Resumo: O presente texto aborda a formação docente em tempos de metamorfose entrelaçando a reflexão com a influência que o Fundo Monetário Internacional ― FMI e Banco Mundial ― BM exercem nos processos formativos adoptados pelo Estado moçambicano ao longo da sua formação como Nação independente. Trata-se de uma escrita que apresenta a reflexão sobre a formação docente e, que nos permite compreender com complexidade o processo de formação de professores em tempos de mudança e de atuação desses organismos multilaterais promotoras do neoliberalismo. Como metodologia recorre-se a revisão bibliográfica com delimitação histórico-temporal 1975-2022- suficiente para colocar no centro, a valorização dos saberes epistemologicamente reconhecidos no Sul global, que corporificam a pluralidade de conhecimento e valorizam as experiências dos sujeitos.
Palavras-chave: Formação de professores, Organizações multilaterais, Moçambique.
Abstract: This text addresses teacher training in times of metamorphosis, interweaving reflection with the influence that the International Monetary Fund – IMF and World Bank – WB exert on the training processes adopted by the Mozambican State throughout its formation as an independent nation. This is a piece of writing that presents a reflection on teacher training and allows us to understand in complexity the process of teacher training in times of change and the actions of these multilateral organizations. As a methodology, we use a bibliographical review with historical-temporal 1975-2022, sufficient to place at the center the appreciation of knowledge epistemologically recognized in the global South, which embodies the plurality of knowledge and values the experiences of the subjects.
Keywords: Teachers training, Multilateral organizations, Mozambique.
Resumen: Este texto aborda la formación docente en tiempos de metamorfosis, entrelazando la reflexión con la influencia que el Fondo Monetario Internacional – FMI y Banco Mundial – BM ejercen en los procesos de formación adoptados por el Estado mozambiqueño a lo largo de su formación como nación independiente. Este es un escrito que presenta una reflexión sobre la formación docente y permite comprender en complejidad el proceso de formación docente en tiempos de cambio y las actividades de estos organismos multilaterales. Como metodología utilizamos una revisión bibliográfica con el período histórico-temporal 1975-2022, suficiente para colocar en el centro la valoración del conocimiento epistemológicamente reconocido en el Sur global, que encarna la pluralidad de saberes y valora las experiencias de los sujetos.
Palabras clave: Formación docente, Organismos multilaterales, Mozambique.
Artigos de fluxo
As organizações da Bretton Woods e a Formação dos Professores Primários em Moçambique
Bretton Woods Organizations for primary teachers training in Mozambique
Las Organizaciones de Bretton Woods y la formación de docentes de primaria en Mozambique

Recepción: 01 Noviembre 2022
Aprobación: 14 Diciembre 2022
Escrevo este texto na intenção de contribuir com um pequeno gesto teórico que se compromete a dilatar o campo de reflexão, a fim de escapar da dicotomia e binarismo do conhecimento que caracteriza o campo de formação docente em Moçambique.
Nos últimos anos as pesquisas sobre a formação de professores realizadas no sul global têm revelado a necessidade de uma urgência para o debate sobre as epistemologias do Sul. Todavia, ao nível de Moçambique poucos estudos têm se dedicado com um olhar atento, sensível para a produção de conhecimento que visa criar uma mudança epistêmica e ontológica capaz de compreender que "o colonialismo não é somente um fenômeno econômico e político, mas que possui uma dimensão epistêmica vinculada ao nascimento das ciências humanas, tanto no centro, como na periferia" (Castro-Goméz, 2005, p. 20, tradução nossa).
Nesse sentido pensar a formação docente em Moçambique no século XXI, período caracterizado por metamorfoses, requer a compreensão das mudanças que ocorrem no campo político e educacional desde 1975, data da Independência nacional, bem como as articulações que se estabelecem na política formativa no campo da prática em estreita combinação com saberes acadêmicos, profissionais, epistêmicos e culturais.
O século em que vivemos revela que a escola é desafiada a realizar mudanças para construir modelos capazes de transformar os espaços escolares em ambientes de aprendizagem individual e coletiva ― a escola como casa comum. Diante destas metamorfoses, a escola continua viva e central na educação do homem, todavia, o modelo da escola que marcou a humanidade nos últimos 150 anos está dando sinais de suicídio como afirma Nóvoa (2022, p. 15)
o que está em causa é o modelo escolar, tal como se organizou nos últimos 150 anos, e não a escola, instituição central para as sociedades do século XXI, pela capacidade de conduzir todos os alunos às aprendizagens, mas também pelo seu papel na construção de uma vida em comum.
