Artigos do fluxo

Recepción: 09 Mayo 2022
Aprobación: 19 Mayo 2022
DOI: https://doi.org/10.17058/rea.v31i2.17614
Resumo: Analisa a relação das experiências das crianças com a cultura lúdica, revelando brincadeiras e categorias metaforizadas a partir dos desenhos animados. Trata-se de pesquisa etnográfica, de natureza qualitativa, realizada com 22 crianças, de uma escola da rede municipal de ensino, localizada na cidade de Cuiabá/MT. Utiliza episódios de interação como instrumentos de produção de dados. Aponta que, ao brincar com os desenhos animados e ter a oportunidade de falar sobre suas fantasias, as crianças revelaram suas autorias, protagonismos e experiências brincantes, sugerindo um saber brincante por meio de metáforas do espelho do imaginário e dos estados físicos da brincadeira.
Palavras-chave: Brincadeira, Cultura lúdica, Desenho animado, Brincadeiras de luta.
Abstract: Analyzes the relationship of children's experiences with playful culture, revealing games and metaphorized categories based on cartoons. This is ethnographic research, of a qualitative nature, carried out with 22 children from a municipal school located in the city of Cuiabá/MT. It uses interaction as data production instruments. It points out that while they are playing with the cartoons and they had the opportunity to talk about their fantasies, the children revealed their authorship, protagonisms and playing experiences, suggesting a knowledge of metaphors from the imaginary mirror and physical states of play.
Keywords: Play, Playful culture, Cartoon, Rough and tumble play.
Resumen: Analiza la relación de las experiencias infantiles con la cultura lúdica, revelando juegos y categorías metaforizadas a partir de dibujos animados. Se trata de una investigación etnográfica, de carácter cualitativo, realizada con 22 niños de una escuela municipal ubicada en la ciudad de Cuiabá/MT. Utiliza la interacción como instrumentos de producción de datos. Señala que jugando con los dibujos animados y teniendo la oportunidad de hablar de sus fantasías, los niños revelaron su autoría, protagonismos y experiencias lúdicas, sugiriendo un conocimiento de las metáforas del espejo imaginario y de los estados físicos de juego.
Palabras clave: Jugar, Cultura lúdica, Dibujo animado, Juguetes de lucha.
INTRODUÇÃO
Compreender as mudanças que estão ocorrendo dentro da sociedade pós-moderna como a transformação cultural, nos remete a refletir sobre as experiências brincantes infantis. Essa grande proliferação de informações vindas da mídia televisiva e de seus desdobramentos proporcionou um contexto de instantaneidade e de transformações. Na perspectiva da pós-modernidade, isso é encarado como algo “líquido. (BAUMAN, 2007), que está sujeito a alterações sem aviso prévio, que pode influenciar a (re)construção e as vivências brincantes, deixando assinaturas compartilhadas nas brincadeiras entre as crianças, mostrando as especificidades dessa realidade.
E, para a criança, a realidade que ela vive se resume em brincadeira. Brougère (1998, p. 107) considera que “[...] a cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permite tornar o jogo possível”. Para esse sociólogo do jogo, “[...] dispor de uma cultura lúdica é dispor de certo número de referências que permitem interpretar como jogo as atividades que poderiam não ser vistas como tais por outras pessoas” (BROUGÈRE, 1998, p. 108). O mesmo autor sinaliza a importância de conhecer e de compreender o repertório brincante infantil a fim de interpretar as referências lúdicas que a cultura lúdica fornece.
Essas referências lúdicas, para Sarmento (2005, p. 375), se materializam na brincadeira, pois “(...) a criança funde os tempos presente, passado e futuro, numa recursividade temporal e numa reiteração de oportunidades que é muito própria da sua capacidade de transposição no espaço-tempo e de fusão do real com o imaginário”. Isso faz parte do simbolismo infantil e de seu imaginário, pois permite que a criança explore contradições e possibilidades. É a frivolidade da brincadeira em ação, aparentemente sem nexo e sem preço, revelando um nonsense1, mas com muito sentido e lógica para a criança e, também, para quem consegue entrar nesse mundo e interpretar sua cultura. E é nesse momento que as crianças se afirmam como atores sociais, com a multiplicidade de ações e representações.
