Resumo: Com base em entrevistas, observação de evento e informações de sites políticos e religiosos, analisamos diferentes iniciativas de atores coletivos e individuais – evangélicos e israelenses – que contribuem para a construção de uma cultura política pró-Israel na sociedade brasileira. Um dos nossos objetos de análise foi a instalação, em 2023, no Senado Federal do Grupo Parlamentar de Amizade Brasil – Israel, existente no Congresso Nacional. Por ter se tornado lócus importante de ativismo dos cristãos em favor do governo atual de Israel, esse grupo é também espaço de disputas entre os atores religiosos de diferentes igrejas. Além das tensões entre seus membros, nossa análise evidenciou interesses de parlamentares desse grupo por viagens à Terra Santa. Também foram identificadas iniciativas dos últimos governos de Israel visando o apoio dos evangélicos brasileiros ao estado de Israel. Inspiradas pela sociologia weberiana, discutimos os interesses materiais e ideais tanto dos evangélicos quanto do Estado de Israel e das redes transnacionais para fomentar o sionismo cristão no Brasil. Concluímos que, como fenômeno multifatorial, o sionismo cristão no Brasil se reconfigura e responde a interesses materiais e ideais, tanto das lideranças religiosas brasileiras, quanto de setores empresariais e da elite política do moderno Estado de Israel.
Palavras-chave: Sionismo cristão, Evangélicos brasileiros, Israel.
Resumen: A partir de entrevistas, observación de eventos e información de sitios web políticos y religiosos, analizamos diferentes iniciativas de actores colectivos e individuales – evangélicos e israelíes – que contribuyen a la construcción de una cultura política pro-israelí en la sociedad brasileña. Uno de nuestros objetos de análisis fue la instalación, en 2023, en el Senado Federal del Grupo Parlamentario de Amistad Brasil – Israel, existente en el Congreso Nacional. Debido a que se ha convertido en un importante lugar de activismo cristiano a favor del actual gobierno israelí, este grupo es también un espacio para disputas entre actores religiosos de diferentes iglesias. Además de las tensiones entre sus miembros, nuestro análisis destacó lo s intereses de los parlamentarios de este grupo en viajar a Tierra Santa. También se identificaron iniciativas de los recientes gobiernos israelíes destinadas a converter a los evangélicos brasileños em aliados políticos del Estado de Israel. Inspirándonos en la sociología weberiana, discutimos los intereses materiales e ideales tanto de los evangélicos como del Estado de Israel y las redes transnacionales para promover el sionismo cristiano en Brasil. Concluimos que, como fenómeno multifactorial, el sionismo cristiano en Brasil se reconfigura y responde a intereses materiales e ideales, tanto de líderes religiosos brasileños, como de sectores empresariales y de la élite política del moderno Estado de Israel.
Palabras clave: Sionismo cristiano, Evangélicos brasileños, Israel.
Abstract: Based on interviews, event observation and information from political and religious websites, we analyze initiatives by collective and individual actors - evangelicals and Israelis who contribute to the construction of a pro-Israel political culture in Brazilian society. One of our objects of analysis was the Federal Senate installation, in 2023, of the existing National Congress Brazil – Israel Parliamentary Friendship Group. As it became an important locus of Christian activism in favor of the current Israeli government, this group is also a space for disputes between religious actors from different churches. In addition to the tensions among its members, our analysis showed that parliamentarians of this group are interested in trips to the Holy Land. We also identified and analyzed initiatives from recent Israeli governments that aimed to obtain support from Brazilian evangelicals for the State of Israel. Inspired by Weberian sociology, we discuss the material and ideal interests of both evangelicals and the State of Israel and transnational networks to promote Christian Zionism in Brazil. We conclude that as a multifactorial phenomenon, Christian Zionism in Brazil reconfigures itself and responds to material and ideal interests, both from Brazilian religious leaders, business sectors and the political elite of the modern State of Israel.
Keywords: Christian Zionism, Brazilian Evangelicals, Israel.
Article
O SIONISMO CRISTÃO NO BRASIL DO SÉCULO XXI E OS INTERESSES EM JOGO
El sionismo cristiano en Brasil en el siglo XXI y los intereses involucrados
Christian Zionism in Brazil in the 21st Century and the Interests at Stake
Recepção: 19 Maio 2023
Aprovação: 05 Outubro 2023
Este artigo é fruto de nossa participação na equipe da pesquisa “O crescimento do Sionismo Cristão na América Latina”, iniciada em 2020, e ainda em andamento. 1 Identificamos como sionismo cristão um conjunto de ações desenvolvidas por setores evangélicos em defesa do Estado de Israel, com base no argumento religioso de que “os judeus teriam, por graça divina, o direito de posse e de habitar a terra prometida a eles no Antigo Testamento” ( Crome, 2018: 9). O sionismo cristão seria, portanto, uma forma de ativismo em defesa do que os evangélicos entendem ser a “causa dos judeus”. As formas de ação de segmentos cristãos foram muito diferenciadas ao longo do tempo e, a depender do contexto, variam da ajuda financeira aos judeus para a volta à Terra Santa até o lobby político para inserir os interesses do Estado de Israel na agenda dos governos nacionais, via parlamentos e/ou instâncias do Estado ( Freston, 2020: 386).
De origem anglo-saxônica, o sionismo cristão tem se tornado um fenômeno cada vez mais global e vem sofrendo reconfigurações em função de uma série de transformações histórico-políticas e teológicas ocorridas nos séculos XIX, XX e XXI ( Crome, 2018; Hummel, 2017; Spector, 2009). Para dar conta das atualizações recentes desse fenômeno nos Estados Unidos e em distintos contextos históricos e geográficos, como no Brasil e na América Latina em geral, vários analistas, como Spector (2009), Tabachnick (2010), Freston (2020), Reinke (2022), entre outros, desenvolveram tipologias que enfatizam as características mais marcantes das distintas iniciativas de cristãos identificados como sionistas. Essas análises e tipologias que, por um lado, chamam atenção para influências que o sionismo cristão tem recentemente sofrido, em graus distintos, dependendo do contexto nacional, de teologias pentecostais/neopentecostais (como Domínio e Prosperidade) e da islamofobia, por outro lado, apontam para o surgimento de grupos que combinam sionismo cristão com práticas judaizantes.
A América Latina se torna objeto de interesse especial para quem estuda sionismo cristão, pois esse tem ganhado força na esteira da expansão dos setores evangélicos em países como Guatemala, Brasil, Costa Rica, entre outros. Redes transnacionais permitem a circulação de teologias, atores, ideias e estratégias de ação política pelas diferentes sociedades nacionais, favorecendo um alinhamento ideológico e político de setores evangélicos com o moderno Estado de Israel. Com foco no Brasil e em continuidade a trabalho anterior ( Machado, Mariz & Carranza, 2022), defendemos no presente artigo a hipótese de que o processo desenvolvimento deste fenômeno na América Latina tem sido fomentado pelo crescimento da influência na região de setores do protestantismo norte-americanos identificados como evangelicals, 2 assim como pela política externa adotada pelos governos israelenses para a região. Com interesses diversos, setores judeus e evangélicos estabelecem uma série de relações de trocas, econômicas, ideológicas e políticas, que parecem beneficiar ambos os lados. Embora haja desconfiança por parte de setores israelenses e judaicos em relação aos sionistas cristãos, como já tem apontado alguns autores ( Tabachnick, 2010), não se pode negar o interesse do Estado de Israel nesse aliado político (Spector, 2009).
Neste artigo, a nossa atenção estará voltada, portanto, às reconfigurações do sionismo cristão ocorridas nas últimas décadas no Brasil. Tentaremos identificar os principais interesses materiais e ideais, 3 assim como as ideias, crenças e valores religiosos, de parlamentares e do governo de Israel. Informamos também que a metodologia utilizada por nós na coleta dos dados foi qualitativa e articula diferentes técnicas de investigação, como a) entrevistas com lideranças evangélicas e pesquisadores sobre o tema e questões correlatas; b) levantamentos e análise de pronunciamentos parlamentares no Congresso Nacional no período entre 2003 e 2019; c) acompanhamento, em 2023, da instalação do Grupo Parlamentar Brasil-Israel no Senado Federal; e d) coleta de dados disponíveis em sites de denominações religiosas. Realizada em grande parte durante a pandemia de Covid-19, a investigação desenvolveu-se essencialmente a partir das ferramentas da web, com as 12 entrevistas feitas via plataformas de videochamada Zoom e Google Meet, entre os anos de 2021 e 2022. Recurso similar foi adotado para o exame da cerimônia de instalação do Grupo Parlamentar Brasil-Israel, que se deu online, com as investigadoras acessando a gravação em vídeo e a transcrição dos pronunciamentos que se encontram disponíveis no site do Senado. 4
Em publicação anterior ( Machado, Mariz & Carranza, 2022), demonstramos que desde o início do século XX circulavam ideias sionis tas entre os cristãos brasileiros e que essa circulação aumentou depois da Segunda Guerra Mundial, em função do crescimento das missões norte-americanas no Brasil e da tradução de livros com narrativas dispensacionalistas sobre os eventos históricos, em particular aqueles envolvendo os judeus e os cristãos. De modo que identificamos um fluxo de atores e ideias que ajudou a criar uma empatia entre os líderes evangélicos, especialmente os batistas e da Assembleia de Deus, com os judeus e, posteriormente, um ativismo em defesa do Estado de Israel. A rede da Obra Missionária Chamada da Meia Noite, que se originou na Europa, mas se estendeu rapidamente pelos EUA e Brasil, foi, sem dúvida, uma das mais importantes vias de difusão do sionismo profético nos anos 1960 e 1970.
