Abstract: Este artigo propõe um estudo aprofundado da viabilidade da denúncia, com foco no crime de lavagem de capitais. Diante do caráter complexo das operações de lavagem, é possível visualizar os problemas decorrentes da descrição insuficiente da conduta e da falta de corroboração empírica da hipótese acusatória. O artigo, portanto, divide-se em dois temas principais: i) a importância da descrição do enunciado fático contido na denúncia e ii) a urgência na definição de um standard de prova, com critérios lógicos e objetivos, a viabilizar o início formal do processo. A partir do estudo crítico da doutrina nacional e estrangeira relacionada ao tema, além da análise de precedentes dos tribunais superiores, demonstra-se como deve ser descrito o enunciado fático contido na inicial e qual nível de suporte probatório (standard) confere legitimidade à atividade processual. A decisão de recebimento da denúncia constitui importante filtro contra acusações infundadas, e, assim, deve ser devidamente motivada pelo julgador. Nesse contexto, o trabalho apresenta, por fim, uma proposta de alteração legislativa capaz de garantir maior controle e racionalidade para a decisão de recebimento da denúncia, tornando a submissão do indivíduo ao processo criminal justa e legítima.
Palavras-chave: denúncia, fato processual, fato penal, standard de prova, lavagem de capitais.
Abstract: This article seeks to deeply analyze the crime imputation, especially in cases of money laundering. Given the complex nature of money laundering operations, it is possible to visualize the problems related to the insufficient description of the criminal conduct and lack of empirical evidence for the accusation. Therefore, the article is divided into two main themes: i) the importance of describing the criminal conduct and ii) the urgency in defining a standard of proof with logical and objective criteria to establish the formal beginning of the process. From the critical study of the national and foreign doctrine related to the subject, in addition to the analysis of precedents from the superior courts, it is demonstrated how the factual statement contained in the criminal charge must be described and what level of evidence (standard of proof) confers legitimacy to the process. The judicial decision to receive the complaint is an important barrier against unfounded accusations, and, thus, it must be duly motivated by the judge. In this context, the article proposes a legislative change capable of guaranteeing greater control and rationality for that decision, so the individual’s submission to the criminal process can be fair and legitimate.
Keywords: complaint, procedural fact, criminal fact, standard of proof, money laundering.
Persecução penal: investigação, juízo oral e etapa recursal
A imputação e o crime de lavagem de capitais: um estudo crítico sobre a viabilidade da denúncia
The imputation and the crime of money laundering: a critical study on the viability of the accusation
Recepção: 14 Abril 2021
Revised document received: 14 Junho 2021
Aprovação: 29 Março 2022
O artigo propõe um estudo aprofundado da imputação criminal, de modo a destacar o cumprimento dos pressupostos básicos para o legítimo recebimento de uma denúncia. O interesse pelo tema surge de uma constatação cotidiana na advocacia criminal, em que são recorrentes denúncias excessivamente longas, mas, não raro, sem a devida vinculação fática da conduta ao tipo penal, ou ainda, sem a demonstração do lastro probatório mínimo, capaz de sujeitar o indivíduo ao processo criminal.
O artigo divide-se em dois temas principais: i) a descrição do enunciado fático contido na denúncia e ii) a definição de um standard de prova, com critérios lógicos e objetivos, a viabilizar o início formal do processo. Nesse contexto, o trabalho se orienta pelos seguintes questionamentos: 1) Qual a importância do enunciado fático contido na inicial? 2) Como este enunciado deve ser descrito, a fim de possibilitar o exercício do direito de defesa? 3) Qual a relevância da fixação de standards de prova ao longo da persecução penal? 4) Como garantir maior racionalidade da decisão de recebimento da denúncia?
Para responder a essas perguntas, realizou-se uma divisão em dois itens: o primeiro item contém considerações gerais sobre a descrição típica das condutas e a definição de standards de prova ao longo do processo; já o segundo item propõe um estudo do crime de lavagem de capitais como forma de observar o problema na prática.
