Artigo
Recepção: 1 Janeiro 2020
Aprovação: 1 Maio 2020
DOI: https://doi.org/10.7440/res64.2018.03
Resumo: O presente artigo desenvolve uma reflexão sobre a função dos manuais nas Ciências Humanas e nas Ciências Exatas. Para isso, recorreu-se aos escritos de Bertrand Russell, Thomas Kuhn e Pierre Bourdieu. Nesse movimento analítico, os saberes existentes nesses compêndios e os usos foram problematizados. Em suma, visa-se compreender os desdobramentos do campo científico no campo político, tomando como referencial os manuais.
Palavras-chaves: Manuais, Ciências, Sociologia do Conhecimento.
Abstract: The present text aims to do a reflection about manuals’ function in Humans Science and Exact Sciences. For that, the article uses the reflection of Bertrand Russell, Thomas Kuhn and Pierre Bourdieu. In this analytical movement, the manuals’ uses and knowledge were problematized. In short, it is an experiment of get to know better the developments of science filed in political field, using the manuals as a reference.
Key-words: Manuals, Sciences, Sociology of Knowledge.
O Brasil culto devorava manuais e as obras de vulgarização.
Claude Lévi-Strauss. Tristes trópicos.
I.
Em um dos seus textos, o filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) descreveu uma hipotética sociedade na qual a classe técnica científica tornou-se dominante politicamente. Nesse diferente mundo novo, os países deixaram de existir para, sob um governo unitário global, serem gerenciados por uma oligarquia de profissionais científicos. Toda a organização social estava fundada nos processos de escolha de dois estamentos: o dos destinados a trabalhar e o dos destinados a governar. Semelhante a República de Platão, onde os indivíduos eram separados a partir da cunhagem de suas almas, essa nova configuração preteria os seus estratos por meio de suas capacidades expressas nos primeiros anos de vida: os que tinham predisposição ao labor teriam uma educação voltada aos ofícios práticos e, por conseguinte, o seu futuro estaria relacionado aos fazeres manuais; e, diferentemente, os que tinham afinidades cognitivas eram destinados a um processo de aprendizagem voltado a formar quadros para a vida política e burocrática, os administradores do Status Quo (RUSSEL, 1956).
N’A Sociedade Científica, título que Russell atribuiu a essa construção literária, um controle eugênico era praticado: não se permitia crescimento ou redução populacional sem planejamento; os poucos nascimentos só ocorriam por meio de reprodutores selecionados, sendo o resto dos habitantes esterilizados. Da mesma forma, a economia estava disposta a profundo controle, havendo opções estratégicas de onde seria alocada a produção; Detroit, assim, tornou-se ainda mais a cidade dos pistões, uma vez que nela se produzia todos os carros do mundo. Por causa da centralidade administrativa e da unificação dos Estados, não havia concorrência comercial e guerras, consequentemente um uso mais racional dos recursos configurava-se; os trabalhadores, dessa forma, podiam reduzir a sua jornada para quatro horas diárias e dispor de maior ócio.
Nesse arranjo, fundado na forte administração de uma oligarquia tecnicista, a instituição escolar teria um papel fundamental na manutenção das práticas sociais. De geração em geração, ela afirmava a normalidade dos estratos: trabalhadores e governadores. Dentro dessas instituições, um objeto destacava-se por sua condição de importância, sendo um predicado tanto para a escola, quanto o ensino. Trata-se do manual. O processo de “aprendizado por intermédio de livros [era] [...] reduzido ao estritamente indispensável”, porém, mesmo com a limitação do espectro de textos, os manuais estariam colocados como o centro das lições, “desde os primeiros anos de vida a educação será em grande parte manual” (RUSSEL, 1956, p.222). Neles - apostilas, enciclopédias, sínteses e outros materiais introdutórios e exegéticos - o aluno confrontava boa parte do seu conteúdo programático.
II.
A Sociedade Científica é um escrito de Russell marcado por uma sutil intenção crítica em uma descrição vacilante de sentidos. Nas suas aproximadamente 40 páginas, após esmiuçar a distinta organização social com toques de simpatia e estranhamento, o autor condena, em seu último capítulo, não a situação, mas os seus integrantes.