Assim, a formação docente precisa colocar os futuros professores ou os professores em exercício em contato com realidades e culturas afim de pô-los a pensar sobre a educação e a humanidade.
O recuo histórico e a revisão bibliográfica que fizemos no texto se faz necessário na medida em que aparece como exigência do presente para analisar a formação de professores em Moçambique ― um campo muito disputado pelas forças de conhecimento, saber e poder, ― principalmente num período em que emerge a concepção alargada que contrasta com a perspectiva de pensamento “convencional”. Este cenário provoca um deslocamento no pensamento curricular e na formação de professores, pois o campo do currículo é encarado como terreno de produção e construção de símbolos culturais através da intereção entre os homens.
O objetivo deste texto é defender a formação de professores de forma articulada entre as instituições que atuam na formação de professores - as universidades, as escolas ou institutos de formação de professores, as comunidades a que se destinam os professores, os professores em exercício, e as organizações multilaterais que financiam a formação docente. Este diálogo se processa de maneira horizontal, uma vez que, a atuação articulada destes setores fortalece a formação e a indução profissional dos professores.
O campo de formação de professores tem registrado enormes desafios políticos e epistemológicos que permeiam o surgimento de vários trabalhos que se interessam pela formação docente. Estes trabalhos nas últimas décadas propõem o surgimento da uma teoria de formação de professores à semelhança do que “acontece com a teoria de educação, do ensino, da aprendizagem, etc.” (García, 1999, p. 20).
Esta teoria seria responsável por sistematizar e tomar os objetivos, os pressupostos sociais e antropológicos, evidenciando os caminhos pelos quais o homem pode percorrer para alcançar a formação (Menze, 1980 apud, García, 1999). No entanto, levantar uma discussão sobre o surgimento de tal teoria não é assunto central para a nossa abordagem, por isso não daremos um maior aprofundamento à questão.
No campo de formação de professores a palavra formação, observa uma evolução em função da crescente percepção ideológica, política, pedagógica e científica. Nas pesquisas das áreas de educação, especificamente de formação docente longe de encontrar consensos aparece sujeita às variadas formas de interpretação, ora colocando-se mais próxima ao treinamento técnico, à ferramenta para aquisição e, posterior transmissão de conhecimentos, ora como processo de construção de conhecimento reflexivo, que propicia a maturidade profissional e o desenvolvimento de competências investigativas.
Formar professores é um ato que garante a existência da educação e, por conseguinte, se compreendermos a educação como estreitamente ligada à existência humana (vida) podemos analogicamente inferir que formar professores é formar para a nossa vida humana e para a cidadania. Compreendida desta maneira, "a formação de professores é uma formação profissional de nível universitário" que necessita de ser realizada coletivamente envolvendo escolas de formação inicial e corpo docente experiente (Nóvoa, 2022, p. 97).
Assim, a formação de professores tem a tarefa central de oferecer aos formandos ferramentas didático-pedagógicas, científicas e epistemológicas capazes de não apenas no nível teórico, mas também por via de conduta, normas e ações realizar os objetivos da educação e levar os alunos à aprendizagem progressiva. Todavia, não podemos ignorar que a formação de professores nas últimas décadas tem merecido especial atenção das grandes organizações econômicas internacionais, dos organismos multilaterais ligados ao grande capital financeiro que buscam transformar a educação em uma mercadoria privada.
Com o advento do neoliberalismo em Moçambique, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM) exercem um papel importante nas reformas educativas e propõem novos investimentos que teoricamente se desafiam a melhorar o ensino: bibliotecas, tempo de instrução, deveres de casa, livros didáticos, conhecimentos do professor, experiência do professor, laboratórios, salários do professor e número de alunos por turma. Apesar de estes organismos referirem que o elemento fundamental para o sucesso escolar em Moçambique é a reforma curricular, estas medidas se revelam imperfeitas porque se realizam no caminho contrário. Segundo Lopes et al. (2006, apud por Raposo, s/d), a reforma curricular é concebida de forma centralizada e vertical, dando maior protagonismo aos especialistas, consultores internacionais, desalojando as experiências, os saberes e o conhecimento dos professores que lidam com a realidade escolar em sala de aula. Por essa via, apostamos na formação de professores como campo intelectual de resistência face às correntes coloniais e neoliberais que tendem a reduzir a função docente a componente técnica, cujo objetivo é a precarização e a privatização da educação pública.