É inegável o crescimento recente dos escândalos envolvendo lavagem de dinheiro. As operações de lavagem possuem natureza complexa e, por isso, demandam uma descrição rigorosa da conduta criminosa. É necessária, ainda, para o combate eficiente a este crime, uma elevação dos níveis de conhecimento produzido pela investigação preliminar. Ao contrário, o que se constata são imputações genéricas, destituídas de base empírica sólida, limitando-se o órgão acusador a repetir os termos da lei, descrição, sem dúvida, insuficiente a atender ao postulado do devido processo legal e à garantia do direito de defesa que lhe é consectário.
Em termos de limitação, optou-se por não adentrar nas discussões relativas ao conceito de justa causa para ação penal, bastando, para os fins deste artigo, identificar como o fato deve ser descrito na denúncia e qual nível de suporte probatório propicia o seu recebimento.
Por último, já nas considerações finais, apresenta-se uma proposta de alteração legislativa, capaz de garantir maior controle e mínimo padrão de racionalidade para a decisão de recebimento da denúncia, tornando a submissão do indivíduo ao processo criminal justa e legítima.
É incontroverso que o processo penal consiste em fenômeno distinto do processo civil (LOPES JR, 2016, p. 101), embora seja também inegável a influência de uma teoria geral (unitária) do processo2 aproximando ambos. No âmbito penal, para formulação de qualquer acusação, exige-se a comprovação da justa causa3, contendo os elementos mínimos da prática de um delito. Configurada a justa causa a legitimar o exercício da ação penal, o processo opera na reconstrução histórica do fato4 supostamente criminoso, momento em que se torna essencial a descrição típica da conduta que compõe a acusação.
Não basta o cumprimento de critérios meramente formais. É mediante a acusação que se efetiva a jurisdição, atendendo ao axioma garantista nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação) (FERRAJOILI, 2010, p. 91). Mas quando se inicia esta acusação? A partir de qual momento é possível falar em sua existência? Tais questões preliminares ajudam-nos a introduzir o tema e orientam as reflexões para a pesquisa.
Evidente que o estudo sobre a viabilidade da denúncia deve adotar a interpretação do texto constitucional como ponto de partida. A propósito, a Constituição da República não deixa margens para incompreensões quando assegura em seu artigo 5º, inciso LV, a garantia do contraditório e da ampla defesa aos “acusados em geral”.5 Ao utilizar esta expressão, o legislador constitucional atrelou o contraditório não só aos processos criminais, mas a qualquer procedimento de natureza acusatória, em oposição à supressão do direito de defesa vivenciado nos anos de chumbo.6 Ampliou-se, portanto, o conceito de acusação, com vistas a garantir maior proteção ao indivíduo.
Garantidos, então, ao sujeito a ampla defesa e o contraditório em qualquer procedimento de índole acusatória, não se justifica a ideia de exclusividade da acusação após o recebimento da denúncia. É dizer: sempre que existir alguém a suportar uma imputação (acusado), devem-se respeitar as regras que compõem o contraditório e a ampla defesa, como forma de emprestar legitimidade ética e jurídica aos atos processuais. 7
No contexto atual de combate à criminalidade organizada na forma dos megaprocessos,8 o respeito ao direito de defesa durante a fase de investigação9 adquire ainda maior relevância. Isto porque, nesse modelo agigantado de persecução penal, ocorre um deslocamento do eixo informativo do processo para a investigação preliminar,10 a qual se reveste de um caráter altamente aflitivo e invasivo, a partir da adoção dos “métodos ocultos de investigação” (PRADO, 2014, p. 59/62). A rigor, a própria natureza e estrutura organizacional das empresas, compostas por diversos setores operacionais, oferece terreno amplo e complexo para a atividade investigativa policial (MALAN, 2016, p. 219), o que se traduz, na prática, em uma crescente intromissão do poder penal na vida privada durante os atos de investigação.
Após os primeiros comentários, importa demonstrar como é composta a descrição típica da conduta dita criminosa. A teoria da consubstanciação, de acordo com a qual o acusado se defende dos fatos contidos na denúncia e não de sua classificação jurídica, constitui manifestação frequente na jurisprudência.11 Todavia, em geral, observa-se uma simples repetição da teoria, sem aprofundar as particularidades da reação defensiva e da descrição do conteúdo fático apresentado na inicial acusatória. A imputação, em essência, representa o juízo de atribuição (ônus do órgão acusador) que vincula o sujeito passivo (imputado) à prática do ato supostamente criminoso (FERNANDES, 2002, p. 102/103). Neste ensaio, interessa justamente explicitar como se estabelece a vinculação do sujeito ao ato criminoso por meio da descrição de um fato.
