Resumo: O presente estudo pretende abordar a questão da reconstrução de sentidos de diálogos obtidos a partir de interceptações telefônicas. Assim, na primeira parte apresenta conceitos da semiótica e da epistemologia para, na segunda parte, aplica-los a um caso real. Tudo a fim de responder a dois questionamentos: (i) a reconstrução de sentidos de textos, palavras ou frases pode se dar de maneira independente do contexto de sua utilização?; (ii) como é possível conhecer o contexto de uma comunicação? A metodologia utilizada é a revisão bibliográfica de escritos da semiótica e da epistemologia, utilizando-se caso real para ilustrar.
Palavras-chave: Prova, Gravações, Epistemologia aplicada ao processo penal, Semiótica aplicada ao processo penal, Peso da prova combinada.
Abstract: The present study is aimed to deal with the reconstruction of meanings of intercepted dialogues. Being so, on the first part, it presents concepts of semiotics and epistemology; on the second part, those concepts are applied to a real case. All of that aiming to answer two questions: (i) is the reconstruction of meanings of texts, words or sentences independent of the context of its use? (ii) how is it possible to get to know the context of the communication? The methodology used is the analysis of bibliography on semiotics and epistemology, using a real case as example.
Keywords: Evidence, Recordings, Epistemology applied to criminal procedure, Semiotics applied to criminal procedure, Weight of combined evidence.
Artigo Original
Da Necessidade de Corroboração Probatória para a Reconstrução de Sentidos em Diálogos Obtidos por Interceptações Telefônicas
The Need for Evidential Corroboration for the Reconstruction of Meanings on Dialogues Obtained by Telephonic Interceptions
Recepção: 22 Julho 2020
Aprovação: 02 Dezembro 2020
O uso da linguagem está em toda a interpretação e aplicação do Direito. Curiosamente, entretanto, a teoria geral do direito preocupou-se muito nas últimas décadas em desenvolver teorias e doutrinas a respeito da interpretação da linguagem no plano da aplicação do direito (isto é, interpretação dos textos normativos), mas pouco ou quase nada a respeito da reconstrução de sentidos relacionados a provas que envolvam a linguagem.
Assim, apesar de reconhecida a polissemia das palavras, a independência de sentidos e a necessidade de escolha entre sentidos possíveis por parte do intérprete no campo da interpretação de textos legais, pouca atenção foi dada para esses mesmos atributos quando tais interpretações dizem respeito à atribuição de significados à linguagem utilizada em diálogos obtidos a partir de interceptação de comunicações telefônicas.
Duas são as perguntas fundamentais: (i) a reconstrução de sentidos de textos, palavras ou frases pode se dar de maneira independente do contexto de sua utilização?; (ii) como é possível conhecer o contexto de uma comunicação?
O presente estudo pretende responder tais questionamentos partindo de conhecimentos da semiótica, para demonstrar que a linguagem, como conjunto de símbolos que é, possui atribuição de significados arbitrária, que dependem do contexto da comunicação e de hábitos coletivos de referência. Assim, sem provas robustas a respeito dos contextos e hábitos envolvidos em uma comunicação, de forma clara e corroborada, qualquer tentativa de atribuição de significados pode ser, também dentro de um processo, bastante perigosa.
A semiótica é o campo do conhecimento que se preocupa com o estudo dos signos, “em todas as suas formas de manifestações, (...), normais ou patológicos, linguísticos e não linguísticos, pessoais ou sociais”. Há muita discussão a respeito do significado de um signo (debate esse que refoge completamente ao escopo do presente trabalho), mas de maneira direta e concisa pode-se dizer que se trata de “um objeto que “está por outro [stands for another] para alguma mente”, “uma expressão que aponta para o conteúdo fora do próprio signo”. O signo “deve ser capaz de estar conectado (...) a outro signo do mesmo objeto, ou ao próprio objeto”. Isso é, a uma ideia ou diretamente a um objeto.
A relação dos signos com os objetos ou com as ideias, entretanto, nem sempre é igual. De acordo com Peirce, os signos podem ser divididos em três categorias, a saber, índices (indexes), ícones ou símbolos.
Os índices são aqueles que possuem uma relação causal automática com a realidade, variando de acordo com essa. É o caso, por exemplo, de uma radiografia, cujo resultado varia em função de o osso estar ou não quebrado, e de uma fotografia, em que, de acordo com o que se apresenta diante da câmera, o resultado final varia (uma pessoa sai de olho fechado ou de olho aberto na fotografia, a depender de como estava no momento em que a fotografia foi tirada).
