamente para elucidar sua vinculação ao pragmatismo americano e denunciar o alinhamento dessa filosofia da educação à racionalidade técnica, bem como para reiterar o seu papel ideológico contrariando esses apontamentos de Trigueiro Mendes. (GANDINI, 1980, pp. 96-131).

Outras análises e a perspectiva de Chauí

As pesquisas que escaparam desta perspectiva, no período em que tornou-se hegemônica, durante os anos 1980, também procuraram definir a filosofia da educação a partir de outras correntes de pensamento, detendo-se em um ou outro filósofo e investigando o modo como tematiza a educação ou revêm as noções clássicas que fundam a pedagogia. É o que pode ser observado no livro “Estudos sobre Existencialismo, Fenomenologia e Educação” (1983) de Joel Martins e Maria Viggiani Bicudo. Nesse livro, Joel Martins analisou as contribuições do existencialismo de Kierkegaard para vislumbrar como esse filósofo entende o “ser do homem” e como, a partir dele, poder-se- ia pensar nas “possibilidades da educação”. Além disso, a partir da ontologia de Heidegger, procurou fornecer elementos de sua epistemologia para a compreensão dos fenômenos educacional. Maria Biccudo, por sua vez, procurou a partir da fenomenologia e do existencialismo destes e de outros filósofos desenvolver o que denomina de “a filosofia da educação centrada no aluno” (MARTINS; VIGGIANI BICUDO, 1983). Esse livro elege, assim, um tema fundamental da filosofia existencial para uma concepção de educação por ela informada, o “ser do homem”; expressa a contribuição da ontologia heideggeriana para as pesquisas em educação que queiram pautar-se em sua epistemologia e, por fim, indica os possíveis fundamentos para a formulação de uma filosofia da educação de base existencialista5 .

Este estudo define um tema, um método e possíveis fundamentos para a filosofia da educação, dando maior precisão epistemológica a esse campo e as pesquisas nele desenvolvidas - sem confundi-la com a história da educação -, aproximando-as mais de temas propostos por uma corrente da filosofia e do que esta entende por rigor epistemológico. Todavia, ao propor os fundamentos de uma “filosofia da educação”, legitimada por um método e tema próprios, insiste na pretensão de verdade da epistemologia proposta pela filosofia existencial, acreditando que esta pode compreender a totalidade dos fenômenos educacionais e forjar uma pedagogia a partir de seus fundamentos ontológicos, incorrendo nos mesmos problemas apontados anteriormente para a “concepção dialética” de filosofia da educação. Isso porque procura, a partir dessa corrente da filosofia, criticar os temas da tradição filosófica e pedagógica, assim como o método e os fundamentos metafísicos nos quais se assentou a reflexão pedagógica, para propor outros métodos para as Ciências da Educação e outro fundamentos ontológicos, considerados como mais autênticos que os anteriores por ser concebido a partir do ponto mais alto do desenvolvimento do ser ou da existência humana. Tal filosofia da educação diferencia-se da perspectiva da “concepção dialética” em função da “neutralidade” defendida em seu método - a “suspenção” necessária para a investigação dos fenômenos educacionais -, e a análise hermenêutica que faz da história a partir de algumas categorias fixas. Todavia, tanto quanto aquela, esta concepção forjada a partir dos pressupostos da filosofia existencial procura arvorar-se como detentora da verdade, de portadora de um novo espírito que rompe com o passado empreendendo uma nova direção à produção acadêmica nesse campo, à pedagogia e à educação existentes. Faz isso, certamente, não em função da crença em uma razão histórica-social, mas em nome de uma unidade do “ser do homem”, tentando fornecer também um fundamento e um sentido positivo à pedagogia e à educação atuais, sem compreender a fundo seus limites no mundo contemporâneo. Desse modo, se a “concepção dialética” condiciona a pedagogia e a educação aos determinantes sociais e políticos do modo de produção capitalista, concebendo-os apenas a partir de uma autonomia relativa, esta “nova filosofia da educação” torna-as completamente independente, condicionando-as à categorias abstratas como o “ser do homem”, a “existência”, entre outras que expressam uma verdade que persiste ao longo do tempo.

