FUNDAMENTOS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
Recepção: 21 Março 2022
Revised document received: 21 Abril 2022
Aprovação: 06 Agosto 2022
DOI: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v8i2.702
Resumo: O principal objetivo do presente artigo é diagnosticar e refletir criticamente sobre o descompasso da previsão constitucional da prisão administrativa de militares com as demais previsões da Constituição de 1988. Como problemática central tem-se o questionamento sobre se esse tipo de prisão, realizada por uma autoridade militar sem o crivo prévio do judiciário, seria compatível com o regime democrático? Como hipótese principal, apresenta-se o argumento de que não há compatibilidade entre esse tipo de prisão disciplinar e um regime democrático, assim como também não há relação de causalidade sustentável coerentemente entre essa ameaça de prisão e a manutenção da hierarquia e da disciplina militares, no que classificamos os argumentos de seus defensores como falaciosos. Por fim, para cumprir o objetivo proposto, utilizamos o método hipotético-dedutivo, em uma abordagem essencialmente qualitativa, bem como a técnica da revisão de literatura (doutrinária e legislativa), com referenciais teóricos entre as doutrinas constitucional, antropológica, criminológica e processual penal.
Palavras-chave: Prisão administrativa, Militares, Hierarquia, Disciplina, Democracia.
Abstract: The main objective of this article is to diagnose and critically reflect on the mismatch of the constitutional provision of the administrative prison of the military with the other provisions of the 1988 Constitution. of the judiciary, carried out, therefore, by a military authority, would be compatible with the democratic regime? As a main hypothesis, the argument is presented that there is no compatibility between this type of prison and a democratic regime, as well as there is no coherently sustainable causal relationship between this threat of prison and the maintenance of military hierarchy and discipline, in the that we classify the arguments of its defenders as fallacious. Finally, to fulfil the proposed objective, we use the hypothetical-deductive method, in an essentially qualitative approach, as well as the technique of literature review (doctrinal and legislative), with theoretical references between constitutional, anthropological, criminological and criminal procedural doctrines.
Keywords: Administrative detention, Military, Hierarchy, Discipline, Democracy.
Sumário: Introdução; 1. A previsão constitucional da prisão administrativa de militares por indisciplina e os demais valores democráticos encartados na Constituição brasileira de 1988; 2. A falácia de que o respeito à hierarquia e à disciplina militares estaria condicionado à ameaça de prisão; Considerações finais; Referências.
Introdução
Apesar de existirem reflexões críticas sobre a (in)compatibilidade democrática da previsão de prisão administrativa de militares desde que se constatou sua inserção na Constituição da República em 1988 – CR/88, o tema, embora não seja propriamente novo, é atual e relevante, justificando-se sobretudo pelo fato de se observar a iniciativa legislativa que resultou na entrada em vigência da Lei 13.967/2019, vedando esse tipo de medida administrativa,3 bem como por conta da propositura, contra a mencionada iniciativa, de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (como, p. ex., ADI 6.663-BA4 e ADI 6.595-RJ5) junto ao Supremo Tribunal Federal – STF,6 sob o argumento de uma alegada necessidade de preservação da “hierarquia e da disciplina em que se embasa o regime militar”7.
Como se constata, o tema da (im)possibilidade da prisão administrativa de militares por indisciplina tem previsão no art. 5º, inciso LXI, combinado com o art. 142, §2º, ambos da CR/88; no art. 18 do Decreto n. 667/1969 (alterado pela Lei n. 13.967/2019, que vedou esse tipo de prisão,8 provocando, portanto, a proposição das ADI’s mencionadas); no art. 12, §3º, cumulado, dentre outros, com os art. 24, inciso V, e seu Parágrafo Único (que estabelece o prazo máximo de 30 dias), bem como com art. 29 (que define a prisão a partir da “obrigação” de “permanecer em local próprio e designado para tal”) e com o art. 38 (impondo que “somente pode ser efetuada pelo Comandante do Exército ou comandante, chefe ou diretor de OM [Organizações Militares]”), todos do Decreto n. 4.346/2002 (Regulamento Disciplinar do Exército); além do previsto nos ordenamentos estaduais.9
Nesse contexto, o que se apresenta como problemática central é o seguinte: esse tipo de prisão (disciplinar), realizada por uma autoridade militar sem o crivo prévio do Judiciário, seria compatível com o regime democrático? Vale dizer, sendo a prisão, em uma democracia, entendida como medida extrema e excepcional, poderia uma autoridade administrativa, ainda que militar, realizá-la por mera violação de norma disciplinar, sem que tenha existido um crime propriamente? Além do que, permitir a prisão administrativa não se constituiria numa espécie de burla de etiqueta, na medida em que se autoriza a pena (administrativa) de prisão sem que tenha existido um devido processo legal (veja-se o art. 5, LIV, da CR/88)? Esse tipo de prisão, caso reconhecida sua incompatibilidade com o regime democrático, afetaria o respeito à hierarquia e/ou à disciplina nos quartéis?