O desenho animado, nessa lógica, evidencia uma das formas que a criança tem de interagir com a sociedade, e para ela, “[...] o que conta é a partilha cotidiana e segmentada de emoções e de pequenos acontecimentos” (MAFFESOLI, 2003, p. 15). Isto é, comungar sobre as mesmas experiências, se divertir, estimular a sua fantasia e poder compartilhá-la com as outras crianças nos momentos brincantes. É a forma de expressão do imaginário infantil, cimentando a infância à cultura lúdica contemporânea.
Ter uma visão mais ampla sobre as brincadeiras e a sua relação com a mídia televisiva nos possibilita interagir com o que as crianças vêem e brincam e, assim, identificar o repertório brincante delas, possibilitando uma via de mão dupla entre a cultura lúdica infantil e a cultura escolar.
Deste modo, a partir de uma pesquisa etnográfica com uma turma de Educação Infantil, em uma escola da rede municipal de Cuiabá/MT, utilizando episódios de interação que os dados foram produzidos. O desafio da pesquisa foi incentivar o diálogo com as crianças sobre o que fazem em seu cotidiano, com o quê e como brincam e como socializam esse saber na escola, contribuindo para que conheçamos melhor o repertório brincante e possamos aprender com elas, sobretudo no período em que vivemos de constantes transformações. Portanto, essa pesquisa analisa a relação das experiências das crianças com os desenhos animados e a cultura lúdica, revelando brincadeiras e categorias metaforizadas a partir dos desenhos animados.
METODOLOGIA
O artigo retrata o estudo baseado em uma pesquisa etnográfica, de natureza qualitativa, realizada com 22 crianças, englobando dez meninos e doze meninas de cinco anos de idade, da última etapa da Educação Infantil, de uma escola da rede municipal de ensino, localizada na cidade de Cuiabá/MT.
Para realizar a aproximação com as crianças e ouvir suas vozes sobre a relação das brincadeiras e os desenhos animados presentes em suas culturas infantis, a pesquisa captou episódios de interação, constituídos por meio de notas de campo, observações sistemática e assistemática de falas e comportamentos, entrevistas semiestruturadas, narrativas e gravador de voz para que os dados fossem produzidos com elas, caracterizando-os como instrumentos de produção de dados utilizados na pesquisa.
A análise dos dados foi estruturada em categorias de codificação, que envolveu a divisão dos dados por categorias, de acordo com a aproximação das respostas apresentadas pelos sujeitos pesquisados. As categorias foram construídas a partir do que os dados revelaram, evidenciando a transformação dos desenhos animados em brincadeira, a força do imaginário infantil e a linguagem infantil na/sobre a escola. Essa análise se materializou nas metáforas do espelho do imaginário e dos estados físicos da brincadeira (BARBOSA, 2011).
DESENVOLVIMENTO
Durante a pesquisa, observou-se que as brincadeiras que fazem parte da cultura das crianças foram influenciadas por histórias infantis, por contato com o mundo dos adultos e, principalmente, com os desenhos animados. O cruzamento entre o imaginário, o desenho animado e a cultura lúdica se apresentam com certa intimidade, principalmente com a absorção da TV e da internet no cotidiano infantil, levando as crianças do mundo de hoje a terem uma considerável proximidade com o que a mídia tem para oferecer.
Parafraseando Maffesoli (2003, p. 13), essa união entre telespectador e a linguagem midiática demonstra que “(...) a comunicação é a cola do mundo pós-moderno [...]”, estabelecendo as formas de relações sociais orgânicas e as sinapses sociais, ou seja, para elas, tudo se resume em, simplesmente, estar juntas, fazer juntas e, por que não, imaginar juntas?
