Resumo: Policiais realizam entrevistas com vítimas, testemunhas, e suspeitos para obter informações, sendo a acurácia e a quantidade destas informações diretamente relacionadas às técnicas de entrevista utilizadas. Uma entrevista com técnicas inadequadas tende a gerar poucas informações e potencialmente imprecisas, prejudicando o processo investigativo e o sistema de justiça. Já uma entrevista com técnicas adequadas é capaz de resultar em um maior número de informações confiáveis, preservando os direitos dos entrevistados. Neste artigo de revisão narrativa são apresentadas técnicas de entrevista investigativa e sua importância para a obtenção de informações confiáveis em oitivas e interrogatórios. Em seguida, apresenta-se um exemplo de como a entrevista investigativa foi implementada no Reino Unido, demonstrando como a aproximação entre pesquisadores e policiais pode auxiliar no processo de implementação e avaliação de treinamento.
Palavras-chave: Entrevista, Memória, Treinamento, Policial.
Abstract: Police officers interview victims, witnesses and suspects to obtain information, and the quality and quantity of this information are directly related to the techniques used. An interview with inappropriate techniques tends to generate little accurate information, impairing the investigative process and the justice system. An interview with appropriate techniques, however, can result in more reliable information, preserving the rights of interviewees. In this paper we present investigative interview techniques and their importance for obtaining reliable information from witnesses, victims, and suspects. Then, we present the example of how this change was made in the United Kingdom, demonstrating how the dialogue between researchers and law enforcement can assist in the process of training implementation and evaluation.
Keywords: Interview, Memory, Training, Police.
Medidas cautelares
Oitivas e interrogatórios baseados em evidências: considerações sobre entrevista investigativa aplicado na investigação criminal
Evidence based Interview and Interrogation: Considerations from Investigative Interviewing applied into criminal investigation
Recepção: 16 Dezembro 2021
Revised document received: 20 Dezembro Janeiro Janeiro Janeiro Fevereiro Fevereiro Março Março 2021
Aprovação: 29 Março 2022
A memória humana é uma importante fonte de informação para a investigação e julgamento de um crime, em especial quando tratamos de entrevistas realizadas em oitivas de vítimas e testemunhas e interrogatórios de suspeitos. Policiais possuem um papel importante, pois são os primeiros a terem contato com pessoas que possam relatar o ocorrido. Por meio de técnicas de entrevista adequadas é possível obter um relato detalhado que forneça informações confiáveis sobre o aconteceu, quem foram os evolvidos, suas motivações, entre outros. Entretanto, a memória de um crime não é estática, sendo sujeita ao esquecimento e sugestionabilidade, e técnicas de entrevista inadequada tendem a resultar em relatos limitados ou, até mesmo, falsos (ex: falsas memórias, falsas confissões; MEISSNER; KELLY; WOESTEHOFF, 2015; OXBURGH; MYKLEBUST; GRANT, 2010).
No Brasil atualmente inexistem diretrizes específicas para a realização de entrevistas ou capacitações regulares nas técnicas de entrevista investigativa para a Polícia Civil, responsável pela investigação criminal. Ainda que policiais considerem importante utilizar técnicas recomendadas pela literatura para estimular o relato do entrevistado (BALLARDIN; STEIN; MILNE, 2013), o treinamento destas técnicas não é unânime nas academias de polícia brasileiras. Um levantamento feito com policiais civis e militares das cinco regiões do Brasil verificou a carência de treinamento adequado, levando estes profissionais a aprender com a própria experiência, ou copiar exemplos de colegas, que também não receberam treinamento em técnicas com embasamento científico (STEIN; ÁVILA, 2015). Devido à falta de capacitação, pesquisas recentes tem apontados que técnicas de entrevista inadequadas são observadas em todas as regiões do Brasil, prejudicando a investigação policial e o sistema de justiça como um todo (ABREU, 2019; MOSCATELLI, 2020; STEIN; ÁVILA, 2015).
