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Nietzsche, Feyerabend e Foucault: um diálogo sobre o eclipse da ciência na política atual
Nietzsche, Feyerabend and Foucault: a dialogue on the eclipse of science in current politics
Revista de Filosofia: Aurora, vol. 33, núm. 60, pp. 879-898, 2021
Pontificia Universidade Catolica Parana

Dossiê


Recepção: 23 Junho 2020

Aprovação: 02 Dezembro 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.060.DS08

Resumo: Este estudo toma a ciência como um espaço atravessado por forças que a constituem a partir de múltiplos jogos de interesses. Em seguimento a tal contexto visa-se entender como a ciência institucionalizada como princípio dominante do saber na idade moderna perde potência na contemporaneidade. Tal reflexão apoia-se nas formulações de Nietzsche/Deleuze, Feyerabend e Foucault. Considera-se, ao final, que os jogos de verdadeiro e falso e a retirada do teor valorativo - de atividade ou reatividade, nobreza ou vileza - das práticas científicas criaram um solo propício para o fortalecimento da verdade relativa, da ficção e da moral. Contudo, em momentos de crises, como as de emergência sanitária, recorre-se ao saber científico como tábua de salvação.

Palavras-chave: Ciência, Dispositivo, Poder, Vigilância Sanitária.

Abstract: This study considers science as a space crossed by forces that constitute it from multiple power struggles. Following this context, we aim to understand how science institutionalized as the dominant principle of knowledge in the modern age loses its power in contemporary times. This reflexion leans on Nietzsche/Deleuze, Feyerabend and Foucault. In the end, it is considered that the games of true and false and the removal of the evaluative content - of activity or reactivity, nobility or vileness - from scientific practices have created a favorable environment for the strengthening of the relative truth, fiction and morals. However, in times of crisis, such as health emergencies, scientific knowledge is used as a lifeline.

Keywords: Science, Device, Power, Health Surveillance.

Introdução

Michel Foucault (2005) propõe que as análises das racionalidades científicas não podem ser dissociadas do escrutínio das relações de forças e saberes (práticas e discursos) implicados em sua emergência.

Pautados nessa proposição e incitados por um ímpeto crítico buscamos pôr em relação, neste texto, a crítica que Nietzsche, sob a interpretação de Deleuze (2018), realiza sobre a ciência moderna, o texto Contra o Método de Feyerabend, de 1970, e a obra Arqueologia do Saber de Foucault, escrita em 1969.

Objetiva-se, portanto, deslocar a ciência da sua análise epistemológica para atravessá-la com o pensamento nietzscheano/deleuziano, submetê-la às críticas de Feyerabend e executar um exercício avaliativo da ciência enquanto um dispositivo na acepção foucaultiana.

Refletir sobre a produção do conceito de ciência torna-se urgente em um presente em que está abalada a potência científica capaz de criar enunciados críveis. No entremeio desses bolsões de dúvidas propiciados, em parte, pelas próprias práticas científicas surgem outras formas de produção de sentido e ordenamento social como a verdade relativa1, a ficção2 e a moral religiosa. Em vista de tais acontecimentos torna-se premente pensar sobre a situação da racionalidade científica em um mundo que busca respostas efetivas contra as mazelas provocadas pela pandemia originada pelo novo coronavírus, Covid-19.

Nietzsche/Deleuze e a ciência como força reativa

Partindo-se da leitura Deleuzeana de Nietzsche a ciência é uma interpretação dos fenômenos a partir das forças reativas (DELEUZE, 2018). O conceito de força se vincula ao conceito de poder enquanto tendência, devir. Ou seja, a força é uma tendência de transformação ou de resistência aplicada a uma determinada materialidade ou pensamento, não sendo algo em si mesmo.

Este conceito só faz sentido quando pensado e inserido em um processo, que consiste em uma força em ação a partir de sua relação com outra força. Nesse sentido, a qualidade, ativa ou reativa, depende da configuração e não de uma natureza intrínseca de si. Portanto, ela só é capaz de agir se houver outra força que atue junto com ela compondo ou resistindo, o que pressupõe, assim, pluralidade.

A natureza da composição das forças ativas é sempre agir e a ação é a sua condição de domínio. Ela age a partir de uma “vontade”, de sua tendência a adquirir mais força, de sua condição de agenciamento, de sua condição de impor e criar formas de acordo com as circunstâncias (DELEUZE, 2018). Ela não age a partir da ação de outra força, ou seja, ela não reage, mas age. A força ativa age e afirma a própria ação mesmo que isso vá torná-la diferente do que ela é. As forças reativas reagem à ação do outro com a tendência de manter a forma, conservar, adaptar e reproduzir.