Assim, a centralidade na formação de professores deriva do fato de se depositar nas mãos do futuro professor a capacidade de formar futuros cidadãos comprometidos com a transformação econômica. Olha-se no professor como ator central para a continuidade das suas políticas dada sua capacidade de intervir nos jovens através de transmissão e construção de valores que influenciarão sua conduta posterior.
García (1999, p. 26) define a formação de professores como:
[...] área de conhecimentos, investigação e de propostas teóricas e práticas que, no âmbito da didática e da organização escolar, estuda os processos através dos quais os professores – em formação ou em exercício – se implicam individualmente ou em equipa, em experiências de aprendizagem através das quais adquirem ou melhoram os seus conhecimentos, competências e disposições, e que lhes permite intervir profissionalmente no desenvolvimento do seu ensino, do currículo e da escola, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação que os alunos recebem.
A formação de professores assim se constitui em duas facetas simultâneas: a formação técnica e a formação pedagógica. A formação técnica oferece ao futuro professor um conjunto de situações/fatores transformados em ações pedagógicas que contribuem para a constituição, organização, aplicação da conduta intelectual, moral, social do professor na sua atuação e integração na vida da escola. Corresponde à parte formativa que cuida da técnica de ensinar ao formando a procurar fazer o ajustamento e dar respostas ao ato de ensinar indagando sobre as questões – como ensinar, como realizar a tarefa, como educar, como exercer a docência (Silva, s/d).
A formação pedagógica, olhando para o nosso objeto de estudo: formação de professores/as do ensino primário em Moçambique desempenha um papel central, pois aborda as questões da educação, de interação pedagógica e de encontro com o Outro, bem como da compreensão das influências que se operam na educação. A formação pedagógica se desdobra em torno das questões – o que estou fazendo? A quem estou ensinando? E oferece as respostas que requerem interpretação filosófico-científica da educação, leitura analítica e crítica da realidade do quotidiano da escola (Silva, s/d).
Estas duas formas de formação precisam de serem consolidadas na formação de conhecimento dos conteúdos científicos das disciplinas, porque é essencial para o exercício da docência. Se o professor não dominar cientificamente os conteúdos nem as mais sofisticadas técnicas pedagógicas serão úteis. No entanto, estes tipos de conhecimento: pedagógico, científico dos conteúdos e técnico "são insuficientes para formar um professor se não construírem uma relação com o conhecimento profissional docente, com o conhecimento e a cultura profissional dos professores" (NÓVOA, 2022, p. 65).
Vivemos em tempos em que somos atravessados pelas crises dos modelos escolares e de políticas que dominaram o mundo por cerca de um século e meio. Trata-se de espaço-tempo que a ideologia e a política conservadoras parecem aniquilar as forças progressistas, fazendo nascer a crise do conhecimento moderno e iluminista, porque as questões de representação cultural, colonialidade do poder e saber, a forma como os professores articulam os saberes em sala de aula lançam várias perspectivas de análise e disputas no campo da cultura, da política e da educação.
Assistimos a mudanças radicais da escola que pressionam a formação de professores ― por um lado, a humanidade questiona a ideia que dominou o século XIX, de que as instituições escolares se serviam como território para a preparação para vida e, por outro lado, a inovação introduzida por John Dewey no século XX, quando considerou a escola como a própria vida, não esgota a discussão sobre o modelo da escola que se pretende. Hoje, os modelos escolares são chamados a serem instituições humanistas cujo objetivo é ensinar e educar o homem a pensar.
Nesse sentido, é preciso olhar o currículo escolar e de formação de professores enquanto conjunto de relações sociais e de significação que incorporam não apenas as relações sociais, mas também as relações sociais de poder, sendo estas últimas não “inteiramente externo ao processo de significação (...), elas próprias, ao menos em parte, são o resultado de práticas de significação” (Silva, 2001, p. 23).