A distopia elaborada pelo filósofo britânico, com influências de George Orwell, Platão e Aldous Huxley, é uma das expressões, derivadas de frustração, ressentimento, ceticismo e/ou outros sentimentos mais, para com a ciência cunhadas no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os campos de concentração foram abertos e as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Dentro do espectro de reações, É isto um homem?, de Primo Levi (1919-1987), não estranhamento um químico judeu confinado em Auschwitz, foi quem mais assertivamente rompeu, em primeiro plano, com a ciência e, em segundo, com o próprio homem na sua noção que concebe alguma forma de progresso moral e/ou civilizatório (LEVI, 1988).
O inglês também pasmou diante dos massacres da guerra, possibilitados fundamentalmente por meio dos usos das técnicas científicos-industriais. Sua reação, porém, mostrou-se diferente da de Levi; não fez um rompimento levado às últimas consequências. Em A Sociedade Científica, há um posicionamento crítico somente para com o que se faz com a ciência, compreendendo-a meramente como técnica. Quer dizer, seria ela algo manejada pelos atores sociais, estando os seus usos totalmente submetidos, portanto não comprometidos, às concepções daquele que a utiliza. Nas próprias palavras de Russell (1956, p. 242), “a esfera dos valores situa-se fora da ciência”. Dessa maneira, as críticas do filósofo britânico direcionam-se essencialmente às realizações meramente pragmáticas do desenvolvimento científico, estando o problema na rasa formação humana daqueles que ocupam papéis centrais dentro da estrutura do Estado e da iniciativa privada.
III.
A crítica referente a uma ciência que peca na sua constituição ética trata-se da camada central do texto de Russell, contudo, existem outras menos explícitas e exploradas em seu desenvolvimento. Algo secundário encontra-se na ponderação da relevância atribuída aos manuais no processo educativo. Tais materiais possuem uma grande importância para a construção societária de Russell, posição que igualmente pode ser extrapolada para a ciência real. São eles, independentemente do espaço, uma espécie de campo privilegiado de informações sobre determinada temática.
Todavia, pode-se ir um pouco mais longe para melhor compreendê-los. Primeiramente, é necessário traçar uma linha entre os utilizados pelas Ciências Humanas e pelas Ciências Exatas e Naturais: a constituição de cada um traz consigo propriedades específicas. Para haurir essas diferenças, algumas perguntas deverão ser lançadas. Em cada área, eles são utilizados somente pelos especialistas do ofício ou também por membros exógenos? Que papel ocupa dentro da disciplina? O que neles são transmitidos? Qual forma de escrita perpassa em suas páginas? Uma reunião de indagações que visa identificar as suas particularidades.
IV.
Um autor que atribuiu grande importância ao uso dos manuais foi o físico teórico estadunidense Thomas Kuhn (1922-1996). Ele, diferentemente do seu colega pesquisador Bertrand Russell, dedicou mais templo a refletir sobre o caráter desses escritos do que para redigi-los, uma vez que Russell também foi reconhecido por ter redigido uma enciclopédia filosófica. Kuhn conquistou grande importância dentro dos estudos históricos devido principalmente a sua Magnum opus A Estrutura das Revoluções Científicas. Obra na qual compõe um modelo de interpretação da história da ciência.
Em suma, seu livro concebê-la como um processo de domínios interpretativos periódicos, nos quais uma hegemonia estabelece-se a aplainar as divergências existentes. Mais precisamente, Kuhn (2000, pp. 21-22) defende que, em consequência de uma “propriedade autoritária”, existe uma falsa impressão da ciência como um desenvolvimento “acumulativo e linear” do saber. Recorre a imagem de uma parede de tijolos para representá-la: um bloco que se encaixa sem dificuldade ao outro; a construção de um cientista perfeitamente conjugada/expandida/dialogada com a do outro. Noção essa que não estaria de acordo com a realidade histórica do conhecimento científico, marcada por mudanças abruptas e intensas nas suas premissas e concepções. A coesão posta no lugar das divergências.
O conceito de paradigma foi a forma encontrada pelo estudioso americano para tornar inteligível o processo “não acumulativo” do processo científico. Para solver a continuidade, Kuhn afirma a disputa periódica de princípios explicadores. A questão é que, em determinados momentos, um desses princípios tornou-se dominante entre seus concorrentes. Nesse período específico, deu-se a concepção e a vigência de um paradigma, a prevalência de uma explicação. A categoria de Kuhn representa em si, não a vitória do melhor conjunto explicativo, que não possui falhas, erros e/ou lacunas, porém, a sobreposição da melhor teoria diante das concorrentes.