O conceito de fato ultrapassa a ciência do direito, possibilitando as mais diversas conotações. O conceito processual é nitidamente distinto da noção penalística (BADARÓ, 2019, p. 104), sendo tal diferenciação indispensável para delinear o conteúdo insculpido na peça acusatória e como este deve ser descrito, a fim de possibilitar o regular exercício do contraditório e da ampla defesa. A base fática sobre a qual se estrutura toda investigação e toda instrução processual opera ainda como limite ao arbítrio e à opressão estatal, pois delimita o alcance da sentença penal e, com isso, evita surpresas para quem se defende (MAIER, 1999, p. 568).
O fato na concepção do direito penal deriva da previsão da norma em abstrato, isto é, uma situação hipotética descrita em um tipo penal. Por outro lado, o fato processual penal é um acontecimento histórico concreto (BADARÓ, 2019, p. 105). Neste último, trata-se de um fato naturalístico que se diz penalmente relevante. Consiste no recorte, destacado da realidade, de um evento histórico atribuído ao acusado, e sobre o qual incidirá a apreciação judicial para comprovar sua efetiva ocorrência e sua relevância jurídico-penal.
Em síntese: se, para o direito penal importa o fato, enquanto exata descrição hipotética e abstrata da norma, para o processo penal, interessa o real e concreto acontecimento histórico, praticado pelo sujeito em todas as suas circunstâncias (POZZER, 2001, p. 69). Essa distinção, embora relevante, é ainda insuficiente para definir com clareza o conteúdo descritivo da inicial acusatória. Afinal, a denúncia narra um fato concreto (fato processual penal) e, ao fim, atribui a este acontecimento uma qualificação jurídica, conforme o disposto na norma em abstrato (fato penal).
O regular exercício do contraditório e da ampla defesa exige uma imputação12 determinada em todas as suas circunstâncias. Não se discute a dificuldade, inerente aos processos criminais, de se reconstruir fatos passados aos quais não se pode ter acesso de forma direta (TARANILLA, 2012, p. 46/47). Contudo, a restringir tal dificuldade, propõe-se uma definição concreta da narrativa acusatória contida na exordial, de modo que o conhecimento integral da imputação permita ao sujeito reagir de forma efetiva.13 Logo, o conteúdo descritivo da imputação deve corresponder ao elemento de vinculação entre o fato processual (evento histórico determinado) e o fato penal (norma penal em abstrato). Afinal, o fato narrado na denúncia só tem valor quando ligado à norma incriminadora (FERNANDES, 2002, p. 232). 14
A relevância do conteúdo descritivo da imputação torna-se ainda maior com a implementação do juiz de garantias. Isso porque, como se sabe, a competência do juiz de garantias cessa com o recebimento da denúncia (artigo 3º-C, caput da Lei nº. 13.964/2019), ficando os autos da investigação acautelados na secretaria do juízo (§3º). Com efeito, o juiz da instrução, preservando sua originalidade cognitiva, não terá acesso aos atos de investigação, mas tão somente ao enunciado fático descrito na inicial.
Até o momento vimos que os postulados do contraditório e da ampla defesa pressupõem a existência de uma acusação, ainda que esta não tenha se constituído formalmente por meio de uma denúncia, e que o conteúdo descritivo da imputação consiste no vínculo entre o fato naturalístico (processual) e o fato em abstrato previsto na norma (penal). Entretanto, se é certo que a descrição da conduta penalmente relevante deve ter como base as premissas fixadas, para que se tenha uma denúncia hígida, é necessário um determinado grau de “prova”15 que propicie o seu recebimento.