Mas agir em relação ao outro não é a principal característica das forças reativas, aliás, isso talvez não configure a sua natureza. A reação para Nietzsche tem seu auge em um tipo de ação específica, ou melhor, de “não-ação”. A força reativa é aquela que não reage na relação com a outra. Ela nega a ação do outro, não permitindo assim que o outro aja. Negando a existência do outro - outro como diferença de si - não permite diferenciar-se de si mesmo daquilo que é para tornar-se outra coisa. Não permite que a força, o poder aja para criar o diverso.

No caso da ciência, ou melhor, do cientista, ou como chama Nietzsche, o erudito, este tomou por modelo o triunfo das forças reativas e a ele quer subjugar o pensamento. Para Nietzsche, o erudito - o amigo do conhecimento, aquele que fala, analisa e diz o que é o conhecimento - rouba para si as experiências, as práticas, as ações do mundo e as julga a partir da utilidade.

Isso se torna um grande problema a partir do momento em que o cientista assume um amor incomensurável pela verdade e um respeito desnecessário pelo fato. Quando o cientista une sua busca específica movida por sua vontade e pelo seu olhar particular em relação ao mundo e afirma essa forma de buscar como sendo a única verdadeira, ele nega as outras possibilidades de olhar. Ele não consegue compor seu olhar, seu método, sua relação com o mundo de forma que esteja disposto a ver a diferença que possa romper com a sua condição.

Mas o fato para Nietzsche é uma interpretação, uma forma específica de ver o real, e a verdade “ expressa uma vontade” (DELEUZE, 2018, p. 97). Portanto, assumir o fato como real se configura como submissão do cientista ao ideal e à ordem estabelecida. O fato é visto pela ciência como a realidade da coisa extensível a toda humanidade (como coisa-em-si) e a verdade é a sua representação absoluta da maneira pela qual se quer ver o mundo.

Complementando, Deleuze (2018) nos aponta que o erudito, ou cientista, criou uma teologia que não depende mais do coração. De modo que a ciência julgará as coisas em função de sua utilidade, se um conhecimento, um objeto, um pensamento são úteis, deverão existir; se não são, deverão ser descartados.

"Originalmente" - assim eles decretam -"as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas -como se em si fossem algo bom." Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses -temos aí "a utilidade", "o esquecimento", "o hábito" e por fim "o erro", tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem. Este orgulho deve ser humilhado, e esta valoração desvalorizada: isso foi feito?... Para mim é claro antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito "bom" no lugar errado: o juízo "bom" não provém daqueles aos quais se fez o "bem"! Foram os "bons" mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes impor­tava a utilidade!

(NIETZSCHE, 1998, p. 18).

Diante do conceito de utilidade, genealogicamente, Nietzsche faria algumas questões precisas, as quais os cientistas em geral “preferem” não fazer. Algo é útil? É útil para quem? É nocivo para quem? Quais os interesses envolvidos nesse julgamento? Quais as estratégias que foram estabelecidas para que ele acontecesse? Quais os procedimentos?

Posto isso, temos que voltar à questão da interpretação dos fenômenos pelas forças reativas. Para Nietzsche, a ciência é uma interpretação reativa, pois quem considera uma ação do ponto de vista de sua utilidade não é aquele que age, pois este executa. Portanto, é um terceiro, alguém de fora da ação que a observa e espera tirar dela algum proveito.

Como diz Deleuze, existe um “gosto por substituir relações reais de forças por uma relação abstrata que supõe exprimir todas elas”, e exemplifica: “sempre se é levado a substituir atividades reais (criar, falar, amar, etc.) pelo ponto de vista de um terceiro sobre essas atividades; confunde-se a essência da atividade com o lucro de um terceiro e pretende-se que este deva tirar proveito deste lucro ou que tenha direito de recolher seus efeitos (Deus, o espírito objetivo, a humanidade, a cultura ou até mesmo o proletariado)” (DELEUZE, 2018, p. 61). De alguma maneira, podemos dizer que se julgam as coisas e as palavras a partir de quem as ouve e não de quem as fala.

Então, diante desta crítica ao gosto pela abstração das ciências ocidentais, como pensar uma forma científica? Segundo Deleuze, Nietzsche propõe uma ciência capaz de interpretar as relações entre as forças. Esta teria três formas: uma sintomatologia que busca interpretar os fenômenos como sintomas de uma luta de forças, uma tipologia que consiste na determinação da qualidade das forças ativas ou reativas e uma genealogia que consiste em avaliar a natureza das forças, sua nobreza ou suas vilezas, ou seja, sua condição ou potência de criar novas formas e de diferenciar-se, algo que, segundo a tradição trágica de Nietzsche, demonstra a relação do homem com o devir da existência e a condição da finitude mortal.

Feyerabend e a política da ciência

Feyerabend propõe que a ciência assuma sua constituição política. Se “a política é a continuação da guerra por outros meios” (FOUCAULT, 2010, p. 15), poder-se-ia dizer que a ciência é a continuação da política por meios mais abstratos e perigosos, pois deseja uma verdade transcendente e esquece de sua constituição aguerrida.