Contudo, qual a conexão dos manuais com os paradigmas? No interim entre eles, existe uma relação que o físico descreve como autoritária devido a existência de simplificações dispostas para seus leitores. A sua elaboração seria responsável por aplainar as conclusões de Galileu, Newton, Einstein e outros cientistas, constituindo uma suposta imagem de consenso. Assim sendo, relevar-se-ia as profundas divergências presentes em tais escritos, afirmando-se posições consonantes, complementares e acumulativas em seu lugar. Para Kuhn, o processo científico, diferentemente da percepção manualesca, não se daria exclusivamente por acréscimos, mas também por processos mais complexos nas quais se desdobram somas, abandonos, divergências, conflitos etc. os quais levariam, inter alia, a profundas transformações de concepções. Uma leitura que se mostra menos “manual” e mais afeita as divergências no prisma autor. O ensino dentro da comunidade científica estaria assentando sobre essas construções históricas simplificadas. Os docentes universitários lançariam para seus alunos esse conteúdo, a afirmar a acumulação, e não encorajariam a leitura dos textos originais dos grandes teóricos, como por exemplo Principia de Newton ou Origem das Espécies de Darwin, nos quais se poderia ver, a partir do cotejo com outros títulos, tensões inconciliáveis. Isso não quer dizer a existência de uma conspiração por parte dos educadores, como uma leitura apressada de Kuhn pode vir a oferecer, mas que, na realidade, opera-se preocupações mais direcionadas a outros fins do que com a coerência histórica. Um docente de química focaria mais os seus esforços em explicar o funcionamento das radicações Alfa, Beta e Gama do que elucidar a trajetória de Marie Curie e outros cientistas para descobri-las.
V.
A utilizar somente o núcleo argumentativo de Kuhn, detalhes importantes de suas considerações perdem-se a respeito dos manuais e uma impressão exclusivamente pejorativa instala-se. Existem, contudo, aspectos vitais de tal gênero textual para a ciência, ele possui “razões funcionais importantes”. Expor-se-á suas contribuições, porém, precisa-se primeiramente constituir uma definição de manual; concebê-lo como conceito. Sinteticamente, a categoria trata-se de um conjunto expositivo, articulado pelos paradigmas aceitos pela comunidade científica, que visa expor a linguagem comum dos pares acadêmicos. É, portanto, uma hipotética representação do campo geral, um núcleo de identificação, de onde os pesquisadores podem localizar os seus estudos e desenvolvê- los.3
A imagem aplainada, ahistórica, do manual conjugava-se com uma função precisa da comunidade científica: diferenciar o diletante do especialista; daquele que tem e daquele não tem o domínio do método e do campo disciplinar. Nas suas páginas, constam os subsídios técnicos e explicativos comumente acatados pelo grupo. Tal texto possui o escopo de delimitar o conjunto de saberes que o iniciado deve dominar para ser um par - distinguindo as camadas do esotérico e do científico. Todavia, isso só responde parcialmente à questão, por que um campo comum?
A resposta encontra-se no centro da atual organização da comunidade científica: configurada para ser um ambiente de desenvolvimento de pesquisas específicas. Mais precisamente, ele oferece um conjunto comum - convergente nas palavras de Kuhn, uma vez que não se concentra nas exceções - de matérias para, a partir delas, se desenvolver as investigações especializadas, nas áreas ainda pouco exploradas pelas disciplinas. Dessa maneira, um estudioso possui um suposto local geral de saberes, não necessitando apresentar todas os seus argumentos e premissas quando escreve - isso já foi dado para ele e seus leitores, estando evidente, nos anos de educação universitária (graduação, mestrado, doutorado etc.) - devendo dispor somente o que problematiza de inovador e preciso.
Essa forma de instrução, que releva a divergência, traz alguma consequência para o desenvolvimento científico? Pelo menos no seu nível mais evidente e pragmático, não. Para se elaborar uma patente de broca ou para se compreender um fenômeno físico astronômico, “os resultados da pesquisa científica não revelam nenhuma dependência óbvia com relação ao contexto histórico da pesquisa” (Kuhn 2000, p. 176). Em outras palavras, as considerações de Galileu a respeito das fases da Lua, redigidas há mais de três séculos, pouco têm a contribuir para um estudioso das ondas gravitacionais na atualidade. Válido entre esses especialistas são dados mais precisos ou técnicas como: o valor de uma massa atômica e/ou uma tecnologia para captação de um espectro de luz.