Nessa temática, algumas considerações teóricas são indispensáveis. De início, destaca-se que a “exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias”16 não significa que se exija do órgão acusador certeza quanto à relevância penal da conduta. Nem poderia ser diferente, já que o processo é o mecanismo apto a produzir conhecimento seguro17 a respeito do caso penal, comprovando ou não a veracidade das proposições representativas do fato (GOMES FILHO, 2005, p. 317). O devido processo legal-constitucional caracteriza-se, portanto, como um processo originalmente fundado na incerteza, que encontra validade formal no respeito ao contraditório e à ampla defesa, e que reclama a produção de certeza como meta, em harmonia com preceitos garantidores da dignidade da pessoa (PRADO, 2014, p. 17).
A propósito, pergunta-se: se o devido processo legal-constitucional tem a certeza (da prática de uma infração penal) como meta, qual o grau de certeza exigido para o recebimento de uma denúncia? Em outras palavras, qual nível de fundamentação e corroboração da hipótese acusatória autoriza o início formal do processo?
Visando a atender tais questionamentos, é preciso estabelecer um limite a partir do qual se aceita determinada premissa como provada. Isto significa atribuir um grau mínimo de confiança e de credibilidade ao elemento probatório trazido aos autos, essencial para considerar determinado fato provado. Esse limite, o standard de prova, porém, não deve ser o mesmo para todas as decisões durante a persecução penal e sua fixação exige que se atenda a determinadas valorações da política criminal (FERRER BELTRÁN, 2007, p. 2).
No Brasil, a ausência de previsão legislativa ou jurisprudencial18 semelhante leva a uma indefinição quanto ao grau de “prova” exigido para adotar determinadas medidas - por exemplo, o recebimento da denúncia –, o que, não raro, reflete-se em uma postura decisionista do julgador, típica dos projetos autoritários, desvinculados da delimitação do poder estatal. 19
Um argumento comum que contribui para este quadro de incerteza é o de que eventuais lacunas na denúncia serão supridas pela instrução processual.20 A fundamentação é equivocada, já que a prova produzida ao longo da instrução deve necessariamente ter como pressuposto o enunciado fático da denúncia. A falha na produção deste enunciado não será suprida pela instrução, pois, neste caso, a instrução perpetuará uma falha irreparável.21 Além da nítida possibilidade de violação do princípio da correlação entre acusação e sentença, posto que preencher as lacunas da imputação com a prova produzida em contraditório possibilita que a sentença vá além ou contrarie a descrição dos fatos apresentada na inicial.
O processo penal brasileiro adota um sistema escalonado (LOPES JR, 2016, p. 112), o que se reflete no status libertatis do acusado. Cada etapa da marcha processual proporciona um juízo de valor a respeito do cometimento ou não do crime investigado. A lógica reside em exigir maior grau de corroboração (standard mais elevado) das hipóteses fáticas com consequências mais gravosas para o indivíduo (MATIDA; VIEIRA, 2019, p. 11). Assim, o nível de certeza para cada medida adotada no curso do processo se modifica, sendo certo que a sentença penal condenatória exige o nível máximo de certeza, enquanto o recebimento da denúncia demanda um nível mais baixo, em relação à ocorrência do crime e sua autoria. 22
A fixação de um standard de prova, como se viu, deriva da política criminal.23 Ainda que não haja a definição normativa de critérios de suficiência probatória, é inequívoca a escolha constitucional pela preservação do estado de inocência, o que se reflete na distribuição da carga da prova, verificada ao longo da instrução e não apenas no julgamento de mérito (LUCCHESI, 2019, p. 179). No recebimento da denúncia, portanto, assim como em toda a marcha processual, o standard probatório deve ter como base a presunção de inocência, sendo a dúvida quanto à legitimidade da persecução criminal resolvida por meio do único critério objetivo de solução da incerteza presente no processo penal brasileiro, qual seja: o in dubio pro reo.24
Este é um importante critério jurídico de decisão que dá ao magistrado a possibilidade de decidir mesmo diante de uma lacuna cognitiva (GUZMÁN, 2020, p. 56/57), mas que não se confunde com o standard de prova, já que o in dubio pro reo não estabelece quando pode ser superado esse estado de dúvida (VASCONCELLOS, 2020, p. 7). Embora a doutrina tenha se dedicado mais recentemente a debater a fixação de um standard de prova adequado à condenação, neste ensaio, interessa refletir sobre o nível de corroboração suficiente para o recebimento da denúncia.