É em um jogo de forças em que uma multiplicidade de interesses nos é apresentada, que Feyerabend, em seu texto Contra o Método (2007), reexplicita o dito de quase um século atrás proferido por Nietzsche. Não existe um projeto único de ciência e, se algum dia pareceu haver, foi por obra de um gosto muito abstrato, transcendente e de uma incessante busca por um mundo muito distante do que temos.

O resultado disso foi o totalitarismo científico sob a presidência de um modo de pensar extremamente abstrato que se utiliza da razão como técnica de controle e subjugação. A ciência enquanto ação política presente em nossa sociedade é um modo violento de subjugar determinados tipos de conhecimentos por meio da razão.

Sob certos aspectos podemos dizer que a análise de Feyerabend alinha-se com diversas questões que Nietzsche trabalha. Primeira questão: não é possível a relação entre ciência e democracia, pois a primeira se forja em um campo de forças em que impera a lógica da dominação da natureza, dos conhecimentos de outra ordem não formal, de tudo aquilo que não tem uma explicação e/ou comunicação clara. A ciência realiza um tipo de dominação não criativa em que se domina a etapa final do processo criativo e lhe dá uma aparência formal, racional e científica. Nesse sentido, ela se utiliza de toda sorte de estratégias para não explicitar suas apropriações dos conhecimentos alheios. Em geral faz isso por meio da transposição linguística e aplicação de métodos que reduzem uma substância ou um procedimento de uso tradicional ou cultural, concernente a uma prática social não científica, a um enunciado ou proposição que só se faz entender em meios científicos. Como exemplo, podemos apontar as diversas apropriações de técnicas e saberes tradicionais sobre plantas medicinais pela indústria farmacêutica/médica.

Segunda questão: os especialistas não têm uma relação mais próxima ao objeto. Como diria Nietzsche, eles não participam do processo criativo dos fatos. Eles apenas fariam uma leitura dos acontecimentos após essa apropriação dos fatos - sendo estes fatos uma interpretação ativa da realidade - a ciência lhe dá uma nova roupagem, transverte essa interpretação da realidade em algo verdadeiro, tornando-se assim possuidor desse conhecimento. O processo de transformação das interpretações da realidade em acontecimentos reais é uma forma de afastar dos criadores dos fatos sua autoria e o seu domínio.

Terceira questão: O processo científico é complexo e não cria padrões. A ciência é essencialmente corte. Seu papel é fazer recortes da realidade, portanto retirar das coisas e das práticas seu potencial expansivo, descontrolado, criativo e destrutivo. A ideia de padrões que criam o sucesso científico poderia ser pensada como resultado de corte por meio de um exercício político, um resultado de um exercício de poder. Os diversos grupos se embatem e temos como resultado dessa luta a ideia de um processo acabado, organizado e, podemos dizer, até cronometrado. Mas a principal questão a fazer é: qual o interesse em criar um padrão? Ou: essa padronização beneficia a quem? Ao longo da história temos alguns beneficiados: o soberano, o Estado, o capitalista, o burocrata etc. A fim de realizar esses objetivos e de responder a esses interesses, essas padronizações criam quais estratégias, produzem quais procedimentos?

Feyerabend nos apresenta algumas dessas estratégias. Primeira: a ciência em sua ânsia de controle toma todos os processos de discussão política que se dá em torno de um objeto, todos os acidentes e os acasos, que o processo de produção do conhecimento comporta, e os simplifica. Ou pior, nega e esconde todos os processos de violação e rompimentos das regras metodológicas necessárias ao desenvolvimento das ciências. Nega a sua composição política e de luta em nome de uma suposta neutralidade e racionalidade modernas. Inclusive a racionalidade moderna é vista por Feyerabend como uma manobra política. A razão passa a ser garantia de um estatuto de verdade para suas interpretações.

Uma outra estratégia apontada por Feyerabend é pela educação científica. A busca pela padronização exige indivíduos padronizados, com condições de pensamento restrito. Pensar cientificamente ainda é, muitas vezes, pensar apenas nos seus objetos, na busca de método que garante o estatuto científico e verdadeiro do estudo. Portanto, criam-se procedimentos que respondam a esses métodos e garantam confirmação em torno dos objetos de estudados. Entre esses procedimentos temos os jargões científicos: objetivar, quantificar, qualificar, observar, experimentar que, ao final, são maneiras de restringir o pensamento no sentido de eliminar deslizes, diminuir as possibilidades de criação, eliminar os acasos, tornar o objeto destituído de natureza própria e o próprio cientista, da condição de criação.

Nesse sentido, podemos afirmar que o ensino e a prática científica alinham com a produção de um soldado para uma guerra. O soldado deve obedecer cegamente às ordens em nome de uma instituição de que ele não conhece os meandros, ou melhor, não procura conhecer, pois se conhecesse não seria possível continuar a lutar.