No entanto, esse tipo de sionismo era relativamente pouco visível, já que havia poucos evangélicos no país e muitas denominações evitavam a participação de seus membros na política institucional. A partir dos anos 1980, nota-se o crescimento da população evangélica como o resultado da expansão de grupos pentecostais nas camadas pobres e médias brasileiras. A maior parte dos líderes das igrejas que mais cresciam, não se submetia a estudos formais nem tinha vínculos com o exterior e, dessa forma, essas igrejas distinguiam-se das chamadas igrejas históricas de missão que exigiam formação dos seus líderes e até os enviavam para estudar fora do país. As igrejas batistas, que constituem a maior denominação histórica no Brasil, se destacavam por seus fortes vínculos com os EUA e por encaminharem frequentemente líderes para seminários teológicos naquele país. Destacar o menor vínculo dos pentecostais com o exterior não significa, contudo, afirmar que essas igrejas não sofressem influências de fora do país. Líderes que fundaram grandes igrejas pentecostais da década de 1970 e 1980, como Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus/IURD, 1977), R.R. Soares (Internacional da Graça de Deus, 1980) e Miguel Ângelo (Igreja Evangélica Cristo Vive, 1985), foram discípulos do bispo canadense Robert McAlister, da igreja Nova Vida, no Rio de Janeiro ( Mariano, 1999). McAlister trouxe as novas formas de praticar e viver o pentecostalismo que se expandiam fora do país, entre essas as chamadas teologias da prosperidade e da batalha espiritual (Ibid.).
Os três ex-discípulos de McAlister, acima citados, adaptaram esse tipo de pregação em suas igrejas e alcançaram muito sucesso atraindo grande número de fiéis. Nesse período e até o final dos anos 1990, nessas igrejas e no pentecostalismo brasileiro em geral, as pregações pouco se assemelhavam aos discursos da ala dos protestantes norte-americanos chamadas de evangelicals. Inclusive, naquela época, como nos lembra Noll (2014), os chamados de evangelicals rejeitavam se identificarem com os evangélicos pentecostais em expansão no Sul global. Realmente, algumas diferenças eram maiores entre esses grupos protestantes em décadas passadas. Distintamente do que ocorre hoje, os líderes pentecostais no Brasil nas décadas de 1980-90, além de não divulgarem se tinham uma formação acadêmica em teologia, menosprezavam esse tipo de formação e títulos universitários. No caso de Macedo, inclusive, essa desconfiança foi declarada em livro, Libertação da Teologia, publicado em 1997. 5 Havia, assim, posições contrastantes entre o pentecostalismo e as chamadas igrejas históricas, tanto que vários líderes históricos chegaram a negar que as igrejas dessa última onda pentecostal, que enfatizavam a prosperidade e libertação dos demônios, fossem de fato protestantes. No entanto, aos poucos essas distâncias entre igrejas históricas e pentecostais no Brasil, e entre as pentecostais brasileiras e as evangélicas ( evangelical) norte-americanas, foram diminuindo.
O crescimento econômico no Brasil, a partir dos meados de 1990, e a posterior revolução dos meios de comunicação na sociedade mais ampla, aproximaram os evangélicos brasileiros de redes religiosas internacionais e transformaram o campo pentecostal no país. Por um lado, líderes provenientes de igrejas batistas, como Valnice Milhomens e René Terra Nova, se pentecostalizaram, criaram suas próprias igrejas e pregam pela internet para um público bem amplo, basicamente pentecostal, mas não apenas. Por outro lado, os próprios pentecostais passaram a viajar mais, chegando a morar, estudar nos EUA e abrir igrejas por lá. Inclusive, na Igreja Universal do Reino de Deus, cujo fundador pregava a “libertação da teologia”, um dos líderes que mais tem se destacado – o bispo Renato Cardoso, genro e provável sucessor de Edir Macedo –, estudou teologia nos EUA. Nota-se, ainda, além da IURD, uma variedade de Igrejas declaram fazer missão no exterior, como, por exemplo, a Deus é Amor e algumas Assembleias de Deus. Estudar ou pregar no exterior não é mais algo exclusivo do protestantismo histórico no Brasil. O contato e intercâmbio de pentecostais brasileiros com o exterior se tornaram, assim, muito mais constante e amplo.
Em síntese, o mundo religioso das camadas menos favorecidas, que até então era relativamente menos influenciado pelas inovações teológicas forâneas, foi muito afetado pela facilidade de troca com o exterior proporcionada pelos meios de comunicação, o fortalecimento da moeda brasileira e pela revolução da mídia com as redes sociais e internet. Consequentemente, amplia-se o contato com as configurações discursivas alternativas formuladas por teólogos norte-americanos e com a direita religiosa que se organizava politicamente naquele país ( Machado, Mariz & Carranza, 2021). Um número maior de pastores e teólogos em formação vai ter acesso ao debate das perspectivas reconstrucionistas, da prosperidade e da teologia do domínio, 6 e esses líderes ajudaram a difundir as novas teologias no país.
Em um primeiro momento, a perspectiva que teve maior impacto entre as lideranças brasileiras foi a da teologia da prosperidade, que enfatiza o tempo presente e sucesso material, características que favorecem a difusão da teologia do domínio. Muito já se escreveu sobre a importância da teologia da prosperidade nas igrejas brasileiras e, em especial, no pentecostalismo, dispensando-nos de maiores comentários. Deve-se destacar, entretanto, que, com o passar dos anos, outras redes transnacionais foram sendo tecidas e novas expressões do amor dos evangélicos por Israel, que alguns autores chamam de judeofília, apareceram articuladas à teologia da prosperidade ( Reinke, 2022). Se há relatos de adoção do sionismo cristão após viagem à Israel, como é o caso de Valnice Milhomens, sem dúvida a ampliação de bens simbólicos e de perspectivas sionistas cristãs entre nós faz crescer, entre pastores e evangélicos brasileiros, o desejo e interesse em realizar peregrinações a Israel. Estudos sobre o fenômeno do turismo religioso na Terra Santa, como os de Frossard (2013), Paganelli (2020) e Reinke (2018), demonstram que uma das consequências dessas viagens foi a judaicização de igrejas. Os promotores das caravanas adotavam alguns elementos da identidade e da fé judaica, como a bandeira do Estado de Israel, a menorá nos templos e o uso do talit e do quipá por parte de pastores em ocasiões especiais.
Uma das primeiras igrejas a chamar atenção por seu filossemitismo e judaização foi a Igreja Universal do Reino de Deus. Além de construir um suntuoso e grande templo que denominou de Templo de Salomão, Edir Macedo, líder dessa igreja, apareceu na inauguração da nova edificação, na cidade de São Paulo, com roupas, barba e corte de cabelo de um rabino. De início essa incorporação de símbolos, vestimentas e tradições judaicas não parecia se relacionar à defesa do estado de Israel, sendo interpretada apenas como um tipo de filossemitismo ou uma busca de sinais de legitimidade e autenticidade da instituição, proposta de Gomes (2011) em sua análise da IURD, que será aprofundada mais adiante. Mas, na opinião de Carpenedo (2021a), já se poderia identificar nessa prática um sionismo cristão distinto do norte-americano e britânico. Para essa autora, os sionistas brasileiros tentam se parecer com judeus ( Carpenedo, 2021b: 18).
As caravanas para a Terra Santa, organizadas pela IURD desde o início dos anos 1980, tiveram um papel importante nesse processo de assimilação dos elementos simbólicos judaicos nos cultos e na incorporação de temas relacionados à Israel na pauta dos meios de comunicação da Igreja. Isso também ocorreu em outras igrejas que abraçaram o empreendimento turístico à Terra Santa. Na realidade, várias lideranças evangélicas que entraram nesse empreendimento lucrativo passaram a difundir as conquistas dos israelenses nos campos tecnológicos, educacionais e de saúde, bem como começaram a divulgar notícias tendenciosas sobre os conflitos do Oriente Médio em suas publicações, programas radiofônicos e televisivos. Ou seja, levaram à base social do movimento evangélico brasileiro concepções idealizadas de Israel e dos judeus, ao mesmo tempo que difundiam uma visão estereotipada dos países árabes, favorecendo o ativismo político de cristãos em defesa dos interesses do Estado israelense.