A decisão que dá início formal ao processo reclama, por imposição lógica e constitucional, sua devida motivação.25 Não se trata de mero despacho, mas sim de uma mudança no status processual do acusado. A rigor, com a força hipertrofiada da investigação preliminar, promove-se muitas vezes uma verdadeira disfuncionalidade no processo penal, fazendo o próprio resultado do julgamento se diluir frente ao impacto estigmatizante causado pelos primeiros passos da ação penal (ZILLI, 2016, p. 148/149). A motivação consiste, na verdade, no mais significativo instrumento jurídico de racionalização da função judicial, operando não como uma exigência técnica da decisão, mas, sobretudo, como fundamento de legitimidade da atuação estatal (GASCÓN ABELLÁN, 2010, p. 170/171).
O objetivo central da fixação de standards de prova ao longo do processo reside justamente na possibilidade de exercer um controle intersubjetivo26 dessas decisões, de modo a afastar o subjetivismo judicial e aumentar a qualidade epistemológica das decisões não terminativas. O recebimento da denúncia constitui verdadeiro ato decisório, com graves repercussões para esfera pessoal. Logo, como forma de garantir coerência e legitimidade a esse ato, é importante uma releitura do conceito de justa causa,27 estabelecendo-se critérios objetivos a partir dos quais é possível constatar a “prova da materialidade e os indícios suficientes de autoria”. 28
No segundo item, o objetivo é aprofundar a análise da questão a partir do estudo do crime de lavagem de capitais. A natureza complexa deste tipo penal e as altas penas cominadas demandam rigor técnico na descrição da conduta e na demonstração da justa causa, a fim de possibilitar o regular exercício do direito de defesa.29 A relevância do direito de defesa, nesse contexto, eleva-o à condição de garantia ao redor da qual todo o processo gravita (FERNANDES, 2000, p. 254), superando a concepção de defesa como mero direito subjetivo do acusado.
Com base no exposto até aqui, no crime de lavagem, não basta que o acusador descreva a conduta praticada pelo agente, mas também é necessário que a peça inaugural demonstre, com menor grau de corroboração, como a conduta foi capaz de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.30 De igual forma, não é suficiente que a acusação repita os elementos normativos do tipo, sem especificar como estes se manifestaram no plano da realidade, pois, neste caso, haveria a descrição do fato penal, sem individualizar a atuação dos sujeitos, descrição insuficiente para oportunizar o legítimo exercício do direito de defesa e a consequente realização da jurisdição. 31
No cenário internacional, o combate à lavagem de dinheiro ganhou força a partir da década de 80, com o crescimento e a sofisticação do narcotráfico. Percebeu-se, na época, a relevância de enfrentar o poderio dessas organizações por meio da identificação e do bloqueio de seus fluxos financeiros. A partir de então, foram aprovadas diversas convenções sobre o tema – Convenção de Viena (1988), Convenção de Palermo (2000) e Convenção de Mérida (2003), além da criação do Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo (1989) –, com o fim de impedir que esses grupos reciclassem o dinheiro de origem criminosa.
No ordenamento brasileiro, a Lei 12.683/2012, ao alterar diversos dispositivos da Lei 9.613/98, representou importante marco no combate à lavagem de dinheiro. A principal mudança foi a extinção do rol de crimes antecedentes, o qual era taxativo (legislação de segunda geração). Hoje, no Brasil, qualquer infração penal pode ser considerada antecedente para fins de lavagem32 (legislação de terceira geração).33 Para tanto, basta que a peça acusatória aponte indícios de uma infração penal antecedente que gerou recursos, sendo dispensável a demonstração, de antes da reforma legislativa,34 de que tal infração constituiu alguma das puníveis no antigo rol de crimes antecedentes.
O crime de lavagem de capitais pressupõe a prática de uma infração penal antecedente, da qual se extraem bens, direitos ou valores,35 os quais serão introduzidos na economia formal, como forma de ocultar/dissimular sua origem ilícita. Afinal, se o dinheiro não é sujo, não se cogita a possibilidade de lavá-lo. O injusto possui, então, uma acessoriedade material (PITOMBO, 2003, p. 109/110) em relação a um crime que já ocorreu e já produziu seus efeitos – obrigatoriamente financeiros. Nesse ponto, surge o primeiro elemento constitutivo do crime de lavagem de capitais: o delito antecedente.