Como hipóteses trabalhadas, o que se argumenta adiante é que não há compatibilidade entre esse tipo de prisão e um regime democrático, assim como também não há uma relação de causalidade sustentável coerentemente entre a ameaça de prisão administrativa e a manutenção da hierarquia e da disciplina nas instituições militares, como, aliás, se argumentou nas ADI’s 6.663-BA e 6.595-RJ. Esse tipo de correlação, a propósito, pode muito bem ser classificada como uma falácia argumentativa, na medida em que não há como provar com relativo grau de segurança uma relação de causa (a prisão administrativa) e efeito (obediência hierárquica), especialmente quando sanções salariais, de impedimento de ascensão na carreira, de perda de patente ou da própria condição de militar podem ser mais dissuasivas do que a prisão propriamente.
Assim, o principal objetivo do presente trabalho é diagnosticar e refletir criticamente sobre o descompasso da previsão constitucional da prisão administrativa de militares por indisciplina com as demais previsões do mesmo diploma, que, aliás, nutrem valores essencialmente democráticos, prestando-se à preservação (e otimização) da dignidade e, sobretudo, da liberdade de locomoção. Observa-se rapidamente que não se pretende explorar noções básicas a respeito do tema enfocado, mas partir para o enfrentamento direto das problemáticas propostas.10 Para tanto, nos utilizaremos do método hipotético-dedutivo, numa abordagem qualitativa, a partir da técnica da revisão de literatura, com referenciais teóricos situados, p. ex., entre as doutrinas constitucional e processual penal.
1. A previsão constitucional da prisão administrativa de militares por indisciplina e os demais valores democráticos encartados na Constituição brasileira de 1988
Antes de qualquer outro argumento, não se diga, por exemplo, que o simples fato de a previsão constar do texto constitucional seja o suficiente para que se reconheça a validade da prisão administrativa de militares por indisciplina. Nesse sentido, aliás, posicionou-se o STF quando julgou a ADI 4277-DF11 e a ADPF 13212. Na oportunidade, em que se discutia o conceito de família, diante da previsão do art. 226, §3º, da CR/88, advertiu-se que, apesar da literalidade (“o homem e a mulher”), tal deveria ser “interpretado em conjunto com os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana – em sua vertente da proteção da autonomia individual – e da segurança jurídica”13.
Nessa linha argumentativa, não se diga ainda que, pelo fato de existir previsão constitucional, estaria inviabilizada uma proibição legal para sua execução, de modo que, a vedação da prisão administrativa por lei, não seria uma aberração, sobretudo porque se trata de iniciativa de otimização da dignidade humana, sendo este, fundamento da democracia brasileira (art. 1º, inciso III, da CR/88).14 Vale, portanto, destacar, que não seria inovação alguma se o STF admitisse a validade de um diploma legal que veda uma previsão constitucional, tendo em vista, por exemplo, o que se observa da justificação da Súmula Vinculante n. 25, situação na qual contata-se que a Constituição também prevê a possibilidade de prisão civil do depositário infiel (art. 5ª, inciso LXVII), tendo sido considerada esta como inaplicável por conta do Pacto de São José da Costa Rica (Decreto n. 678/1992)15.
Tendo-se, portanto, por superada uma eventual argumentação de que o texto constitucional teria que ser acriticamente considerado – como se fosse aplicável pela sua mera previsão –, especialmente quando se trata de previsão que interfira diretamente no núcleo de fundamentação de um sistema democrático,16 passemos ao nódulo problemático que mais nos interessa desenvolver na sequência, qual seja: a prisão administrativa de militares por indisciplina, sem o crivo prévio do poder judiciário, realizada por uma autoridade militar, seria compatível com o regime democrático?
