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Notas psicanalíticas acerca das arquiteturas do infamiliar na literatura fantástica
Revista de Psicologia, vol. 13, núm. 2, pp. 41-54, 2022
Universidade Federal do Ceará

Estudos Teóricos


Recepción: 02 Febrero 2022

Aprobación: 15 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.36517/revpsiufc.13.2.2022.3

Resumo: Defende-se que a literatura fantástica constitui um material valioso de pesquisa para o psicanalista, haja vista que ela está comprometida em evocar no leitor o sentimento do infamiliar (Unheimliche), entendido como a manifestação episódica de um conteúdo atávico do psiquismo que se encontrava até então em estado latente, acarretando a regressão ao narcisismo primário e a dissolução temporária e localizada das fronteiras do Eu. Propõe-se a expressão arquiteturas do infamiliar para designar a conjuntura estético-literária que caracteriza esse projeto narrativo. Para evidenciar a especificidade dos recursos textuais que favorecem esse arranjo, sua sintaxe é contraposta à dos chistes. Então, por meio da referência às concepções de anamorfose, leitor implícito, fantasia e construção, busca-se esclarecer os mecanismos psíquicos relacionados à leitura e à criação dos textos fantásticos, sublinhando o caráter volátil e mutante de suas temáticas e estratégias e a sua íntima relação com a cultura e o social. Pontua-se que o estudo desses artifícios literários podem trazer contribuições significativas para o entendimento das vicissitudes da fantasia e da delimitação dos limites do Eu e da realidade. Ao final, comenta-se o conto O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann, à luz da proposta apresentada.

Palavras-chave: infamiliar, literatura fantástica, leitor implícito, fantasia, construção.

Abstract: This paper defends that fantastic literature constitutes a valuable research material for the psychoanalyst, given that this literary modality is committed to evoking in the reader the feeling of the uncanny (Unheimliche), understood as an episodic manifestation of an atavistic in latent state psychic content, causing the regression to primary narcissism and a temporary and localized dissolution of the borders of the Self. The expression architectures of the uncanny is proposed to designate the aesthetic-literary conjuncture that characterizes this project. To highlight the specificity of the textual resources that favor this arrangement, its syntax is contrasted with that of jokes. Through the reference to the concepts of anamorphosis, implicit reader, fantasy and construction, one seeks to clarify the psychic mechanisms related to the reading and creation of fantastic texts, underlining the volatile and mutating character of their themes and strategies and their intimate relationship with culture and society. One argues that the study of these literary devices can bring significant contributions to the understanding of the delimitation of Self and reality, and the vicissitudes of fantasy as well. At the end, the short story The Sandman, by E. T. A. Hoffmann, is commented in the light of the this proposal.

Keywords: uncanny, fantastic literature, implicit reader, fantasy, construction.

Introdução

A proposta deste artigo é discutir alguns temas e artifícios narrativos desenvolvidos no âmbito da literatura fantástica do século XIX, que posteriormente foram incorporados e transformados pela psicanálise no contexto da discussão sobre o infamiliar (Das Unheimliche) (Freud, 1919/2019), também traduzido como estranho, inquietante, ominoso (Hans, 1996) e incômodo (Freud, 1919/2021). Pode-se dizer daí que, como suporte à investigação clínica, a literatura fantástica, em especial o trabalho de E. T. A. Hoffmann, desempenhou um papel de destaque na investigação do sentimento do infamiliar.

Entende-se que, por intermédio da construção de uma situação literária ficcional, os textos fantásticos incitam no leitor uma vivência de descentramento narcísico (Lima & Vorcaro, 2017) e indeterminação simbólica (Dunker, 2011). Nesse sentido, a investigação dos modos de estruturação dos textos fantásticos e das estratégias que eles empregam para cativar o leitor e modular nele determinadas reações afetivas é do interesse do psicanalista, haja vista que o estudo desses artifícios literários contribuem para lançar luz sobre os processos de constituição dos limites do Eu e da realidade, além de favorecer a problematização das vicissitudes do funcionamento da fantasia. Tais questões, como a literatura fantástica demonstra, estão intimamente concernidas à dinâmica da experiência do infamiliar.

Pode-se dizer a partir da psicanálise que um dos principais traços da literatura fantástica é o esforço de desencadear no leitor o sentimento do infamiliar, que é definido por Freud como a manifestação episódica de um conteúdo atávico constitutivo do psiquismo que se encontrava até então em estado latente, recalcado. Tal processo acarreta um movimento de regressão ao narcisismo primário, o que, por sua vez, pode se entendido como uma dissolução temporária e localizada das fronteiras do Eu e da realidade (Freud, 1919/1997d). Tal conjuntura agenciada pela fruição estética literária caracteriza, portanto, um efeito terapêutico catártico, cuja investigação pode trazer importantes contribuições à clínica psicanalítica.

No campo dos estudos literários, o fantástico é caracterizado em função de um efeito estético produzido no leitor. Tal efeito é apresentado por Todorov (20212) como um momento de vacilação entre duas posições antagônicas: de um lado, uma atitude metódica e racional, que se atém a uma explicação lógica e empírica dos elementos da narrativa; de outro, a suspensão do juízo crítico e a aceitação provisória de um fato aparentemente absurdo e sobrenatural evocado pelo texto. Outros autores definem o fantástico como uma literatura comprometida em desencadear surpresa, inquietação (Calvino, 2004; Casares, 2013; Manna, 2014) ou insegurança em relação a sensação de consistência da realidade (Roas, 2014).