Embora não seja necessário um processo autônomo referente ao crime antecedente,36 será indispensável a certeza de sua ocorrência e de que tal conduta rendeu produto financeiro, capaz de ser ocultado, dissimulado e, posteriormente, reinserido na economia, dando aparência de licitude. Assim, os elementos concretos que caracterizam a infração antecedente devem ser descritos com todas as suas circunstâncias (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 324).
O segundo componente essencial do crime de lavagem de capitais traduz-se no núcleo da ação típica (na modalidade do art. 1º, caput da Lei nº. 9.613/98)37, composto pelos verbos ocultar e dissimular. Aqui, vale recordar que uma imputação hígida demanda mais do que a mera repetição dos termos da lei (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 323), pois estes se referem ao fato penal. É crucial que a acusação demonstre como tais ações típicas se manifestaram no plano da realidade (fato processual penal), permitindo a vinculação do fato processual ao fato penal. Delimita-se, desta forma, o enunciado fático (objeto de prova) que será refutado ao longo do processo pela defesa técnica.
O terceiro elemento que compõe a estrutura básica do delito em estudo consiste na relação de causalidade entre o crime antecedente e as ações de ocultação e de dissimulação. Evidente que a condenação pelo ilícito demanda que o conhecimento produzido dialeticamente durante o processo comprove não só a existência de uma infração penal antecedente, como também o nexo de causalidade entre os valores auferidos ilicitamente e as ações de ocultação/dissimulação. Na prática, definir esta relação não é tarefa fácil, já que, em regra, é difícil diferenciar precisamente os valores ilícitos dos valores lícitos.38 Todavia, a dificuldade no terreno da prova, marcante nos delitos econômicos, recomenda, com ainda maior razão, a preservação de um modelo ideal de processo concebido como entidade epistêmica (PRADO, 2015, Introdução), apto a sedimentar as balizas do sistema acusatório, elevando os níveis de conhecimento produzido por meio do contraditório.
O último componente da conduta típica é o dolo direcionado à ocultação e dissimulação dos valores de origem criminosa. O delito é necessariamente doloso, não havendo hipótese de responsabilização por culpa.39 A rigor, deve haver por parte do sujeito ativo a consciência da origem ilícita dos valores,40 além da intenção voltada à prática das ações contidas no núcleo do tipo.
Com relação ao exercício da ação penal, o artigo 2º, §1º da Lei de Lavagem41 estabelece o conteúdo específico da justa causa para este delito. A primeira parte do dispositivo dispõe serem necessários indícios da infração antecedente que gerou recursos para legitimar o exercício da ação pelo órgão ministerial. O termo “indícios” não se refere à prova indireta. Neste caso, “indícios” representa uma prova mais tênue (BADARÓ; BOTTINI 2016, p. 317).42 Significa, na linha preconizada por este artigo, que se admite um rebaixamento do standard de prova para oferecimento da inicial acusatória, o que é natural, já que a certeza (em tese) só pode ser alcançada sob o crivo do contraditório judicial. Assim, justifica-se, em um primeiro momento, um mero juízo de probabilidade e não de certeza no que se refere ao delito antecedente (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 318/319).
Remarque-se que os “indícios suficientes da existência da infração penal antecedente” relacionam-se tão somente com o nível de corroboração da tese acusatória para o oferecimento de denúncia, “devendo ser outro o comportamento em relação a eventual juízo condenatório” (Exposição de Motivos da Lei de Lavagem, item 61). O standard, a despeito de certa vagueza semântica,43 estabelece a justa causa que possibilita o início de um processo de natureza criminal.
A segunda parte do dispositivo, por sua vez, indica ser desnecessária a constatação da autoria do delito antecedente para a denúncia por crime de lavagem de capitais. Logo, não é preciso aferir a culpabilidade quanto à infração antecedente – no que tange ao delito acessório, o de lavagem, o elemento subjetivo, todavia, permanece indispensável.