Deve-se registrar, ainda, que o movimento chamado de Nova Reforma Apostólica, criado por Peter Wagner, 7 nos EUA, começou a atrair novas lideranças nacionais para estudar teologia no seminário em que este pastor lecionava, na Califórnia. Esse movimento, que alguns estudiosos, entre esses Barbosa Júnior (2017), interpretaram como uma forma de messianismo político-religioso, se percebe como um restaurador de apóstolos e profetas, considerando-os centrais na batalha espiritual a ser travada pelos cristãos na construção do Reino de Deus na terra, que ocorreria antes da segunda volta de Jesus. Nessa perspectiva pós-milenista, os apóstolos devem agir como guerreiros, transformando a sociedade, estabelecendo o governo dos justos e garantindo o domínio da fé cristã entre os homens. Ou seja, trata-se de uma perspectiva que estende a batalha espiritual para o plano social, tornando imperativa a atuação do cristão na economia, na igreja, na família, na escola, no mercado, na mídia e na política.
Interessado em criar uma rede que ampliasse mais suas perspectivas teológicas facilitando a conexão entre esses “apóstolos” contemporâneos, Peter Wagner propôs em 1999 a criação da Coalizão Internacional de Apóstolos e viajava com seu grupo realizando conferências e participando de eventos religiosos em diferentes partes do mundo. No Brasil, ele esteve diversas vezes a convite de lideranças como Neusa Itioka e René Terra Nova. É preciso acrescentar, ainda, que esse movimento tinha um forte apelo sionista, uma vez que, na visão de Wagner, o moderno Estado de Israel é constituído por um povo muito especial para Deus, estando o destino da Igreja cristã atrelado aos acontecimentos do Oriente Médio. Discípulo de Peter Wagner, o estadunidense Chuck Pierce criaria outras redes transnacionais, como Glory of Zion International, Kingdom, Harvest Alliance e Global Spheres Inc., reforçando a circulação dos valores e dos integrantes do grupo de Peter Wagner no mundo.
Nos anos 2000, vários líderes evangélicos no Brasil se engajaram no movimento da Nova Reforma Apostólica e hoje existem centenas de apóstolos à frente de igrejas brasileiras e participando da Coalizão Internacional de Apóstolos e da sua subdivisão, a Coalizão de Apóstolos do Brasil. A instituição mais conhecida é a Igreja Batista da Lagoinha, dirigida pelo apóstolo Marcos Valadão, mas não podemos deixar de citar também a Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (INSEJEC) e o Ministério Internacional da Restauração(MIR), liderados por Valnice Milhomens e Renê Terra Nova, respectivamente. Esses integrantes do movimento da Nova Reforma Apostólica no Brasil seguiriam a tendência inaugurada por outros pastores evangélicos de organizar caravanas para a Terra Santa e fazer eventos religiosos como a Festa do Tabernáculo e a Marcha pela Paz em Jerusalém. 8
Deve-se registrar que em grande parte do século XX, as peregrinações de brasileiros à Terra Santa foram realizadas majoritariamente por grupos católicos das classes superiores que, dispondo de um bom poder aquisitivo, demonstravam interesse em conhecer as origens do cristianismo. Entretanto, como já mencionado, apenas nos últimos anos do século XX começa a crescer o contingente de evangélicos realizando esse tipo de turismo religioso em Jerusalém. No século XXI, o crescimento foi mais intenso. Segundo Frossard (2013: 374), entre 2004 e 2011, o incremento em Israel de turistas brasileiros – 80% dos quais eram evangélicos – chegou a 600%. Esses peregrinos eram estimulados pelas lideranças de suas denominações, assim como pelas mudanças econômicas do Brasil, que proporcionaram às camadas médias condições para financiar essas viagens. Sabe-se pelos inúmeros estudos ( Frossard, 2013; Reinke, 2018; Paganelli, 2020) que parcela significativa desse empreendimento vem sendo organizada pelos líderes religiosos com o apoio de agências turísticas ligadas ao segmento evangélico. Em entrevista, a pesquisadora Miriane Frossard revelou-nos que, embora exista toda uma justificativa religiosa para a organização das peregrinações de evangélicos, existem também fortes interesses materiais por parte de pastores, agências e até mesmo do Estado de Israel. Segundo sua declaração,
as caravanas movimentam muito dinheiro. 10% a 20% dos pacotes de turismo vendidos pelas agências vai para o pastor que lidera a caravana. As agências chamam isso de “oferta ministerial”. A campanha, então, é uma fonte de dinheiro bem grande. Além das cortesias de levar a esposa, os filhos e netos. Pensa no caso de Ana Paula Valadão [Igreja Batista da Lagoinha], que tem uma repercussão nacional e internacional e muita gente que vai... Então é muito dinheiro envolvido nisso. Além de movimentar o setor turístico, existem as ofertas que são coletadas lá, porque eles [pastores] falam ou incentivam isso, sim! Até um dos subtítulos da minha tese de doutorado sugere que lá era você plantar shekels e colher em reais. Então você tem que semear shekels lá. Você tem que dar oferta para tudo e eles assim incentivam. É meio que você tem que mostrar amor por Jerusalém, investindo dinheiro lá. (12/05/2023)
As peregrinações têm uma dimensão religiosa, mas têm também uma dimensão comercial ou econômica muito significativa, tanto para quem a organiza quanto para o local onde está situado o santuário. Os pastores ganham reconhecimento por parte do Estado de Israel, reforçam seu capital religioso na comunidade de fé e ganham projeção internacional. O apóstolo Renê Terra Nova, que vem investindo nas peregrinações e levando centenas de brasileiros para visitar a Terra Santa, tornou-se, nas últimas décadas, o presidente da Embaixada Internacional Cristã de Jerusalém no Brasil e nos países da América do Sul. Em função do seu empenho em estimular o turismo para Israel e fazer com que os peregrinos façam ofertas para ajudar colonos judeus, esse apóstolo já foi homenageado várias vezes pelas autoridades israelenses. Em 2011, recebeu a visita do embaixador de Israel em sua igreja, em Manaus, 9 para a entrega de uma condecoração do governo israelense e, em 2019, Terra Nova foi agraciado em Brasília, na presença do então presidente Bolsonaro e do embaixador Yossi Shelley, com a Medalha Jerusalém de Ouro. Ou seja, os peregrinos deixam shekels e o apóstolo, além de receber uma “oferta ministerial” das agências de turismo, ganha reconhecimento social e político que vai lhe abrindo portas e criando oportunidades.
De qualquer maneira, não se trata de puro pragmatismo desses atores religiosos. No sistema de valores daqueles pastores, bispos ou apóstolos, que organizam as caravanas, existem crenças que fomentam essas iniciativas. Assim, há, por um lado, líderes sionistas cristãos, que adotam a teologia dos fins dos tempos e querem apressar o relógio da história para que a volta de Jesus ocorra o mais rapidamente possível. Procuram, portanto, conseguir mais apoio político e financeiro a Israel e maior retorno de judeus para a Terra Santa, para que as profecias se cumpram com o surgimento do anticristo e a instalação de seu domínio na terra, os sete anos de tribulações e o retorno do filho de Deus. Em contraste com o discurso acima comum nos EUA, como tem mostrado a mídia e literatura especializada, há sionistas cristãos cujas pregações pouco ou praticamente nada falam dos fins dos tempos. Os fiéis desse segundo tipo são motivados a visitar Israel por essa ser a terra da Bíblia, prometida por Deus a seu povo, a terra onde Jesus viveu e, por tudo isso, um lugar de grande sucesso econômico e tecnológico. Esses líderes defendem que aqueles, que ajudam financeiramente o povo judeu e/ou fazem turismo para Israel, serão abençoados. Esse tem sido o discurso mais comum entre líderes evangélicos sionistas de grandes igrejas brasileiras, ao menos até agora, pois tem ocorrido mudanças. 10 Uma possível explicação para essa distinção de sionismo cristão pode se relacionar às possíveis diferenças entre as necessidades e “interesses ideais” 11 desses grupos religiosos em cada país.
Weber (2002: 191) lembra que é comum que revelações, doutrinas e ensinamentos religiosos sejam adaptados às necessidades das distintas comunidades religiosas. Sugerimos, portanto, que distintos tipos de sionismo cristãos seriam o fruto de adaptações às necessidades e interesses de comunidades diferentes. No caso analisado anteriormente, fica evidente que as comunidades cristãs evangélicas dos EUA e do Brasil possuem necessidades e interesses ideais diferentes. Embora não se busque no presente artigo comparar o sionismo cristão brasileiro com norte americano, sugerimos aqui possíveis diferenças entre os interesses ideais envolvidos nas crenças religiosas. Os sionistas cristãos norte-americanos estão em “guerra cultural” com a sociedade americana mais ampla e o mundo contemporâneo em geral, a perspectiva de terríveis tribulações com destruição de grande parte da humanidade, e volta de Cristo, seria a confirmação da sua vitória dessa guerra. Além disso, essa comunidade provavelmente sente necessidade de uma afirmação de que o povo cristão norte americano tem um papel a desempenhar na história a salvação em sintonia à doutrina do seu “Destino Manifesto”. Esses seriam os “interesses ideais” que alimentariam o primeiro tipo de sionismo.