Tem-se aqui o contrário das pretensões clássicas do Iluminismo (Aufkärung), segundo as quais, de acordo com Kant (1985), para o ser humano se esclarecer ou sair da menoridade deveria ter a coragem pensar por si mesmo sem a dependência de um tutor ou senhor. Mas como foi possível essa produção de um cientista “cego”? Como o projeto da racionalidade moderna se tornaria alvo de uma nova fé cega?

O século XVIII ou das luzes teve como utopia a exigência de uma visibilidade, pautada na máxima de que o poder opressor se esconde nos mistérios, na escuridão e que a força do poder estava na sua invisibilidade. Portanto, seria preciso ver tudo e esse ideal humano da visibilidade irrestrita, mesmo que não pudesse ser atingido, deveria ser visado. Isso produziria uma espécie de ética do olhar sob a qual há duas máximas: é preciso ver tudo e olhar corretamente. Respondendo a isso, a razão deveria corrigir os erros do sentido. As relações deveriam ser pautadas na reflexibilidade do olhar e na crença de que romper interditos tornaria impossível a tirania e que todos seriam sujeitos do olhar em uma comunidade de sujeitos universais. Nesse sentido, era necessário dar visibilidade às condições de funcionamento da natureza, da sociedade e do homem. Essa visibilidade seria alcançada por métodos específicos para a produção da verdade, pois esta não seria mais dada por Deus, mas “descoberta” pelos homens e um dos principais métodos para isso era a racionalidade científica. Dentro de um esquema de visibilidade total que a modernidade exige (sobre os atos políticos, sobre o funcionamento da natureza e sobre o funcionamento dos corpos) a ciência responde de forma perfeita. O trabalho da ciência seria o de buscar procedimentos metodológicos eficazes para a produção de leis gerais e da verdade.

Mas a questão da visibilidade total trazida pela modernidade, mais exatamente pela ilustração ou iluminismo, segundo Rouanet (1988) e Adorno e Horkheimer (1985), tem em si duas vertentes opostas: Uma vertente positiva ou emancipatória que aparece quando dá visibilidade aos meandros repressivos do absolutismo e da fé cega, quando ilumina os centros de poder e garante a visibilidade das decisões, “quando significa olhar a natureza para estabelecer com ela uma relação fraterna [...] quando significa que o mundo das coisas está sob jurisdição da ciência e da técnica” (ROUANET, 1988, p. 138). De outro lado, há uma vertente repressiva quando se pressupõe o desaparecimento de todos os nichos de intimidade pessoal e a extinção das fronteiras entre a esfera pública e a privada, quando significa olhar a natureza como um objeto de exploração e domínio, quando a ciência e a técnica são estendidas ao mundo das relações humanas, expondo-o a um olhar objetivante que o equipara ao mundo das coisas, quando a iluminação trabalha no sentido de clarear os focos de resistência ao poder repressor e dar instrumentos para controlar os homens. De alguma maneira temos com a ciência um exercício de controle e de poder pautado na ausência de visibilidade e pensamento. Uma ciência que se exerce por um movimento de racionalidade pautado por sua vertente repressiva, uma racionalidade que prega um exercício violento da razão.

Em uma entrevista em 1979, Foucault afirma que não existe uma incompatibilidade absoluta entre a razão e a violência, “mas que a violência encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência da forma de racionalidade que utilizamos” (2015, p. 312), qual seja a racionalidade de Estado/instituições.

Ancorados na noção de crítica trazida por Foucault (2000), a partir de suas leituras kantianas, poderíamos afirmar, apesar dos questionamentos e combates ao furor da razão tecidos por vários autores no século XX, que talvez ainda estejamos muito presos à máxima de Kant (1988) que trata sobre a coragem do pensar, ou seja, para produzir o esclarecimento, bastaria ter coragem. Para Foucault, mais do que coragem, seria necessário produzirmos um saber sobre o nosso conhecimento, ou seja, não seria por uma questão de mais ou menos coragem de enfrentar os reveses que poderíamos sofrer ao fazer uso da razão, mas da ideia que fazemos do nosso saber e seus limites. Portanto, mais do que de coragem, tratar-se-ia da liberdade e autonomia que temos a partir do momento que sabemos como é produzida uma verdade sobre nossa vida, nosso corpo e nosso mundo.

Negar a reflexão sobre o uso da racionalidade moderna e unir esses usos ao conceito de verdade disponibilizou a razão ao exercício do poder. Não podemos esquecer que não existe uma relação natural entre razão e verdade. Esse elo foi construído peça por peça ao longo da história. A questão básica a fazer talvez fosse a mesma feita por Foucault (2003): em que momento histórico a razão passou a ser atrelada à verdade? Então teríamos identificado o nascimento de um exercício específico de poder, qual seja, a ciência moderna.

Foucault e a ciência como mecanismo de poder

Duas questões fazem-se prementes para pensar a ciência como mecanismo de poder: Quais forças foram confrontadas para a aparição da razão como condicionante da verdade? Em que momento isso ocorreu?