A justa causa para oferecimento de denúncia por crime de lavagem exige, pois, “indícios suficientes” da prática da lavagem e do crime antecedente que gerou recursos, configurando uma “justa causa duplicada”.44 Deste modo, é necessária a demonstração não apenas da forma de execução do branqueamento de capitais (com a caracterização de sua estrutura típica), mas também do lastro probatório mínimo a garantir a existência de bens, direitos e valores provenientes da infração penal antecedente.
Melhor entendimento, entretanto, sustenta que não há motivo justo para sujeitar um indivíduo às mazelas de um processo criminal45 sem que haja certeza ao menos da existência de um fato contrário à ordem jurídica.46 Se, após toda a investigação direcionada a colher elementos informativos aptos a corroborar a hipótese acusatória, não se tem certeza nem mesmo de que houve uma ação criminosa anterior que gerou valor econômico a ser lavado, não se atinge o standard mínimo a dar prosseguimento à acusação,47 o que só revela a urgência na definição de um grau de “prova” adequado, tornando a submissão do sujeito ao processo criminal legítima e absolutamente necessária.
Não se diga, por último, que em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública haveria um dever indeclinável do órgão ministerial em oferecer denúncia, não obstante a fragilidade dos elementos informativos colhidos pela investigação. É evidente que não há uma imposição irracional no exercício da ação penal, sendo esta condicionada a uma análise criteriosa dos elementos informativos produzidos pela investigação.48A obrigação de agir da acusação pública respalda-se em um processo de conhecimento e de reflexão a partir de uma notícia de crime, até porque pode culminar em pedido de arquivamento ou de absolvição (FERRAJOILI, 2010, p. 457) caso se considere o fato penalmente irrelevante ou faltem indícios de autoria ou de materialidade da infração.
No tocante à descrição típica da conduta, “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”,49 reclama uma narrativa concreta dos meios utilizados para o branqueamento dos valores. De nada adianta a acusação aferir a justa causa para o exercício da ação penal e não retratar de forma minuciosa os elementos que compõe a conduta delituosa. Na verdade, a exposição da conduta, com todos os seus elementos essenciais e circunstanciais,50 condiciona o próprio âmbito temático da decisão judicial, pois o enunciado fático delimita o objeto que, submetido ao contraditório judicial,51 empresta legitimidade jurídica à sentença penal.
Pela natureza acessória do crime de lavagem, é inequívoco o dever do Ministério Público de narrar a infração penal antecedente, sendo certo que a superveniência de sentença condenatória não poderá suprir as omissões fáticas da denúncia.52 A descrição de como se deu o delito antecedente é ainda mais relevante, tendo em vista a regra de independência do processo e julgamento nos crimes de lavagem (artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/98). Isto porque o Estado-juiz do processo por lavagem pode precisar conhecer de questões incidentais, relativas à infração antecedente, a fim de formar seu convencimento, tais como: a data em que ela ocorreu53 e se, de fato, foram gerados recursos a serem lavados (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 324).
Há, desse modo, uma dependência necessária entre a prática de um delito prévio e o crime de lavagem de dinheiro.54 Malgrado o processo por lavagem possa ser instaurado de forma autônoma, constitui ônus da acusação demonstrar o elo de causalidade entre os dois ilícitos, já que tal relação “não pode ser presumida, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência” (BORGES, 2021, p. 171).
A imputação no crime de lavagem de capitais, além de evidenciar em concreto como ocorreram os atos de ocultação/dissimulação, demanda a descrição do delito antecedente e da relação de causalidade entre o produto gerado por este e os atos posteriores que configurariam o núcleo da conduta criminosa. Embora a exigência da comprovação empírica de tais aspectos seja evidentemente menor do que em uma sentença condenatória, sem essa definição, não é possível vincular o acontecimento histórico (fato processual) à norma penal prevista na Lei de Lavagem (fato penal). Tal vinculação, entretanto, carece de uma exposição ainda mais detalhada.
No que se refere ao produto da infração penal antecedente, indaga-se: a imputação deve necessariamente individualizar este produto? Para responder ao questionamento, é indispensável uma avaliação sistemática da Lei nº. 9.613/98. Neste ponto, a legislação assegura que os bens passíveis de lavagem são os provenientes, “direta ou indiretamente, de infração penal” (artigo 1º, caput).55 Somente o produto ou proveito do crime é suscetível de ser lavado (BADARÓ; BOTTINI, p. 110). Não há sentido falar em lavagem se não ficar claro quais os bens, direitos e valores provenientes de uma infração antecedente foram posteriormente ocultados/dissimulados e reinseridos na economia formal.