E, assim, percebemos que o desenho animado está presente nas brincadeiras infantis, fornecendo imagens e elementos lúdicos dos mais variados, contribuindo para a cultura lúdica atual, pois são revividos e (re)significados no imaginário das crianças e postos em ação em suas brincadeiras, apresentando a flexibilidade da imaginação no momento da brincadeira.
Além disso, a pesquisa apontou, também, para as brincadeiras que apresentam as mesmas referências lúdicas, sobretudo pela universalização midiática e o acesso facilitado a elas, seja através da TV e/ou da internet. Desta forma, a pesquisa mostrou que esse contato gerou a transformação dos desenhos animados em brincadeiras, conforme os episódios brincantes a seguir:
Tem o “Bakugan” e o “Pica-Pau”. Eu brinco com os dois. Essa brincadeira é assim, ó: o “Pica- Pau” era do mal, eu era do bem, e também o “Bakugan” era do bem, então, o “Bakugan” luta e derrota o “Pica-Pau”, porque o “Pica-Pau” não tem poder. (JVF, 5 anos, M)
Ri, baixa o “Pica-Pau” e brinca com ele! O “Pica-Pau” brinca assim: o “Pica-Pau” corre, não corre? Aí, o homem não vai atrás do “Pica-Pau”? Então, esse que é o pega-pega de “Pica-Pau ”! Quando o “Pica-Pau” faz lêlele (riso) para o bicho, aí o bicho corre atrás do “Pica-Pau”, aí o bicho veio e ele saiu e correu! (NVC, 5 anos, F)
De fazer corrida... de correr mais rápido! Lá na quadra, uma amiguinha inventou uma brincadeira de menina brincar com guri e guri com menina, guri com guri e menina com menina. Ela corre atrás do guri e ela imita um macaco daquele desenho que corre atrás de quem bate e quem xinga, que quer destruir a cidade...” (EGF, 5 anos, F)
Eu gosto de brincar de “Poderosa”. Brinco de lutar, eu vou dar um jeito nesses guris! Assisto todo dia. É daquele desenho das “Meninas Super-Poderosas”. (EGF, 5 anos, F)
Nesses episódios brincantes, meninos e meninas relatam como brincam. Ficou evidente como os desenhos animados se sobressaíram como um elemento lúdico essencial para que as brincadeiras ocorressem. E, pela narrativa das próprias crianças, observou-se que a imaginação, a transformação e aspectos atemporais como lutas, pega-pega e monstros na brincadeira, as aproximaram e mostraram como a idiossincrasia das imagens, a heteroglossia dos personagens e a prodigalidade de consumo advinda dos produtos que a mídia dispõe para as crianças integram-se aos elementos brincantes em suas relações, estruturando a cultura lúdica infantil.
Para Morin (2000, p. 52), “[...] o homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura”. É possível perceber que um dos caminhos que a criança trilha para fazer parte da sociedade e se afirmar em seu cotidiano é brincando e se realizando no seu mundo imaginário. Ela vai se apropriar de elementos lúdico-agressivos (BARBOSA, 2018) para alimentar a sua brincadeira, já que são esses tipos de imagens que estão a sua volta a todo o momento, entretanto, é realizado dentro de um campo simbólico.
O zeitgeist2 da infância permite que ela seja e imagine o que ela deseja ser. Essa identificação com os desenhos animados demonstra a sua capacidade de interagir com as imagens e transformar esse processo em brincadeira, congregando elementos que estão presentes em um único desenho, ou simplesmente, associando e hibridizando diferentes desenhos, demonstrando a essência do seu poder de faz-de-conta.
Nas brincadeiras de faz-de-conta, os desenhos animados e as (re)criações das crianças ocorrem de acordo com a vontade e a percepção delas, mostrando a força do imaginário em suas brincadeiras e as suas relações particulares com o seu mundo lúdico. Deste modo, segundo Sarmento (2005, 375):
[...] para as crianças, no âmbito do jogo simbólico, o objecto referenciado não perde a sua identidade própria é, ao mesmo tempo, transmutado pelo imaginário: a criança “veste” a personagem da mãe, do bebê, do médico ou do cientista maluco sem perder a noção de quem é e transforma os objectos mais vulgares nos mais inverossímeis artefatos (...).