Os ícones, de seu turno, possuem uma relação de semelhança com a ideia ou o objeto, não dependendo diretamente da realidade e nem variando com ela. Uma pessoa que faz um retrato pode desenhar a outra pessoa sorrindo, ainda que ela esteja posando séria, sem sorrir. Uma pessoa pode desenhar um unicórnio, ainda que unicórnios não existam.
Os símbolos, por fim, não possuem relações causais ou automáticas com a realidade (o “mundo lá fora”), mas sim com convenções que são previamente estabelecidas. É o caso de uma placa de “sentido proibido”: na Itália, tal indicação é representada por um círculo vermelho com um retângulo branco na horizontal colocado no centro. Se tal placa fosse utilizada no Brasil não teria sentido algum para os brasileiros, visto que a mesma indicação, aqui, é representada por uma seta preta cortada por um traço vermelho diagonal.
Um diálogo gravado, portanto, possui caráter de índice e de símbolo. O primeiro porque a gravação varia de acordo com os sons que ocorreram na realidade: se alguém fala mais alto, a gravação regista um som mais alto, se alguém nada diz, a gravação regista o silêncio. E de símbolo porque as palavras, expressões e frases são determinadas de acordo com convenções previamente estabelecidas.
A questão central demonstrada pela semiótica em relação aos símbolos é que esses possuem um sentido ou outro somente em determinada sociedade, em determinado grupo, em determinado contexto temporal e cultural. Afinal, a ligação entre o significante e o significado é arbitrária - depende justamente de convenções previamente estabelecidas.
Um mesmo signo pode carregar, portanto, diversos sentidos. A palavra eco, para um físico, significa o fenômeno de um som que bate em um anteparo e retorna; para um piloto de avião, a palavra eco significa a letra e. Para um médico, a palavra eco é a versão reduzida da palavra ecografia, de modo que quando um gastroenterologista comunica a um colega que solicitou uma eco abdominal esse não pensará se tratar de um pedido pela letra e ou de um pedido para que o paciente emita um som diante de um anteparo.
O contexto da comunicação pode determinar, ademais, a utilização das palavras e frases em sentidos denotativos ou conotativos. Grosseiramente, pode-se dizer que os sentidos denotativos são os literais, e os conotativos são os sentidos figurados. Assim, quando alguém diz que outra pessoa é grande, em sentido literal estará dizendo, por exemplo, que se trata de alguém alto (“você viu o filho de Fulano recentemente? Nossa, ele cresceu muito rápido, está muito grande!”); ao passo que, em sentido figurado, poderá estar dizendo que se trata de uma pessoa com enorme importância (“Fulano é um grande do processo penal”).
Apesar da pluralidade de sentidos denotativos e conotativos que uma palavra pode possuir, há, em um contexto e em um local específico, sentidos mínimos em que uma palavra ou expressão vêm utilizados.
A língua, como já mencionado, assim como qualquer outro sistema de símbolos, parte de hábitos coletivos, ou mesmo de convenções, em uma relação de dupla influência: assim como a língua afeta os hábitos coletivos de atribuição de sentidos aos símbolos, também os hábitos coletivos afetam a língua, que vai se alterando com a passagem do tempo. Daí que os símbolos linguísticos sejam, por um lado, imutáveis - na medida em que um só indivíduo não pode alterar os hábitos coletivos -, e, por outro lado, mutáveis - na medida que, com o passar do tempo, diversas podem ser as alterações dos hábitos coletivos que influenciarão a atribuição de sentidos.
A relação entre os sentidos mínimos e a polissemia das palavras e símbolos em geral podem ser vistas com o exemplo da palavra “cachorro”, que poderia denotar tanto um dogue alemão quanto um poodle (isso sem falar em diversos sentidos conotativos). Por outro lado, “cachorro” não pode ser interpretado como o sinônimo de uma hortênsia, ou de um abajur. E justamente aí aparecem os sentidos mínimos.
Apesar de os signos poderem ser vistos como “transportadores de sentidos”, portanto, a significação é um processo, que envolve, naturalmente, o signo em si (e, naturalmente, quem ou o que o criou), mas também a interpretação. O que é importante notar desde logo é que a semiótica, nesse sentido, preocupa-se em entender como “a forma significante ‘unicórnio’ recebe um determinado significado com base em um sistema de convenções linguísticas”; e não em saber “se o unicórnio existe ou não (...)”.
Se a semiótica não se preocupa com saber se o que é descrito pela linguagem existe ou não, é preciso recorrer-se, em um processo que se baseia em conhecer o que realmente ocorreu para atribuir consequências jurídicas, para algum outro ramo do conhecimento que tenha tal preocupação. Tal ramo é justamente a epistemologia, o ramo da filosofia que estuda a obtenção de conhecimento. A epistemologia, naturalmente, não substitui a teoria jurídica, mas serve para buscar melhorar nossas “regras ou, melhor, linhas mestras para a condução de uma apuração [inquiry]”, reconhecendo quais ambientes “apoiam [are supportive of] e quais são hostis em relação à apuração bem-sucedida”.