Pode-se dizer que, em termos metapsicológicos, o escritor de textos fantásticos assume a tarefa de engendrar em quem lê o desenvolvimento regulado – isto é, mantido dentro de certos limites de intensidade – do afeto de angústia, o que torna possível a manutenção de uma atitude racional durante a interpretação do texto, a qual, não obstante, é abalada, favorecendo um afrouxamento dos vínculos com a realidade e o cotidiano. Essa conjunção de fatores abre caminho para a manifestação, ainda que de modo efêmero, de algo que, em circunstâncias normais, teria permanecido oculto ou latente. Tal expediente, quando se mostra eficaz, constitui o ponto nevrálgico da arquitetura do fantástico e, por extensão, do sentimento do infamiliar (Freud, 1919/1997d).

É importante enfatizar que as vias de produção do fantástico na literatura estão em constante mutação e, do mesmo modo, as formas de defini-lo. Tal fato se deve em grande parte ao caráter contingencial e efêmero do efeito estético no qual a literatura fantástica se apóia (Todorov, 2012). Essa incessante metamorfose também representa uma resposta às transformações culturais, sociais e científicas, que constituem a matéria-prima da ficção fantástica (Ceserani, 1999; Jackson, 2001; Roas, 2014). Por isso, o escritor de histórias fantásticas deve estar em sintonia fina com o espírito de sua época para delinear uma via mais propícia à irrupção do sentimento do infamiliar.

Conclui-se daí que o infamiliar é um fenômeno ao mesmo tempo literário, estético, psíquico e cultural (Masschelein, 2011; Royle, 2003; Trias, 2005), ressaltando-se a covariância entre as mudanças na sintaxe do fantástico e a modulação de determinadas reações no ato de leitura. A partir dessa assertiva e à luz do conceito do infamiliar, propõe-se discutir alguns traços mais marcantes que as arquiteturas do fantástico assumiu, sobretudo no Século XIX, para interrogar a influência que essa literatura exerceu na formulação do modelo de aparelho psíquico freudiano.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, que dialoga com a literatura fantástica e a teoria literária, tomando a literatura fantástica de uma perspectiva centrípeta, isto é: como um fenômeno cultural amplo e interdisciplinar (Siruela, 2013). Desse modo, explora-se a interface da clínica psicanalítica com a literatura e os estudos literários. A teoria literária e a literatura fantástica constituem, portanto, o material a ser analisado, sendo as arquiteturas do infamiliar o seu objeto. Enquadram-se nessa denominação as construções sintáticas que indicam algumas vias privilegiadas de interação do leitor com o texto, favorecendo dessa forma a vivência de determinadas relações espaciais, temporais e afetivas de forma conjunta, global e coesa, o que, por sua vez, preparam e modulam a vivência do sentimento do infamiliar. Logo, sustenta-se que há uma homologia entre a estrutura da ficção fantástica e a dinâmica psíquica do sentimento do infamiliar (Rabêlo, 2021).

No primeiro tópico, é apresentado o percurso teórico e metodológico que levou ao recorte das arquiteturas do infamiliar como objeto de investigação. No segundo, são discutidos alguns conceitos do campo da teoria literária e da estética que participaram da formulação desta proposta, a saber: além das definições do fantástico, as concepções de anamorfose e leitor implícito. No tópico seguinte, busca-se explicitar as referências psicanalíticas que participam como categorias de análise, a saber: os conceitos de objeto ., fantasia e construção. Realiza-se então uma diferenciação da arquitetura do infamiliar com o mecanismo do chiste. Ao final, comenta-se o conto O homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann.

O infamiliar: entre a literatura fantástica e a psicanálise

A afinidade com esse tema surgiu da leitura de autores do século XIX, tais como E. A. Poe (1809-1849), E. T. A. Hoffmann (1776-1822), T. Gautier (1811-1872) e G. de Maupassant (1850-1893). Inicialmente, por meio de coletâneas dedicadas à literatura fantástica (Borges; Ocampo; Casares, 2013; Calvino, 2004; Costa, 2016; Siruela, 2013; Tavares, 2007) e, posteriormente, a partir de uma leitura mais sistematizada das obras desses autores. Gradualmente, a articulação com a psicanálise foi se tornando mais evidente. Constatou-se que as estratégias narrativas dos textos fantásticos – por exemplo: a não-linearidade, a sobrederminação de sentidos, a presença de hiatos, o uso de temporalidades não-cronológicas, o amalgamento entre fantasia e realidade – podem funcionar como vias para a mobilização da divisão psíquica do leitor.

O recurso à teoria literária, por sua vez, permitiu refinar essa hipótese de trabalho. Chamou atenção o fato de vários autores reiterarem a dificuldade em estabelecer uma definição consensual para a literatura fantástica como gênero literário. Em função disso, alguns teóricos preferem tratá-la como um modo de fazer literatura, enquanto outros falam de um macrogênero ou território literário (Batalha, 2013; Ceserani, 1999; Gama-Khalil, 2013; Roas, 2014).