As relações sociais de poder operam junto do currículo e da política de formação de professores num cenário em que a globalização e o surgimento das novas tecnologias de comunicação diluem as fronteiras culturais, o que faz com que a questão da cultura e da educação atravessem outras áreas de atuação. Na esfera da globalização, o poder se torna cada vez mais central. Corroborando, Jameson (2001) sinaliza que caminhamos para a convergência da economia e cultura, onde os indivíduos se tornam consumidores manipulados pela força de poder.
Para dar a dimensão de territorialidade de Moçambique, nosso espaço de reflexão, assumimos o risco de repetir a caminhada percorrida por aqueles que nos antecederam na localização de Moçambique e ao que escrevemos em ocasiões anteriores, pois, para nós, povos da tradição oral, a repetição não representa falta de criatividade, mas sim, um recurso para treinar a memória; para sobreviver e perpetuar a nossa cultura (Bâ, 2003).
A semelhança de muitos países africanos Moçambique foi vítima da colonização europeia, para este, coube Portugal como potência colonizadora, responsável pela barbárie da colonização por uma longa noite que durou quase quinhentos anos. Os historiadores apontam que antes da chegada dos portugueses, em 1498, período que significou o início de uma brutal violência, porque,
[e]sses sujeitos não eram grande coisa na verdade. Não eram colonizadores; a administração deles era mera exploração, mais nada, eu acho. Eram conquistadores, e para isso é preciso apenas força bruta, nada para se orgulhar uma vez que a sua força bruta é um mero acidente que brota da fraqueza dos outros. Eles agarravam o que podiam só porque estava ali. Era apenas roubo com violência, agravado por assassinato em massa, e homens partindo em direção a isso às cegas, como é bem apropriado aos que enfrentam as trevas. A conquista da terra, que significa principalmente tomar daqueles que têm compleição diferente ou narizes ligeiramente mais chatos do que os nossos, não é coisa bonita quando se olha bem para ela (Conrad, 2019, p. 21).
Foi assim, que se deu o contato colonial, caracterizado por exploração, brutalidade, violência física, simbólica e cultural.
A sua independência foi por via armada desencadeada pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), fundada em 1962 na Tanzânia, que, em 1964, inicia a luta de insurreição armada que durou dez anos, tendo o seu fim em 1974, mesmo ano que Portugal registra o fim do Regime de Salazar, conhecido como revolução dos Cravos de 25 de Abril.
O sistema de dominação colonial em Moçambique foi muito forte, ocupou os campos políticos, físicos e sociais – corpos foram transformados em combustão das máquinas; vidas humanas em carnes de armas; crianças e mulheres assassinadas; culturas expostas ao aniquilamento; recursos do subsolo retirados e consumidos aos sorvos; exclusões multiplicadas; pensamento crítico silenciado.
A FRELIMO pertence a um grupo de movimentos políticos formados por intelectuais nacionalistas que em meados do século XX dominando a geografia e a política do ocidente e enraizados nos conhecimentos e saberes africanos se encarregaram por trazer mensagens que viriam incomodar a obediência, o servilismo e o silêncio perante à dominação colonial. Estes intelectuais orgânicos entendiam que era preciso construir uma nova sociedade com a compreensão de si mesma. Compreensão essa, que devia ser obtida através de lutas contra hegemônicas, políticas, mas também de várias formas de manifestação como sinaliza Gramsci (1999, p. 103) “a compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto através de hegemonias políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real.”
Sobre o período colonial a memória nos traz uma política separatista que nos fez crer que o homem podia ser classificado em raça – na qual os que apresentassem a pele com melanina mais acentuada podiam ser chamados de pretos, cor do luto, negro adjetivo rotulado como a maldição e, finalmente, podiam ser concebidos como seres ainda em evolução para atingir a fase de homem branco.
Assim, a educação era em grande medida solapada, a instrução e o ensino eram transmitidos sob intuição de manter o dominado inferior e, reforçar o colonialismo – Portugal embora sem recursos financeiros para sustentar as colônias e sob pressão dos movimentos negros como pan-africanismo e a negritude perpetuou a estratégia cruel de demonização das colônias; não implementou nenhuma política social ou econômica a favor dos colonizados, muito pelo contrário estimulou e agravou as medidas de exclusão do povo moçambicano de forma geral através de uma precária “política” de educação e de formação de professores que servia para manter a colonização, pois o sistema brutal e colonial ensinava nas instituições escolares que “o povo nativo da África tem obrigação de agradecer aos colonizadores todos os benefícios que deles recebem. Os mais educados têm o dever de guiar aqueles que têm menos educação contra todas as ilusões de independência. (Mons. Custódio Alvim Pereira, Bispo Auxiliar de Lourenço Marques, apud Mondlane, 1975, p. 74-75).