Uma dessas questões é saber como, dentro e fora de um processo, ocorre o aumento do grau de justificação de uma determinada hipótese. Como é possível dizer que a afirmação “cigarro causa câncer” está mais justificada epistemicamente do que “extrato de casca de laranja mata o coronavírus”? E a epistemologia sugere três eixos centrais para tal aumento de corroboração. O primeiro é a prova direta da própria hipótese [suportiveness]; o segundo, quão seguro é o “encaixe” da prova em questão com o que já sabemos previamente, independentemente da hipótese [independent security]. E em terceiro lugar, a quantidade de provas relevantes incluídas na busca, a chamada comprehensiveness. E os três eixos estão absolutamente interligados.
A comprehensiveness, que auxiliará no presente ensaio, diz respeito à completude tendencial do material probatório. Isso quer dizer que qualquer apuração dos fatos que realmente pretenda apurar os fatos deve ter o fim de incluir, tendencialmente, todas as provas relevantes. Isso não quer dizer, naturalmente, que as provas devam ser obtidas a qualquer custo, desrespeitando as regras do jogo, pois a apuração dos fatos, apesar de ser o fim principal do procedimento probatório, não é o único fim desse e nem do processo; quer, isto sim, dizer que, aumentando a comprehensiveness, aumenta-se a qualidade da apuração e do grau de justificação: “um conjunto probatório maior (...) é geralmente um indicador melhor do truth-value de uma hipótese do que um menor”.
A pandemia do coronavírus, em 2020, pode dar um bom exemplo: diante da pandemia, os cientistas passaram a formular e a testar hipóteses a respeito do comportamento do vírus, da sua estrutura, bem como de como criar substâncias e/ou formas de exterminá-lo. Iniciou-se, assim, uma apuração, feita por diversas pessoas, em diversos lugares do mundo. Tal apuração não começou, entretanto, do zero. Afinal, já existiam conhecimentos previamente confirmados ao longo do tempo por diversos outros experimentos e testes, por exemplo, a respeito da gravidade, da osmose, da estrutura da proteína, da estrutura de determinadas substâncias etc.
Se um cientista cria, portanto, a hipótese de que o coronavírus possui uma camada de gordura que envolve a sua cápsula, utilizará os conhecimentos disponíveis na data de hoje, para predizer que o detergente será capaz de destruir tal camada. O evento será submetido a experimentos, buscando isolar tal fator. Se a predição se confirmar, a hipótese terá recebido um grau de suporte. Se não se confirmar, será necessário construir outras hipóteses. Será que essa camada de gordura do coronavírus possui alguma proteção ou algum tipo de resistência ao detergente? Será que a camada não é de gordura? Será que estávamos certos em pensar que o detergente é eficiente para destruir a gordura?
O que a ciência faz, então, é contar com diversas pessoas, em diversos lugares, fazendo hipóteses a respeito de determinados fatos, buscando explicações e, posteriormente, confirmações a respeito do que acontece(u) no mundo lá fora - algo que leva tempo. Quanto mais pesquisas forem estabelecidas ao longo do tempo, maior será o número de provas relevantes, aumentando a comprehensiveness e, também, a qualidade da busca epistêmica. Em abril de 2020, o uso da medicação X para o tratamento do coronavírus ainda não passara por testes; encontrava-se recém na etapa das hipóteses e das testagens iniciais.
A aplicabilidade disso para o direito - e para o tema do presente estudo - é enorme. Quando uma prova isolada aponta em algum sentido, a apuração envolverá não somente a utilização de conhecimentos prévios, que podem ser demonstrados equivocados, mas também podem ser falseados totalmente pela produção de outras provas.
O ponto pode ficar claro a partir de um exemplo. Imagine-se uma ligação interceptada que inicie com uma pessoa atendendo e a outra simplesmente dizendo: “vou te matar”, desligando em seguida. Poder-se-ia concluir desde logo, e sem qualquer contexto, tratar-se de uma ameaça? Como a hipótese da ameaça não poderia ser descartada desde logo, essa teria que ser apurada, mediante a produção de outras provas.
Imagine-se, então, que, mediante a produção de outras provas, descobre-se o seguinte contexto: o homem que efetuou a ligação ficara sabendo que a sua ex-namorada, depois de 6 meses da separação, assumira um namoro com outro homem. A frase isolada “vou te matar”, então, poderia ter seu sentido reconstruído mediante o seguinte diálogo:
Homem: Você está mesmo namorando???? Não signifiquei nada para você?Mulher: Minha vida não é da sua conta.Homem: Conheço seus horários e sua rotina.Mulher: Você está me ameaçando?Homem: Não estou ameaçando. Estou avisando. Vou te matar.