Antes, porém, como se viu do sucinto enquadramento normativo esboçado na introdução, o texto constitucional não apenas prevê que esse tipo de prisão seja possível (art. 5º, LXI, CR/88), como também veda a utilização da via do Habeas Corpus (art. 142, §2º, da CR/88 c/c art. 647 do CPP) para a sua desconstituição, o que denota a grau elevado de invasividade na liberdade ambulatorial de militares diante de uma medida cuja natureza é essencialmente administrativa. A prisão, afinal, se daria por indisciplina, e não pelo cometimento de um crime, assim considerado por lei (art. 5º, XXXIX, da CR/88).
É, entretanto, verdade que o STF tem relativizado tal vedação sob o argumento de que “se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito”, não haveria “que se falar em violação ao art. 142, §2º” da CR/88.17
Ocorre que, como se sabe, o sistema normativo em uma democracia, que tem compromisso com a unidade e com a eliminação de incoerências no seu funcionamento,18 não se interpreta, nem se articula, por seus dispositivos isoladamente – como se fossem ilhas –, ao contrário, esses dispositivos devem se articular a partir da ideia fundante do sistema, que, no presente caso, será o de proteção da dignidade humana (art. 1º, inciso III, da CR/88). Como na perspectiva de sistema de Kant,19 no funcionamento do sistema jurídico, o que se espera é que o seu entorno (os subsistemas – administrativo, civil, penal etc.) atue(m) para não permitir que o seu núcleo seja atingido ao ponto de o desnaturar. Decorre desse entendimento a essência do princípio da unidade da Constituição, em que princípios se integram e se limitam ao mesmo tempo,20 sendo considerado pelo Tribunal Constitucional alemão como um princípio norteador da interpretação de normas constitucionais.21
A prisão, portanto, como medida extrema, a atingir diretamente a dignidade a partir da privação da liberdade, não pode (e nem deve) ser uma possibilidade por conta de indisciplina militar, antes de ser submetida ao crivo do judiciário, sob argumentos de menor densidade, e com consequências desproporcionais e desarrazoadas como se apresentam outras hipóteses de controle. Logo, haverá de ser medida excepcionalíssima. Compreende-se, por exemplo, a possibilidade da prisão em flagrante (art. 5º, LXI, da CR/88 c/c art. 301 ss do CPP), em que, dadas as circunstâncias, não há espaço para aguardar uma deliberação judicial, ou mesmo as prisões no estado de defesa (art. 136, §3º, da CR/88) ou no estado de sítio (art. 139, II, da CR/88), pelas circunstâncias breves e incomuns institucionalmente, mas uma prisão administrativa de militares a pretexto de se preservar a hierarquia e a disciplina é, como veremos, insustentável.
Pese-se ainda, o fato de que a prisão, nesses casos, não ser cautela, mas punição pura e simples22 (art. 24, V, do Decreto nº 4.346/2002 – Regulamento Disciplinar do Exército), privando-se o sujeito de sua liberdade ambulatorial, sem que de um crime estejamos tratando, mas de uma infração administrativa.23 É, portanto, na prática, uma espécie de pena de prisão antecipada, sem o devido processo legal (ainda que fosse o administrativo), o que confronta a previsão de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV, da CR/88), situação que, inegavelmente, sem o crivo prévio do poder judiciário, se constitui em campo fértil para as mais absurdas arbitrariedades sobre a liberdade ambulatorial, sobretudo de militares de baixa patente.
Assim é que, respondendo mais diretamente a questão formulada no início, embora exista a previsão mencionada, esta não se coaduna com os valores democráticos encartados na Constituição brasileira de 1988, que preza, na sua inteireza, pela dignidade e pela regra da liberdade nas suas mais variadas facetas. A possibilidade de prisão por uma autoridade administrativa (especialmente a militar)24, em que os mecanismos internos de controle são, na generalidade, deficientes,25 sem o crivo prévio do poder judiciário, sob os argumentos de que é necessária para preservar a hierarquia e a disciplina, além de não ser suficiente (porque discutível, como veremos no tópico a seguir) é uma incoerência que merece ser, como foi pela Lei n. 13.967/2019, neutralizada no texto constitucional.
