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INTRODUÇÃO SIONISMO CRISTÃO NA AMÉRICA LATINA E SUAS MÚLTIPLAS DIMENSÕES
Recepção: 16 Novembro 2023
Aprovação: 16 Novembro 2023
Na paisagem urbana da capital guatemalteca e em várias outras cidades espalhadas por aquele país, há numerosas referências ao Estado de Israel. 1 A Estrela de Davi se impõe em praças que ganharam o nome de Israel, entre as mais importantes estando na avenida financeira da capital 2 e na monumental área na maior zona portuária do país. 3 Sobre essas referências, chamam atenção as ruas nomeadas de “Jerusalém capital de Israel,” 4 que já são mais de vinte 5 em todo o país, localizadas tanto em pontos estratégicos da capital nacional como nas cidades departamentais. Nomear espaço públicos dessa forma é assumir uma posição política muito clara. Enfatizar que Jerusalém é a capital de Israel não é apenas demonstrar o amor ao povo judeu, nem mesmo ao Estado de Israel, mas também defender uma proposta mais agressiva de sionismo, na medida que rejeita as resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) e posicionamentos da comunidade internacional sobre Jerusalém. 6
Nesse sentido, a Guatemala deixa claro que abraça a causa do setor sionista mais radical que vai contra a decisões de órgãos internacionais. Uma possível explicação para esse tipo de posicionamento nacional seria, entre outras, a força de um setor evangélico específico na política guatemalteca. A Guatemala tem se destacado entre os países da América Latina pelo grande percentual de evangélicos na sua população (mais de 40%) e pelo fato desses terem tido grande sucesso eleitoral. O país já teve mais de um presidente evangélico.
Em pesquisa de campo, ao percorrer o país em maio 2022, 7 mês em que se comemoravam 74 anos da fundação do Estado de Israel, surpreendia observar as centenas de bandeiras de Israel espalhadas por estradas, avenidas e ruas das cidades. Bandeiras que flanavam especialmente nos mastros das pequenas e megas igrejas pentecostais, ora na entrada dos templos, ora no púlpito, e sempre ao lado da bandeira da Guatemala, talvez sinalizando uma concepção de dupla pertença nacional 8 ou uma adesão religiosa a um projeto político. Bandeiras são o item indispensável na Marcha de Israel, grande evento público que celebra a fundação desse Estado. 9 Tal marcha é organizada por lideranças das igrejas, participando, além dos fiéis, ministros e diplomatas, também a embaixada de Israel e a comunidade judaica. O evento se traduz numa onipresença simbólica de Israel no país, refletida nas centenas de bandeiras espalhadas pelas igrejas. 10
A simpatia dos evangélicos com os judeus e o empenho na defesa da nação e Estado de Israel são fenômenos relativamente novos na América Latina, não sendo exclusivo da Guatemala, embora pareça ser mais proeminente nesse país. Mais recentemente e em proporções menores, mas não por isso menos significativa, a presença da bandeira de Israel no Brasil constituiu-se num marcador simbólico das campanhas à presidência de Jair Bolsonaro (2018-2022), formando parte do visual verde-amarelo salpicado de azul-branco nos comícios e pronunciamentos públicos. 11 Da mesma maneira, a bandeira foi observada nos atos antidemocráticos ocorridos durante o governo bolsonarista. 12 A bandeira israelense também se torna parte da estética dos templos pentecostais e é, cada vez mais, um componente na Marcha de Jesus, manifestação evangélica multitudinária realizada anualmente. 13
Performances similares de simpatia e apoio proativo ao Estado de Israel, promovidas por setores neopentecostais, não são raras em outros países da América Latina. No México, diversas igrejas evangélicas do país, junto a cristãos representantes da Embaixada Cristã Internacional em Jerusalém ( International Christian Embassy of Israel - ICEJ), organizaram em 2015 a Marcha de la Gloria para comemorar a Páscoa Cristã. Nela, inúmeros jovens portavam a bandeira israelense e recitavam alusões bíblicas sobre Israel. 14 Da mesma maneira, no ano de 2017, na cidade colombiana de Casanare, igrejas evangélicas, junto à comunidade judaica do país, reuniram mais de 20 mil pessoas para abençoar Israel. Durante o percurso realizado nas principais ruas da cidade, inúmeros participantes portaram a bandeira de Israel e expressavam seu carinho pelo país com cânticos e orações. De acordo com Eduardo Gomes, pastor organizador do evento: “quanto mais cresce a igreja cristã evangélica, mais cresce o amor, o apoio e a oração pelo Estado de Israel e pela comunidade judaica”. 15 No Chile, o dia Nacional das Igrejas evangélicas “foi especial para os que professam a fé e o credo, [saímos] por todas partes do Chile, para alçar uma voz em defesa de Israel, levando nas mãos a bandeira de Chile e a de Israel”. 16 No Panamá, a Alianza Evangélica, que integra grande parte das igrejas pentecostais no país, lançou o programa “Bandeiras e Amizade”, recebendo do embaixador israelense bandeiras como símbolo de estreitamento de laços com as comunidades evangélicas locais, escutando a promessa de serem disseminadas pelas comunidades cristãs do país. 17
A presença da bandeira de Israel, tanto nos espaços religiosos cristãos quanto nos eventos públicos dos países mencionados acima, está relacionada com a grande expansão das igrejas evangélicas na região e com a influência cada vez mais visível da nova direita cristã estadunidense no continente americano ( Machado, Mariz & Carranza, 2021). Ou seja, o apreço ao povo judeu e a adoção do estandarte são tendências transnacionais que sugerem a recente difusão do sionismo cristão na América Latina.