Essa pretensão de compreender a totalidade dos problemas da educação e da cultura através de uma teoria educacional que orienta-se pelos pressupostos indiscutíveis de uma nova concepção de filosofia da educação e que pretende corrigí-los fornecendo um sentido positivo ou autêntico à prática educacional - seja em função da práxis revolucionária ou de seus fundamentos ontológicos - foi uma marca das pesquisas nesse campo durante esse período. Tal pretensão deve-se aos próprios pressupostos teórico-metodológicos e às filosofias em que essas concepções de filosofia de educação se baseiam, assim como à necessidade de ajustá-las às características eminentemente normativas e praticistas da Pedagogia e das Ciências da Educação constituídas no Brasil, a fim de tornar-se legítima. Desse modo, ela indica uma busca de verdade filosófica e de eficácia pedagógica para garantir a legitimidade da filosofia da educação dentro do campo das teorias educacionais.

Há um artigo, pelo menos, onde a sua autora recorrendo à crítica que Merleau- Ponty faz à ciência e às teses de Marx contra Feuerbach, problematiza a situação do educador e do ensino universitário atuais sem essas pretensões. Refiro-ma aqui ao artigo “O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador” (1982) de Marilena Chauí. Nele, retoma a intenção pedagógica da filosofia e o ofício do filosofo como sendo o de educar na história do pensamento ocidental - onde filosofia e educação permaneciam unidas -, para criticar o processo de cientificização e tecnicização do ensino no Brasil. Para a autora, essa cientificização e tecnicização estaria associada à morte do educador, entendido como aquele que dispunha-se a pensar as questões de seu tempo e a conduzir os educandos a reflexão acerca de si mesmo, assim como a submissão deste a um saber normativo e oficial. As universidades brasileiras teriam corroborado para isso em função do modelo que adotaram e de assunção de uma postura antidemocrática, reforçando o tecnicismo e o autoritarismo existente no Brasil. (CHAUÍ, 1985)

A leitura desse artigo de Marilena Chauí pode sugerir uma outra perspectiva para as pesquisas em filosofia da educação. Ela sugere que a partir dos problemas postos pela filosofia contemporânea à ciência e à política atual, um retorno à tradição do pensamento ocidental onde a reflexão pedagógica era compreendida como indissociável da reflexão filosófica, onde a filosofia era compreendida como educação, lembrando o quanto estas haviam se dissociados na cultura atual por conta de sua tecnicização e se descuidado de temas como o da democracia. No entanto, tal perspectiva foi pouco explorada durante os anos 1980, prevalecendo as pretensões de formulação de uma outra pedagogia e prática educacional, a falta de rigor epistemológico nas pesquisas em filosofia da educação, a confusão entre estas e a historiografia da educação. Essa perspectiva só será explorada, no início dos anos 1990, seja para tentar redefinir os temas específicos da filosofia da educação com o intuito de conferir um rigor epistemológico maior a esse campo da Pedagogia ou das Ciências da Educação, ou seja para elucidar os principais limites da constituição de uma “nova filosofia da educação” ou dos fundamentos de uma “nova pedagogia”.

Referências

BOLLNOW, Otto F. Pedagogia e Filosofia da Existência. 2.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.

CHAUÍ, Marilena. O que é ser educador hoje? Da arte à ciência: a morte do educador. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1985. O Educador: vida e morte. 5.ed. Rio de Janeiro: Graal.

ELLIOTT, Robert K. Metáfora, imaginación y concepto de educación. In: BARCENA ORBE, Fernando. Et. Al. La Filosofia de la Educación en Europa. Madrid: Dickson, 1992, p. 265-281.

GADOTTI, Moacir. Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Ática, 1987.

GANDINI, Raquel C. Tecnocracia, Capitalismo e Educação em Anísio Teixeira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MARTINS, Joel; VIGGIANI BICCUDO, Maria Aparecida. 1983. Estudos sobre Existencialismo, Fenomenologia e Educação. São Paulo: Editora Moraes.

PETERS, Richard S. Educacion as initiation: an inaugural lecture delivered at the University of London, 9 december 1963. London: Institut of Educacion, 1964.

SAVIANI, Dermeval. A filosofia na formação do educador. In: _________. Educação: do senso comum a consciência filosófica. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1980.

______________. Tendências e correntes da educação brasileira. In: TRIGUEIRO MENDES, Dumerval (org). Filosofia da Educação Brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983.