Não é segredo a existência de um lobby militar, sobretudo daqueles de alta patente, como ministros, na Constituinte.26 Para Celso Castro e Maria Celina D’Araújo27, após inúmeras idas e vindas, e da preocupação dos militares envolvidos na discussão de que não vingasse um documento revanchista, o saldo foi deveras positivo. Na perspectiva dos autores, “Com seu trabalho junto aos constituintes e com o apoio do Centrão, conseguiram derrotar as propostas que consideravam danosas às Forças Armadas e ao país e neutralizar, ao menos nesse campo, o que consideravam iniciativas revanchistas”.
O militarismo, como se sabe, impõe às pessoas que pretendem ingressar em seus círculos uma dinâmica tradicionalmente opressiva.28 A formação, por exemplo, sob o pretexto de condicionar o futuro militar às situações com as quais terá que conviver, é sempre muito dura, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico. Os cursos de ingresso na carreira militar, embora ostentem disciplinas sobre os direitos humanos, deixam muito a desejar, havendo muito por ser feito para que tanto a carga horária (geralmente irrisória)29 quanto as práticas estejam em níveis democraticamente aceitáveis, em que, como determinado (art. 4º, II, da CR/88),30 de fato, prevaleçam os direitos humanos. Como destacam Carlos Linhares de Albuquerque e Eduardo Paes Machado31, não raro, constata-se um “treinamento brutal e perigoso”.
Por fim, ampliar a possibilidade de validar a prisão como medida extrema em uma democracia, a partir de uma ordem administrativa, não nos parece condizente com os valores encartados na Constituição da República de 1988, especialmente quando a dignidade humana é o seu núcleo fundante. O argumento de que seria preciso, na generalidade, manter a hierarquia e a disciplina nos quarteis é demasiadamente expansivo, coletivista32 e carente de comprovação. Segundo a perspectiva de Marcello Jardim Linhares33, esse tipo de prisão “é medida executiva imposta por interesse social iniludível, confundida em intimidade lógica com o interesse particular do Estado”.
Mesmo que estejamos tratando de militares, vale dizer, de um grupo de servidores que possui o poder de acessar determinados documentos com conteúdo sensível e, especialmente no caso das Forças Armadas, que podem comprometer estruturas de defesa e de guerra do país, isso não seria justificativa suficiente para uma prisão administrativa por indisciplina. Se o comportamento do militar for realmente relevante nesse contexto, é papel do legislativo discutir sua criminalização, o que possibilitará uma prisão dentro das regras do flagrante,34 para a qual, dada a impossibilidade de se esperar a deliberação judicial, não vemos óbice maior. Sendo essa espécie uma exceção mais do que suficiente para a quebra da regra de que a medida extrema da prisão somente ocorra a partir da expedição de um mandado judicial.
Ocorre que, além do flagrante e da prisão por indisciplina como formas constitucionalmente admitidas de prisão sem a necessidade de um mandado judicial, o legislador e alguns outros agentes estatais têm procurado se utilizar de outras, expandindo-se o poder de encarcerar. A previsão do art. 23-A, §5º, da Lei 11.343/2005, com a internação involuntária de dependentes químicos, bem como a do art. 211 do Decreto 9.199/2017, com a prisão administrativa de estrangeiros, utilizada pela polícia federal, são modalidades de prisão quase não discutidas na literatura a respeito.