Sabe-se que a bandeira foi concebida em 1891 pelo Movimento Sionista Internacional como um símbolo da luta pela criação de uma nação para os judeus, e que só alguns meses depois da criação do Estado de Israel e sua aprovação pela ONU, ela foi adotada como símbolo da nova nação. 18 No estandarte fundem-se a representação nacionalista dos israelenses e a simbologia judaica expressa na Estrela de Davi. O emblema parece evocar uma dupla identidade, a religiosa e a laica, e assim também simboliza a pertença à nação escolhida por Deus e ao país reconhecido pela ONU. Na resolução de 1948 desse organismo internacional, estava prevista a criação tanto do Estado israelense quanto o da Palestina, mas a proposta da solução de dois Estados ainda não foi concretizada, prejudicando a população nativa daquela região.
De qualquer forma, quando acionada como um elemento visual de fácil identificação, a bandeira de Israel pode condensar relações históricas, diplomáticas e religiosas que convergem em diferentes ações de apoio ao Estado de Israel. Nessa junção, os evangélicos pentecostais do continente se percebem como cumprindo uma missão especial de cunho profético, ora na difusão do amor e simpatia ao povo judeu, ora como pontes para um estreitamento de relações entre seus países e Israel. Por outro lado, essa missão também é fruto do empenho do próprio Estado de Israel, como ilustra o testemunho do pastor mexicano Gilberto Rocha Margáin, do Centro Cristão de Calacoaya. Em 2018, esse pastor foi convidado por Benjamim Netanyahu, então primeiro-ministro do Estado de Israel, a visitar seu país, junto com mais 15 pastores latino-americanos. No encontro, o primeiro-ministro solicitou aos pastores que a comunidade evangélica ajudasse a:
sanar as relações entre o Estado de Israel e América Latina (…). [V]ocês podem ser uma ponte espiritual [disse Netanyahu] porque conhecem a história de Israel passada, presente e futura... compartimos o Antigo Testamento… os convido para que sejam um enlace com seus governos para mudar atitudes com Israel (…). 19
Diante dessas palavras, o pastor Margáin se mobiliza pela causa de Israel e, em seu relato, confessa:
assumi como desígnio divino e me reuni com o presidente mexicano para agilizar acordos entre nosso país e Israel (…). Temos que trabalhar para tirar a ignorância da fé dos católicos que insistem em dizer que judeus mataram Jesus (…). No lugar de culpar temos que abençoar (…). Estavam no hotel pastores da República Dominicana, Guatemala, Costa Rica, Panamá, Paraguai (…). Tomamos consciência da grande importância que a Igreja evangélica teve no sionismo (…). Saímos com o propósito de nos unir à coalização pró-Israel. 20
É relevante sublinhar que o pastor Margáin e os outros pastores que viajaram com ele, somente tomaram consciência da teologia que defende a importância do destino do povo judeu para os cristãos na visita de 2018 a Israel e através de uma autoridade política israelense. Esse relato nos revela como é recente a expansão do sionismo cristão entre evangélicos da América Latina, assim como sublinha o papel de lideranças do próprio Estado de Israel nessa expansão. No entanto, no mundo anglófono o processo foi bem distinto. Sabe-se do desenvolvimento concomitante da teologia dispensacionalista e do movimento sionista na Inglaterra, e da colaboração do anglicano William Hechler (1845-1931) com Theodor Herzl, o fundador do sionismo. Hechler incentivou o apoio evangélico ao sionismo moderno e rompeu com a tradição antissemita protestante e católica, que datava desde a patrística na Igreja Católica e na Reforma Protestante ( Motti, Bumin & Byrd, 2020: 6).