O interesse por esse debate cresceu ao se constatar discordâncias na avaliação da relação entre psicanálise e literatura fantástica. Ora se ressalta a existência de uma comunicação fina e capilarizada (Tavares, 2007); ora um embate irreconciliável que culmina na anulação de uma das partes (Todorov, 2012).

Segundo Todorov (2012), o principal representante dessa segunda linha de pensamento, a literatura fantástica teria desaparecido durante a primeira metade do século XX, em grande parte por influência da psicanálise. Para ele, com o advento da psicanálise, a experiência de indeterminação e dúvida na qual a literatura fantástica se apoia passou a ser significada em termos de processos psíquicos internos. O que era vivido como um fenômeno estético literário transformou-se em um problema de cunho psicológico, explicado racionalmente, em uma linguagem científica.

Esse argumento, a nosso ver, constitui uma polêmica instigante. Ao invés de simplesmente refutá-lo ou aceitá-lo, considera-se mais proveitoso examinar como a psicanálise interfere nos modos de ler e fazer literatura. Essa questão remete a outra, da qual Todorov não se ocupa: como, em sentido inverso, a psicanálise foi influenciada pela literatura fantástica. Depreende-se dessa discussão a existência de um campo de ressonâncias mútuas que abarca literatura fantástica, psicanálise e teoria literária.

Defende-se, por conseguinte, a relativização da conclusão todoroviana. É razoável sustentar que a psicanálise, juntamente com outros discursos da cultura, contribuiu para que alguns expedientes da literatura fantástica tenham se tornado obsoletos. Aceitar esse argumento, contudo, não nos obriga a acompanhar o passo seguinte do autor, que exclui do horizonte outras vias de realização do fantástico a partir da segunda metade do século XX. É pertinente indagar inclusive se a tese de Todorov acerca do impacto da psicanálise na literatura fantástica não poderia ser estendida aos avanços da própria teoria literária, na medida em que esta busca explicar de modo metódico e racional os caminhos pelos quais o fantástico se realiza. Assim, seguindo essa linha de raciocínio, ao se esmerar em estabelecer uma fórmula para o fantástico, a teoria literária teria igualmente contribuído para o esvaziamento de seu projeto estético.

Obviamente, esse não é o ponto de vista que se adota neste artigo. Para explicitar o entendimento que norteia este trabalho, faz necessário esmiuçar um pouco mais alguns argumentos da teoria de Todorov (2012) para daí localizar os pontos de discordâncias e as linhas de convergência com a proposta que é apresentada.

Todorov (2012) caracteriza a literatura fantástica no limite entre o maravilhoso e o estranho, entre uma explicação fabulosa, de um lado, e uma racional e mimética, de outro. No maravilhoso, as coordenadas de leitura não são orientadas pela verosimilhança com o mundo exterior ou pela conformidade com um padrão lógico e concreto. O foco está na fantasia, que se desenvolve com o mínimo de consideração à realidade. O maravilhoso também difere da crença religiosa, uma vez que ele não se fundamenta na fé, mas no faz-de-conta, na suspensão transitória e lúdica da descrença. Já no estranho (Todorov, 2012), a ênfase recai na manutenção de uma explicação lógica e da consideração à materialidade dos fatos, que são tensionados diante da aparição de um fenômeno aparentemente anômalo e sobrenatural.

Deve-se ter em vista que o entendimento do estranho em Todorov (2012), ainda que inspirado no ensaio freudiano de 1919, não constitui uma aplicação direta e imediata deste. Trata-se antes de um desenvolvimento teórico próprio e independente, que, como pontua Masschelein (2011), possui o sentido mais próximo ao do sobrenatural elucidado. Daí a manutenção do termo estranho, como consta na tradução de Todorov (2012) para o português, para diferenciá-lo do infamiliar freudiano (Unheimliche).

Segundo Todorov, o espaço de realização do fantástico é efêmero e instável. Ele localiza-se no limite entre o maravilhoso e o estranho, na indecisão entre uma interpretação fabulosa e fatídica da narrativa. Por conseguinte, assim que essa indeterminação é superada e o leitor opta por um desses caminhos, o fantástico se esvai, cedendo lugar à literatura de fantasia (no caso do maravilhoso) ou à ficção científica, policial ou de mistério (no caso do estranho). Assim, no contexto da definição todoroviana, a psicanálise surge como uma espécie de ficção de base científica que concorre com o fantástico, anulando o espaço de indeterminação necessário para a sua realização.

Defende-se que, ao invés de uma oscilação entre posições antagônicas e irreconciliáveis, é razoável situar o efeito do fantástico como o agenciamento de um movimento de báscula entre diferentes possibilidades de enunciação. A partir dessa perspectiva, a tensão supostamente desagregadora entre psicanálise e literatura fantástica indicada por Todorov pode ser tomada como uma potencialidade a ser explorada. É licito interrogar se esta oposição não se apoia, em última instância, na constatação de uma proximidade entre o objeto da psicanálise e os objetivos da literatura fantástica.