Recentemente o cenário de entrevista policial começou a mudar a partir de esforços específicos sendo realizados por academias de polícia, como é o caso da Academia de Polícia de Santa Catarina, que tem implementado a Entrevista Investigativa por meio de treinamentos (PACHECO; HOFFMANN, 2021). Entretanto, devido à escassez de material em lingua portuguesa acerca de quais técnicas de entrevista possuem embasamento científico, e como estas podem ser treinadas, este artigo versa sobre os benefícios de capacitar e supervisionar policiais em entrevistas investigativas. Por meio de uma revisão narrativa de estudos teóricos e empíricos (advindos de experimentos e análises de casos reais), inicialmente serão abordadas as diferenças entre técnicas de entrevista inadequadas e adequadas, para então tratar da necessidade de capacitação em técnicas de entrevista. Ao final, é apresentado o caso do Reino Unido, pioneiro na mudança dessas práticas há quase três décadas. Ao longo do artigo é proposto o diálogo entre pesquisa e prática como uma forma de contribuir para a obtenção de informações fidedignas e evitando erros de justiça a partir de condenações injustas de pessoas inocentes ou resultados inconclusivos de investigações criminais.
Entrevistas com vítimas, testemunhas, e suspeitos têm estado no cerne da investigação criminal há décadas, todavia, têm sido alvo de críticas e seus resultados muitas vezes são vistos como pouco confiáveis (GRIFFITHS; MILNE, 2006). A fonte de informação de uma entrevista é o entrevistado, seja ele uma criança vítima de violência ou um adulto suspeito de cometer um ato ilícito, pois é ele quem tem memória sobre os fatos ocorridos (MILNE; SHAW; BULL, 2007). Assim, como o nome sugere, a entrevista investigativa visa investigar/explorar informações que o (a) entrevistador(a) não sabe, pois não estava lá no momento do crime, portanto, o objetivo do(a) entrevistador(a) é utilizar técnicas que favoreçam a obtenção do relato do entrevistado (GRIFFITHS; MILNE, 2006, 2018).
A Entrevista é um processo de comunicação, em que o (a) entrevistador(a) busca obter informações da pessoa entrevistada a partir da memória para eventos vividos ou presenciados, nomeada memória episódica. A memória episódica pode ser rica em informações e possibilita recordar detalhadamente um evento, mesmo que sucedido há tempo (ex: a ida em um parque de diversões quando criança). Entretanto, a memória não é como um registro filmado e é sujeita ao esquecimento devido ao decorrer do tempo, além de passível de ser alterada devido à inserção de informações, por exemplo, ao conversar com outras pessoas sobre o evento em questão (LOFTUS, 2005). O relato de um entrevistado não é um fim em si mesmo, mas um produto das técnicas utilizadas, de forma que métodos inadequados resultam em um menor número de informações confiáveis. Contudo, há um consenso acerca de técnicas adequadas a serem utilizadas antes, durante e após a entrevista (GRIFFITHS; MILNE, 2006, 2018; LAMB et al., 2007b; MILNE, R; SHAW; BULL, 2007; PAULO; ALBUQUERQUE; BULL, 2014). Nesta seção apresentaremos brevemente algumas das principais técnicas que permitam compreender a estrutura de uma entrevista investigativa.
As crenças e vieses do entrevistador podem prejudicar a entrevista. As informações que o(a) entrevistador(a) busca em uma entrevista derivam do que ele acredita que aconteceu e quem foram os envolvidos, portanto, uma entrevista não inicia apenas quando o(a) entrevistado(a)começa a falar (FAHSING, 2016). Em um caso de alegação de abuso sexual, por exemplo, se o(a) entrevistador(a) acredita que o abuso não ocorreu, pode examinar apenas relatos que indiquem que a vítima estava mentindo (ex: “se isto aconteceu porque você não relatou para alguém antes?”). Da mesma forma, se o(a) entrevistador(a) acredita que o abuso ocorreu e sabe quem são os envolvidos (ex: o abuso foi cometido pelo pai da criança), pode deixar de explorar outras hipóteses (ex: o abuso não ocorreu, ou foi cometido por outra pessoa).
Outro exemplo do impacto da mentalidade do(a) entrevistador(a) é observado em entrevistas com suspeitos, na qual se adota uma postura acusatória e coercitiva, consubstanciando-se em práticas conhecidas como interrogatórios (KASSIN et al., 2010; MEISSNER et al., 2014). Comumente o objetivo do interrogatório é obter uma confissão, e consequentemente perde-se a oportunidade de investigar/explorar outras informações que o suspeito traz (KASSIN et al., 2010; MOSCATELLI, 2020). Desse modo, um interrogatório cujo foco é obter uma confissão tende a resultar em poucas informações confiáveis e, até mesmo, a levar inocentes a confessarem um crime que não cometeram, devido à coerção psicológica causada pelo interrogador.