E, a orientação estética3, no sentido de percepção, de sensação e de sentir prazer em entrar em contato com outra realidade, é o que proporciona a graça e a magia da brincadeira. Isso reforça que as crianças fertilizam suas ideias quando incrementam seu repertório brincante com os desenhos animados e vivem intensamente esses momentos, se identificando e incorporando as representações que fazem no seu mundo lúdico.
Os episódios brincantes a seguir apontam para a força da imaginação infantil e a transferência lúdica que conseguem (re)construir enquanto brincam:
Sabe, minha mãe me deu um “Ben 10” e eu o coloquei na geladeira. De noite, ele veio para a minha cama, se transformou em “Quatro-braços” e eu lutei com ele, ele pegou no meu braço e eu acabei com ele. (DCF, 5 anos, M)
Gosto de brincar de boneca! Eu penso que eu moro aqui [na escola], penso em ser mãe. Gosto da “Barbie” e do “Ben 10”! Eu penso que sou ela! Eu finjo que a boneca é alienígena! Eu brinco igual eu brinco em casa, de luta, todo mundo brinca! (TYA, 5 anos, F)
O “Pica-Pau” fica passando, às vezes, na minha cabeça! Eu tenho a máscara do “Homem Aranha”! O “Homem Aranha” voa com teia, eu penso em voar! É só brincar, você tem que aprender a brincar! Você tem que pegar o “Homem Aranha” e brincar de “Homem Aranha”, tem que brincar primeiro, aí você vira “Homem Aranha”! Eu aprendo a brincar! E também tem o “Homem de Ferro”, ele voa! Eu gosto quando voa! (YSP, 5 anos, M)
Um episódio emblemático, conforme um dos episódios de interação, é de uma das meninas pesquisadas, que trata sobre a união entre a “Barbie” e o “Ben 10”. O primeiro, um desenho padronizado para o público feminino e, o outro, para o público masculino. Isso mostra que quando as meninas brincam com esses desenhos de forma conjunta, brincando de “lutinha”, elas vencem a barreira de gênero. Para Brougére (2008, p. 81), isso se relaciona, também, com a forma como o consumo dos desenhos animados influencia o cotidiano das crianças e suas brincadeiras:
[...] é claro que as meninas brincam de guerra e existem roteiros que preveem papéis femininos. Porém, a brincadeira de guerra é, predominantemente, masculina. Encontramos, de novo, a imagem cultural que consagra o homem à guerra. A brincadeira aparece como o lugar de experimentação da identidade sexual e tende, algumas vezes, a reforçar as diferenças, mesmo quando elas são parcialmente suavizadas na sociedade (o que, de qualquer modo, está longe de ser o caso da guerra). Essa confrontação com a cultura que evocamos está, portanto, fortemente marcada pelos papéis sociais (BROUGÈRE, 2008, p. 81).
Para as crianças dessa pesquisa, sobretudo, as meninas, brincar com desenhos animados ditos masculinos aponta para uma das características da sociedade “pós-moderna”: o consumo (BAUMAN, 2007). Há uma lógica cultural dominante – de exploração econômica e visual dos bens simbólicos, no qual a cultura se destaca – que tenta se impor a todo custo, levando-nos a uma determinada direção e provocando armadilhas de consumo para o público ao qual se destina. O desenho animado, aparentemente, não distingue para qual gênero ou papel social ele é endereçado, simplesmente empresta sua atmosfera de vivacidade, de imaginação e de independência a todos aqueles que desejam assisti-lo e brincar com ele.