Na era de profundas mudanças em que vivemos, na qual nem toda informação se transforma em conhecimento e aprendizagem cresce o questionamento sobre o modelo da escola anterior. Os estudos no campo da educação revelam mudanças significativas nas escolas, geralmente causadas pela revolução digital que tem transformado o tipo de alunos que chegam nas instituições escolares. Serres (2012, p. 12-13) afirma que
estas crianças habitam o virtual. As ciências cognitivas mostram que o uso da tela, a leitura ou a escrita das mensagens através do polegar, a consulta da Wikipedia ou do Facebook não excitam os mesmos neurónios nem as mesmas zonas corticais que a utilização do livro, da ardósia ou do caderno. Estas crianças podem manipular várias informações ao mesmo tempo. Não conhecem, não têm a mesma cabeça.
Por outro lado, a escola recebe a pressão epistemológica ― o conhecimento do sul vem propondo a
intervenção epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. (SANTOS & MENESES, 2009, p. 7).
Apesar das alterações na política de formação de professores e dos modelos curriculares, o ensejo de conseguir um modelo em escala nacional, modelo este que atenda a diversidade cultural, oferecendo ao país educadores que garantam o ensino inclusivo e cultural, configura (ainda)uma miragem, tal como se estrutura o processo de construção de uma democracia efetiva moçambicana.
No entanto, as mudanças a que assistimos igualmente nos provocam a pensar que “se realmente queremos criar uma atmosfera cultural em que os preconceitos possam ser questionados e modificados, todos os atos de cruzar fronteiras devem ser vistos como válidos e legítimos” (hooks, 2022, p. 175).
Para o caso de Moçambique as mudanças nos campos econômicos, políticos e culturais, em grande parte, são provocadas pelos grandes organismos da Bretton Woods, o FMI e o BM. O BM, inicialmente designado por Banco para Reconstrução do Desenvolvimento Internacional (BIRD), criado juntamente com o FMI em 1944, na conferência de Bretton Woods, com a missão, por um lado, naquele período, de recuperar as economias dos países destruídos pela guerra e, por outro lado, de controlar os avanços do comunismo. Após a reconstrução da Europa, por volta de 1950, o BM e o FMI dedicam-se a apoiar os países subdesenvolvidos, da África, América Latina e do Caribe, com o objetivo de dinamizar as suas economias. O BM e FMI tinham-se como guardiões do bem-estar socioeconômico no pós-guerra.
O BM, sendo uma instituição para a promoção do desenvolvimento, tem a missão de lutar contra a pobreza, impulsionar e elevar os níveis de vida das comunidades dos países em desenvolvimento. Concede empréstimos, assistência técnica, assessora o desenho, a implementação e a avalição de políticas, assim como a partilha de conhecimentos. Dentro da sua estrutura, encontramos o BIRD e a Associação para o Desenvolvimento Internacional (ADI) como os detentores do poder financeiro e de decisão ligados diretamente aos países membros fundadores.
O BIRD, que detém o maior capital, concede assistência e empréstimos para o desenvolvimento de países com rendimento médio; aos mais pobres, crédito com taxas de juros de mercado. A ADI, criada em 1960, tem por missão operar como braço do BM concedendo empréstimos e prestando apoio na redução da pobreza. A ADI atua(va) nos países mais pobres concedendo empréstimos com taxas de juros menores (BANCO MUNDIAL EM MOÇAMBIQUE, 2003).
Não menos importante, a Corporação Financeira Internacional (CFI), fundada em 1965, impulsiona o crescimento económico dos países em desenvolvimento, concede empréstimos para investimentos no sector privado, catalisa também a eficiência dos mercados financeiros. No entanto, no mais das vezes, a sua atuação aparece sob “umbrella” do BM, embora sendo de capitais e contratos independentes.