Constatamos, então, a partir dos textos deste dossiê, que o apoio cristão à causa sionista se prolonga no século XX e XXI, adotando diversas formas de engajamento e seguindo determinada hermenêutica bíblica sobre o direito de posse da Terra Prometida ao povo judaico, de acordo as conjunturas sociopolíticas em cada contexto.
Em outros textos ( Machado, Mariz & Carranza, 2021, 2022) já discutimos as origens norte-americanas e europeias do sionismo cristão (Christiam Zionism), bem como a genealogia do sionismo evangélico no Brasil, mas aqui gostaríamos de retomar a perspectiva a partir da qual compreendemos o sionismo cristão como uma categoria analítica. Endossamos a noção de sionismo cristão na linha proposta por Freston (2020), que sugere a especificidade do sionismo cristão como o engajamento político de evangélicos e católicos no apoio às políticas do Estado de Israel para ampliar e legitimar sua expansão territorial. Tal ativismo político é inspirado inicialmente pela perspectiva teológica dispensacionalista, que foca no papel primordial do povo judeu, identificado contemporaneamente como o Estado israelense, no cumprimento das promessas bíblicas. O retorno à Terra Prometida seria assim um sinal da proximidade da segunda vinda de Cristo ( Hummel, 2019;McDemortt, 2016). Para além do apoio ao Estado israelense, dois outros tipos de comportamento e sentimentos resultam dessa concepção teológica: a identitária, ou seja, a tentativa de evangélicos se definirem também como judeus ( Toniol, 2020;Carpenedo, 2021); e a do filossemitismo, enquanto manifestações de afeto e simpatia pelo povo de Israel, nutridas por uma Israel bíblica e secularmente imaginária ( Reinke, 2022;Frossard, 2013).
Esse dossiê apresenta seis textos que analisam, sob diversas óticas, expressões do filossemitismo e do sionismo cristão em três países da América Latina - Brasil, Venezuela e Guatemala -, proporcionando ao/à leitor/a um panorama interessante do debate atual nos campos teológico e das ciências sociais da região. O primeiro artigo, intitulado “A função do imaginário no sionismo cristão brasileiro”, busca as motivações religiosas de evangélicos brasileiros para o engajamento no sionismo cristão nas passagens bíblicas relacionadas à segunda vinda de Cristo e ao estabelecimento do Reino de Deus. André Reinke argumenta que, a depender da importância que a espera ou a realização do Reino tenha para os diferentes segmentos protestantes, o fenômeno do sionismo pode adquirir características distintas na nossa sociedade. Com base nessas características, o autor apresenta três tipos ideais de sionismo: a) o clássico e de matriz dispensacionalista; b) o novo sionismo cristão; e c) o simbólico-afetivo.
No artigo “O sionismo cristão no Brasil do século XXI e os interesses em jogo”, Maria das Dores Campos Machado e Cecilia Loreto Mariz, seguindo a perspectiva weberiana, discutem os interesses materiais e ideais das lideranças evangélicas locais bem como de setores empresariais e da elite política do moderno Estado de Israel, no fomento ao sionismo cristão no Brasil. Na interpretação das autoras, o fenômeno decorre de fatores exógenos e endógenos à sociedade brasileira e vem sofrendo reconfigurações em função dos interesses (econômicos, políticos, ideais, expansionistas etc.) e das estratégias políticas dos distintos atores evangélicos e da embaixada do Estado de Israel no Brasil. O Grupo Parlamentar de Amizade Brasil-Israel é identificado como um importante espaço de atuação de parlamentares evangélicos sionistas que cada vez mais disputam a coordenação dos trabalhos e mediação com a representação diplomática de Israel. As viagens à Terra Santa e à Tel Aviv - sejam as de turismo religioso ou de caráter político – são vistas pelas autoras como experiências que fomentam reconfigurações do sionismo cristão, com a introdução de argumentos de caráter secular nos discursos em defesa do Estado israelense.
Na sequência, Fernando Adolfo Mora Ciangherotti analisa as inusitadas circunstâncias em que foi gerado e desenvolvido o sionismo cristão na Venezuela. Com o sugestivo título “Sionismo evangélico-pentecostal a la venezolana: el caso de las cartas del pastor Banks Puertas al presidente Hugo Chávez”, o artigo nos localiza temporalmente num período de relações polêmicas entre Israel e Venezuela. Ciangherotti revela as disputas teológicas que legitimam a intervenção evangélica pró-Israel perante o governo chavista e nos desvela a progressiva manifestação pública dos evangélicos para “abençoar Israel” e participar, portanto, das bênçãos sociais que esse abençoar traz para quem o realiza. Ao mesmo tempo, nos mostra a leitura religiosa que os evangélicos farão sobre seu empobrecimento, atribuindo os males sociais do país ao fato do governo não apoiar o Estado de Israel.