Para responder tais questões retomamos o curso proferido por Foucault em 1978 no Collège de France intitulado Segurança, território população (2008b). Neste curso é apresentada uma outra forma de governo, no qual o poder soberano e ilimitado do Estado antes do século XVIII passa a ser confrontado com sua alteridade, o liberalismo, momento frugal em que o sujeito passa a ocupar um lócus privilegiado na racionalidade política. Este acontecimento também foi potencializado por outras forças: no plano intelectual há os pensadores contratualistas como Hobbes e Locke, (século XVII), os quais formularam o conceito de indivíduo enquanto categoria política; há também Immanual Kant como um marco fundamental na filosofia a partir dos conceitos de razão, crítica e moral; no plano cultural e político há o movimento iluminista; e, do ponto de vista de organização política, ocorre a formação dos Estados Nacionais.

Essas forças causaram uma ruptura no ordenamento dos regimes absolutistas em que a governança se estabelecia na suprema e total condição de poder vinculada e fortalecida pela mítica divina como justificativa para a ocupação deste lugar privilegiado de ação, o trono. O liberalismo desloca, então, a mítica divina e posiciona a razão como princípio de governo, e mais, modifica as formas de exercício de poder ao tornar os antigos súditos em sujeitos produtores e consumidores de liberdades. Afinal, esta razão de governo “só pode funcionar se existir efetivamente certo número de liberdades” (FOUCAULT, 2008a, p.86). Deste modo, pode-se dizer, que enquanto a economia é praticada sob a égide do mercado, a tecnologia de governo no campo social cria uma nova estratégia de poder, a vigilância e a disciplina. E, concomitantemetne, a razão de estado se alinharia a outra força, os saberes da ciência.

Esse momento nos é de interesse especial para a problematização deste artigo, porque a ciência moderna é construída a partir de um regime de verdade em que a razão se coloca no caminho da produção do saber científico e camufla a sua condição enquanto mecanismo de poder, produção de saber e linhas de subjetivação.

A epistemologia se apropria do método para garantir a sua validade de produção do conhecimento. A ciência, nesse sentido, passa a ser um enunciado, no qual promulga a sua atividade como racionalista por essência, deixando, na esfera do visível, valores como neutralidade, imparcialidade e objetividade intrínsecos às suas práticas discursivas e não discursivas. O que o Foucault postula, no entanto? Em Arqueologia do Saber (1969), o autor pontua claramente que as ciências humanas devem ser avaliadas à luz da dimensão dos saberes, destituindo talvez, desse modo, certa potência da cientificidade. Isso significa dizer que, é necessário se debruçar em relação àquilo que chamamos de ciência a partir de uma arqueologia em que seja possível identificar as interrelações presentes no nível do saber. Aqui Foucault depõe claramente contra uma noção de verdade produzida pelo governo da racionalidade. A ciência era posta em Arqueologia como um discurso e, mais tarde, a começar pela obra Vigiar e Punir (1995), poderá ser entendida como linhas ou elementos de dispositivos

O conhecimento, para o autor, é uma forma de saber construída a partir de suas condições de enunciabilidade e suas linhas de forças, comportamentos sociais, relações e lutas, que permitem existir uma ordem do discurso que determina o que pode ser pensado, o que pode ser dito e o que deve ser excluído na história.

Essa ordem do discurso é analisada a partir do conceito de arquivo. O arquivo se constitui daquilo que é possível falar e ver. Ou, conforme salienta Foucault:

[...] na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo (2008 p. 146).

Por conseguinte, “[...] o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (2008, p. 147). Analisar o arquivo é pôr à mostra a racionalidade que permite que se veja o que se está vendo. Assim, o arquivo não guarda para as gerações futuras a verdade completa de um enunciado, porém, ativa e restringe aquilo que poderá ser dito e visto.

Como salienta Catarina Martins (2011, p. 39), o arquivo não deve ser mobilizado “[...] somente como o lugar que aloja documentos, mas muito mais como o espaço de racionalidade que preserva a sua existência”; na verdade, é aquilo que garante a existência de uma prática, a sua enunciabilidade e seus efeitos. Analisar o arquivo propicia apontar a racionalidade que “conserva”, que seleciona um tipo de exercício de poder na permanência e preservação de uma forma e de um acontecimento. Assim, o discurso científico funcionaria como um mecanismo de instrumentalização do poder a fim de criar verdades e dominação acerca das coisas do mundo social. Em resumo, o arquivo guarda as mobilizações de discuso e as racionalidades de uma época que compoem os elementos de um dispositivo, este último entendido como um conjunto de saberes, práticas, jogos de intereses (relações de poder) e processos de subjtivação.