Se ao invés de buscar uma confissão o(a) entrevistador(a) explora informações trazidas pelo entrevistado, tende a obter um maior número de informações relevantes para a investigação (MEISSNER et al., 2014; MEISSNER; KELLY; WOESTEHOFF, 2015). Por exemplo, caso a pessoa suspeita negue o crime dizendo que estava jantando com amigos, é possível explorar o relato (ex: pedir para que fale sobre percurso desde sair de casa até chegar ao local), e posteriormente corroborar com outras informações (ex: câmera do estabelecimento, câmeras de semáforo do trajeto entre a casa e o estabelecimento). Ao explorar o relato da pessoa suspeita, possibilita-se corroborar ou negar hipóteses alternativas, aumentando a credibilidade da hipótese remanescente (FAHSING, 2016).
Dentre as recomendações fundamentais da área de técnicas de entrevista está a gravação da entrevista em áudio e vídeo, pois esta é a única forma de manter um registro fiel das informações e da forma como foram obtidas (LASSITER et al., 2002; LIDEN; GRANS; JUSLIN, 2018; WESTERA; KEBBELL; MILNE, 2011). Se o(a) entrevistador(a) realiza registros (ex: boletim de ocorrência) no decorrer da entrevista, sua atenção fica dividida entre as tarefas de escrever e de escutar, comprometendo o processo de comunicação, bem como sua capacidade para pensar de forma estratégica e técnica em como conduzir a entrevista. Por outro lado, se o registro ocorre após o término da entrevista, sem o auxílio de gravação, está sujeito a falhas da própria memória do(a) entrevistador(a), uma vez que é praticamente impossível alguém recordar com exatidão todas as palavras ditas. O único tipo de registro que possibilita preservar o que foi perguntado e o que foi relatado é o arquivo original em áudio e vídeo (WESTERA; KEBBELL; MILNE, 2011).
Sendo a entrevista um processo de comunicação, é importante que seja realizado em local adequado, preservando a privacidade do entrevistado, e favorecendo seu processo de recordação. Se o ambiente possui distrações (ex: telefone) ou pouca privacidade (entrada e saída de outras pessoas), pode prejudicar o relato do entrevistado. Assim, recomenda-se que a entrevista seja realizada em um ambiente privativo e com poucos estímulos que possam distrair a pessoa entrevistada (VESSEL, 1998). Isto também inclui o caso de crianças, no qual não se recomenda a presença de brinquedos, pois podem distrair e até mesmo sugestionar o relato da pessoa entrevistada (POOLE; BRUCK; PIPE, 2011).
O sucesso de uma entrevista investigativa vai depender em grande parte do clima estabelecido entre a pessoa entrevistada e o policial. Desde o primeiro minuto da entrevista é fundamental o estabelecimento de um clima favorável para que a pessoa entrevistada possa relatar as informações que possui e empreender esforços para buscar lembrar o maior número de informações acuradas (ABBE; BRANDON, 2013; WALSH; BULL, 2012).
Em um caso de abuso sexual, por exemplo, a vítima necessita relatar acerca de um momento traumático que vivenciou para o(a) entrevistador(a), para um entrevistador o qual acabou de conhecer. A pessoa suspeita do crime, ao ser solicitada a dar seu relato, pode acreditar que o policial já acredita que é culpada e qualquer informação que forneça irá apenas aumentar as chances de que venha a ser condenado. Assim, desde o início da entrevista é preciso buscar o estabelecer o rapport, processo pelo qual o(a) entrevistador(a) busca criar e manter uma aliança de trabalho e respeito com o entrevistado. O rapport é composto por três elementos: atenção mútua (demonstrar ao(a) entrevistado(a)que há um interesse em ouvi-lo), positividade (diminuir a tensão do ambiente e mostrar-se como aliado do entrevistado) e coordenação (demonstrar um perfil empático para o entrevistado, indicando que é capaz de entender o que ele tem a dizer) (ALISON et al., 2013; VALLANO; SCHREIBER COMPO, 2015). É por meio do rapport que o(a) entrevistador(a) busca demonstrar à pessoa entrevistada que é um profissional que buscará escutar, compreender e respeitar o que tem a dizer. O rapport possibilita o engajamento do entrevistado, diminuindo sua ansiedade e levando a pessoa entrevistada, seja ela testemunha ou suspeita a trazer mais esclarecimentos (WALSH; BULL, 2012). Desse modo, o rapport tem sido apontado como o “fio condutor” da entrevista, um dos componentes mais importantes para a obtenção de informações fidedignas (KIECKHAEFER; VALLANO; SCHREIBER COMPO, 2014; VALLANO; SCHREIBER COMPO, 2015).