Entende-se que a arquitetura do fantástico precisa ser incessantemente recriada a cada história. Tal fato decorre da natureza instável de seu próprio projeto: a produção de um instante de vacilação no leitor, a amplificação de sua intensidade e a extensão de sua duração. Nessa empresa, os modelos temáticos e sintáticos das obras que obtiveram êxito em alcançar esse fim devem ser transformados e subvertidos, uma vez que eles são incessantemente incorporados pela cultura ao discurso corrente ou inoculados por processos que se desdobram no âmbito da ciência e dos costumes (Ceserani, 1999; Roas, 2014).

Vários estudiosos da teoria literária se manifestaram contra a tese do fim da literatura fantástica no século XX (Ceserani, 1999; Manna, 2014; Roas, 2014). Dentre eles, sobressaem-se a crítica ao caráter excessivamente restritivo e pouco maleável da definição todoroviana e a constatação da necessidade de construção de um modelo explicativo mais abrangente que incluísse algumas obras da atualidade além das tradicionalmente reconhecidas pelo cânone literário. De todo modo, os autores citados estão cientes de que sustentar uma definição ampla e versátil para o fantástico não é tarefa simples, haja vista que qualquer formalização teórica acaba por privilegiar algumas estratégias literárias em detrimento de outras. Daí o caráter assumidamente circunstancial e dinâmico desse esforço de conceituação e crítica.

Uma vez aceita a tese de que a literatura fantástica e a psicanálise não necessariamente se anulam, mas, ao contrário, podem se esclarecer e se apoiar mutuamente e de que a primeira não desapareceu, mas, ao invés disso, trocou as vestes, lança-se a pergunta sobre os diferentes modos por meio dos quais a literatura fantástica conjura os efeitos de angústia, vacilação narcísica e desrealização. Destaca-se que tais estratégias serviram de materia-prima para a conceituação do sentimento do infamiliar (Freud, 1919/1997d; Jentsch, 1906). Por outro lado, verifica-se que, a partir da segunda metade do século XX, muitos elementos da teoria psicanalítica, sobretudo o conceito do infamiliar, surgem como referências na teoria literária para a conceituação do fantástico (Todorov, 2012; Ceserani, 1999). Do exposto, no próximo tópico serão apresentados alguns conceitos do campo da teoria literária e da estética que participaram da formulação da proposta aqui apresentada.

Contribuições da teoria literária e da estética à psicanálise

Antes de discorrer sobre a expressão arquitetura do infamiliar e a sua aplicação no comentário de textos literários fantásticos, optou-se por apresentar alguns argumentos levantados pela teoria literária que influenciaram esta formulação. O primeiro deles, o conceito de leitor implícito, ocupa-se da relação entre determinismo da narrativa e liberdade de interpretação. Para Iser (1984), todo livro abriga uma potencialidade de efeitos estéticos que só se realiza no ato de leitura, na relação do leitor com o texto e a cultura na qual ele vive. Por isso, todo texto está sujeito a diferentes interpretações, mas, ao mesmo tempo, traz em seu bojo um conjunto de instruções, manifestas ou não, que orientam a interação do leitor e que privilegia determinadas vias de afetação e significação.

Essa é justificativa para a inclusão da referência ao conceito de leitor implícito na formulação da arquitetura do infamiliar. Tal concepção se apoia nessas instruções incluídas na narrativa textual, as quais precisam estar em sintonia com a conjuntura psíquica do leitor para que o sentimento do infamiliar possa se realizar. Entende-se que as reações do leitor não podem ser fortuitas ou acidentais. Elas precisam estar concatenadas à narrativa. O escritor, por sua vez, no seu processo de criação literária, necessita evocar aquilo que habita o âmago mais perene e atávico da estrutura subjetiva do leitor: seus medos, esperanças, receios, dúvidas e inquietações.

É importante nesse ponto fazer uma ressalva acerca dos pressupostos adotados neste artigo e os que embasam as ideias de Iser (1984). Para esse autor, o ato de leitura é concluído quando o leitor se decide por uma linha interpretação. Nesse momento, todos os outros potenciais sentidos que o texto traz são excluídos do horizonte. Tal entendimento deriva da tradição fenomenológica, a partir da qual a leitura é concebida como um ato intencional e unívoco da consciência que se realiza na apreensão de um objeto, no caso, o texto (Eagleton, 1997).

Tendo essa concepção em vista, esclarece-se que se adota a contribuição de Iser apenas parcialmente. Apesar de reconhecer a existência no texto de instruções para a sua interpretação e, simultaneamente, a possibilidade de diferentes vias de significação pelo leitor, entende-se que o ato de leitura não se conclui com a escolha de um sentido, que ele permanece, portanto, irredutivelmente parcial e plural.

Outro tópico levantado pelos teóricos da literatura que é do interesse do psicanalista é o desafio que o escritor de textos fantásticos assume de cativar o leitor até o final da história (Calvino, 2004; Casares, 2013). De acordo com Trias (2005), o sentimento do infamiliar localiza-se na instável fronteira entre o belo e o horror. Consequentemente, o texto fantástico, ao mesmo tempo em que visa o desencadeamento de uma tensão angustiada, não pode deixar de acalentar a indicação de uma recompensa estética prazerosa ou de um apaziguamento com a realidade, ainda que tal expectativa não seja satisfeita ao final. Por se tratar na maioria das vezes de contos e histórias curtas (Alvarez, 2012), uma parcela significativa da dificuldade inerente à realização da arquitetura do fantástico está em fisgar a atenção do leitor em relação a um fato anômalo que é central no desenrolar da história, provocando nele uma espécie imersão sem, contudo, excluir a sua capacidade crítica e a sua implicação na realidade objetiva.