Já a comunidade evangélica brasileira não compartilharia esses “interesses ideais”. Os evangélicos pentecostais em pleno crescimento na sociedade brasileira se percebem em expansão dentro e fora do país. Para os evangélicos brasileiros, Israel seria um símbolo do poder de Deus nesse mundo e nessa vida. O intenso progresso econômico e tecnológico de um país pequeno e com uma independência recente, como Israel, seria um milagre e um sinal de bênçãos divinas. Em termos genéricos, os “interesses ideais” de sionistas cristãos brasileiros parecem opostos aos dos seus congêneres nos EUA. Os brasileiros desejam ser parte de um mundo desenvolvido e rico, enquanto os norte-americanos, que já vivem num mundo assim, querem que esse mundo, que consideram sem salvação, seja destruído. No entanto, a intensa troca entre evangélicos brasileiros e estado-unidenses tem produzido formas plurais de discursos sionistas cristãos no Brasil, como veremos adiante. É importante recordamos aqui, no entanto, o que dizia Weber e já foi sublinhado em páginas anteriores: nem todas as explicações sobre práticas e crenças religiosas se esgotam na análise dos interesses.
Exemplos de sionismo cristão da prosperidade (o segundo tipo acima descrito) seriam os rituais chamados de “Fogueira Santa de Israel”, que foram frequentes na IURD e exprimiam bem a ideia de que Israel seria fonte de realização de milagres e, especialmente, de prosperidade. A vinculação da prosperidade com Israel e Jerusalém também aparece nas falas de Renê Terra Nova em suas pregações durante as caravanas que liderava, como relata Miriane Frossard (2013):
Jerusalém e Israel tem um papel no imaginário do fiel: aquela terra é uma Terra Santa. Tudo o que acontece em Israel é algo profético. Israel é um lugar onde você tem banda larga com Deus, como eles falam, e um acesso direto com Deus. Eles falam muito isso. Você tem que levar seus pedidos, colocar no Muro das lamentações para que seja atendido. Tudo que é feito ali é atendido. Toda semente, todo dinheiro, toda oferta que é dada ali. Aquilo multiplica-se, transforma-se numa colheita. Assim, pelo menos uma 1 pessoa da família ou da igreja, do grupo religioso tem que ou deveria ir que uma vez por ano, na Festa dos Tabernáculos para ir buscar a bênção sobre o seu grupo. E isso por causa de uma promessa que está no livro de Zacarias, que diz se eles fossem, eles teriam a colheita. Então, a festa do Tabernáculo tem esse viés da prosperidade. (Frossard, entrevista concedida às autoras, em 12/05/2023, ênfase nossa)
Identificado com a Nova Reforma Apostólica e tendo sido ele próprio consagrado Apóstolo, Terra Nova abraça assim a teologia do domínio pregada por Peter Wagner. Também conhecida como “Profecia das Sete Montanhas”, essa teologia defende que os cristãos devem dominar as sete áreas importantes da sociedade- Família, Religião, Educação, Mídia, Entretenimento, Finanças e Governo. Ao mesmo tempo que buscam a prosperidade, se mobilizam para lutas políticas sendo assim adeptos do sionismo cristão. Terra Nova, entre outros líderes dessa linha teológica, percebem as caravanas como uma oportunidade de ir se acercando da Terra Santa para a instauração do reino de Deus na Terra. Nessa perspectiva, além de organização das peregrinações, caberia aos cristãos ajudar judeus messiânicos, que vivem no Ocidente, a realizaram a aliá para que, uma vez em Israel, eles convençam os israelenses a reconhecerem Jesus Cristo. Segundo o apóstolo, que nomearemos aqui de D. A., da Life Church Brasil.
Nós entendemos que a Igreja é o Israel espiritual de Deus. Ou seja, seu povo escolhido e o povo de Israel são os descendentes de Abraão e Jacó. Sem a menor sombra de dúvidas, essa é a nação eleita. Porém, entendemos, biblicamente, que há um parêntese aberto na história de Israel para que a salvação do nosso Deus se estendesse a outros povos, a outras linhagens, a outras nações por meio de Jesus Cristo. Sendo assim, nasce não apenas o cristianismo como uma religião, mas um povo partícipe da eleição, juntamente com Israel, que é a Igreja composta de pessoas de qualquer língua, tribo, povo ou nação. Esse povo está intimamente conectado a Israel porque, por meio de Jesus Cristo, Israel e a Igreja são o povo eleito de Deus. Entendemos Israel como a nação física do Senhor e entendemos Israel como povo, o espírito e perdão. Entendemos a Igreja como o Israel, o povo espiritual de Deus.
O papel de Israel na segunda vinda de Cristo é extremamente importante. Israel e seu povo, não só reconhecerão o Messias em 100%, mas também com a Igreja vai sentar se com o Senhor para o que chamamos de o Juízo Final. (Entrevista em 27/09/2022, ênfase nossa)
Na mesma direção, o apóstolo J.J.S., membro da Coalizão Apostólica Profética Brasileira e do Conselho Apostólico Brasileiro, 12 declarou-nos que,
A nossa aproximação com Israel não vai nos tornar judaizantes. Eu não estou realizando ou pregando a circuncisão de ninguém. Eu não uso quipá, não uso talit e não tenho a menorá no púlpito. Eu poderia ter esse símbolo porque são símbolos religiosos. Eu, como sacerdote da minha igreja, eu poderia usá-los. Eu até tenho talit, quipá e a menorá aqui no meu gabinete, isso porque eu fui e comprei como souvenir. Mas também entendo, biblicamente, o papel de cada um desses símbolos. Contudo, como cristão, Jesus diz assim na Última Ceia: Um novo mandamento vos dou. E esse mandamento é baseado no meu sangue. A partir de agora, vocês não vão mais fazer o que vinham fazendo.
Do ponto de vista cristão, nós dizemos que as pessoas têm que encontrar Jesus Cristo. Diz o texto de João: “Ele veio para os que eram os seus, o seu povo judeu”, e complementa: “mas a todos que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, a saber os que creem no seu nome”. Então Jesus veio para os judeus. Os judeus rejeitaram Jesus, mas não foram todos. Muitos creram e a Igreja se formou de um povo judeu e nós hoje recebemos esse legado dos judeus. Então, a Igreja continua evangelizando ao povo judeu, trazendo a boa nova. Porque Evangelho é contar uma boa nova. Qual é a boa nova que os anjos proclamaram? Está em Lucas, capítulo dois. Quando Jesus nasce, os anjos aparecem para os pastores no campo e diz assim: Quero lhes dar uma boa nova! É que hoje, na cidade de Davi, vos nasceu o Salvador que a Cristo, o Senhor. Então a boa nova para os judeus e para toda a humanidade. (07/06/2022, ênfase nossa)
Os discursos sobre Israel e sobre os tipos de sionismos das lideranças evangélicas brasileiras vão sendo atualizados com a chegada e ou difusão de novas configurações teológicas no meio cristão local. Observa-se que discursos e teologias diversas podem conviver simultaneamente, gerando múltiplas formas de ativismo pró-Israel. Deve-se registrar que, na perspectiva weberiana, existiria uma afinidade entre os interesses materiais dos grupos sociais que abraçam as religiões salvacionistas e os seus interesses ideais. Essa nos parece uma questão importante, tendo em vista que o meio evangélico é extremamente fragmentado e competitivo e os interesses materiais dos líderes podem coincidir em alguns pontos, mas em outros podem ser conflitantes. O próprio uso das vestimentas e dos símbolos judaicos por parte de pastores e ou bispos pode e foi, segundo o estudo de Edlaine Gomes (2011) sobre a Universal, uma estratégia empregada pela liderança religiosa para desenvolver uma narrativa sobre a autenticidade daquela igreja que a diferenciasse das demais denominações evangélicas. As construções da maquete de Jerusalém Antiga, do Templo de Salomão e do polo cultural evangélico, podem ser associadas ao interesse de um maior alinhamento espiritual com Israel e de maior autenticidade do grupo confessional, mas também ao interesse de fortalecer materialmente e simbolicamente a IURD frente às outras igrejas que também exploram o imaginário sobre o papel de Israel para o cristianismo. Não se pode esquecer que parceria com israelenses permitiram a implantação do processo de irrigação na fazenda Canaã, na Bahia, de propriedade da IURD, assim como a importação de pedras para a construção do Templo de Salomão em São Paulo. No entanto, como já foi destacado antes, nem sempre os interesses locais, materiais ou ideais, falam mais alto.