Após estabelecer e manter o rapport inicia-se o processo de obtenção do relato acerca do fato de interesse. As informações mais acuradas que alguém pode recordar acerca do que aconteceu são as relatadas de forma ininterrupta em suas próprias palavras, sendo este processo denominado de relato livre (e.g., solicitar que o entrevistado descreva o que recorda sobre o evento, com a maior quantidade de detalhes possível). Ao possibilitar o relato livre, o(a) entrevistador(a) diminui suas interferências durante a entrevista, resultando em maior quantidade e qualidade das informações obtidas (MILNE, R; SHAW; BULL, 2007). Assim, é preciso realizar intervenções de encorajamento para que a pessoa entrevistada siga relatando, estendendo ao máximo o relato livre de interrupções ou perguntas, por exemplo após uma pausa pedir detalhes adicionais acerca de algo já relatado (ex: “o que mais você recorda sobre este homem que você descreveu?”). Evitar interferências e interrupções no relato da pessoa entrevistada é importante para favorecer o processo de comunicação e a obtenção de informações fidedignas.
Após estimular o relato livre, é possível que algumas informações relevantes para o caso ainda não tenham sido obtidas e o(a) entrevistador(a) necessite realizar perguntas. Entretanto, há diferentes tipos de perguntas que podem alterar a quantidade e a qualidade das informações obtidas. Por exemplo, após a vítima relatar que o abusador “passou a mão na minha perna”, o(a) entrevistador(a) pode realizar uma pergunta aberta (ex: “Você falou que ele passou a mão na sua perna, fale mais sobre isto”) e caso não tenha a resposta obtida, pode realizar uma pergunta específica (ex: como ele passou a mão em sua perna?). O(a) entrevistador(a) deve priorizar perguntas abertas, pois estas resultam em informações mais precisas e detalhadas (GRIFFITHS; MILNE, 2006; LAMB et al., 2007a; OXBURGH; MYKLEBUST; GRANT, 2010). Perguntas mais fechadas (e.g., “Quantas vezes ele passou a mão em sua perna?”) levam a uma menor quantidade de informações e podem ser utilizadas apenas se o relato livre, perguntas abertas e específicas não resultaram em informações cruciais para a entrevista (MYKLEBUST; BJØRKLUND, 2006).
Perguntas sugestivas (ex: “ele foi agressivo quando tocou em sua perna?”) nunca devem ser utilizadas, pois sugerem uma informação não relatada à pessoa entrevistada e podem induzir a equívocos ou mesmo a relatos falsos (CECI; BRUCK, 1995; ROEBERS; SCHNEIDER, 2000). Frente a uma pergunta sugestiva, a pessoa entrevistada pode concordar ou negar informações, podendo resultar em um relato falso sobre o ocorrido (LAMB et al., 2007a; MACDONALD; SNOOK; MILNE, 2017; POWELL; FISHER; WRIGHT, 2005). Por exemplo, se o(a) entrevistador(a) pergunta “ele tinha uma tatuagem no pescoço?”, a testemunha pode apenas concordar com a informação (ex: “acho que sim”) e vir posteriormente a alterar sua memória para o evento (ex: passar a recordar que o criminoso tinha uma tatuagem, quando na verdade não a possuía). Assim, quanto menor a influência das perguntas na obtenção do relato maior a quantidade e a fidedignidade das respostas obtidas.
Depois de esgotado a etapa de ouvir o relato livre seguido de perguntas de esclarecimento, segue-se para a etapa de encerramento da entrevista. Para manter o processo de comunicação adequado, a entrevista não pode ser finalizada de forma abrupta. Isto significa agradecer a pessoa entrevistada pelo seu tempo, seu esforço e pela disponibilidade em relatar informações, além de manter em aberto um canal de comunicação, caso a pessoa entrevistada queira relatar mais informações posteriormente. Ao final da entrevista, a gravação permite que seja realizada a avaliação da entrevista, na qual pode verificar avaliar quais as informações obtidas como estas se relacionam com as hipóteses para o ocorrido (FAHSING, 2016). Além disto, o(a) entrevistador(a) juntamente com outros profissionais podem avaliar as técnicas utilizadas na entrevista, visando o aperfeiçoamento da prática (GRIFFITHS; MILNE, 2006).
Entrevistas com procedimentos inadequados são contraprodutivas, uma vez que as informações obtidas por meio de métodos indutivos podem ser invalidadas e, muitas vezes, levar inocentes a serem condenados. Neste sentido, técnicas de entrevista são uma ferramenta importante para o(a) entrevistador(a), à medida em que são baseadas em evidências científicas testadas tanto em pesquisas mais realizadas em experimentos de laboratório quanto em estudos de casos reais. Além de entender quais as melhores práticas de entrevista, pesquisadores têm investigado quais as formas mais efetivas de transmitir estes conhecimentos para a prática de entrevistadores.