SMEYERS, Paul; MARSHALL, James. A Filosofia da Educação no fim do século XX. In: GHIRALDELLI JR, Paulo. O que é Filosofia da Educação. Rio de janeiro: DP&A Editora, 2000, p. 89-120.

TRIGUEIRO MENDES, Durmeval. Prefácio. In: _________. Filosofia da Educação Brasileira. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983.

______________. “Existe uma filosofia da educação brasileira?” In: _________. (org.) Filosofia da Educação Brasileira. 2.ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1985.

______________. Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil. In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília: INEP/MEC, 68(160), set./dez.1987.

Notas

2 Há alguns livros publicados durante esse período que elucidam de um modo mais aprofundado as contradições e as influências teóricas do pensamento de Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho. A começar por um livro que o próprio Trigueiro Mendes prefaciou “Fernando de Azevedo: educação e Transformação” de Maria Luíza Penna, publicado em 1987. E, alguns outros publicados antes deste, como: “Anísio Teixeira: análise e sistematização de sua obra” (1977) de Wanda Pompeu Geribello; “Tecnocracia, Capitalismo e Educação em Anísio Teixeira” (1980) de Raquel C. Gandini, “O significado pedagógico da obra de Anísio Teixeira” (1985) Mirens M. S. Teixeira; “Um estudo sobre o discurso administrativo de Lourenço Filho” (1988) de Marieta Cruz Dias Teixeira - para citar os mais conhecidos.
3 Refiro-me aqui ao livro de Raquel Gandinni citado anteriormente (nota 47) e, principalmente, à passagem deste onde, após analisar como a “escola única” apresenta-se no “Manifesto de 1932”, explicita o entendimento de Anísio Teixeira sobre o tema. A autora pondera que Anísio Teixeira não emprega essa expressão, mas sim “escola progressiva” e depois “escola comum” ou “escola pública” em seu discurso. Para ela: “Ao admitir a validade de dois pontos incongruentes - escola para todos e adaptação à realidade brasileira - Anísio Teixeira transfere para as soluções que propõe a inviabilidade da proposição. O que se pode perceber, ao nível do discurso, é que suas propostas procuraram nivelar as diferenças que impossibilitariam a verdadeira escolarização comum, através de mecanismos que conservariam os diferentes grupos sociais em suas posições, fornecendo-lhes a escolarização suficiente para aparentar a igualdade de oportunidades. (...) Aperfeiçoa uma das principais funções da escola no sistema capitalista: dissimular a desigualdade.” (p. 74) Desse modo, a autora defende uma tese oposta àquela apresentada aqui por Trigueiro Mendes. Conferir também Gandini (1980, p. 58-96).
4 Mas, a continuidade de influências que propõe é bastante incerta e confusa, a meu ver, para explicitar esse movimento. Para ele, a constituição das influências da “Escola Nova”, seguiria o seguinte roteiro: ‘Seria o roteiro das tendências nos séculos XVII, XVIII, XIX e início deste: o Racionalismo; o Iluminismo; o centralismo doutrinário, através dos intelectuais e dos professores, estabelecido pelo código hegemônico do saber; o Iluminismo retardatário da cultura dependente; a pedagogia de Herbart; a elite e o povo. Em contrapartida, o Romantismo (aliás, um dos veios do próprio Iluminismo), contra o Racionalismo e o Cientificismo; o Pragmatismo de William James e Dewey; o Intuicionismo de Bergson (para ele, a durée é alteração); o Historicismo de Croce e o Vitalismo de Ortega; Freud, Nietzsche, os existencialistas na década de 40 e 50; Rousseau revivido, quanto à “educação negativa”, um dos precursores remotos da educação não diretiva.(...) Então, emerge, emerge a escola Nova na Europa e nos Estados Unidos, como epifenômeno da cultura e da história.’ (Trigueiro Mendes, 1987, p. 500).
5 Para fornecer mais algumas indicações sobre as apropriações do existencialismo para refletir os problemas da tradição filosófica e pedagógica no Brasil, bem como para a formulação de uma pedagogia assentada nessa corrente de pensamento cito ainda a tradução do livro “Pedagogia e Filosofia da Existência” do alemão O. F. Bollnow (1974). Esse livro teve duas edições no país: a primeira em 1971 e a segunda em 1974 - mostrando que, nesse período, teve uma grande repercussão.


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