Tal forma de circulação e organização de informação está no cerne da vigente forma do ensino acadêmico nas ciências duras. Os manuais utilizados pelos universitários são todas elaborados na convergência, quer dizer, dispõem um campo comum dos paradigmas vigentes.
VI.
As ciências humanas configuram-se muito distintamente de suas irmãs duras. Difícil é argumentar a vigência de um paradigma na história e/ou na antropologia devido ao amplo acervo de abordagens e pressupostos a disputar concomitantemente os seus campos de pesquisa, não obstante seja perfeitamente plausível citar modismos ou referências constantes, como ocorre nos últimos anos com o ultraidentitarismo.4 A consequência dessa realidade é a dificuldade de se comparar, pelo menos preliminarmente, os seus manuais.
Para enfrentar a questão, cunhar categorias mostra-se necessário. Kuhn chegou a fazê-las, embora não as tenha explorado extensivamente. O autor diferenciou algumas possibilidades: “textos de divulgação” e “manuais”, as quais podem ser interessantes.5 Sinteticamente, referem-se a formas textuais destinadas a grupos específicos: o primeiro para a própria comunidade científica; o segundo para membros exógenos. O campo comum disciplinar é oferecido em ambas, porém, a apresentação estilística distintamente coloca-se: um vocabulário didático põe-se para os não-iniciados, enquanto a linguagem técnica no outro prevalece. Independentemente de se localizar nas ciências humanas ou nas ciências duras, existem textos assim elaborados. A questão relevante é a importância que esses materiais possuem (ou não) para o seu campo. Uma diferença explícita marca- se nesse ponto.
Em ciências exatas, como já foi visto, os manuais elaborados para os seus membros possuem uma grande importância: são eles os responsáveis por definir o espaço comum e ordenar sentidos de pesquisa, isso desde o século XIX, quando começaram a circular e constituir essa função (KUHN, 2000, pp. 29-30). Diferentemente, a realidade das obras de divulgação permanece mais restrita e limitada, existem poucos autores que se dedicam a elaborá-las. Nas ciências humanas, a configuração mostra-se distinta. Manuais são muito pouco utilizados, isso porque o objetivo de oferecer um campo geral mostra-se uma experiência limitada, quando o que é posto em relevância são as perspectivas interpretativas de um determinado problema, muitas vezes no seu contexto histórico preciso; como cada autor hauri conceitos e/ou descreve determinada questões. Plasmar o conjunto de argumentos de uma série de pesquisadores em um único espaço, a vez de enfrentar esses livros originais, acaba por ser uma tarefa muito simplória para as complexidades específicas postas e exigidas nas humanidades. Parte dessa percepção de crítica manualesca deriva-se também da forte expressão de uma matriz francesa, mais afeita ao ensaísmo, de formação e estudo extensivamente vigentes - a cultura anglofônico até costuma tê-los mais presentes, todavia é algo secundário e menor ao se considerar o contexto ocidental. Se os manuais são pouco manejados, as obras de divulgação existem em maior proporção, o leque significativo de temáticas da área auxilia nesse sentido. Por exemplo, há grande quantidade de materiais introdutórios sobre a vida e a obra de determinados personagens (literatos, acadêmicos, políticos etc.); sobre um período ou um movimento histórico; sobre diferentes países; e outros exemplos mais. No entanto, esse conjunto de informações, que circula consideravelmente - em geral conectado com uma série de questões políticas e culturais-, é de forma limitado manuseado pelas pesquisas especializadas, sustentadas nas construções argumentativas originais.
Em suma, nos dois espaços, só se encontrará relevância considerável para os manuais dentro das áreas de ciências exatas, contudo, somente na sua forma que visa o consumidor da própria comunidade. Pelo menos à primeira vista, não se mostra interessante colocar-se como um redator de obras de divulgação. Obviamente que, a se considerar outros objetivos, produzir esse tipo de escrito não se apresenta infrutífero, quer dizer, os elevados números de reedição de determinados manuais - especialmente materiais didáticos - podem oferecer ao seu redator um elevado ganho com direitos autorais, não obstante as críticas de seus colegas por ter se dedicado a uma tarefa menor.
VII.
As vantagens e desvantagens na decisão de se redigir um manual traz consigo característica importantes sobre como cada área científica organiza-se. O saldo de crédito que essa empreitada pode oferecer conjuga fatores que, tanto delimitam, quanto apresentam aspectos de como o campo funciona.