Para desenvolver um programa de capacitação e supervisão é importante estabelecer quais as técnicas que se espera de um entrevistador (CLARKE; MILNE; BULL, 2011; HILL; MOSTON, 2011; WALSH; KING; GRIFFITHS, 2017). Entretanto, mais do que intervenções pontuais, é necessária uma mudança estrutural visando a capacitação de entrevistadores investigativos em níveis regionais e nacionais, como é o caso de países como Reino Unido, Austrália e Noruega (FAHSING; RACHLEW, 2009; GRIFFITHS; MILNE, 2006; HILL; MOSTON, 2011). Na próxima seção será apresentado o caso do Reino Unido, pioneiro em implementar estas mudanças para todos os policiais que realizam entrevistas. Ao final serão apresentadas algumas considerações para a implementação de treinamentos em técnicas de entrevista do Brasil.
Uma mudança estrutural é não apenas necessária, mas possível, visto que já tem sido implementada com sucesso em outros países há cerca de 40 anos (GRIFFITHS; MILNE, 2006) (GRIFFITHS; MILNE, 2006; MILNE; SHAW; BULL, 2007). A seguir será apresentada mais detalhadamente como a mudança na capacitação de entrevistas investigativas é possível, a partir do exemplo do Reino Unido, pioneiro na implementação de treinamentos regulares em entrevistas investigativas.
A realidade atual do Brasil se assemelha ao cenário do Reino Unido até o início dos anos 1980, quando não havia treinamento formal para entrevistas investigativas. Policiais desenvolviam sus práticas com base na tentativa e erro ou baseando-se na conduta de colegas mais experientes, que também não possuíam treinamento pautado em técnicas. Neste cenário, bons interrogadores eram aqueles capazes de “extrair confissões” de um suspeito, o que resultou em diversos problemas e erros de justiça, em especial em função de falsas confissões (GRIFFITHS; MILNE, 2006). Estas práticas de interrogatório, e seus resultados desastrosos em termos, por exemplo, de condenações injustas, acabaram sendo alvo de contundentes críticas da opinião pública britânica levando a uma perda de confiança no poder judiciário e na própria polícia. Frente a essas críticas e desafios, policiais se uniram a pesquisadores para buscar soluções baseadas em evidência científicas e em direitos humanos, a fim de tornar mais eficazes as entrevistas investigativas mais técnicas, profissionais e eficientes.
Como resultado da parceria entre policiais e pesquisadores, foi estabelecido um modelo teórico e prático acerca dos objetivos da entrevista e das competências a serem desenvolvidas por um entrevistador. Foram traçadas diretrizes a fim de estabelecer os preceitos a serem alcançados em entrevistas investigativas com vítimas, testemunhas e suspeitos. O governo criou um regulamento endereçado a todos os policiais do país, recomendando práticas adequadas para diferentes públicos como suspeitos ou pessoas em situação de vulnerabilidade. Desse modo, ao invés de confrontar suspeitos buscando uma confissão ou buscar informações de vítimas e testemunhas mediante perguntas especificas e fechadas, entrevistadores passaram a adotar uma postura de obtenção de informações por meio do relato livre e de perguntas abertas (MILNE, R; SHAW; BULL, 2007; MILNE, Rebecca; BULL, 2003).
Desde sua criação, o as diretrizes de entrevista já forma ampliadas, incluindo tópicos como: quais crimes requerem uma entrevista mais meticulosa e quais os procedimentos para gravação de áudio ou vídeo de entrevistas. Ainda que elaborar leis e diretrizes seja uma etapa fundamental, ela não garante que os entrevistadores implementarão as melhores práticas em uma entrevista. Verificou-se então a necessidade de estabelecer uma estrutura de capacitação regular de entrevistadores estabelecendo como as técnicas devem ser ensinadas, e como avaliar se as práticas estão sendo implementadas de forma adequada (MACDONALD; SNOOK; MILNE, 2017).