Como destacado – e bem – por Norberto Bobbio35, “Quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, tanto mais diminuem as liberdades dos mesmos indivíduos”. Segundo o autor, “É preciso desconfiar de quem defende uma concepção antiindividualista da sociedade”, “A concepção individualista da sociedade já conquistou muito espaço”, assim, “o direito das gentes foi transformado em direito das gentes e dos indivíduos”.36
2. A falácia de que o respeito à hierarquia e à disciplina militares estaria condicionado à ameaça de prisão
Falácia, dito simplificadamente, é o argumento que não se sustenta a partir dos pressupostos que utiliza. Será sempre preciso ter cuidado, por exemplo, com falácias post hoc, do tipo, “depois disso, logo, por causa disso”, apontando-se para uma suposta correlação. Não é por acaso que, ao menos no campo científico, há uma busca constante por pressupostos que se apresentem como coerentes com o que se vai sustentar como conclusão e suficientemente seguros depois de terem sido submetidos à prova ou à falseabilidade, se quisermos utilizar uma expressão cara à Karl Popper.37
Para irmos direto ao ponto, a ideia de que a neutralização da possibilidade de utilização da prisão administrativa de militares prejudicaria a hierarquia e a disciplina não é sustentável do ponto de vista científico. A conclusão a que chegam, por exemplo, os representantes dos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, no bojo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 6.663-BA38 e ADI 6.595-RJ39) protocoladas perante o STF contra a Lei n. 13.967/2019, pode (e deve) ser considerada como falaciosa. Vejamos:
Em primeiro lugar, não custa destacar que os atos de indisciplina sempre existiram (e existirão) nas instituições militares, mesmo porque, eventuais desvios nos padrões de comportamento são próprios da natureza (falha) dos seres humanos. Mesmo as máquinas estão suscetíveis a falhas. Assim, embora a punição exerça certo grau de dissuasão40 (tanto em humanos quanto em não humanos), seja qual for a ameaça de punição, não se pode nutrir a ilusão de que haverá, um dia, uma instituição militar sem desvios. Logo, não se pode esperar que a alegada necessidade de hierarquia e de disciplina esteja essencialmente vinculada à ameaça de prisão no caso de indisciplinas.41
Mesmo o ideal retribucionista (ou o castigo), puro e simples, como forma de condicionamento de comportamentos que se espera que sejam padronizados, tem sido questionado por diversos autores contemporâneos. Esses desvelam a demagogia por trás das promessas por mais segurança e mais ordem social, oferecendo ainda perspectivas menos invasivas às liberdades individuais, como, por exemplo, a utilização cada vez mais parcimoniosa do poder punitivo e um olhar mais atencioso para com as supostas vítimas.42
Conquanto, observe-se que, acaso essa relação de causa (ameaça de prisão) e efeito (respeito à hierarquia e disciplina) realmente existisse, já estaríamos experimentando um significativo (e insuportável) aumento de casos de indisciplina militar pelo país, especialmente porque a lei enfocada, até sua declaração de inconstitucionalidade pelo plenário do STF em maio de 2022,43 esteve em plena vigência por conta da decisão do Ministro do STF, Nunes Marques, no bojo do Habeas Corpus n. 200.979-RS, em que havia determinado a suspensão “imediata da execução da sanção disciplinar de detenção administrativa aplicada pela Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Sul”44.
No campo das conjecturas – ou das crenças, como aquilo cuja existência independe de prova –, sem comprovação científica, portanto, que é onde situamos a ideia de que a ameaça de prisão garantiria a hierarquia e a disciplina nos quarteis, poderíamos contra-argumentar no sentido de que a ameaça de uma sanção patrimonial poderia ser mais dissuasiva, como com prejuízos financeiros pela impossibilidade de progressão funcional ou mesmo a perda da patente. Perceba-se que, de tão relevante financeiramente, não foi à toa que a Emenda Constitucional n. 101/2019 permitiu, por exemplo, para os militares estaduais e distritais, e dentro das regras constitucionais (art. 37, XVI, da CR/88), “o direito à acumulação de cargos públicos”.45
O fato é que, em determinadas situações, pode parecer mais vantajoso ao militar indisciplinado ter que se submeter à prisão administrativa, levando-se em consideração que as condições estruturais dessa não são aquelas (reconhecidamente precárias)46 impostas aos estabelecimentos penais convencionais, do que ter que arcar com a perda da função ou do salário, assim como a um motorista profissional pode parecer mais vantajoso cumprir uma pena de prisão breve do que perder a habilitação, sua fonte de renda.