Kuhn realçou atributos de transformação que o saber científico sofre, a cambiar perspectivas e premissas, com o passar do tempo. No entanto, o seu argumento mostra- se em demasia interno para melhor resolver as questões relacionadas ao valor atribuído a redação de manuais. Para tal fim, considerar as elaborações do francês Pierre Bourdieu (1930-2002) mostra-se interessante. A faceta conflitiva está posta em Kuhn, mas exclusivamente no âmbito das ideias, carecendo de uma sociologia do conhecimento. Bourdieu (1983, pp.125- 126) taxa-lhe como “idealista” exatamente porque falha em perceber a coloração dos atores. Enquanto o físico norte-americano procura majoritariamente as remodelações nos próprios debates; o francês, por sua vez, afirma que o debate é parte da questão. A ciência não meramente pela ciência, quer dizer, os seus problemas estão engendrados aos processos sociais. Por isso, devem ser considerados também em sua dimensão social.
Nesse conflito entre Kuhn e Bourdieu, encontra-se nuances importantes sobre o prestígio dos manuais. Por exemplo, quais fatores estão envolvidos na opção de sua escrita? Para identificá-los, precisa-se conceber as ciências como espaços dotados de diversas esferas de disputa. Competições essas que se organizam em dois níveis interativos, um central e outro periférico. A camada mais importante engloba os enfrentamentos dos pares pela delimitação do próprio campo científico, divergências que trazem consequências formativas, tanto no nível do próprio conteúdo do saber (conceitos, descrições, premissas etc.), quanto nas próprias práticas e condutas do que se concebe como pesquisa e pesquisador (Bourdieu, 1983, pp.128- 129). Portanto, um jogo que no seu desenvolvimento as suas próprias regras estão apostadas. O segundo nível de competição refere-se às possibilidades de conquista de itens além do campo a partir da autonomia que um ator detém no seu interior. Mais precisamente, a importância que um pesquisador preserva em sua área está relacionada a possibilidade de fazê-la converter-se em importâncias originárias além de seu espaço de pesquisa. Na prática, isso pode significar ações como um coordenador alcançar a liberação de verbas estatais para o seu laboratório ou um docente preparar uma coleção editorial a partir de nomes por ele selecionados.
Na interação entre dentro e fora, o pesquisador desloca-se para fazer investimentos e conquistar maior autonomia e, assim, conquistar seus objetivos. Cada vida emplaca movimentos precisos a depender de suas ambições. Há distintos tipos de acadêmicos, mas sempre há acadêmicos com interesses. A questão é: o que almeja tal indivíduo, onde ele está situado no campo e o que pode fazer para realizá-lo? Se um pesquisador possui um objetivo claro de acumular prestígio em sua área para ajudá-la a (re)definir-se, a redação de um manual pode ou não ser uma empreitada interessante. Caso for uma obra de divulgação, independentemente do espaço, não muito valerá em sua investida; caso for um manual, o ato em humanidades poderá até resultar em descrédito a depender do contexto, no entanto, já nas ciências duras, o seu projeto de delimitar o ofício poderá vir a encontrar um âmbito privilegiado, se bem-sucedido.
VIII.
No entrementes de Russell, Bourdieu e Kuhn, circulam concepções de ciência que, embora divergentes, reconhecem importância dos manuais. O autor americano e o francês explicitamente vão mais longe em suas interpretações, comparando-se com o britânico, no movimento que tange as dimensões conflitivas e cambiantes do caráter do saber científico. Dessa maneira, ao tomá-los como referencial, uma reflexão crítica a respeito dos manuais pode ser desenvolvida contra A Sociedade Científica. Articulando Kuhn e Bourdieu, os limites supostamente claros entre conhecimento científico e ética em Rusell diluem-se elaborando um cenário mais complexo.
Para o britânico, não se mostra interessante questionar se uma bomba é uma invenção que carrega consigo pressupostos não assentados em bases éticas. Colocar-se- ia como um absurdo, uma confusão de ordens e conceitos, independentemente das intenções de quem a fizera. Tal indagação, a invocar-se Kuhn e Bourdieu, pode ser trabalhada de outra maneira. Os caminhos do saber e de suas criações não se mostram desvinculados, mas processos que na sua relação trazem variadas possibilidades, para ambas as frentes - não obstante a técnica, na sua expressão objetiva, possa ser remanejada em distintos contextos.