Em 1992, a parceria entre policiais e pesquisadores em Manchester resultou em um modelo de entrevista sob o acrônimo PEACE, em que cada letra representa uma etapa a ser seguida na entrevista: P) Planejamento e preparação (Planning and Preparation); E) Engajar e explicar o processo de entrevista (Engage and Explain); A) Obtenção do relato (Account); C) Fechamento da entrevista (Closure); e E) Avaliação da entrevista (Evaluation). O treinamento do modelo PEACE mostrou bons resultados e assim iniciou-se uma operação para capacitar todos os policiais do Reino Unido (CLARKE; MILNE, 2001; GRIFFITHS; MILNE, 2006).
Após algum tempo foi percebido que um único treinamento não supriria as diferentes demandas da realidade policial. Foram, então, estruturados diferentes treinamentos de acordo com o tempo de atuação e conforme a especialização do policial para os diferentes tipos de crime. Os cursos foram divididos em cinco diferentes estágios (chamados Tiers). Desde 1992, todos os policiais do Reino Unido são capacitados no Tier 1 como parte de sua formação inicial, possibilitando que realizem entrevistas simples para obtenção de informações relativas a crimes comuns (ex: vítimas de furto), estabelecendo o rapport e encorajando a narrativa livre. No Tier 2 o(a) entrevistador(a) é capacitado para entrevista de crimes mais complexos (e.g., homicídios). No Tier 3, os entrevistadores são especializados em públicos mais específicos, tornando-se especialistas em entrevistas com suspeitos, ou vítimas vulneráveis (ex: crianças, pessoas com algum transtorno mental), por exemplo (GRIFFITHS; MILNE, 2006; MILNE, R; SHAW; BULL, 2007).
No Reino Unido, entrevistas em casos de crimes complexos são, além de gravadas em vídeo, supervisionadas em tempo real, de modo que o supervisor possa verificar as técnicas utilizadas e sugerir novas abordagens ao(a) entrevistador(a). Desse modo, foram elaboradas capacitações para supervisores de entrevistas no Tier 4. Por sua vez, no Tier 5 policiais são capacitados para coordenar equipes de entrevistas em casos complexos (ex: atentado terrorista e sequestro; GRIFFITHS; MILNE, 2006).
O treinamento de Tier 1 costuma ser realizado com grupos maiores, por exemplo, policiais ingressantes na corporação. Ao longo do primeiro ano de atuação, suas entrevistas são supervisionadas por policiais Tier 4 de sua jurisdição. Para participar dos demais Tiers, os policiais necessitam ser recomendados por superiores. Os treinamentos dos Tiers 2-5 são realizados com grupos pequenos, de até oito policiais, de forma a garantir que todos possam praticar entrevistas e serem supervisionados durante o treinamento. Os alunos são individualmente avaliados mediante simulações nas quais entrevistam (Tier 2-3) ou supervisionam uma entrevista (Tier 4-5) realizada por outro aluno no papel de entrevistador ou supervisor. O aluno no papel de testemunha assiste a um vídeo de um crime (ex: um filme em primeira pessoa de uma testemunha de um homicídio) e é submetido à entrevista investigativa. Ao passo que o aluno no papel de testemunha pode experienciar as dificuldades inerentes a relatar um crime, o(a) entrevistador(a) pode ser supervisionado pelo instrutor do curso, a fim de apontar aspectos positivos e aspectos a serem aprimorados (ST-YVES et al., 2014). Ao final do curso, o instrutor elabora um relatório avaliativo que serve de feedback para o aluno e para seu superior hierárquico indicando quais técnicas ainda precisam ser supervisionadas em sua prática profissional, a fim de garantir o desenvolvimento do(a) entrevistador(a) (CLARKE; MILNE; BULL, 2011; GRIFFITHS; MILNE, 2006; MILNE,; SHAW; BULL, 2007).
A análise de interrogatórios de suspeitos de fraude verificou que o uso dos passos propostos pelo PEACE esteve associado a um maior número de informações relevantes ou confissões, enquanto a ausência destes levou um maior número de suspeitos a negar envolvimento ou não prover informações (WALSH; BULL, 2010). Resultados semelhantes foram encontrados em populações como suspeitos de terrorismo, suspeitos de crimes sexuais, e vítimas e testemunhas de diferentes tipos de crimes, indicando que a abordagem da entrevista investigativa resulta na obtenção de um maior número de informações relevantes para a investigação (e.g., pessoas envolvidas, lugares, objetos). (ALISON et al., 2013; CLARKE; MILNE, 2001; CLARKE; MILNE; BULL, 2011; KIECKHAEFER; VALLANO; SCHREIBER COMPO, 2014; MILNE; BULL, 2008; READ et al., 2009; VALLANO; SCHREIBER COMPO, 2015; WALSH; BULL, 2010, 2015).