Imagine-se, por outro lado, que a produção de outras provas revelasse não esse contexto de um namoro terminado, mas o contexto de um escritório de advocacia, em que se descobrisse que se tratava de dois(duas) sócios(as), sendo que um(a) sócio(a) sempre esquecia de enviar um relatório mensal para o cliente e sempre era cobrado(a) pelo(a) outro(a) sócio(a) por isso. O sentido do diálogo poderia, neste caso, ser reconstruído da seguinte forma:
Sócio(a) 1: Não vai me dizer que você esqueceu de novo de mandar o relatório para o cliente?!?!
Sócio(a) 2: MEU DEUS!
Sócio(a) 1: Estou avisando. Vou te matar!
Naturalmente, as mesmas palavras “vou te matar” ganham, aqui, por conta do contexto, um sentido totalmente diferente. Afinal, esse demonstraria que não se trata de uma ameaça, mas sim da utilização da expressão “vou te matar” de uma forma figurada, com o sentido de “estou bravo(a), chateado(a) com você”. E o mesmo poderia ocorrer caso as ulteriores provas produzidas em relação à gravação demonstrassem se tratar de um contexto entre dois amigos(as), quando um(a) houvesse postado uma fotografia do(a) outro(a) nas redes sociais:
Amigo(a) 1: Você postou aquela fotografia nossa? Eu estou com uma cara horrorosa!Amigo(a) 2: Agora já foi! [Risos].Amigo(a) 1: Sacanagem! [Risos].Amigo(a) 2: Você não viu a próxima que eu vou postar!Amigo(a) 1: Nem pense nisso. Estou avisando. Vou te matar!
Em qualquer dos três exemplos, seria imprescindível, portanto, para a compreensão do sentido, a obtenção de “toda a conversa”. Entretanto, em casos reais, como o que será apresentado no capítulo que segue, nem sempre a totalidade do contexto está estampada em um só elemento de prova, isto é, em uma só ligação. E muitas vezes o contexto que ressai de uma só ligação, pela falta de comprehensiveness, traz um resultado de corroboração muito baixo.
Assim, a título de resumo do presente item, pode-se dizer que a lição da epistemologia para o presente estudo é que é imprescindível para a efetiva reconstrução de sentidos a busca pela maior comprehensiveness, isto é, para a maior completude possível do material probatório e da combinação de elementos de prova. Afinal, sem isso, uma prova isolada, ou mesmo um palpite sobre o sentido possível desprovido de provas, pode levar a resultados e interpretações desastrosos.
A interceptação telefônica (ou interceptação em sentido estrito) recebe atenção da doutrina principalmente em relação à sua definição como “captação da comunicação telefônica alheia por um terceiro, sem o conhecimento de nenhum dos comunicadores”, tratando-se de meio de obtenção de prova irrepetível por sua natureza. Discutem-se, em geral, os requisitos para o deferimento da interceptação, a duração legalmente autorizada para a medida, a necessidade ou não de transcrição dos diálogos obtidos e o procedimento para sua execução, desde a decretação até a inutilização.
A doutrina, com razão, coloca bastante ênfase na necessidade de que o resultado obtido a partir da interceptação seja submetido a contraditório diferido “tão logo se considere que o conhecimento do resultado da diligência não importará em prejuízo ao prosseguimento das investigações ou do processo”; tudo isso a fim de que possa “discutir a prova em todos os seus aspectos”. Entre tais aspectos, entretanto, o destaque é dado à (i)licitude da prova, à idoneidade técnica da operação, à autenticidade, à identificação ou não da própria voz etc.
Por outro lado, não resta abordada, em geral, questão que, na minha opinião, possui máxima importância: como seria possível conhecer o sentido de um diálogo, ou de palavras empregadas? É possível simplesmente a quem ouve uma gravação ou lê a transcrição de um diálogo simplesmente acessar o seu sentido diretamente? Como saber se a reconstrução dos sentidos de um diálogo obtido em interceptação telefônica espelha, de fato, o sentido empregado pelas pessoas que dialogavam?
Depois de, nos itens anteriores do presente artigo, trabalhar com casos ideias, para chegar no ponto central do presente estudo utilizarei dois diálogos reais, retirados do contexto de interceptações telefônicas feitas na Operação Costeira, deflagrada no Rio Grande do Sul pela Polícia Federal em 2009, investigando a ocorrência de operações ilegais de câmbios. Não pretendo analisar o caso, ou a forma como cada um dos atores se comportou, mas tão somente tomar dois diálogos reais (com nomes alterados) emprestados, a fim de questionar a forma como os possíveis sentidos poderiam, em tese, ser atribuídos, para um e para outro lado.