Uma dificuldade com a qual se deparam tanto escritores como teóricos da literatura está no já mencionado caráter efêmero e pontual dos efeitos de estranhamento e desrealização que a narrativa fantástica se compromete em promover. Entende-se que, nessa literatura, a irrupção do sentimento do infamiliar, ainda que de modo fugaz, deve ser suficientemente marcante e intensa para impregnar a experiência de leitura. O escritor deve então planejar a reverberação desses efeitos como ápice e ponto central da história (Calvino, 2006; Casares, 2013) na forma de uma surpresa, de certa forma já intuída pelo leitor, mas que não pode ser evitada. Como desdobramento dessa exigência, a conceituação teórica da literatura fantástica deve ser capaz de localizar, descrever e analisar as estratégias textuais que desencadeiam tais reações.

Um fator complicador que surge na definição da literatura fantástica e que atinge consideravelmente a sua escrita é a influência de aspectos culturais no ato de leitura. Tal fato é verificado quando se percebe que, em um dado momento histórico, um texto é capaz de suscitar medo e surpresa. Com o passar do tempo, esse mesmo texto pode tornar-se inócuo, caricato ou mesmo cômico (Calvino, 2004). Certamente, deve-se fazer a ressalva de que há obras que resistem ao passar do tempo, resguardando a sua virulência. De todo modo, os especialistas em teoria literária reconhecem que as vias de produção da angústia e do sentimento do infamiliar na literatura sofrem consideráveis inflexões em função de mudanças sociais, que, por sua vez, incidem nas formas de ler e redigir textos fantásticos (Calvino, 2004; Jackson, 2001; Roas, 2014). Percebe-se daí uma tensão entre tradição e inovação que deve ser incessantemente equacionada. De qualquer forma, apesar dessas variações, é possível reconhecer a permanência de um mote, uma espécie de núcleo comum, que faz com que as histórias fantásticas pareçam inéditas e, ao mesmo tempo, já contadas.

Assim, alguns temas podem ser considerados típicos, ainda que tenham recebido diferentes tratamentos e roupagens no decorrer dos últimos séculos. É possível enumerar alguns, a título de exemplo: o duplo, o autômato, os paradoxos temporais e espaciais, as paramnésias, as experiências de desrealização e dessubjetivação, a sugestão, a hipnose, as premonições e comunicações telepáticas (Casares, 2013; Cortázar, 2015; Todorov, 2012). É pertinente, portanto, interrogar o que garante a permanência desses temas mais recorrentes e o que eles podem esclarecer acerca do funcionamento do psiquismo.

O conceito de anamorfose é outro componente importante da construção da proposta de arquitetura do infamiliar. Para Recalcati (2006), a anamorfose explora os efeitos de distorção ocasionados pelas mudanças de perspectiva entre figura e fundo. Na pintura, o recurso à anamorfose faz surgir um objeto inesperado a partir de uma mancha, borrão ou detalhe, inicialmente tomado como algo de menor importância, como no caso da caveira estampada no tapete do quadro Os embaixadores, de Holbheim (Lacan, 1964/1998).

Pontua-se que a referência a recursos aplicados pela pintura, sobretudo a renascentista, assim como a sua apropriação como expediente temático e narrativo por escritores fantásticos do Século XIX, como é o caso de E. T. A. Hoffmann (1815-16/2015) no romance Os Elixires do diabo, mostra-se fundamental para a articulação entre a estética da anamorfose e as arquiteturas do infamiliar na literatura (Rabêlo & Martins, 2021). Assim, a anamorfose pode ser entendida como uma forma de produzir uma reação estética de estranhamento, na forma de uma dissolução narcísica pontual e fugaz, que se concretiza na irrupção de um objeto na cena que subverte uma pretensão de integridade e homogeneidade do Eu acalentada pelo leitor.

A ideia de arquitetura do infamiliar também foi inspirada no trabalho de Vidler (1994) acerca da presença na arquitetura moderna de um traço predominantemente infamiliar – Uncanny, como é traduzido o Unheimliche freudiano para o inglês –, que rompe com o paradigma clássico, onde os edifícios, em analogia com uma determinada forma de apreensão do corpo humano, são tomados como superfícies sólidas, contínuas e unitárias, com limites definidos entre interior e exterior. Para o autor, a arquitetura moderna apoia-se numa concepção de corpo fragmentado, descontínuo e poroso. Iannace (2016), por sua vez, menciona a expressão arquiteturas do fantástico, no plural, para indicar uma correspondência na obra de Murilo Rubião – uma das principais referências do fantástico nacional – entre a estrutura de composição de seus contos e a organização dos prédios nas metrópoles brasileiras, em especial, São Paulo.