Essa ideia de vantagem se coaduna com a falta de isonomia das sanções, isso pode variar, inclusive, a depender do modo de funcionamento das Corregedorias e do responsável pelas sanções. Há estados que dispõem de um Controlador Geral vinculado diretamente ao Governador do Estado, em outros a Corregedoria se vincula a Secretaria de Segurança ou, até mesmo, diretamente aos comandos gerais de cada força, e assim, o que se observa é que quanto mais próximo aos agentes, mais o controle administrativo e criminal se distancia em relação a rigidez, o que pode criar um ambiente de certa proteção institucional. Nesse contexto, como argumentado por Edi Alves Oliveira Neto, Cristina Maria Zackseski e Felipe da Silva Freitas:
Isso reflete nas possibilidades de punição administrativa, pois “salta” as instâncias decisórias que são normalmente acusadas de proteger demasiadamente seus policiais quando o assunto é violência policial, ao contrário do que se registra quando o assunto são faltas administrativas, que interessam à regularidade dos procedimentos internos das corporações.47
Não se perca de vista, portanto, que hierarquia e disciplina, mesmo que previstas expressamente na Constituição de 1988 (arts. 42 e 142) não podem continuar a serem perseguidas a partir dos métodos do passado remoto das instituições militares,48 em que a atmosfera de coisificação dos combatentes era uma constante. Já não há espaço, em uma democracia, para que, qualquer que seja a pessoa, mesmo um militar, tenha tal consideração. Segundo Jorge César de Assis49, a disciplina, por exemplo, só seria “real e proveitosa quando inspirada pelo sentimento do dever, produzido por cooperação espontânea e não pelo receio de castigos”.
Nesse sentido, o que está em causa no presente artigo não é propriamente a existência da cobrança por hierarquia e disciplina nas instituições militares, mas os métodos utilizados para alcançá-las, com a percepção clara de que a utilização de uma prisão de natureza administrativa é providência que não se coaduna mais com os valores democráticos encartados na Constituição da República de 1988. Uma ameaça de prisão como método para se alcançar tais objetivos, ainda que discutível, dado o grau de abstração existente nos termos utilizados,50 até haveria de ser (em tese) admitida, mas submetida ao crivo prévio do judiciário, respeitando-se as regras do devido processo, como, aliás, previsto no art. 255, alínea “e”, do Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.002/1969).
Desse modo, não se nega, como argumentado por Elizabeth Espindola Halpern51, que “a hierarquia e a disciplina serviram de cimento para dar solidez às bases das Forças Armadas brasileiras e para estreitar os laços de compromisso com seus membros”. Não menosprezamos suas importâncias (longe disso) nesse contexto institucional, portanto.
Mas esses elementos não significarão, sempre, algo propriamente positivo na dinâmica das instituições militares no Brasil. Na sequência, como destacado – e bem – pela autora:
Mais que ser um princípio piramidal estático, a hierarquia é um princípio segmentador que pode ser usado de duas formas: seja para assegurar uma ordem organizada de precedências, por meio da qual uns vêm antes que outros, levando em consideração as diferenças individuais, funcionando como uma “fila indiana”, metáfora empregada por Abreu (1998); seja para rompê-la, ou melhor, para “furar a fila”. Justamente por causa das diferenças individuais, certos mecanismos internos nas organizações militares se curvam às estratégias de inclusão e exclusão que, sem dúvida, não são neutras, colocando a hierarquia e a disciplina a serviço de múltiplos interesses. Assim sendo, o “ínfimo” soldado pode ter mais poder do que revelam as suas magras divisas: as aparências enganam! Portanto, o entendimento que Leirner (1997) e Abreu (1998) têm sobre a hierarquia como princípio capaz de organizar as relações entre os militares para além da cadeia de comando precisaria ser expandido, tendo em vista que, a hierarquia e a disciplina são instrumentos para o exercício do poder e da dominação.52
Como dissemos no início, ainda que exista uma previsão constitucional da prisão administrativa de militares, tal não significa que esta seja automaticamente consentânea dos valores democráticos, nem muito menos que esteja, por si, adequadamente fundamentada nesse mesmo contexto. Como outrora destacado por Thiago Fabres de Carvalho53, quando debruçado sobre o mandado constitucional de criminalização do tráfico de drogas, “ela [a Constituição] termina por assumir uma tomada de posição autoritária e metafísica com relação ao tema”, apontando-se para a possibilidade de serem assumidas “posições alternativas”, “levando-se em conta os direitos fundamentais e os princípios decorrentes da materialidade constitucional, que impõe um tratamento não violento dos conflitos, enquanto fundamento preambular da Constituição”.