Seguindo a análise do texto legal, veja-se que a condenação penal definitiva pelo crime de lavagem produz consequências secundárias, que poderão repercutir nas esferas civil e administrativa. Ao tratar dos efeitos desta condenação, o artigo 7º, inciso I, prevê a perda, em favor do Erário, “de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei”.56 Diante de tal previsão, fica evidente a necessidade de se explicitar o produto da lavagem, como meio de delimitar a incidência da norma. Afinal, como proceder com o perdimento de valores, se não se identifica quais valores seriam esses?
A considerar que a existência de parte maculada do patrimônio não contamina sua integralidade (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 114), resta clara a imposição lógica de se indicar o produto do crime antecedente. Do contrário, o artigo 7º, inciso I, teria uma aplicação muito ampla e indiscriminada, inviabilizando o exercício da defesa. A denúncia, como se viu, delimita todo o conteúdo que será submetido ao contraditório judicial e, por isso, deve conter a individualização do produto da infração antecedente, sob pena de rejeição por inépcia – artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal.
A defesa exercerá seu múnus constitucional a partir dos estreitos limites estabelecidos pelo conteúdo da imputação contido na inicial. Se essa imputação não aponta, em um standard mínimo, o produto da infração penal antecedente, torna-se inviável não só a fixação da necessária relação de causalidade dos bens, direitos e valores lavados com o delito antecedente, mas também não se demarca o possível efeito civil da condenação por lavagem, de forma que o artigo 7º, inciso I, da Lei nº. 9.613/98 perde a eficácia.
O último componente a ser descrito na inicial consiste no dolo direcionado a ocultar ou dissimular os valores ilícitos.57 Antes da edição da Lei nº. 12.683/2012, o rol taxativo de crimes antecedentes repercutia no aspecto subjetivo do tipo, exigindo do órgão ministerial indícios da prática de um dos crimes pressupostos e ainda da consciência do autor desta proveniência ilícita (TIGRE MAIA, 1999, p. 86). Hoje, qualquer infração penal pode ser considerada antecedente da prática de lavagem,58 o que não exclui a demonstração do dolo nas ações destinadas a ocultar/dissimular a origem espúria dos bens, direitos e valores. 59
O elemento subjetivo deve indicar a finalidade específica de dar aparência lícita aos valores oriundos da infração penal antecedente. Nestes termos, a simples intenção de esconder tais valores configuraria fato atípico,60 pois trata-se de mero exaurimento da conduta anterior, isto é, um pós-fato impunível. A despeito de não ser obrigatória, para o recebimento da denúncia ou para a condenação, a completa realização das três fases da lavagem,61 com a consequente reintrodução dos valores na economia formal, faz-se necessária, na imputação ministerial, a descrição de um estratagema específico capaz de conformar o acontecimento histórico à norma penal. 62
Em síntese, uma imputação hígida por lavagem de capitais, para possibilitar o seu regular recebimento pelo Juízo competente, deve descrever: i) a infração penal antecedente que gerou recursos; ii) a relação de causalidade desta com as ações de ocultação/dissimulação; iii) a individualização do produto da infração antecedente e iv) o elemento subjetivo do tipo (dolo), com a exposição em concreto dos atos de ocultação e dissimulação dos bens, direitos e valores. Havendo esta descrição, em um standard adequado de corroboração da hipótese acusatória, será necessária e legítima a submissão do indivíduo, protegido pela presunção de inocência, a um processo criminal, com a incidência do contraditório judicial, como mecanismo apto a comprovar empiricamente sua culpabilidade.
Diante do exposto neste artigo, é preciso retomar os problemas que orientaram o seu desenvolvimento: 1) Qual é a importância do enunciado fático contido na inicial? 2) Como este enunciado deve ser descrito, a fim de possibilitar o exercício do direito de defesa? 3) Qual é a relevância da fixação de standards de prova ao longo da persecução penal? 4) Como garantir maior racionalidade da decisão de recebimento da denúncia?
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