A ciência enquanto saber constituído é atravessada pelas funções de poder e se reverbera em uma terceira dimensão: a subjetividade. A subjetividade refere-se ao assujeitamento de um indivíduo, que já foi capturado por essa forma de produção do saber. Esta captura torna-se mais clara por Foucault em Os intelectuais e o poder, que compõe o livro A Ilha Deserta (DELEUZE, 2006), em que descreve: “os intelectuais foram impelidos a descobrir recentemente que as massas não necessitam deles para saber, elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles e elas dizem bem” (2006, p. 266). Mas, ele continua, “existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que se penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade” (2006, p. 266). Os próprios intelectuais não fogem deste sistema de captura e, com os dispositivos disciplinares, esse tipo de produção é dominante, sendo que os intelectuais e os cientistas são tidos como agentes da consciência, quando, na prática, também tornam-se objeto e instrumento na ordem do saber, da verdade, da consciência e do discurso.

Os saberes nos regimes disciplinares se produzem, assim, por meio da luta de forças que permitem o exercício, manutenção ou propagação do poder. Isso se dá pois cada sociedade possui o seu regime de verdade,

os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p.12).

Deleuze (1992) em Pós-escritos sobre a sociedade de controle descreve a máquina de funcionamento disciplinar tendo como princípio de modelo o confinamento das instituições sociais e o ordenamento dos sujeitos em um tempo e espaço. A vontade de verdade, institucionalizada pelo que pode ser dito na produção dos saberes, penetra com mais facilidade a subjetividade deste sujeitado reprimido pelo sistema. A razão, força dominante na Idade Moderna, passa a ser, então, utilizada como instrumento necessário para a formulação da ciência enquanto saber instituído e cristalizado.

No entanto, no século XX, outro dispositivo se constitui de forma predominante no ocidente, o neoliberalismo, no qual a racionalidade política se concentra no processo de produção do indivíduo. A economia adquire um espaço próprio de funcionamento; a problemática de Foucault (2008b) se insere, porém, na seguinte questão: “Supondo um Estado que não existe, como fazê-lo existir a partir desse espaço não estatal que é o de uma liberdade econômica?”. Esta formulação estará latreada no conceito de biopolítica, ou seja, a política de governança dos corpos, não de maneira brutal como nos estados absolutistas, ou por dispositivos disciplinares, mas por meio de dispositivos de controle.

A racionalidade que comporia esse dispositivo nos permite pensar que a lógica da concorrência impregnada no sistema financeiro torna-se um mecanismo de funcionamento e controle da população, na qual as individualidades passam a operar também segundo uma lógica de mercado. Este movimento gera uma dualidade nas produções e efeitos científicos. Em primeiro lugar, existe a necessidade de que o mercado funcione como referência de verdade; para isso, o Estado mínimo possui uma limitação jurídica, mas se confunde dentro da esfera administrativa, sobnegando a sua função política para adquirir a função gestora. Como gerir corpos? Nesse momento, torna-se claro a ciência enquanto dispositivo, porque ela se manifesta não apenas por leis, discursos, linhas de poderes e constituição de saberes; ela captura a subjetividade que também é atravessada por dispositivos de segurança por meio das formas alimentares, da saúde, da higiene, sexo, raça. Enfim, o modo de existência produzido passa a ser o do empreendedor de si (COSTA, 2009), assujeitado pelos saberes e atravessado pelo capital. A liberdade aparentemente emancipatória do sujeito neoliberal confere ao ser humano a possibilidade de desacreditar de tudo na modernidade. Então, a ciência, sendo um elemento em meio a um jogo de dispositivos, deve competir com a religião, com política, com a economia e com o processo de democratização da fala, destituindo-se da sua função como produtora de conhecimento vinculada à razão enquanto produtora da verdade, mas operando na esfera dos saberes, e como tal, sujeita à lógica da concorrência do mercado - neste caso, em disputa para a garantia de um espaço privilegiado nas práticas discursivas e não discursivas.

O eclipsar da ciência

As críticas que se estabeleceram no campo intelectual no século XX de forma mais pujante passaram a criar novos agenciamentos e configurações a partir dos anos 2000, em grande parte, sob efeito das mudanças nas mediações e nos processos de aprendizagens e sociabilidades com o advento das tecnologias digitais, forças essenciais de uma sociedade fortemente permeada por dispositivos de controle. No Brasil, concretamente a partir de 2016, os manejos fiscais e contingenciamentos afetaram de forma significativa a educação, ciência e tecnologia, tornando patente a assertiva de que o caminho do desenvolvimento hodierno não passaria mais pelo saber experimentado ou pelas práticas esclarecidas que a modernidade teria proposto. Em meio a uma crise econômica, a saída neoliberal voltaria ao pragmatismo econômico e ao socorro às instituições financeiras, garantindo assim a base neoliberal pautada na volição e liberdade dos agentes econômicos.

As questões que se colocam a partir deste cenário são: quais forças estão atravessando a ciência para fragilizar sua potência? Há um enunciado institucionalizado do discurso científico, mesmo que fragilizado, mas que é acionado em momentos de crise, como as de vigilância sanitária?