Atualmente, o Reino Unido é referência mundial em treinamento e prática de entrevistas investigativas, cujo modelo já foi adaptado para diferentes países como Nova Zelândia, Líbano, Malásia, Vietnã, (ainda que tais países não se encontram no mesmo nível de desenvolvimento e ambrangencia do programa de capacitação do Reino Unido; (CLARKE; MILNE, 2017). A eficácia do treinamento do modelo PEACE continua sendo estudada por pesquisadores, visando expor os resultados obtidos e permitir identificar necessidades de mudança (CLARKE; MILNE, 2001; CLARKE; MILNE; BULL, 2011). Ainda que existam adaptações do PEACE, há uma estrutura comum em diferentes treinamentos, que tem se mostrado consolidada para a capacitação em entrevista investigativa, que podem ajudar no planejamento de capacitação em entrevista investigativa para a Polícia Civil brasileira.
Entrevista consiste numa técnica que necessita ser aprendida: caso não haja um treinamento formal, principiantes tendem a adaptar técnicas observadas em policiais mais experientes ou adaptar formas de conversação utilizadas no dia a dia. Entretanto, nem sempre os exemplos observados ou adaptados do cotidiano correspondem a técnicas adequadas de entrevista. Entrevistadores que não receberam adequada capacitação podem incorrer em práticas ineficazes, por exemplo, aquelas que lançam mão de perguntas fechadas na busca de informações (MEMON et al., 1994; STEIN; ÁVILA, 2015).
Diferentes formas de capacitar entrevistadores têm sido desenvolvidas mediante treinamentos. Estes podem ser de vários formatos, diferindo conforme os objetivos e a duração. Há treinamentos intensivos, realizados ao longo de poucos dias; há os espaçados, realizados ao longo de diversos meses; existem os presenciais e os online; há também treinamentos para técnicas específicas (ex: uso de perguntas) ou protocolos estruturados de entrevista (LAMB, 2016). Ainda que haja diferentes formas de realizar treinamentos de entrevista investigativa, eles partilham de uma estrutura que consiste em estabelecer as técnicas a serem aprendidas, realizar práticas e supervisionar entrevistadores.
Um treinamento precisa estabelecer qual o objetivo e a estrutura das entrevistas. Um primeiro passo é identificar quais as leis já vigentes a serem observadas em uma entrevista e as práticas atualmente utilizadas pelos entrevistadores (MEISSNER; KELLY; WOESTEHOFF, 2015). A partir disto podem ser estabelecidas diretrizes, por meio de governos ou organizações. É também possível adaptar protocolos de entrevistas já consolidados (ex: NICHD, Entrevista Cognitiva), para que sejam estabelecidos os passos a serem seguidos em uma entrevista (CLARKE; MILNE, 2001; FISHER; GEISELMAN, 1992; LAMB et al., 2007a). Com objetivos claros acerca de quais as práticas a serem alcançadas, é possível estruturar um treinamento para os profissionais responsáveis em aplicá-las em seu dia a dia de trabalho.
Enquanto o relato de um crime tem como base a memória episódica, o ato de entrevistar tem como base a memória procedural, cuja consolidação advém, principalmente, mediante a prática. Assim como saber ler partituras não garante que alguém se tornará um bom músico, estudar técnicas de entrevista não garante que alguém saberá utilizá-las, sendo imprescindível a prática de entrevistas durante o ensino. Uma forma de praticar técnicas de entrevista é possibilitar que sejam exercitadas no decorrer do curso de capacitação. Por exemplo, um participante pode ser designado ao papel de testemunha e assiste a um vídeo de uma encenação de crime. Então é entrevistado por outro aluno no papel de entrevistador, que busca aplicar as técnicas aprendidas durante o curso (ST-YVES et al., 2014). O instrutor do curso e os demais alunos assistem à entrevista, fazendo anotações acerca de pontos positivos e negativos, para após concluída a entrevistas poder dar feedback construtivo para o(a) entrevistado(a). Estas práticas durante o curso de capacitação permitem que o aluno experimente as técnicas aprendidas e que o supervisor reforce as técnicas adequadas que foram por este aluno utilizadas, apontando aspectos a serem melhorados (LAMB, 2016).