Após a apresentação dos organismos internacionais e suas intenções a questão se coloca: como e por que Moçambique acede a estas organizações? Seria a necessidade de dar à seca, à fome, à crise econômica respostas. A reconstrução do país precipita a adesão de Moçambique ao financiamento do FMI e do BM; mas, não menos importante, podemos afirmar que a participação de Moçambique na luta pela independência da antiga Rodésia do Sul, atual Zimbabué, aparece como trampolim para o contato entre o Estado moçambicano e o Estado britânico; Taimo (2019, p. 93) refere que,
[é] no processo pela independência da Rodésia que o estadista moçambicano (Samora Machel) e a estadista britânica (Margareth Tatcher) passam a ter relações privilegiadas que levaram a que ajudasse o governo moçambicano considerado comunista a ser admitido nas instituições financeiras internacionais.
Em nossa história, o primeiro estágio dá-se quando o país decide romper com o sistema colonial ao “propor criar uma sociedade justa, sem classes e sem exploração do homem pelo homem” (MARRACH, 1996, p.19). O segundo, ocorre quando Moçambique adere ao FMI e ao BM; este momento, caracteriza-se pela liberalização da economia, pelas privatizações e pela consequente redução do papel do Estado na economia (MARRACH, 1996). Isto indica que, com o financiamento do FMI e do BM, a política do Estado de intervenção na educação e em outros setores sociais começa a diminuir – dando espaço de atuação às políticas liberais. Sobre a redução do papel do Estado e cortes nas “despesas públicas”, Taimo (2019, p. 98)
[v]erificamos que a discussão em torno do Acordo FMI e governo de Moçambique traz consigo vários aspetos, entre eles a necessidade de reformar o Estado, descentralizá-lo. É daí que os temas, como descentralizar, desburocratizar, redução de número de funcionários considerados excessivos, estavam presentes na discussão sobre a questão do controlo fiscal.
Segundo Taimo (2019) a adesão de Moçambique ao FMI dá-se no dia 24 de setembro de 1984. A primeira parcela de empréstimo é concedida no dia 18 de junho de 1985, avaliada em 45,5 milhões de dólares americanos. É no decorrer desse empréstimo que o país se viu desafiado a realizar profundas mudanças na sua estrutura de funcionamento. Alterou e adoptou novos instrumentos jurídicos e administrativos que visavam reduzir os gastos do Estado.
Nesta sequência, de reforma estrutural, em 1987 o país implementa o Programa de Reabilitação Econômica (PRE) e opera reformas na sua legislação com vista a reduzir a burocracia e efetuando cortes de recursos destinados aos sectores sociais.
Mais tarde, ao verificar que tal programa excluía, na sua planificação, o componente social em detrimento do fator econômico, reestrutura-se em Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES) incluindo o fator social. O PRES estava voltado para a melhoria da vida da população das zonas rurais, que estavam severamente assoladas pela guerra de desestabilização que durou dos 16 anos, pela fome e seca dos anos 1981 a 1983; visa também garantir os níveis de consumo mínimo à população e suprir a escassez de alimentos.
Os modelos de formação dos professores no contexto do mundo neoliberal, os novos campos dos estudos da integração das sociedades no mundo realizam-se em duas perspectivas – a do funcionalismo, sistémico, estruturalista, Weberiano e, a que procura por via econômica, tecnológica, cultural, religiosa, política passar as suas compreensões (IANNI, 1994). Todavia, são poucos estudiosos que apresentam abordagens abrangentes, pois vivemos a barbárie do capitalismo e da revolução tecnológica que propiciaram a mundialização do consumismo, a evolução da ciência bélica e do controle das emoções e liberdades do homem, o que se traduz em nova armada ideológica conservadora.
O mundo neoliberal e as suas políticas evidenciam que o desemprego, a pobreza, a violência e o futuro incerto colocam em crise as políticas e as agendas de desenvolvimento defendidas pelo ocidente; todavia, não há nenhuma intenção de abandoná-las (LEHER, 2003), apesar da instauração dos governos voltados às classes populares – os traços e a influência liberal se capitaliza nas novas sociedades.
O fracasso das reformas nos Estados periféricos que seguem o modelo do FMI e BM é notório. As ciências sociais não escapa(ra)m ―, não se desenvolve(ra)m o suficiente ―, principalmente nos países em que o financiamento foi reduzido como é o caso de Moçambique. O atual campo da educação moçambicana está caraterizado por novos desafios empíricos, procedimentais e metodológicos de currículo escolar e de formação de professores. Exige novas teorizações, novos conceitos: diferença cultural, inclusão, incorporação dos saberes “epistêmicos”, expansão, acesso e retenção escolar como elementos que podem lutar pelo reconhecimento do diálogo horizontal do conhecimento na escola e, por conseguinte melhorar a convivência no mundo.