Deve-se assinalar que a ideia de arquitetura, que é resgatada por Vidler na problematização do conceito do infamiliar, já está presente em gérmen na origem da literatura fantástica a partir de sua herança do romance gótico do século XVIII, que tomava o ambiente dos castelos medievais para criar uma ambiência soturna de mistério (Rabêlo, Martins & Danziato, 2019). Ressalta-se, contudo, que ao se adotar o sintagma arquiteturas do fantástico toma-se o termo arquitetura a partir da concepção de leitor implícito. Isto é, como um conjunto de balizas – implícitas e explícitas – que modulam de forma plural a relação do leitor com o texto. Assim, na literatura fantástica, o que está em jogo é a construção de um enquadramento textual e simbólico que realiza um efeito anamórfico, por meio da qual o leitor é levado a se confrontar com uma situação obscura e opaca que ele consente em acompanhar. Inicialmente como um espectador interessado. O desenrolar da narrativa, todavia, produz uma reviravolta, que desencadeia efeitos de surpresa e estranhamento.

Por conseguinte, o desenho da arquitetura do infamiliar na literatura exige um cálculo bastante refinado, preciso e meticuloso, que se vale das fissuras do processo de constituição psíquica do leitor para revelar de forma pontual aquilo que se mantém como resto do narcisismo primário (Freud, 1919/1997d). Sugere-se então que as vias por meio das quais o sentimento do infamiliar é desencadeado na literatura evidenciam as especificidades e a dinâmica da estruturação subjetiva, na sua complexa relação com a cultura e o social. Logo, a efetividade de um texto fantástico está intimamente relacionada à habilidade do escritor de capturar o espírito da subjetividade de sua época, por vezes de forma antecipatória.

A dinâmica psíquica do infamiliar na literatura fantástica

Destaca-se que algo similar ao chiste acontece na realização do infamiliar, no sentido que ambos evidenciam a radicalidade da relação do psiquismo com uma alteridade (O Outro), que é conjurada por intermédio de uma experiência estética apoiada em arranjos de linguagem (Freud, 1905/1997b; Lacan, 1957-58/1999). Deve-se, contudo, marcar uma diferença entre o primeiro e o último: neste, o desenho da história e os recursos narrativos são cruciais na realização do efeito almejado; enquanto naquele, elementos pontuais da gramática textual e do jogo de palavras podem ocupar um papel de destaque. Como consequência, o riso evocado pelo chiste pode acontecer de forma espontânea, surpreendendo até o próprio sujeito que o enuncia, enquanto a produção do sentimento do infamiliar na literatura fantástica requer um planejamento deliberado, ainda que frequentemente o escritor não se dê conta da complexidade do arranjo que engendra (Bermejo, 2002; Cortázar, 2015).

Tendo essa distinção em vista, pontua-se que a arquitetura do infamiliar no fantástico pode ser descrita daí como a tessitura de um espaço anamórfico (Lacan, 1964/1998) que faz emergir no ápice da narrativa uma mancha que se presta a função de trompe-l’oil, ou, dito de outra forma, de um armadilha para o olhar. Deve-se aqui fazer a ressalva de que o uso da anamorfose nas artes plásticas é um expediente preponderantemente visual, ao passo que a surpresa produzida pelo texto fantástico apoia-se na tessitura de um enredo verbal. De qualquer forma, tanto lá como cá, na pintura e na literatura, a obra em um primeiro momento alimenta e modula as expectativas do leitor/espectador para, então, subvertê-las. Assim, a anamorfose, como uma técnica expressiva pictórica, transforma-se em um segundo momento em uma estratégia narrativa textual.

Desse modo, o artifício no qual a literatura fantástica se apoia pode ser descrito na forma de uma surpresa calculada com a qual o leitor é levado a se confrontar após percorrer um determinado percurso narrativo. No contato com esse ponto de captura da atenção, produz-se um enquadre que subverte muitas das interpretações pretensamente miméticas acalentadas durante a leitura do texto, isto é, a suposição de que é possível estabelecer uma relação direta entre o relato ficcional e a realidade imediatamente vivida. Tal expediente aparta o leitor de uma apreensão cotidiana e domesticada do texto, fazendo aflorar nele um inusitado sentimento que congrega estranhamento e familiaridade (Recalcati, 2006).

Do exposto, é proposto que antes de um oscilação do julgamento, a organização textual do fantástico reverbera uma divisão constitucional do Eu e, por isso, não deixa de reeditar e atualizar os efeitos de vertigem, desrealização e vacilação narcísica. Assim, a dúvida e a insegurança suscitadas pelo texto fantástico podem ser repetidamente relançadas, na medida em que algo da relação do sujeito com seu objeto causa de desejo é posta em questão, conforme está apresentado na fórmula da fantasia ($ <> a) (Lacan, 1964/1998). Sugere-se daí que o sentimento do infamiliar (Freud, 1919/1997d) resulta de uma aproximação modulada com o objeto causa do desejo, de onde se originam as vivências de angústia e desrealização. Para aceitar tal assertiva, deve-se ter em conta que o objeto . presente no grafo da fantasia não é um objeto qualquer que satisfaz uma demanda específica. Sua função de causa põe em movimento o próprio processo de desejar, de onde se deduz o seu caráter inefável e irredutível. Daí a sensação de evanescimento que a sua proximidade produz.