O interesse dos evangélicos pela transferência da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, como fizeram o governo estadunidense – na gestão de Trump – e em seguida a Guatemala, também se baseia na crença de que é preciso reconhecer que a Terra Santa foi dada aos descendentes de Abraão na antiguidade e que, só depois da retomada dessa faixa de terra pelos judeus, ocorreria o fim dos tempos. Decorre ainda dessa crença o lobby político realizado por pastores, bispos e apóstolos junto ao Poder Executivo brasileiro durante o governo Bolsonaro para a mudança da embaixada para Jerusalém. De acordo com as palavras do apóstolo P.T., da Igreja Batista (SP) e membro do Conselho Apostólico brasileiro:
Uma das maiores críticas que nós cristãos temos feito ao governo Bolsonaro foi ele ter prometido e não cumprido, levar a embaixada para Jerusalém. Entendemos que por uma questão comercial, não é porque um dos dois maiores commodities que o Brasil tem é a carne, que os muçulmanos comem, então a pressão é muito grande. Mas se nós formos políticos, apenas nós, certamente falo isso como um ministro religioso e certamente vamos nos esbarrar em Deus, num desses momentos à frente. Então, a nossa postura é que temos que fazer de Jerusalém a capital indivisível do Estado judaico de Israel, como o local da nossa embaixada. Porque isso é direito, isso é a nossa posição como cristãos e por acreditar na Bíblia. Existe uma escritura lavrada há 3000 anos, em que Davi compra o lugar alto do Monte Moriá para que o seu filho pudesse construir o templo em todas as línguas do mundo. (…) E se esse documento de compra e venda está lavrado e traduzido para quem quiser no mundo ler? Então, como eu creio na Bíblia, eu creio que o povo judeu tem o direito à Jerusalém como capital indivisível do Estado judaico de Israel, e o Brasil deveria ter em Jerusalém a sua embaixada. Então, esse é o nosso pleito diante do nosso governo. (12/06/2022)
Por fim, a nossa pesquisa encontrou ainda uma outra forma de sionismo cristão que é representada pelo livro de Igor Sabino (2020), intitulado “Por amor aos patriarcas: reflexões brasileiras sobre antissemitismo e sionismo cristão”. Vale destacar que o autor se identifica como membro de Igreja Batista, embora tenha crescido numa igreja presbiteriana. Em entrevista concedida em 02/02/2022, Igor Sabino contou-nos que mudou de denominação religiosa porque buscava uma comunidade cristã que adotasse uma teologia mais adequada à sua visão de igreja e de Israel. Embora jovem, esse autor já circula pelas redes transnacionais cristãs. Até a época da entrevista, ele era o único brasileiro que participava do projeto Philos, uma organização criada em 2007 nos EUA, 13 e que vem divulgando a visão de sionismo cristão proposta por Gerard McDermott (2016). 14
Igor Sabino revelou-nos não se sentir confortável com o apoio acrítico que identifica na maioria dos sionistas cristãos brasileiros. Em seu livro, ele apresenta uma narrativa que tenta articular a luta pela paz no Oriente Médio com o combate à intolerância dos distintos grupos envolvidos nos conflitos daquela região. Isso demonstra preocupação com populações que são vítimas do Estado de Israel, especialmente populações cristãs. Assim, Sabino declarou-nos que o novo tipo de sionismo – o qual adere – não defende uma Jerusalém indivisível e una, nem considera necessária a transferência da embaixada brasileira para lá. Acrescentou-nos ainda, nessa entrevista, que “o principal ponto desse novo sionismo cristão é reconhecer que os palestinos são atores legítimos. A Autoridade Palestina é o representante do povo palestino”.
Muito ativo nas redes sociais, no dia 26 de abril de 2023, Sabino fez vários posts em sua conta na rede social Twitter, para explicar que:
Em Rom 11:28-29, Paulo fala que as promessas de Deus para Israel são irrevogáveis e abrangem até os judeus que não reconhecem Jesus como o Messias. Essas promessas incluem a terra. Logo, diante da soberania de Deus na história, vejo o atual Estado judeu como parte disso. Contudo, não acho que o Estado de Israel é o cumprimento final de todas as profecias ou que será o único que existirá até o retorno de Jesus no fim dos tempos. Também não implica que, enquanto cristão, devo apoiar acriticamente todas as políticas israelenses. Tampouco significa que devo ser contra a criação de um futuro Estado palestino, caso possível. Significa que devo continuar orando pela paz de Jerusalém (Sl 122), o que inclui todos os seus habitantes, sejam judeus ou árabes. Isso faz parte do chamado “Novo Sionismo Cristão”.
Sinteticamente, identificamos em nossa pesquisa um conjunto amplo de iniciativas de autoridades religiosas evangélicas na sociedade civil brasileira que expressam a importância do Estado de Israel no meio cristão: a) publicação de artigos e ou livros defendendo a geopolítica de Israel; b) realização de peregrinações à Terra Santa; c) uso de bandeira de Israel em eventos públicos evangélicos – igrejas, marchas, encontros; d) realização de abaixo assinado (em 2014); e) viagens a Brasília para realizar lobby junto aos parlamentares, ministros e até presidentes da república; f) visitas ao Itamaraty e à embaixada de Israel em Brasília; g) lobby para a transferência da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém; h) gravações de músicas gospel em Israel; i) postagens na rede social Youtube de vídeos enaltecendo Israel; e j) ajuda financeira para a imigração para Israel. Entretanto, o apóstolo Paulo Tarso avalia que o apoio dos evangélicos brasileiros poderia ser bem maior:
O Brasil está muito atrás das experiências que a gente tem visto na Guatemala de apoio a Israel. Mas nós estamos no caminho! E isso é uma coisa muito importante. Tem um texto na Bíblia que diz assim “Orai por Jerusalém, prosperem aqueles que te amam!” Durante muito tempo, os cristãos oraram por Israel, por Jerusalém, mas pelas pedras, pelos documentos históricos, mas não pelo povo. Deus ama as pessoas de Israel. Então, uma bandeira muito importante nossa é que nós temos que amar aqueles que Deus ama. Então, é um trabalho de convencimento. Então, as pessoas estão mudando e muitas coisas têm mudado no Brasil. Hoje, inclusive, muitos deputados são cristãos e integram a bancada evangélica, que tem lá seus problemas, mas é inconteste: todos amam Israel, todos entendem que Israel é um lugar especial, que Jerusalém é o lugar que pertence ao povo judeu. (12/06/2022)
De fato, os políticos evangélicos têm demonstrado uma grande disposição para integrar o Grupo Parlamentar Brasil-Israel, assim como usam o parlamento para: a) celebrar a data de criação do Estado de Israel; b) exercer pressão política no Poder Executivo, como no caso da transferência da embaixada; c) fazer pronunciamentos criticando o Poder Executivo brasileiro, como em 2014, quando o governo Dilma fez restrições às indicações do Estado israelense para a embaixada; d) realizar pronunciamento em defesa de Israel quando se acirram os conflitos armados no Oriente Médio; e) participar de grupos sionistas internacionais para conhecer e discutir as legislações pró-Israel que estão sendo implementadas nos Estados Unidos e em outros países; e f) apresentar moções de repúdio às votações da representação do Brasil na ONU que contrariam os interesses israelenses.
A grande maioria dos pronunciamentos ocorre durante as cerimônias realizadas no Congresso Nacional para comemorar a criação do Estado de Israel. 15 Essas cerimônias são propostas pelos legisladores evangélicos e, além da presença de representantes do Estado de Israel no Brasil, podem contar também com a presença de pastores de várias regiões do país. A análise dos pronunciamentos e das propostas de legisladores evangélicos que faziam menções ao estado de Israel entre 2003 e 2019 revela uma ênfase no papel desempenhado pelo diplomata brasileiro Oswaldo Aranha na criação do Estado de Israel. Na narrativa apresentada pelos oradores, a atuação do diplomata na reunião da ONU em que foi votada a criação do moderno Estado de Israel marca o início de “um pacto dos brasileiros” com o povo judeu. Ou seja, para além do pacto de natureza religiosa – de Deus com os descendentes de Abraão –, existiria também um pacto de caráter secular que justificaria um alinhamento político e ideológico com Israel. A referência a esse diplomata pode ser interpretada como uma tentativa de construir uma tradição secular brasileira de apoio à Israel desde seu projeto de estabelecimento como Estado nacional independente.