Foucault, neste sentido, é premente para entendermos a ciência como um processo de subjetivação resultante do atravessamento de forças e saberes que a compõem. Ou seja, é rizomática, faz parte de um sistema aberto, em que o seu conceito não parte para uma definição de sua essência, mas de acontecimento constituído por meio das forças que se relacionam em uma dada circunstancialidade.

A noção de arquivo pronunciada em Arqueologia do Saber talvez permita entender melhor a composição deste obscurecimento da ciência. A grande velocidade de mudança impingida nos processos de subjetivação incorporou o capitalismo na constituição dos interiores, derrubando fronteiras, destruindo aquilo que seria próprio do “eu”, seu corpo, sua sexualidade, sua fé, sua forma de entendimento do mundo, em uma palavra a morte do sujeito.

Nesse sentido, em uma entrevista posterior à publicação de Arqueologia do saber (2015), Foucault aponta que um enunciado é um conjunto de signos que pode ser considerado no nível de sua existência, ou seja, não subjugado ao sujeito e que busca ser reconhecido como elemento produtor de práticas.

Em outra entrevista, desta vez produzida em setembro de 1986, por Robert Maggiori, em um capítulo do livro Conversações, intitulado “Rachar as coisas, rachar as palavras”, Deleuze produz um entendimento do que seria esta morte do sujeito para Foucault, e de que nada estava atrelada à morte do sujeito enquanto ser existente, ou à simples formulação de um novo conceito. Foucault falava a respeito das relações de forças e que uma forma dominante deixou-se enfraquecer diante de outras forças que compuseram o sujeito. Se antes as forças do homem na Idade Clássica entraram em relação com o infinito, compondo o homem à imagem de Deus, ou se no século XIX em contato com forças de finitude, vida, trabalho, linguagem permitiram a composição de uma forma-homem, na atualidade, o sujeito enfrenta novas forças “o silício e não mais o carbono, os cosmos e não mais o mundo” (DELEUZE, 1992, p. 114). Ou, se pensarmos a partir da noção de dispositivo, o sujeito seria apenas um processo de subjetivação atravessado por diversas linhas de força (poder e interesses) e extratos de saber (visto e dito e jogos de verdade) que o levariam sempre a uma regra de gestão ou de um si ou dos outros, enfim, que o levaria a uma instância governamentalizadora das suas condutas independente de sujeito. Estas duas passagens são muito importantes para criar um subsídio a fim de pensar o obscurecimento da ciência, a partir das forças resultantes de composição.

O primeiro passo foi entender qual a força dominante na ciência e, ao fazer o mesmo percurso da morte do sujeito, propomos aqui que a força dominante na Idade Média era incipiente, a religião relacionada à sua força de infinitude capturava o homem. Na idade moderna, a razão instrumental adquiriu força e hoje é possível entender a moral protestante, impregnada pelo pragmatismo econômico, como uma força desestabilizadora da ciência. A substituição à ciência viria a partir, dentre outras formas de constituição dos saberes, de um retorno do saber religioso, como princípio norteador de explicação, sentido e ordenamento da vida e fundamental para a conduta moral como marcadora cultural do que é certo e errado, justo e injusto. Este deslocamento da ciência e o retorno do saber religioso se manifesta a partir de práticas como o desmanche do ensino superior público do país e o aumento crescente de fiéis religiosos, principalmente das igrejas neopentecostais.

A ciência enquanto potência perdeu, em partes, sua capacidade criativa ao ser atravessada pelo capitalismo, condição que a submeteu na lógica de reprodução, neutralizando condições importantes do cientista, como a contemplação, tempo, estrutura técnica para a produção do conhecimento. As perguntas tão essenciais na produção do saber científico foram perdendo seu devir criativo e, consequentemente, as respostas tornaram-se recicláveis na lógica de produção.

Voltamos mais uma vez para Foucault e Deleuze, a dizer que o saber é uma forma de captura do poder. Foucault, ao formular este pensamento ainda na História da Loucura ou em Vigiar e Punir, que se debruçam sobre os dispositivos disciplinares, leva o saber ao seu princípio prático, desvinculando-o do seu caráter teórico, até então postulado. O acontecimento está no caso de que o saber não é necessariamente o domínio da razão, mas de um objeto que ganha um molde. Nos dispositivos de controle, este processo torna-se ainda mais fluido, a microfísica do desejo modula novas aparições de si e para si, a partir de uma falsa ideia da autorregulação do desejo. A ciência não serve mais como instrumento de explicação, mas como política do confronto, em que forças avigoram zonas cristalizadas. Neste processo, os sujeitos atendem a demandas provocadas pela máquina social e buscam responder a elas.

Nos resta tentar responder a segunda pergunta que foi motivada diante da pandemia mundial causada pelo novo coronavírus. Como é possível que, apesar da aparição deste enunciado de crise, diante do enfraquecimento criativo e produtivo da ciência na sua lógica interna e o confronto externo com outras forças como a religião, a ficção e a verdade relativa, acontecimentos como este de vigilância sanitária são capazes de reavivarem a força dominante da ciência?