É proposto, portanto, que a arquitetura do infamiliar apoia-se na estrutura da fantasia, entendida aqui como realidade psíquica, que dá o enquadre e o limite às diferentes possibilidades de relação do sujeito com esse objeto éxtimo que orienta o desejo. Extimidade é um neologismo proposto por Lacan que condensa as palavras exterior e intimidade e vem demostrar a topologia paradoxal do objeto causa do desejo. Tem-se então o desejo como a tentativa de recuperação de um objeto perdido a partir dos restos de memória remanescentes de uma primeira satisfação radical que funda o psiquismo (Freud, 1900/1997a).

Sustenta-se que o objetivo visado pela arquitetura infamiliar na literatura fantástica é a construção de uma relação de proximidade regulada com esse objeto éxtimo. Por se tratar de um ponto radical, constitutivo, de certa forma inacessível, tem-se então que a ficção literária mostra-se um meio privilegiado para encenar a relação do sujeito com esse objeto causa do desejo.

Defende-se então que o escritor fantástico faz uso de suas próprias vivências e imaginação, produzindo daí uma construção peculiar, com um finalidade bem específica: causar angústia sem horror, sideração sem destituição da capacidade crítica, desvanecimento sem colapso da organização egóica.

A aplicação do termo construção nesse contexto merece um comentário mais detalhado. Para Freud (1937/1997e), construção é um arranjo desenvolvido e pelo analista que visa preencher uma lacuna nos elementos recolhidos da fala do analisando. Ela tem a função de fazer emergir um elemento recalcado que, por outra via, dificilmente viria a luz, por não ser espontaneamente articulável. Trata-se de um conteúdo que nunca se tornou consciente ou que enfrenta a oposição de forças de resistência bastante intensas e radicais. A pertinência de uma construção pode ser verificada, portanto, no modo como o inconsciente do analisando reage a ela e não necessariamente na aceitação manifesta de sua veracidade. Freud difere ainda a construção da interpretação em função do caráter pontual desta e da abrangência mais global daquela (Fontenele, 2002). Desse modo, uma intervenção fundamentada em uma construção tem como meta localizar uma posição do sujeito – a sua enunciação – no enunciado (Magtaz & Berlink, 2012).

No caso da arquitetura do infamiliar na literatura fantástica, é importante demarcar que a construção é realizada pelo escritor, sendo que o psicanalista se vale dela numa posição de investigador e intérprete. Assim, apoiado na ficção literária, foi possível chegar à formalização de um fenômeno psíquico – o infamiliar – que, de outro modo, teria permanecido incompletamente articulado ou inacessível. Logo, não é exagero afirmar que as construções dos escritores literários fantásticos contribuíram de forma decisiva para a pesquisa psicanalítica como um suplemento à clínica.

Deve-se destacar que, na pesquisa do sentimento do infamiliar na literatura, o analista inicialmente experiencia em si os efeitos de estranhamento e sideração ocasionados pela leitura de textos ficcionais para, em seguida, buscar decodificar a dinâmica deles a partir de uma comparação entre os recursos narrativos empregados e as reações estéticas e subjetivas que eles desencadearam. Por isso, nesse caso, trata-se de uma construção retroativa, em segundo grau.

Nesse ponto, é interessante regatar o debate entre Freud e Jentsch sobre o sentimento do Unheimliche para evidenciar as diferenças no uso que cada um deles faz do conto de E. T. Hoffmann (1816-17/2015), Der Sandmann. Enquanto Jentsch (1906) explica a origem do infamiliar em decorrência de uma insegurança intelectual que produz angústia – no caso, a dúvida sobre se uma figura é um ser vivo ou um boneco inanimado –, Freud (1919/1997d) faz remontar a causa desse sentimento a um processo mais radical e estrutural do psiquismo.

Trata-se, segundo ele, de uma modalidade especial de retorno do recalcado que remete à manifestação de um conteúdo que originalmente participou da constituição do Eu, mas que não é reconhecido como tal, a não ser de forma episódica (Freud, 1919/1997d). Logo, o infamiliar pode ser entendido como uma radicalização do dito freudiano de dois anos antes: o Eu não só não é senhor em sua própria casa (Freud, 1917/1999); os próprios solo e fundamento de sua casa lhe são estranhos.

O conto de Hoffmann (1816-17/2015) explora o sentimento do infamiliar no leitor, na medida em que encadeia, conserva e condensa três dimensões da vida anímica do protagonista: 1) as histórias de terror contadas pela babá, que apresentam Nathanael ao Sandmann, uma figura mítica que vem à noite arrancar os olhos das crianças desobedientes que se recusam a dormir; 2) duas lembranças infantis traumáticas: a primeira, contrariando as admoestações da babá, já tarde da noite, o protagonista presencia uma discussão do pai com um homem misterioso, o qual prontamente associa ao Sandmann. Em seguida, há uma explosão no laboratório de química do pai, que lhe fere mortalmente; 3) os eventos da cronologia atual, que levam Nathanael a confundir sua noiva com uma boneca inanimada e, depois disso, lançar-se para a morte.