Um outro ponto importante é que observamos um crescimento de argumentos de caráter cultural e secular ao longo dos anos, com os oradores chamando atenção para a capacidade de inovação tecnológica, o desenvolvimento econômico e educacional, assim como para a dimensão democrática da sociedade israelense. Trabalhamos com a hipótese de que as visitas ao Estado de Israel por parcela dos deputados acabam por impactar no discurso, fazendo com que aquela configuração nacional apareça em vários discursos como um “farol” para outras nações. Israel não só é vista como modelo a ser seguido pelo seu desenvolvimento, mas também como um país solidário que ajuda outras nações, como foi o caso do envio de bombeiros quando ocorreu o desastre ecológico de Brumadinho, em Minas Gerais. Neste sentido, a justificativa para o alinhamento político com o moderno Estado de Israel se fortaleceria com a ideia de que o Brasil teria muito a ganhar com as relações de cooperação e parcerias com os israelenses. A se confirmar essa tendência, estaríamos assistindo uma reconfiguração do sionismo evangélico no país que não necessariamente substituiria as outras formas de sionismo, mas que com elas poderia conviver.
O Grupo Parlamentar Brasil-Israel foi criado na Câmara Federal, em 1989, com o objetivo de se tornar um serviço de cooperação interparlamentar. A justificativa para a criação deste Grupo revela a inspiração de outros países que haviam criado instâncias similares em suas casas legislativas, com a finalidade de “desenvolver e aprimorar as relações culturais e econômicas de povos que se alinham em princípios e tradições”. 16 Na legislatura passada (56ª-2019-2023), esse Grupo era composto por 41 legisladores, e 32 deles se declaravam evangélicos. Nesse subconjunto dos evangélicos, 15 pertenciam à Igreja Universal, e a presidência do Grupo estava na mão de um deles: o bispo licenciado Marcos Pereira. Essa presença significativa dos políticos da IURD nesse Grupo Parlamentar expressa um ativismo político do grupo neopentecostal liderado por Edir Macedo. Esse comportamento mais proativo dos legisladores vinculados à Igreja Universal do Reino de Deus em relação ao Estado de Israel na legislatura passada parece ter gerado muito incômodo entre os políticos vinculados às outras igrejas. De modo que observamos, no início da 57ª legislatura (2023-2027), uma disputa entre os políticos evangélicos das diferentes denominações para controlar os trabalhos do Grupo e os privilégios concedidos pelo governo de Israel aos legisladores alinhados aos interesses da elite dirigente daquele país.
No dia 1º de fevereiro de 2023, o deputado Roberto Monteiro (PL/RJ), que iniciava o seu primeiro mandato político e é vinculado à IURD, encaminhou ao presidente da Câmara Federal um ofício comunicando a reinstalação do Grupo Parlamentar de Amizade Brasil – Israel, com 19 assinaturas e a indicação de seu nome como futuro presidente do Grupo. 17 No portal da Câmara Federal, entretanto, encontramos a informação de que o presidente do referido grupo é o deputado Gilberto Abramo (PR/MG), teólogo e Bispo da IURD, mas cujo nome não integrava a lista encaminhada quando da instalação do grupo. Posteriormente, no dia 8 de fevereiro daquele mesmo ano, o senador Chico Rodrigues (PSB/RR) apresentou uma proposição para a instalação do Grupo Parlamentar Brasil - Israel no Senado Federal, com a participação de deputados e senadores. 18 A cerimônia de instalação ocorreu no dia 28 de fevereiro de 2023.
A abertura do evento foi conduzida pelo presidente da Frente Parlamentar Evangélica na Câmara Federal, o deputado Eli Borges, Pastor da Assembleia de Deus, que representa o estado de Tocantins no Congresso brasileiro. Para compor a mesa, ele convidou o atual embaixador de Israel no Brasil e o vice representante da Missão de Israel, além dos senadores Carlos Viana (Podemos/MG), da Igreja Batista da Lagoinha. e Alan Rick (União/AC), vinculado à Igreja Batista. A pauta da reunião incluía os seguintes pontos: a) escolha do presidente e da diretoria do referido grupo; b) adesão de novos membros; e c) aprovação do regulamento. Depois de colocar em votação o nome do senador Carlos Viana e anunciar a escolha do mesmo para presidir as atividades do grupo, o deputado Eli Borges pediu aos presentes para se levantarem, colocar as mãos em seus corações e fez a seguinte oração:
Querido Deus, eu lhe apresento este abençoado grupo, sob o comando do nosso querido senador Carlos Viana. Abençoe-os de maneira muito especial. Ajude-os de maneira muito especial para que esta convergência Brasil-Israel, tão importante para o povo cristão do torrão pátrio, possa efetivamente dar frutos, e muitos frutos bons. Assim, Pai, nós oramos agradecidos, já declarada essa nova diretoria, empossada, em nome do Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Amém.
Os representantes do governo de Israel também ficaram de pé, mas sem colocar a mão no coração, como instrução do político-pastor. Pareciam estar constrangidos com aquela situação, e o embaixador manteve seu rosto e olhos abaixados durante toda oração. No início da reunião, anunciou-se que 14 senadores e 33 deputados teriam assinado o pedido de instalação do grupo. Entretanto, na última vez que consultamos a sua composição, ele já tinha se ampliado e contava com 19 senadores e 48 deputados federais. Dentre esses deputados, a grande maioria (40) se apresenta como evangélica, enquanto o restante é constituído por católicos conservadores – caso da deputada Bia Kicis – e por legisladores sem filiação religiosa.
Quase todos os parlamentares que se pronunciaram mencionaram que foram convidados, e vários deles identificaram o autor do convite como o pastor Laurindo Shalom, personagem que, usando um quipá e carregando várias folhas de papel, passeava pela sala, orientando e entregando informações por escrito para os/as oradores e oradoras. A presença desse ativista pró-Israel no Congresso Nacional é antiga e, em 2007, ele participou da criação da Frente Parlamentar Cristã Brasil/Israel pela PAZ na Terra Santa, no Oriente Médio e no Mundo, que funcionou durante alguns anos, paralelamente com o Grupo Parlamentar Brasil - Israel na Câmara Federal 19. O referido pastor se apresenta como jornalista e presidente da Associação Internacional Cristã Amigos Brasil-Israel e, em dezembro de 2018, postou em suas redes sociais uma foto sua empunhando uma bandeira de Israel na porta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para comemorar a diplomação do então recém-eleito presidente Jair Bolsonaro. A importância do trabalho deste ativista junto aos parlamentares evangélicos foi reconhecida pelo senador Carlos Viana, que declarou ter que fazer:
uma justa homenagem àquele que parece ser o menor, o mais humilde, mas que é o grande nome de todo esse trabalho, de toda essa organização que merece um aplauso de todos nós – eu vou pedir isso com muito carinho –, que é o Pastor Laurindo Shalom, que trabalhou tanto por este grupo! Deus o abençoe, Pastor Laurindo! (ênfases nossas)
Vários deputados da região norte do país, que se encontram no primeiro mandato na Câmara Federal, disseram que haviam sido procuradores e estimulados pelos organizadores do evento para serem “representantes de Israel” em seus Estados. A deputada Sonize Barbosa (PL/AP), por exemplo, fez o seguinte pronunciamento:
O que me trouxe aqui foi o desejo no coração de, ao assumir este mandato, ter um sonho de pisar na Terra Santa. Logo que eu entrei aqui, caminhando, eu encontrei o Pastor Shalom. – Pastor Shalom, quero agradecer ao senhor! – Quando eu fui convidada, não hesitei em assinar e ter esse compromisso dessa ligação forte entre Brasil e Israel. E eu estou muito grata, porque também eu fui escolhida, (...) como um dos Parlamentares que estarão à frente representando o seu estado, eu estarei representando o estado do Amapá com muita honra.
O desejo de conhecer o moderno Estado de Israel foi expresso por outros legisladores que foram estimulados a discursar. E quando essa vontade era expressa nos discursos, o senador Carlos Viana lembrava aos oradores que uma viagem de congressistas brasileiros já estava sendo programada juntamente à Embaixada de Israel para outubro de 2023, e que o nome do/a orador/a estaria entre aqueles que teriam o privilégio de viajar à Israel. A deputada Cristiane Lopes (UNIÃO – RO), da Igreja Santa Geração, foi uma das parlamentares que via o convite para integrar o Grupo Parlamentar como uma oportunidade para não só fazer algo pelos judeus, mas também de conhecer a Terra Santa.
Todos falaram já do versículo do Salmo 122, mas eu quero frisar o versículo 6, que fala: “Orai pela paz de Jerusalém! Prosperarão aqueles que te amam”. É muito claro isto: “Prosperarão aqueles que te amam”. Eu sou uma testemunha disso, porque já fiz várias ofertas, várias ofertas já chegaram a Israel, eu tive a oportunidade, na minha congregação, de ofertar em Israel, e hoje eu vejo promessas de Deus se cumprindo sobre a minha vida. Receber o convite para representar o estado de Rondônia é uma honra muito grande para mim. E aqui eu coloco todo o meu mandato, todo o meu empenho, todas as minhas forças, toda a minha alma à disposição para trabalhar em conjunto com esse grupo que foi criado. (...) Eu não vejo a hora de colocar os meus pés naquela terra e beijá-la – porque eu ainda não tive essa oportunidade, mas Deus me deu condição de estar aqui....