DIÁLOGO 1B - Viu.A - Ham.B O João não quis cebola naquele preço. Ele quer o preço que o coisa deu aí... que o secretário deu pra ele. Tá?A - Ahm... só um pouquinho...B - Tá.A - É que... é que esse preço é à vista que nós podemos fazer o saco, entendeu?B - Eu sei, eu sei, é que eu dei aquele preço pra o... o combinado pois é...A - Sim, não, mas então deixa quieto, é que aquele preço é à vista, né? Não tem como fazer.B - Tá bem.
DIÁLOGO 2(...)C - Hum, fechei, fechei com o Pedro 26 e meio de alface.D - Hã, hã.C - Aí ele vai acertar terça-feira, 198 aqui, bom né?D - Sim, ele pegou em vez de peso, verde.C - Não, esse é outro negócio sabe, ele pegou.D - Ah, outro.C - 6 e meio e esse, esse que eu te falei antes, só de noite ele vai me confirmar, sabe?D - Tá.C - Ele tem que ver se vai se concretizar o negócio, e, e, só que daí.D - E o dos, dos pesos.C - Sim, esse ele vai me confirmar de noite se vai fechar o negócio dele, né.D - Hã, hã.C - Tá sem preço, ele não reclamou nada, só de noite vai me dar a resposta, daí agora ele me ligou e pediu uns 26 e meio, daí fiz 198 pra terça-feira.D - Hã, hã.C - Entendeu.D - Hã, hã, tá.C - E daí, daí acho que por enquanto não vou fechar nada né, lá embaixo, vamo ver amanhã como vai se comportar.
Apresentado tal caso, nos itens que seguem abordarei os inúmeros desafios que tais diálogos podem significar.
O primeiro ponto, considerando a indexicalidade dos sons, é saber quais palavras foram pronunciadas, de fato, pelas pessoas que falavam ao telefone; e isso a fim de que eventual transcrição seja fidedigna, correspondente à realidade. Caso haja uma falha nessa primeira etapa, naturalmente, todo e qualquer processo de interpretação posterior já estará fadado ao fracasso. As palavras que foram ditas nada mais são do que parte da própria indexicalidade do áudio: variando as palavras, varia, também, o áudio, devendo isso ser refletido na transcrição.
Em um caso ocorrido nos Estados Unidos, por exemplo, o policial Jim Barton alegou ter chegado em casa e encontrado sua esposa morta, efetuando ligação para a central de emergências (911). Após 10 anos sem que fossem encontrados suspeitos, uma equipe de cold cases reanalisou a gravação da ligação para a central de emergências, tornando-se central para o caso saber se Jim teria dito, na ligação, “I gotta call for help” (“preciso ligar para pedir ajuda”) ou “I gotta call Phelps” (“preciso ligar para o Phelps”). Jim acabou condenado, entendendo-se que a referência seria a seu meio-irmão, William Phelps, que, de acordo com investigações ulteriores, teria sido contratado pelo policial para “dar um susto” na sua esposa, tendo acabado por matá-la.
Uma vez feitas as transcrições a partir dos dados obtidos a partir da interceptação, ou simplesmente guardados em gravações, passa-se à fase de busca pela interpretação de sentidos possíveis, isto é, de reconstrução de sentidos. E o problema que se coloca, então, é o seguinte: sabendo que os símbolos não possuem uma relação causal automática com os fatos do “mundo lá fora”, como é possível distinguir uma mensagem cifrada, cujo intuito é justamente ocultar a prática de atos ilícitos, de uma mensagem comum, fruto de uma comunicação ordinária do dia a dia?
É importante notar, nesse passo, que incumbe às autoridades a busca pelo entendimento do hábito coletivo da comunicação em questão, algo que, conforme demonstrado no item anterior, somente pode ser feito mediante a obtenção de novas provas e da combinação entre vários elementos. O mero fato, em si, de alguém comunicar-se com outrem em linguagem cifrada, ou em alguma linguagem que não seja entendida pela autoridade policial, por exemplo, não configura qualquer ilicitude.
Em primeiro lugar, deve-se ter em conta toda a pluralidade de sentidos literais possíveis para aquele contexto. É certo que um texto que menciona a palavra “cachorro” faz com que o proprietário de um dogue alemão faça a associação “cachorro = dogue alemão”, ao passo que um proprietário de poodle faz a associação “cachorro = poodle”. Ambos são sentidos literais, denotativos, pois tanto o dogue alemão quanto o poodle são cachorros. Nos diálogos acima, está-se referindo, de fato, a cebolas e alfaces? Ou se trataria de alguma linguagem cifrada? A palavra “peso” está empregada como o nome de uma moeda (“peso argentino”, “peso uruguaio”), ou como peso no sentido de “pesado” ou “leve”?