O(a) entrevistador(a) precisa avaliar seu próprio desempenho na entrevista, embora a autoavaliação seja sujeita a limitações da memória e a vieses pessoais. Se o(a) entrevistador(a) acredita que deu o máximo de si em sua entrevista, por exemplo, é possível que recorde principalmente dos momentos em que acredita que teve um desempenho positivo, não atentando para os aspectos que ainda necessitam ser aprimorados (GRIFFITHS; WALSH, 2018; WALSH; KING; GRIFFITHS, 2017). Assim, é comum que a autoavaliação da entrevista seja mais positiva do que a avaliação dos pares ou supervisores. Neste sentido, a supervisão se revela uma atividade de magna importância, pois apresenta o olhar de uma terceira pessoa sobre aspectos que podem ser aprimorados, levando a melhores desempenhos futuros (CLARKE; MILNE; BULL, 2011; WALSH; KING; GRIFFITHS, 2017). Novamente, faz-se relevante a gravação da entrevista pois possibilita que a supervisão ocorra avaliando como a entrevista ocorreu, e não o que o(a) entrevistador recorda sobre a entrevista.
Ainda que o treinamento inicial intensivo (por exemplo, de quatro ou cinco dias) seja fundamental, ele não assegura que um policial irá realizar entrevistas eficazes por toda sua carreira (CLARKE; MILNE, 2001). Mesmo que entrevistadores sejam submetidos a treinamentos e sejam capacitados acerca das melhores técnicas, poderão não utilizá-las em suas práticas posteriores (MYKLEBUST; BJØRKLUND, 2006; OXBURGH; MYKLEBUST; GRANT, 2010). Além da capacitação dos entrevistadores, é preciso que haja algum tipo de avaliação e atividades de reforço, como monitoramento ou treinamentos de atualização, para que os policiais mantenham um bom desempenho em suas entrevistas.
O Reino Unido representa um exemplo de como é possível aderir a práticas avançadas baseadas em evidências e direitos humanos. Entretanto, o Brasil possui leis, demandas e necessidades diferentes, de forma que a simples transposição do método empregado pelo Reino Unido não contemplaria a realidade brasileira. Por exemplo, quais investigações são consideradas prioritárias e que requerem entrevistadores com maior expertise? Quais são os requisitos esperados dos entrevistadores e qual precisa ser a estrutura de um treinamento condizente com a realidade enfrentada? Quais as hierarquias dos profissionais de entrevista a serem configuradas, tendo em vista a complexidade das diferentes investigações? Como estas mudanças precisam emergir do diálogo entre pesquisadores e profissionais do sistema de justiça, este artigo não apresenta um protocolo brasileiro pronto ou impor quais aspectos devem ser aprimorados e/ou como fazê-los. Entretanto, como explanado neste artigo, existem questões estruturantes e básicas de uma boa entrevista investigativa que são comuns a toda situação que o objetivo é informações detalhadas e confiáveis. Assim, é possível utilizar o Reino Unido como referência dos passos necessários para a implementação de uma mudança: promover o diálogo entre policiais e pesquisadores para identificar as demandas, implementar capacitações e avaliar as práticas de entrevista.
O relato de testemunhas, vítimas e suspeitos consiste numa das principais fontes de informação para o sistema de justiça. Atualmente ainda não existem, no Brasil, diretrizes para a capacitação em entrevistas investigativas ou um protocolo a ser seguido pelo(a) entrevistador(a). Esta falta de capacitação para entrevistadores pode fazer com que até mesmo entrevistadores dedicados incorram em práticas equivocadas. Para tanto, é importante identificar diretrizes para oitivas e entrevistas, no intuito de estabelecer os objetivos a serem alcançados nessas práticas, criando programas de capacitação para tal.
A realidade brasileira atual enseja a necessidade de treinamentos regulares para entrevistadores, bem como a criação e a adaptação de ferramentas adequadas para avaliação e supervisão dos aprendizes. É preciso diminuir a distância entre o conhecimento já disponível sobre entrevista investigativa e o que vem sendo praticado no País. A parceria entre pesquisadores e entrevistadores é um caminho frutífero a ser trilhado, visando identificar problemas e procurar soluções, por meio de técnicas baseadas em evidências e alicerçado nos princípios dos direitos humanos.
the authors would like to acknowledge the support of Coordination for the Improvement of Higher Education (CAPES) and National Council for Scientific and Technological Development (CNPQ) for the support in the format of scholarship for the first author.
Editor-in-chief: 1 (VGV)
Reviewers: 3
William Weber Cecconello: conceptualization, methodology, data curation, investigation, writing – original draft, validation, writing – review and editing, final version approval.
Rebecca Milne: conceptualization, data curation, validation, writing – review and editing, final version approval.
Lilian Milnistky Stein: conceptualization, data curation, validation, writing – review and editing, final version approval.