A preocupação de que a mudança de governo, e o retorno de Lula à presidência da república, traga implicações para as relações do país com Israel aparece em diferentes declarações com os parlamentares salientando que, mesmo que poder executivo adote uma geopolítica contrastante com a implementada pelo governo Bolsonaro, o grupo parlamentar atuará em defesa dos interesses dos israelenses. Nessas narrativas, Israel é apresentado ora como “uma ilha cercada de estados antidemocráticos e ameaçada pelo terrorismo e pelo boicote comercial internacional” ora como “a menina dos olhos de Deus” que os cristãos devem apoiar e defender. Trump e Jair Bolsonaro são lembrados em vários discursos como lideranças mundiais que entenderam a importância do alinhamento político com o atual governo de Israel. Já a política externa do presidente Lula desperta apreensão pela posição tradicional do Partido dos Trabalhadores em defesa dos palestinos. Vários oradores expressaram que o poder legislativo e em especial os evangélicos que integram o Grupo Parlamentar não deixarão o poder executivo adotar medidas que prejudiquem os interesses dos israelenses. No seu discurso, o senador Allan Rick (União-Acre) enfatizou que
o Brasil depende de nós [legisladores] para que nós possamos manter esta boa relação, para que nós possamos manter a defesa de Israel como fizemos tantos de nós aqui. Todos os Parlamentares que estão aqui presentes têm uma história, Embaixador, têm uma história e têm um trabalho relevante em favor de Israel. Todos aqui participaram de movimentos em defesa de Israel. Quando, por exemplo, foi mais uma vez atacado por grupos terroristas, nós escrevemos uma carta em apoio ao Estado de Israel. E assim temos feito, buscado o estreitamento e, acima de tudo, a relação de respeito, de apoio e de proteção a Israel. Conte conosco. O Brasil ama Israel. Esse povo ama Israel.
Já a deputada Geovânia de Sá (PSDB/SC), que é filha de um pastor da Assembleia de Deus, fez a seguinte declaração:
Desde 2015, quando cheguei, eu fui convidada pela Fundação Aliança de Israel, que tem a sua matriz em Washington, a participar de uma capacitação nos Estados Unidos, e todos os anos eu vou para essa capacitação. Neste ano, em janeiro, estivemos com todos os parlamentares da América Latina discutindo o movimento antissemitista. E foi muito interessante o que aconteceu ali. Tinha um representante de cada país da América Latina, e discutimos as manifestações antissemitistas, que tiveram o seu auge lá na Europa no Holocausto, mas que ainda ocorrem. Não podemos fechar os olhos para essas manifestações (…). E nós, os parlamentares da América Latina, estamos alinhados e temos um grupo de trabalho, onde a gente discute principalmente a legislação, o que cada país, o que cada Parlamento no seu país está propondo, que legislações foram aprovadas. Inclusive estou pegando algumas ideias da Guatemala. (ênfase nossa)
Nesse discurso vemos que o estímulo aos parlamentares evangélicos para atuarem em defesa do Estado de Israel não vem só de sua base religiosa, ou seja dos pastores e toda uma rede de sionistas cristãos locais. A missão pode resultar de uma política de recrutamento e de formação de lideranças políticas em desenvolvimento, no caso em questão, pela Israel Allies Foundation (IAF). Segundo o site desta fundação 20, ela tem o propósito de trabalhar “para educar e capacitar legisladores pró-Israel e religiosos em todo o mundo”, porque seus membros acreditam “que o Estado de Israel tem o direito de existir em paz dentro de fronteiras seguras com Jerusalém como sua capital eterna e indivisível”. De acordo com Gonçalves (2016), o recrutamento de legisladores brasileiros para participar das reuniões da IAF não é propriamente uma novidade, pois na legislatura de 2011-2015, a ex-deputada federal Fátima Pelaes, da Assembleia de Deus e que representava o Amapá na Câmara Federal, já havia sido convidada e compareceu ao curso de capacitação oferecido nos EUA.
É evidente o apoio que o governo de Israel tem dado aos evangélicos que aderem ou podem aderir ao sionismo cristão no Brasil, e isso ocorre em várias partes do globo. Segundo Hummel (2017, 2019), desde a fundação do Estado de Israel, observa-se uma política diplomática dos governos israelenses para atrair o apoio nas igrejas protestantes mais liberais norte-americanas. Entretanto, é a partir de meados dos anos 1960 que os judeus passaram a visitar as comunidades evangélicas na tentativa de que esses segmentos exercessem pressão e influenciassem a política externa dos EUA. Nessa linha de interpretação, o fortalecimento da direita em Israel ao longo dos anos favoreceu o deslocamento do sionismo cristão norte-americano ainda mais para a direita, e a associação dos pastores sionistas com a Maioria Moral e com o partido Republicano foi ficando mais evidente. Esse processo de desenvolvimento do sionismo norte-americano parece ter atingido uma saliência sem igual com o governo de Donald Trump e seu alinhamento político com Israel.
Com efeito, os recentes governos israelenses de direita têm visto o sionismo cristão como uma grande oportunidade de ampliar o suporte internacional ao Estado de Israel. No entanto, essa aliança resulta no fortalecimento, por sua vez, do sionismo cristão em escala mundial, o que tem sido visto com preocupação por vários setores judaicos que consideram a visão evangélica uma grande ameaça aos judeus. Esse é o argumento de Rachel Tabacknick (2010), que ressalta o caráter missionário agressivo dos sionistas cristãos que atacam o judaísmo, percebendo-o como obstáculo para a construção da utopia cristã. Afinal, para os sionistas cristãos, todos deverão ser cristãos para poderem se salvar nos fins dos tempos.
A política externa do Estado israelense na América Latina inicialmente esteve mais voltada para países como Guatemala, Honduras, El Salvador e Costa Rica, que constituíram um importante mercado para a indústria bélica israelense. Posteriormente, os israelenses passaram também a oferecer programas de desenvolvimento agrícola para esses países da América Central. De qualquer maneira, só Guatemala manteve uma postura de alinhamento político inconteste com Israel. Segundo Kaufman, Shapira e Barromi (1979), o acirramento dos conflitos no Oriente Médio durante a década de 1960 fez com que vários países latino-americanos adotassem uma posição mais equidistante nas assembleias da ONU ou mesmo passassem a defender os direitos dos palestinos. O Brasil, que conta com uma importante comunidade árabe, está entre esses países que têm adotado uma política diplomática mais favorável aos palestinos. O crescimento do turismo de evangélicos locais para a Terra Santa, assim como o fortalecimento político desse segmento na sociedade brasileira ampliaram, entretanto, o interesse dos governos israelenses pelas lideranças cristãs, na expectativa de conseguir simultaneamente maior injeção de divisas e criar uma pressão política para que o Poder Executivo brasileiro adote uma posição mais alinhada com o projeto expansionista israelense.
Em nossa pesquisa, identificamos nas entrevistas com lideranças evangélicas e nos pronunciamentos dos parlamentares cristãos uma série de iniciativas dos últimos governos israelenses e da representação diplomática de Israel junto aos cristãos brasileiros com intuito de ampliar o apoio internacional a aquele Estado, bem como de estimular o turismo na região. De acordo com a declaração de Frossard:
O Ministério de Turismo de Israel tem um foco muito grande no Brasil. O Brasil é o principal emissor de turistas sul-americanos para Israel. Então, no ano que eu estava pesquisando [em 2010], chegou à marca de 60.000 turistas evangélicos brasileiros (…), hoje está mais ou menos nesse número novamente. Pelo que eu vi, os números voltaram a crescer e o governo de Israel criou no Brasil um braço do Ministério do Turismo de Israel, e fazia campanha, inclusive viagens técnicas, convidando pastores a visitarem para que pudessem vender pacotes. Então, o Ministério do Turismo de Israel tem um vínculo com o Brasil nessa formação do turismo religioso para lá. (12/05/2023)
A embaixada de Israel em Brasília e o consulado localizado em São Paulo também foram citados por vários entrevistados e legisladores como responsáveis pelo envio de artigos jornalísticos e ou livros sobre o moderno Estado israelense, assim como por convites para participação de eventos – jantares, coquetéis, encontros nas sedes da representação diplomática. Os convites aos legisladores para viagens à Israel por parte da representação diplomática, também é outra iniciativa que atrai os políticos evangélicos, como vimos algumas páginas atrás. Além disso, o embaixador comparece em sessões no Congresso Nacional organizadas pelos legisladores evangélicos em celebração à data de fundação do Estado de Israel e faz visitas aos templos quando são realizados eventos importantes para o fortalecimento dos laços do segmento evangélico com os judeus.