Reconhecendo-se que uma só palavra pode, também, possuir sentidos denotativos e conotativos, deve-se, também, analisar se as palavras estão sendo utilizadas em sentidos denotativos ou conotativos. Em um dos livros mais importantes da história da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas (João Guimarães Rosa), o leitor acompanha a travessia de Riobaldo por diversas estradas, veredas. A palavra “estrada” tem, em língua portuguesa, indubitavelmente o sentido literal de um caminho, de um percurso por onde se pode passar para ir de um lugar a outro; na obra, entretanto, utiliza-se tal palavra em um sentido conotativo, significando a “estrada da vida”. O leitor que capte somente o sentido denotativo da estrada perderá, portanto, o sentido conotativo, a referência à vida.
Da mesma forma, nos diálogos acima, “lá embaixo” pode referir-se realmente a algo que está em uma altura menor (em um porão, em um sótão), ou a algo, por exemplo, em localização geográfica de menor altitude (como quando se diz que alguém que vai da Serra para o nível do mar vai “descer” para a cidade).
A combinação de uma palavra com outra já pode, também, atrair sentidos diferentes para uma expressão. Novamente, duas ou mais palavras juntas podem ter um sentido literal associado, como é o caso das palavras “panela de pressão”. A palavra panela, sozinha, denota o recipiente em que se cozinha; a pressão, sozinha, refere-se ao conceito físico, da relação entre uma força e a área. Ao fazer-se referência a “panela de pressão”, entretanto, faz-se referência a um tipo específico de panela, que utiliza a pressão alta para diminuir o tempo de cocção.
Há outros casos em que as palavras, quando associadas, gerarão um sentido conotativo. Novamente em língua portuguesa, a palavra “boi” é utilizada para denotar um animal bovino de sexo masculino. A expressão “boi de piranha”, entretanto, trás consigo, em algumas regiões do Brasil, um sentido conotativo, da ideia derivada de um boi que, por sua especial fraqueza ou pouco valor, seria sacrificado para que o rebanho pudesse atravessar um rio; o “boi de piranha” entraria primeiro n’água, sendo entregue às piranhas, sendo, assim, sacrificado para que o resto do rebanho pudesse passar em segurança. A expressão, portanto, tem o sentido conotativo de casos em que algo de pouco valor é sacrificado para que outro(s) mais valiosos sejam preservados.
Nos diálogos acima, portanto, em tese, as palavras associadas “26 e meio de alface” e “ele vai (...) acertar 198 aqui” podem denotar e conotar muitas coisas. Por exemplo: “26,5kg de alface”, “26,5 pés de alface”, “26 sacos e meio de alface” etc.; “198 reais em alface”, “198 dólares em alface”, “198 caixas de alface” etc.
Por fim, diversas frases combinadas em um texto, em um livro, ou em qualquer conjunto de símbolos, podem possuir um sentido global diferente de cada símbolo individual. O leitor de A Caverna, do escritor português José Saramago, somente compreenderá a relação do oleiro Cipriano Algor, sua filha e genro com a alegoria da caverna ao final do livro, pois somente nos últimos capítulos as informações necessárias para tal interpretação são dadas. O leitor que chegar somente à metade do livro, portanto, poderá compreender o sentido literal e o conotativo das palavras e das frases, mas não poderá compreender o sentido do todo.
Nos diálogos acima, por outro lado, ao contrário do que ocorre com um livro ou um filme, a totalidade de informações necessárias para a interpretação correta não está necessariamente nos diálogos havidos. O diálogo 1, acima, analisado somente do ponto de vista interno, demonstra um todo coerente, mas assim mesmo não necessariamente representa, de fato, uma mera compra e venda de cebolas. E o diálogo 2, cuja interpretação isolada possui elementos incoerentes - por exemplo, “ele pegou em vez de peso, verde” -, não confirma, de maneira isolada, a prática ou não de algum ilícito.
Surgem aqui duas consequências extremamente importantes, que permitirão um maior rigor epistêmico no tratamento dos diálogos obtidos mediante interceptações. A primeira é que todas as interceptações devem ser objeto de gravações, e tais gravações devem ser integralmente mantidas, pelo menos até que seja possível a realização de contraditório.