A confusa condição desses âmbitos revela um problema mais complexo para o que se projetou em A Sociedade Científica. A generalização daquela forma de organização social deu-se por duas questões: por um lado, as interações e os rumos políticos que os integrantes constituíram, responsáveis por levar a classe técnica- científica a ser elite governamental; por outro, as conclusões e os resultados das pesquisas desenvolvidas pelos investigadores daquela sociedade. Arranjos particulares que arquitetaram um sentido, o d’A Sociedade Científica, porque daquela forma projetaram- se e relacionaram-se. Ao remanejá-los em si ou entre eles, outras realidades seriam viáveis.
Nessa esteira, a forma de compreender os manuais igualmente rearticula-se, tornando-se mais complexa. O caráter posto por Russell, de normalização e transmissão de saberes, é parcialmente correto. Necessário seria ir um pouco mais adiante, ponderar- se sobre as suas características na disposição do poder.
Desde o século XIX, a academia científica configurou-se como um ambiente com relativa autonomia social, podendo fazer diversas opções e muitas entre elas sem prestar contas para os outros núcleos da sociedade (Bourdieu, 1968, p. 106). Ao mesmo tempo que possuía certa liberdade, não deixava de cumprir determinados compromissos, que garantiam a sua manutenção. Tal diferenciação a molda e a caracteriza socialmente em grande medida. Normalmente, a universidade articula-se com outros espaços a responder suas demandas: os contratos entre indústria e laboratórios; a formação de profissionais especializados (professores, médicos, engenheiros, arquitetos etc. para as instituições públicas e a iniciativa privada); a operação como depósito de materiais de reconhecida importância (obras de arte, livros, acervos manuscritos etc.); a produção de patentes; e outros formas mais. Dessa forma, organiza-se um intercâmbio que, em geral, as produções do ensino superior vão aos outros espectros sociais. Dispõe-se uma interação que a academia pouca emplaca agendas, oferecendo majoritariamente projetos para resolvê-los - não obstante haja exceções. Em suma, uma instituição com funções secundárias, mantida para se acoplar aquilo que é mais importante.
N’A Sociedade Científica, essa disposição adquire um outro caráter. Sua autonomia preserva-se, até mesmo com mais força, porém, sua interação sofre uma transformação qualitativa. Na construção de Russell, a universidade deixa de meramente produzir para também gerir. Mais precisamente, a universidade abandona o seu caráter de instituição secundária, complementar do Estado, para se comportar como uma aristocracia política e tomar, assim, os principais postos da governança. Nesse movimento, por exemplo, deixa de só oferecer quadros para uma empresa, optando também por onde, como e de que forma irá produzir. Enquanto que na sociedade liberal o poder fundamentalmente localiza-se nas instituições de Montesquieu; na sociedade de Russell o poder dispõe-se majoritariamente na comunidade científica, nos cientistas que podem fazer as mais diversas opções sobre os rumos do mundo. Uma presença marcadamente mais profunda dentro das relações humanas.
Nesse arranjo, que a comunidade científica se confunde com a elite governamental, os manuais adquiririam um caráter ainda mais importante. Pois, definir o campo comum da ciência, estaria ligado a conceber os contornos dos mais diferentes ordenamentos básicos do saber, os quais resultariam em políticas públicas. Redigi-los, significaria na prática intervir nas formas do interagir e do saber de uma cientista que, por exemplo, teriam em suas mãos o Ministério da Saúde. Não se deseja afirmar que se emplacaria mera reprodução, no entanto, a operação de um polo vital de influência se afirmaria. Assim sendo, sua redação confundir-se-ia com a redação do próprio campo científico e, por conseguinte, do próprio campo político.
Referências
BAILEY, F. G. “Anthropology”. In: CLARK, Burton R.; NEAVE, Guy. (orgs). The Encyclopaedia of Higher Education, Vol. 3. (“Analytical Perspectives”). Oxford: Pergamon, 1992, pp. 1777-1787.
BOUEIDEU, Pierre. Campo Intelectual e Projeto Criador. In: POUILLON; et all. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p.106.
BOURDIEU, Pierre. “O Campo Científico”. ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
LEVI, Primo. É isto o homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
KUHN, Thomas S. “A tensão essencial: tradição e inovação na pesquisa científica”. In: KUHN, Thomas S. A Tensão Essencial. São Paulo: editora Unesp, 2011, p. 242-244.
RUSSELL, Bertrand. A Sociedade Científica. In: A Perspectiva Científica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.
Notas