A concessão de honrarias parece uma estratégia muito usada pelo governo de Israel junto aos pastores e legisladores. A deputada católica, Bia Kicis (PL-DF), declarou na cerimônia de instalação do Grupo Parlamentar em 2023, que na sua primeira viagem à Israel, ela teve a “a honra de receber o título de Embaixadora da Paz na Terra Santa”. A distinção recebida parece reforçar o ativismo pró-Israel nas casas legislativas. As visitas do embaixador às unidades federativas dos parlamentares também foram mencionadas pelo Senador Alan Rick (União-Ac), que lembrou das três passagens pelo Acre de Yossi Shelley, representante de Israel no Brasil anos atrás. De acordo com o senador, essas viagens foram para selar parcerias e serviram para aproximá-lo ainda mais de Israel:
Em 2016, estive em Israel e lá nós conhecemos um grande projeto de tecnologia na área de segurança pública: a tecnologia da informação, a tecnologia de investigação, a tecnologia do reconhecimento facial que hoje dá embasamento a um dos projetos mais importantes da nossa segurança pública no Acre, o cerco eletrônico. Olha a importância do intercâmbio entre os países, da relação recíproca de conhecimento, de respeito entre Brasil e Israel, tão bem conduzida nos últimos anos.
Ou seja, as crenças e valores – de respaldo dos evangélicos às políticas dos governos israelenses – e os interesses econômicos – parcerias e trocas comerciais – parecem se entrelaçar na relação entre o Estado de Israel e os evangélicos brasileiros. A eleição, em 2018, do candidato da extrema direita, Jair Bolsonaro, gerou uma grande expectativa de alinhamento do governo brasileiro com o governo israelense. Apoiado por uma parcela significativa dos evangélicos, Bolsonaro havia assumido o compromisso na campanha eleitoral de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, e mostrava uma grande disposição para seguir a política externa adotada por Donald Trump. Ainda no fim daquele ano, o premierBenjamin Netanyahu fez a primeira viagem oficial de um primeiro-ministro de Israel ao Brasil. Entre os que foram receber Netanyahu na cidade do Rio de Janeiro encontravam-se Eduardo Bolsonaro, político evangélico e filho deJair Bolsonaro, e o prefeito da cidade, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Na reunião com Bolsonaro, Netanyahu o convidou a visitar o seu país e propôs o fortalecimento da cooperação em setores como economia, segurança, gestão da água, agricultura e tecnologia com o Brasil.
Já empossado presidente, Bolsonaro visitou Israel em março de 2019, mas por pressão dos pecuaristas que também integravam sua base de apoio e tem acordos comerciais com os países árabes, não pôde cumprir o acordo de mudar a sede da representação diplomática do Brasil. Deve-se registrar, entretanto, que mesmo não transferindo a embaixada, Bolsonaro estreitou os laços comerciais com Israel, reforçando a tendência inaugurada pelo governo anterior, de Michel Temer, de realizar acordos bilaterais com aquele Estado. Nesse sentido, o embaixador Daniel Zohar Zonshine declarou no final da sessão de instalação do Grupo Parlamentar Brasil Israel: 21
Alguém mencionou aqui o número de comércio que tivemos no ano passado, que chegou a US$4 bilhões. O valor dobrou ano passado, mas acho que, em cima desse número, está também o valor de relações, o valor de tecnologia, o valor de know-how de Israel, que pode ser relevante para a vida de pessoas aqui. E nós tentamos fazer essa ponte de tecnologias, de desenvolvimento e de coisas que fizemos em Israel que podem ser relevantes para o povo brasileiro. O senador Alan Rick foi conosco esta manhã à Embaixada e pôde ver parte desse potencial.
Nosso objetivo neste artigo era discutir processos que resultaram no surgimento e reconfiguração do sionismo cristão mais vocal e politicamente ativo no Brasil. Iniciamos nosso texto definindo o que chamamos de sionismo cristão, apontando para sua expansão global. Embora seja um fenômeno bem menos expressivo do que nos Estados Unidos, o sionismo cristão vem se reconfigurando e se fortalecendo ao longo das últimas décadas na sociedade brasileira em função de múltiplos fatores – exógenos e endógenos. Entre os fatores exógenos, identificamos mudanças políticas e maior integração global. Entre esses, os fatores exógenos que favoreceram as atualizações do fenômeno em nosso país nos últimos anos são: a) o governo Trump e a política de alinhamento dos EUA com Israel; b) a política de recrutamento por parte ONGs sionistas cristãs de legisladores brasileiros para cursos de formação nos EUA; c) as campanhas de rejeição ao movimento internacional de boicote ao Estado de Israel, o Boycott, Divestment, Sanctions (BDS); d) o aumento da circulação de atores individuais e coletivos norte-americanos entre nós – Capitol Ministries, The Send, Projeto Philos etc. – e da influência dos evangelicals nas Igrejas brasileiras; e) as política de relações internacionais de Israel para atrair o apoio de evangélicos na região da América Latina. Já no plano interno, identificamos entre os fatores propulsores do apoio de cristãos ao Estado de Israel: a) o crescimento demográfico e o fortalecimento político dos evangélicos; b) a eleição de Jair Bolsonaro à presidência em 2018 e o alinhamento de seu governo com a geopolítica adotada por Donald Trump, nos EUA; c) a atuação da embaixada de Israel no país; e d) as viagens de pastores e legisladores à Terra Santa.
Em nossa interpretação, o sionismo cristão evangélico pode ser interpretado como uma construção de lideranças cristãs e de políticos israelenses que, a despeito de seus valores religiosos distintos, tiram proveito do ativismo político pró-Israel. Enquanto as expectativas do moderno Estado de Israel são de natureza política e econômica – ampliar o apoio internacional à sociedade israelense e garantir a entrada de divisas –, as expectativas dos evangélicos têm caráter religioso, mas também econômico. Procuramos mostrar neste artigo que há, assim, por parte das lideranças evangélicas, sejam elas religiosas e/ou políticas, interesses materiais e ideais, além de valores e crenças, que as mobilizam para o apoio à Israel. De modo que observa-se hoje a presença de diferentes argumentos justificando as iniciativas de atores evangélicos em defesa de Israel: 1) os de natureza essencialmente profética; 2) os que enfatizam o tempo presente e a prosperidade; 3) os que destacam a importância cultural, a riqueza e o que o Estado israelense tem a oferecer às outras nações (Israel como modelo); e 4) mais recentemente, os argumentos de caráter mais humanitário, que defendem um apoio crítico à Israel articulado ao combate à intolerância aos árabes cristãos.
As viagens à Israel de legisladores e pastores tendem a fortalecer as narrativas que destacam a resiliência, o caráter inovador e as conquistas culturais dos judeus, assim como o desenvolvimento e o poderio do Estado israelense. Nesse sentido, o tipo de sionismo cristão que se expande no Brasil, especialmente entre os parlamentares evangélicos, parece recorrer mais frequentemente a argumentos seculares vinculados ao progresso material. De modo que os discursos vão sendo reconfigurados com maior ênfase nos atributos seculares do moderno Estado de Israel, o que não implica no abandono total das dimensões proféticas. Elas seguem justificando as iniciativas sionistas, mas tendo um peso menor a depender do público e da ocasião em que são propostas. Nesse sentido, observa-se ainda uma mudança no comportamento parlamentar de políticos vinculados à Igreja Universal, que nos últimos anos passaram a disputar o controle do Grupo Parlamentar Brasil - Israel com os demais integrantes da Frente Parlamentar Evangélica. Ou seja, a Igreja Universal, que era vista como uma denominação apenas filossemita, passa a engrossar o ativismo político pró-Israel no legislativo brasileiro.
Destacamos, através deste artigo, algumas iniciativas da Embaixada Israelense que revelam um projeto evidente de atrair simpatia dos parlamentares evangélicos, de forma que esses defendam possíveis interesses do Estado de Israel. Vários autores chamam atenção para controvérsias a respeito de como diferentes setores sociais de Israel encaram o sionismo cristão. Enquanto alguns veem os sionistas cristãos com bons olhos, muitos são reticentes ou mesmo os rejeitam. Sua presença e atitudes podem provocar ruídos ou gerar pontos de tensão com os israelenses. O mesmo pode ser dito em relação à incorporação crescente de elementos simbólicos judaicos e o uso da língua hebraica em cultos evangélicos brasileiros, que são vistos de forma bastante crítica por setores israelenses. Na realidade, a expectativa de evangelizar os judeus pode ser interpretada como uma atitude antissemita daqueles que se pretendem sionistas cristãos. O passado de intolerância e discriminação dos cristãos em relação aos judeus favorece as desconfianças e a preocupação com a perspectiva salvacionista dos segmentos evangélicos. Essa tensão é constitutiva da relação entre os judeus e os sionistas evangélicos, e o fortalecimento político dos grupos religiosos ultraortodoxos na base de sustentação do primeiro-ministro Nethanyahu já começa a despertar apreensão entre segmentos cristãos que temem o cerceamento da liberdade religiosa em Israel. 22