Os argumentos que tradicional e historicamente tem sustentado a alegada necessidade de uma prisão administrativa para militares por indisciplina, portanto, aqueles que a fizeram parar justamente na Constituição da República de 1988 – provavelmente mais pelo reconhecido lobby dos militares de alta patente do que propriamente pelas provas de sua eficiência no campo prático –, com vistas a “garantir” a hierarquia e a disciplina nos quarteis, não encontram respaldo nem no contexto dos valores democráticos nem (muito menos) em provas empíricas minimamente aceitáveis do ponto de vista científico.
Considerações finais
Dissemos no início que nosso principal objetivo era diagnosticar e refletir criticamente sobre o descompasso da previsão constitucional da prisão administrativa de militares por indisciplina com as demais previsões da Constituição brasileira de 1988, o que acreditamos ter cumprido à risca. Evidentemente que esse não é um artigo com respostas definitivas, ou que tenha nutrido alguma pretensão de esgotar o assunto, mas é, sem dúvida, uma proposta de linha argumentativa que põe em xeque a defesa da prisão como mola propulsora do respeito à hierarquia e à disciplina nas instituições militares no Brasil.
Assim, desvelamos tanto o contexto no qual os princípios (democráticos e) constitucionais eclipsam a previsão (anacrônica) de uma prisão do tipo administrativa, legitimando-se, portanto, a possibilidade de sua neutralização pela atuação legislativa, quanto a falácia de que existiria uma pronta correlação entre a ameaça de prisão e o respeito à hierarquia e à disciplina nos quarteis. Não há, entretanto, como restou claro, qualquer desdém aos valores enfocados, mas um chamamento para que se possa refletir sobre a falácia na qual se constituem os argumentos de suas mais apaixonadas defesas.
O que se vê é que a prisão é um meio que não se sustenta em relação aos fins que sua justificação busca apresentar, tendo em vista que a restrição da liberdade é medida excepcional, e o que se busca atingir, seja pelo respeito, seja pela dissuasão, pode ocorrer por outros meios. Até por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, se observa que a violação ética mais se adequa ao não merecimento da ascensão profissional por critérios qualitativos, do que vincular-se a uma reprovação (paternalista) que justifique a restrição da liberdade, o que reforça (pela lesividade da resposta) o devido processo legal.
A cultura policial não apresenta problemas muito diferentes dos vistos em outras culturas, pois possuem um núcleo ético de valores compartilhados, que mudam a depender das características de seus componentes, envolvendo tanto os cargos e espaços de atuação, como características pessoais, como por exemplo, o sexo, e não é raro ver na prisão razões distintas a depender do destinatário, principalmente quando se busca perseguir um militar, focando mais na humilhação e demonstração pessoal de poder, do que a função descrita em suas razões (falaciosas), no caso, a de manter a hierarquia e unidade da corporação.
Se mesmo o âmbito militar judicial, em que os mecanismos de controle (internos e externos), especialmente aqueles atinentes à publicização da motivação e da fundamentação (art. 93, IX, da CR/88), está suscetível a críticas por conta do mau uso do poder punitivo em uma democracia,54 com o âmbito militar administrativo não poderia ser diferente, especialmente por sua formação avessa à crítica, o que compromete mais significativamente a liberdade ambulatorial daqueles em postos menos graduados.
Por fim, perspectiva-se a contribuição aqui oferecida como, curiosamente, original ao direito processual penal brasileiro, na medida em que, primeiro, não há substancialmente (ainda), na base de dados de revistas que tratem das ciências criminais, reflexões críticas que aprofundem a problemática central proposta, a partir das articulações doutrinárias e legislativas utilizadas, e, segundo, porque o tema, no âmbito militar, é central na dinâmica dos quarteis, objeto das preocupações dos círculos de menor patente, tanto que, além da iniciativa legislativa recente, terá que ser enfrentado (muito em breve) pelo STF.
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Notas
Autor notes
Bruno Cavalcante Leitão Santos: investigation, writing –original draft, validation, writing – review and editing, finalversion approval.
Francisco de Assis de França Júnior: conceptualization, methodology, data curation, investigation, writing – original draft, validation, writing – review and editing, final version approval.
Editor-in-chief: 1 (VGV)
Assistant-editor: 1 (MB)
Reviewers: 4
brunoleitao.adv@hotmail.comfrancajuniordireito@gmail.com
Declaração de interesses