Trata-se de uma abordagem holística que procura reduzir as assimetrias entre o concebido como ideal no ocidente e as realidades vivenciadas no contexto do mundo, visto que “à medida que se expande a sociedade ocidental, desde o século XVI, acentua-se a distância entre a realidade e o ideal Norte. A diversidade cultural e o frequente desentendimento mútuo parecem caracterizar o mundo real” (IANNI, 1994, p. 151).
Como se pode notar estamos diante de questões de diferenças – de reconhecimento do outro – num ciclo de transformações que infelizmente não tem sido palco de muitos estudos. Em Moçambique as realidades nacionais não têm merecido estudos profundos para a sua sistematização e utilização como ferramentas de resistência, o que faz com que a política nacional se submeta ao global com imperfeições e indecisões políticas e científicas.
Esta prática remete-nos a um repensar sobre a relação entre os Estados e as políticas do FMI e BM, sem perder de vista o contexto em que se realizam as independências dos países africanos operacionalizadas em dois modelos: primeiro, designado por Nkrumah (2018) como falsas revoluções ou descolonizações porque se realizaram através de negociações entre a colónia e a metrópole impossibilitando a soberania total dos países colonizados; em segundo, as verdadeiras revoluções que são fruto de uma luta e conquista popular.
Do ponto de vista dos procedimentos, Moçambique encaixa-se no modelo de verdadeira revolução, todavia, não escapa das influências de que muitos Estados localizados no Sul são vítimas, as reformas neoliberais. Disto resultou que a política de funcionamento do Estado não “ rompesse com ocidente” devido a maior parte dos seus recursos financeiros e políticas de Estado estarem ligados aos organismos internacionais.
O país é desafiado a se integrar no mundo globalizado num cenário em que a dependência econômica, tecnológica, cultural, religiosa, política e geopolítica com o ocidente se mostra forte. A globalização para Moçambique não significou a ampliação do nacional, pois não celebrou da diversidade.
No entanto, atualmente, as ciências sociais preocupam-se com as pesquisas da sociedade global sem se descurar do nacional. Estes estudos encaram a sociedade nacional como paradigma clássico, um campo já conhecido. A sociedade global se afigura como epistêmica e cheia de indefinições; as ciências sociais e a formação de professores primários desafiam-se a pensar em termos globais, o que requer um investimento no campo ideológico e cultural, uma vez que se assiste a uma sociedade em movimento sincrônico e diacrônico que desafia a concepção culturalista – para a reflexão dos paradigmas que atravessam a formação dos professores.
Nesse sentido procura-se vencer os paradoxos criados pela globalização, o espaço vazio epistemológico, que conduziu a formação de professores na sua atuação e enfraqueceu a sua contribuição com experiências, histórias culturais e conhecimentos individuais na construção do bem coletivo (GIROUX; MCLAREN, 2011).
Os currículos de formação de professores primários, apesar das inúmeras reformas, apresentam uma forte dimensão epistemológica colonial que transitou da ideologia monocultural expandida pelo conhecimento “moderno” da Europa do século XIX. Sobre estas reformas, Leher (2003, p.203) refere que “aprofundam a condição capitalista dependente do país e ampliam a sua heteronomia cultural, agravando o apartheid educacional e científico-tecnológico, com graves consequências sociais”.
Daí emerge a necessidade de (re)pensar a política a partir da diversidade cultural que caracteriza o país como nova alternativa de pensar as sociedades do mundo, num esforço que “ permite a emergência de ecologias de saberes em que a ciência possa dialogar e se articular com outras formas de saber, evitando a desqualificação mútua e procurando novas configurações de conhecimento” (SANTOS, 2005, p. 24). A resistência nos parece mais do que uma necessidade, um imperativo para a autonomia dos estados, formação de cidadãos livres e diálogo horizontal do conhecimento necessário para a cidadania.
A nova perspectiva busca soluções que possibilitam criar a contra hegemonia colectiva que estimula movimentos sociais a lutar por uma refundação da escola enquanto esfera pública onde todos são reconhecidos e respeitados. Coloca-se como caminho aberto que nos desafia a desconstruir o discurso que legitima as reformas neoliberais uma vez que os temas como descentralização, autonomia, interação com a comunidade são debatidos na sua dimensão inclusiva.