Do exposto, se Jentsch (1906) concentra a discussão na relação do protagonista com a boneca Olímpia, destacando a dúvida do primeiro sobre se pessoa por quem se apaixonou é uma mulher ou um autômato, Freud situa o efeito dramático da narrativa nos acontecimentos que se acumulam e se enodam desde as primeiras lembranças de Nathanael. Esses conteúdos se atualizam e se amalgamam no decorrer da trama, até chegar ao seu ápice.

Pode-se dizer que, para alcançar uma modulação eficaz do sentimento do infamiliar no leitor, Hoffmann insere na história várias rupturas no fluxo da narrativa, que, de certo modo, reverberam pontos cegos do fluxo de consciência do protagonista. Esse expediente é reforçado pela alternância da voz do narrador, que, valendo-se do expediente da troca de cartas entre os personagens, salta entre Nathanael, a sua noiva (Clara) e o seu cunhado (Lothar). Ao final, a voz assume a perspectiva de uma narrador anônimo não-onisciente, que acompanha o desfecho da história, amplificando e reforçando o estranhamento do leitor. Desse modo, cabe ao leitor alinhavar e ordenar em cada momento da história os conteúdos que preparam e antecedem as crises de Nathanael.

Os pontos de ruptura da história são três e remetem a momentos de síncope e perda da consciência de Nathanael. O primeiro ocorre ainda na infância, quando ele presencia o fogo no laboratório do pai, que realizava experimentos com produtos químicos na companhia do enigmático advogado Coppelius. O segundo momento ocorre quando Nathanael presencia o professor Spalanzani retirar os olhos de vidro que o óptico Coppola havia lhe fornecido para ornar a boneca Olímpia. Por acreditar que o suposto pai de sua amada lhe infligia uma tortura atroz, Nathanael, assim como já acontecera na infância, perde a consciência e sucumbe a um estado febril que dura dias. O terceiro tempo situa-se no desfecho da história, quando Nathanael, ainda convalescente, recebe a visita de sua mãe, seu cunhado e sua noiva. Confundindo-a com Olímpia, ele ameaça jogar Clara do alto de um prédio. Lothar, percebendo o perigo, intervém e salva a irmã, mas não consegue fazer o mesmo com Nathanael, que salta das alturas após avistar a figura do advogado Coppelius, que o observava do térreo pela lente de Coppola. A errática fala final de Nathanael é um indicativo de um processo de amálgama das reminiscências dos dois momentos anteriores, na medida que ela remete à boneca de madeira – no diminuitivo, “Holzpuppchen” – e as rodas de fogo da explosão do laboratório do pai – “Feuerräder” – (Hoffmann, 1816-17/2015, p. 223).

Tem-se então uma sequência de nomes – Coppelius, Spalanzani e Coppola –, cada um deles constituindo um substituto e equivalente do outro, o que pode ser tomado como uma forma de retorno, presentificação e atualização do recalcado infantil na experiência do infamiliar na vida adulta.

A divisão interna do protagonista que é referida no parágrafo final do conto – “im Innern zerissene Nathanael” (Hoffmann, 1816-17/2015, p. 223) – é espelhada na própria estrutura do texto. Construído em camadas, o conto alcança o seu ápice ao enodar e confundir os momentos anteriores da trama, evocando por essa via a própria divisão interna do leitor pela irrupção do sentimento do infamiliar.

Conclusão

Defendeu-se que o estudo dos artifícios literários utilizados na ficção fantástica podem trazer contribuições importantes para o entendimento das vicissitudes da fantasia e do processo de constituição do Eu e da realidade. Sugeriu-se que a literatura fantástica conjura os pontos de colapso da prova de realidade e as falhas do recobrimento do processo primário pelo secundário (Freud, 1911/1997c), o que pode, em determinadas circunstâncias, favorecer a modulação do sentimento do infamiliar, entendido aqui como a manifestação episódica de um conteúdo atávico constitutivo do psiquismo em latência. Desse modo, para modular o sentimento do infamiliar no leitor, a ficção fantástica transita no litoral entre a fantasia e a realidade exterior objetivada, o que contribui para o desencadeamento de uma experiência estética que se apoia na vivência de um Eu poroso, cujos limites fluidos põe em causa a própria consistência da realidade. Daí a referência aos conceitos lacanianos de extimidade, anamorfose e objeto a

Foi proposto que uma forma de arquitetura do infamiliar, tal como a sugerida por Vidler (1994), pode ser encontrada na literatura fantástica. Em referência ao conceito de leitor implícito, indicou-se que a urdidura da ficção fantástica apoia-se em uma construção que amálgama traços de vivências e fantasias do escritor com elementos da cultura e do cânone literário de seu tempo. O resultado almejado é uma ficção que é capaz de atingir traços da constituição psíquica do leitor e, dessa forma, evocar uma experiência estética fundamentada no sentimento do infamiliar.

O debate entre Freud e Jentsch em torno do conto de Hoffmann, O Homem de Areia, foi então trazido à baila para demonstrar que, para a psicanálise, a realização do infamiliar na literatura pressupõe uma construção ficcional ampla, global, sobredeterminada, que se apoia em várias camadas narrativas, que se combinam e se fundem, o que corrobora a presença nele de uma arquitetura do infamiliar.

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