Se assim não fosse - e caso se permitisse uma “filtragem” do material destruindo-se o restante sem outros cuidados -, no exemplo dado acima, formulada uma hipótese durante a investigação, a destruição do restante do material não permitiria que tal hipótese fosse colocada em dúvida ou criticada. Assim, por exemplo, permitindo-se a destruição prematura do material, um diálogo que revelasse, no exemplo dado acima, um comércio normal de alfaces e cebolas poderia ser eliminado, fazendo com que os demais diálogos parecessem, isoladamente, mais suspeitos ou mais incriminadores.
A segunda consequência, derivada da primeira, é que para o pleno exercício da defesa e do próprio direito à prova, a defesa deve ter acesso integral às gravações. Afinal, “trechos de conversa [que], para uma parte, possam não ter interesse para a prova, (...) para a outra parte podem ser de extrema relevância”. O acesso à integralidade das gravações possibilitará a formulação de hipóteses alternativas para os sentidos possíveis aos diálogos. Em outras palavras, sem o acesso integral, a defesa não teria condições de utilizar outras das gravações obtidas no mesmo contexto de interceptação para arguir diverso “uso dado a estas palavras pelas pessoas investigadas, no contexto da investigação”; por exemplo, no caso acima, demonstrando, por outros diálogos obtidos no mesmo contexto de interceptação, que a palavra “peso” vinha utilizada habitualmente no sentido de quilogramas (e não no de moedas, como “peso argentino”).
Uma vez efetuadas e mantidas as gravações, entretanto, o problema não estará resolvido; e isso porque será necessário, para fazer a interpretação adequada, uma excelente apuração dos fatos, combinando-se os diálogos obtidos pela interceptação com outras provas. É o que será abordado no capítulo a seguir.
Sabendo-se que o valor dos símbolos, como a linguagem, depende de que se entenda o contexto da sua criação, deve-se necessariamente recorrer à combinação de provas. Afinal, sendo relevante para a determinação de sentidos saber o hábito coletivo da comunicação em questão, é necessário reconhecer a qual contexto pertence aquela comunicação. Quem são as pessoas? Em que situação foram gravadas? Em que local? Em que época? E a grande dificuldade, como mencionado, é que, em casos reais, os contextos e os elementos indispensáveis para a interpretação dificilmente estarão integralmente nas ligações gravadas.
Retornando-se ao caso real, das cebolas e alfaces, dever-se-ia, de fato, apurar se as pessoas em questão, de fato, vendem cebolas ou alfaces. E, ainda, que vendam, se tais vendas de cebolas e alfaces, de fato, são o objeto principal de seu comércio, ou se são usadas como forma de mascarar práticas ilícitas.
Três seriam os fatos que teriam que ser provados, portanto, a fim de que nos diálogos acima fosse possível utilizar o diálogo como prova da prática de algum ato ilícito: (i) que a venda de cebola ou de alface, naquele contexto de comunicação, não significaria, de fato, a venda de cebolas ou de alfaces; (ii) que, naquele contexto, significaria alguma transação ilícita; (iii) que a transação ilícita mencionada realmente teria ocorrido da forma como descrita no áudio.
Formada a hipótese de que “cebola” ou “alface”, nesse contexto, significaria outra coisa, portanto, seria necessário, submeter tal hipótese a provas, seja para confirmá-la, seja para afastá-la.
Caso, por exemplo, fosse demonstrado que as pessoas em questão não vendem cebolas ou alfaces, isso significaria um passo no sentido da corroboração de não se estar tratando, de fato, de compra e venda de cebolas. Por outro lado, caso as pessoas em questão, de fato, vendessem cebola e alface, a hipótese do uso da palavra no sentido literal não poderia ser descartada, devendo ser objeto de outras provas.
Da mesma forma, se alguém combinasse a entrega de diversos sacos de cebola ou de diversos pés de alface para outrem em determinado lugar e em determinado horário e dia, aparecendo somente com um envelope na mão, no dia e horário combinados, haveria corroboração no sentido de não se tratar de cebolas ou alfaces.
Imaginando-se, a seguir, que as provas demonstrem não se tratar de “cebolas” ou “alfaces”, passar-se-ia à busca pelo sentido real. Imaginam-se, então, a hipótese de que “cebolas”, na comunicação em questão, signifique euros e de que “alface” signifique dólares. Como testar essa hipótese, para confirmá-la ou refutá-la? Novamente mediante o recurso à prova combinada - afinal, o mero fato de “cebola” não significar “cebola” e “alface” não significar “alface”, no contexto em questão, com efeito, não se trata, isoladamente, como já mencionado anteriormente, da prova de algum fato ilícito (o sujeito pode, por exemplo, chamar algum produto lícito, para fins de sua comunicação, de cebola ou de alface).