Quando se procura ser mais global, no debate sobre políticas de formação de professores, não pode ignorar a questão da diversidade cultural, das diferenças, porque a sua incorporação, como sugere Ianni (1994), fornece elementos centrais para compreender a educação desde a sua planificação e execução em missão de construir um novo saber que reconheça e se reconheça nas populações a que se destina a escola.
Não foi nossa intenção ao longo do texto nos embalar na linha pós-colonial essencialista que se apega ao local e esquece o global, mas apenas dialogar com a perspectiva decolonial crítica que busca o reconhecimento e respeito pela diversidade cultural e linguística na política de formação de professores. Uma proposta de reposicionamento nacional, face às políticas neoliberais, que visa abrir novas reflexões, num cenário contemporâneo em que “o carácter conservador, e com elementos fascistas, das relações sociais atuais tende a ampliar o controle material e político da educação e, portanto, do trabalho educativo” (CATINI, 2019, p. 33).
Esperamos ter provocado uma reflexão sobre a necessidade de articulação das instituições que atuam na formação de professores ― escolas de formação inicial, universidades, e as organizações multilaterais que financiam a formação de professores. Igualmente, pensamos ter levantado um debate que coloca na escola a necessidade de assumir o compromisso de ensinar como uma práxis da liberdade que emancipa de forma individual e coletiva a compreensão da diferença, cultura, currículo e poder no campo do currículo escolar e de formação docente.
A nossa intenção neste texto não foi propor alguma teoria de fixação localizada ou defender uma visão orgânica sobre a formação de professores nem apostar no olhar exclusivo dos saberes locais/populares como adverte Bhabha (1998, p. 20) “a representação da diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição”, mas sim, procuramos refletir sobre um pensar diferente na formação docente. Uma formação que valoriza a cooperação das organizações multilaterais sem desalojar as experiências quotidianas da sala de aula, bem como a singularidade dos sujeitos. A formação docente e o apoio das organizações multilaterais precisa concorrer para o respeito da diferença como caminho para a afirmação e produção de outras identidades, capazes de conviver num mundo cada vez mais equilibrado sem imposição e hierarquização.
Assim, pensar a formação de professores a partir da práxis implica a abertura ao diálogo pedagógico, cultural e político, uma vez que as relações entre cultura, currículo e formação de professores atravessam toda a sociedade nos seus mais amplos sentidos, o que de certo modo impera a um debate mais inclusivo que se atenta as questões de género, sexualidade, classe, raça e poder. Deste modo, falar de formação de professores em tempos de metamorfose requer a compreensão dos papeis em disputa, bem como as fronteiras porosas entre as políticas globais e a prática cotidiana do professor em sala de aula.
A política de formação de professores em Moçambique em tempos que correm, onde tudo se opera na contingência é desafiada a pressionar e a transpor a ordem estabelecida, a criar outras formas de pensar, a legitimar os saberes escolares, implicando, romper com a ordem esquizofrénica para questionar as condições que se impõem para a sua existência. Para este fim, as concepções de construídas epistemologicamente no Sul permitem desenvolver um debate que problematiza a formação docente pensada a partir do currículo prescrito vertical, formal, informal e não formal de formação de professores que exclui na sua grelha de conteúdos o estudo da cultura, língua local e diferença cultural e, que perde de vista as interrelações constitutivas da sociedade moçambicana marcada por fortes distinções de grupos étnicos e plurilínguisticos.
Em Moçambique, um país caracterizado por enormes assimetrias sociais e económicas urge a necessidade de um debate que desloca os padrões etnoculturais e heteronormativos, para propor práticas pedagógicas e de formação de professores transgressoras que permitem aos futuros professores ensinarem com competência e liberdade, para que os seus alunos assumam a educação com responsabilidade.
A questão de currículo escolar, formação de professores e sua “relação” com as organizações multilaterais em Moçambique precisa de ser vinculada às questões de diferença, cultura e identidade tendo em atenção os tempos de mudanças que desafiam aos pesquisadores e atores da educação a mergulhar de cabeça desafixada sobre a transformação dos modelos escolares, hibridização da cultura, identidades nacionais em Moçambique com objetivo de oferecer políticas de formação de professores capazes de transformar a sala de aula num ambiente de troca de aprendizagem com entusiasmo.