Nesse sentido, o Brasil torna-se um grande laboratório empírico de investigação, pois a governamentalidade não é alicerçada pelo dispositivo da razão, ao contrário da maior parte dos países. Desde a campanha até os atos de governo, o presidente Jair Bolsonaro vem operando na lógica da verdade relativa, da ficção ou até mesmo da religião como dispositivo de controle do poder e do capital. Esta lógica se choca fortemente com o discurso científico, presente mais precisamente em termos institucionais de governo via Ministério da Saúde. O que opera na esfera do visível, no caso brasileiro, é uma disputa de ocupação de um lugar entre a razão científica como locos da verdade e os interesses enquanto categoria que fomenta os desejos individuais e os anseios econômicos.

A prática do governo federal encontra resistência, inclusive no próprio campo político, com os governos estaduais, que estão adotando medidas mais rígidas de isolamento e distanciamento social, no parlamento, via Câmara dos Deputados e Senados, como também por meio do Supremo Tribunal Federal, e por parte da população, que reposicionam novamente o discurso científico como condição básica para se fazer viver e não deixar morrer.

Assim, no caso brasileiro, a ciência se constitui como resistência à governamentalidade posta e vem acionando outros dispositivos como segurança para se alicerçar enquanto forma de produção do saber e função de poder.

Considerações finais

As críticas de Nietzsche/Deleuze, Feyerabend e Foucault em relação a uma ciência perpassam pela não assumpção da sua existência como resultado de um jogo avaliativo de forças, ou um jogo não democrático de dominação, ou de uma ciência que, conforme denunciados por Adorno e Horkheimer, faria um uso da razão instrumental, mas que, sob críticas, possibilitaria o questionamento irrestrito solapando sua condição de existência e de resposta uníssona a necessidades práticas das sociedades. Como resultado desses processos ficaria patente que a ciência não é mais a guardiã da verdade de um Estado Moderno. Esse lugar privilegiado foi cassado a partir dos mecanismos que lhe são constituintes e próprios, ou seja, a questão da dúvida, de sempre se poder colocar uma prerrogativa em questão ou crítica, tendo em vista que o exercício da ciência parte de uma problematização, fez emergir o questionamento acerca da sua legitimidade. O duvidar irrestrito como prerrogativa do individualismo moderno levaria a ciência a ser tomada como mais um dispositivo. Como efeito, teríamos um esvaziamento do lugar de produção da verdade que, desde o advento da modernidade, vinha sendo paulatinamente ocupado pelos discursos e práticas científicas. A ciência passaria a ocupar um plano de existência em relação às políticas de gestão do Estado em que teria que competir com a religião e os preceitos morais e econômicos. A partir disso ela poderia ser pensada como um dispositivo de governamentalização esvaziado de qualquer prerrogativa ética ou existencial, sobrando-lhe apenas a função de servir como instrumento de pura gestão ou como diria Agamben (2009), destituída do Ser restaria apenas a oikonomia. Diante de governos que têm flertado com o autoritarismo, o mundo da política tem deixado de se apoiar na ciência e se aproximado da religião e do moralismo tradicionalista no processo de condução do Estado. E isso se efetivaria na aproximação da política com a economia, esta entendida como dispositivo de pura gestão que não lida com saberes ou interesse público, mas volições e desejos de grupos políticos e do mercado financeiro. Nesse sentido, não se trataria apenas de julgar a ciência e entender os meandros que levaram a sua substituição, mas ao retomar a questão da produção dos diversos saberes, científico, religiosos ou filosóficos, remete-se, talvez mais do que pensar sobre eles, a pensar sobre nós mesmos. Refletir sobre a produção científica é entender seus regimes produtivos e os processos de subjetivação a eles atrelados que nos qualificam como sujeitos de uma prática ou de um saber. Deste modo, tal ato de insurreição - pois pensar sobre os regimes de poder e saber que nos continuem são atos revolucionários ou microrrevolucionários - talvez permita uma não submissão a processos em que o sujeito se torna subjugado a uma racionalidade, seja ela religiosa, ou cientifica, ou filosófica, ou econômica pois, ao final, ao narrar uma sobre uma racionalidade, narra-se sobre a produção de si.

Referências

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MARTINS, C. As narrativas do gênio e da salvação: a invenção do olhar e a fabricação da mão na educação e no ensino das artes visuais em Portugal (de finais de XVIII à primeira metade do século XX). 2011. Tese (Doutorado em Educação) - Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.

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ROUANET, S. O olhar iluminista. In: NOVAES, A. (Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Notas

1 Entende-se por verdade relativa aqueles eventos, fatos ou informações que possuem referência com o real, mas sofrem manipulação a partir de elementos não reais.
2 Ficção refere-se à produção e circulação de eventos, fatos ou informações que não possuem referência ao real, mas corroboram para a definição de uma situação.


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