Por fim, ainda que haja provas de que cebola significa, de fato, euros, e de que alface significa dólares, e de que uma transação de venda ilícita de euros ou de dólares seja descrita em um telefonema, é necessário corroborar o que é dito com o que, de fato, é feito. Isso principalmente diante de símbolos, como a linguagem, cuja característica, como visto, é da inexistência de relação causal automática com a realidade. Alguém que fala que vai vender dólares ilicitamente não necessariamente, de fato, vende dólares ilicitamente.
Novamente, tal diferenciação somente poderá ser feita mediante o recurso da prova combinada, isso é, com a busca pela maior completude. Nesse passo, é importante destacar um ponto extremamente importante, salientado pela epistemologia: um elemento de prova pode ter um peso muito maior dentro de um conjunto probatório do que o peso que teria sozinho, isto é, individualmente. Afinal, o “encaixe” de uma prova na outra aumenta o grau de corroboração de conjunto. No caso dos diálogos obtidos a partir de interceptação telefônica isso é bastante visível.
Usando os casos acima, mesmo que não exista uma prova (um elemento) que possa, individualmente, ser suficiente para superar o grau necessário para a condenação, o peso das provas combinadas, em um conjunto, pode ser suficiente.
Se, por exemplo, se verifica que os sujeitos em questão não vendem cebolas ou alfaces, que eles aparecem em diversas gravações combinando encontros para entrega em que são dados envelopes, se a cotação passada por telefone não tem relação com a cotação de cebolas ou alfaces, mas é muito próxima à cotação de dólares e euros etc., poder-se-á chegar, com o conjunto probatório, a um grau de corroboração suficiente.
Se, por outro lado, a hipótese de tratar-se de euros ou dólares não vier corroborada por outras provas, ou se, ao testar a hipótese, houver hipóteses contrárias que não sejam superadas, o conjunto não permitirá que se conclua pela prática do crime em questão.
A importância da prova combinada, em resumo, é cabal. Voltando-se ao exemplo da troca de mensagens entre os sócios, dado no item anterior, imagine-se se todo o diálogo tivesse sido travado por telefone, tendo somente a última frase sido enviada por Whatsapp e, por uma infeliz coincidência, o sócio que esquecera de enviar o relatório tivesse sido, 20 minutos depois da mensagem, assassinado. O sócio sobrevivente, quando encontrada a mensagem, certamente seria visto com muita suspeição, de modo que seria imprescindível produzir outras provas para verificar se realmente se tratava de uma ameaça ou não.
A necessidade de busca pela completude tendencial do material probatório, além de provas a respeito do contexto de produção desse, possibilitará, portanto, e entre outras coisas, a análise do “hábito coletivo” de referência, confirmando-se ou refutando-se, com novas provas, também a ocorrência ou não dos fatos.
Chegados a esse ponto, para concluir, é necessário finalizar respondendo os dois questionamentos formulados ao início: (i) a reconstrução de sentidos de textos, palavras ou frases pode se dar de maneira independente do contexto de sua utilização? Claramente, por tudo o que foi exposto ao longo do presente artigo, não, pois tratando-se de símbolos, não há relação automática com a realidade, sendo necessário o conhecimento a respeito do contexto de comunicação relevante; e (ii) como é possível conhecer o contexto de uma comunicação? Mediante a busca pela completude tendencial do material probatório, além de provas a respeito do contexto de produção desse.
A gravação de uma ligação telefônica possui elementos de indexicalidade e de simbolismo, sendo necessário atentar para ambos na busca de sentidos para a linguagem utilizada.
A tentativa de formação de hipóteses a respeito dos sentidos é bastante salutar, e parte de qualquer processo de apuração dos fatos, mas não pode, em relação aos símbolos, ser suficiente para que uma hipótese possa ser considerada provada.
É necessário, antes de qualquer coisa, manter as gravações efetuadas, pelo menos até que seja possível o contraditório, dando-se acesso integral à defesa. Após, para a adequada reconstrução de sentidos, é necessária a análise individual de cada prova, de modo que o intérprete busque entender os contextos em que as palavras, frases e conversas são utilizadas; para isso recorrendo a sentidos denotativos e conotativos do hábito comum, de eventuais coletividades, ou mesmo de duas pessoas.
Uma vez formuladas hipóteses, essas devem ser testadas e retestadas, mediante o aporte de novas provas: a maior completude do material probatório poderá afastar algumas e corroborar outras, sendo certo, de qualquer forma, que o standard probatório aplicável deverá, em qualquer caso, ser superado, a fim de que seja possível a condenação.
Autor correspondente: Vitor de Paula Ramos , Universitat de Girona, España. E-mail: vitordepaularamos@hotmail.com.