O crescimento do sionismo cristão tem sido estimulado de várias formas e uma delas é o turismo de evangélicos para Israel, como nos mostra Miriane Sigiliano Frossard em seu texto “Em amor a Sião: as caravanas para Israel da Visão Celular no Modelo dos 12 (M12) como um projeto de alijah espiritual”. A partir de observação participante em uma caravana para Israel organizada por igrejas da Visão Celular no Modelo dos 12 (M12), movimento criado pelo Apóstolo Renê Terra Nova, e de uma netnografia em sites dessas igrejas, a autora discute o projeto de implantação do “amor por Sião” que caracteriza esse grupo evangélico neopentecostal. Esse amor, que surge e se alimenta no turismo religioso à Terra Santa, se expressa na defesa do moderno Estado de Israel, na rejeição de seus críticos e inimigos, e também da adoção de festas religiosas, de músicas judaicas em hebraico, e, ainda, na guarda do sábado. Os fiéis do M12 são estimulados a serem sionistas e a serem similares aos judeus. A autora destaca que o auge da excursão à Israel é participação do grupo evangélico na festa de Tabernáculos organizada pela International Christian Embassy of Israel (ICEJ). Essa festa reúne cristãos do mundo inteiro. Pela quantidade de fiéis brasileiros que tem levado para o evento, Terra Nova tem sido premiado e se tornou conhecido em Israel. A autora observa que nessa celebração o caráter religioso se integra ao político. Discursos sionistas são proferidos. A autora acrescenta ainda que o apóstolo não abandona a teologia da prosperidade quando afirma que a participação na festa de Tabernáculos recebe bênçãos e prosperidade.
Numa outra perspectiva, Claudia Dary Fuentes tece uma série de conexões entre a comunidade judaica guatemalteca e as igrejas pentecostais, o histórico diplomático da Guatemala que participa na fundação do Estado de Israel, o ativismo parlamentar pró-Israel dos pastores evangélicos e a ostensiva presença simbólica de Israel nas igrejas e espaços urbanos. A partir dessas conexões, a autora argumenta que a amizade entre Guatemala e Israel é uma relação historicamente construída. Por isso, o artigo “Aproximación al sionismo cristiano en Guatemala” mostra como o sionismo cristão guatemalteco é, a um só tempo, uma interpretação bíblica e uma opção política das lideranças religiosas.
Finalmente, o texto “Mídias do idêntico: pertencimento e formas de associação do bíblico ao judaico com base em produções bíblicas brasileiras”, de autoria de Jorge Scola, discute como a TV Record, empresa vinculada a Edir Macedo e à Igreja Universal do Reino de Deus, tem aproximado os evangélicos brasileiros dos judeus e de Israel através das novelas bíblicas e de suas reportagens sobre aquele país e sobre os judeus em geral. Ao identificar Israel e judeus contemporâneos aos personagens bíblicos, essas reportagens e novelas atribuem a eles um papel importante na religião cristã, especialmente na fé evangélica, criando uma identificação religiosa e sentimentos de afinidade e simpatia por parte dos evangélicos em relação aos judeus. Alimenta-se aí um filossemitismo que, por sua vez, cria um terreno fértil para o florescimento do sionismo cristão. O texto não apenas aponta como a mídia pode ter papel importante na religião contemporânea, mas também busca contribuir para a discussão sobre judeidade. A questão de aferição de judeidade ganha relevância quando alguns grupos evangélicos, que levam esse “amor” e identificação com os judeus a ponto de reivindicar para si a identidade judaica.
Em seu conjunto os textos deste dossiê fornecem uma cartografia conceitual e empírica que permite entender o crescimento do sionismo cristão na América Latina. Ainda pouco estudado nesse subcontinente, o fenômeno, que já era importante, assume agora maior relevância a partir da reverberação mundial do ataque a Israel pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023, perante os posicionamentos dos diversos grupos evangélicos pelo mundo afora sobre o histórico conflito nessa área e a guerra que se seguiu. Nessa direção, é possível afirmar que a temática desse dossiê é de extrema atualidade e importância geopolítica e também político-religiosa.
Boa Leitura!