Nesses episódios brincantes, as crianças mostram seus protagonismos ao (re)criar suas brincadeiras com os desenhos animados. Isto é, brincam de lutas, com suas próprias agressividades, imaginam e imiscuem personagens de desenhos animados em uma atmosfera em que as crianças podem pensar, (re)criar, se socializar e até sonhar que vivem essa realidade em seus mundos imaginários, por meio da relação com seus desenhos animados favoritos.
Sobre esse contexto turbulento e enérgico das crianças com os desenhos animados, Barbosa, Pereira e Mello (2018) tratam sobre as brincadeiras de luta, que são importantes manifestações da cultura lúdica infantil, que pulsam, de maneira subversiva, no cotidiano da Educação Infantil. Os autores revelam, dentre outros achados, que os diferentes tipos de jogos (vigoroso, físico, de faz de conta, livre e espontâneo) se imiscuem nas brincadeiras de luta, produzindo um tom lúdico e de nonsense à agressividade que está presente nas brincadeiras infantis. Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que as crianças querem se movimentar energicamente, necessitam fazer isso em um contexto simbólico e grupal, surgidos espontaneamente.
É como se as crianças pudessem olhar através de um espelho – o espelho do imaginário (BARBOSA, 2011) – e, assim, conseguissem dominar a experiência da transformação: ser, ver, sentir, construir e reconstruir o que desejassem. Brincando com os desenhos animados, elas podem aprender e se pôr no lugar do outro, além de tentar encontrar soluções para as situações- problema que podem aparecer. Essas interligações e interações são vivenciadas pelas crianças, graças ao poder do imaginário, com suporte do brinquedo midiático.
Quando a criança consegue controlar esse universo particular da brincadeira, tudo se torna mutável e surpreendente, pois o que faz parte de seu imaginário e o que ela vê através desse espelho, será a mistura de imagens que ela conseguiu captar e unir as suas fantasias e devaneios, alimentando a cultura lúdica.
Esse mistério, visto pelo olhar infantil, é percebido quando a criança assiste aos seus desenhos animados preferidos e os coloca em ação, evidenciando a graça proporcionada por eles. É como se elas abrissem o schatzkastlein4 da infância e, assim, nós, adultos, pudéssemos descobrir o que as crianças escondem ou querem revelar, vivenciar e compartilhar com seus pares, incorporando essa fantasia às suas experiências brincantes .
Deste modo, o espelho do imaginário (BARBOSA, 2011) sugere uma ligação com o lúdico e com a possibilidade de ver, ser e se transformar no que desejam através dele. A partir do momento que atravessam esse espelho e, simplesmente, imaginam, as crianças conseguem trazer para a sua realidade de fantasia todos os personagens e histórias dos seus desenhos favoritos e movimentar a brincadeira, tornando elas mesmas as próprias ferramentas lúdicas para conseguir adentrar no mundo fantástico da brincadeira.
A pesquisa revelou, também, que as falas das próprias crianças estão relacionadas às experiências corporais, brincadeiras tradicionais, imaginário e personagens dos seus desenhos animados favoritos, evidenciando sua maneira de se relacionar com o mundo. No entanto, na escola existem normas a serem seguidas que, muitas vezes, impedem as crianças de revelarem suas imaginações, por serem inapropriadas na escola. Os episódios brincantes abaixo apontam para uma linguagem da criança na/sobre a escola:
Não, aqui a tia não deixa virar bicho... porque aqui não tem bicho, só na casa que pode. Quando eu brinco de bicho, eu corro muito mais que o “Ben 10”. O “Ben 10” é rápido, um foguete! Ele faz alguma coisa e eu sonho com ele... Eu sonho que eu estava na casa dele, eu virei “Ben 10” também, eu virava bicho pra pegar o tubarão (vrum, vrum)! De “Ben 10”, na escola não, porque a tia não deixa! Só de “Backyardigans”. Se eu virar bicho, eu vou destruir a escola, né?! De “Backyardigans” pode brincar, de dia da corrida, dia da moto, dia do policial. (AFR, 5 anos, M)
Eu gosto do “Pica-Pau”. Ele fica lá em casa! (risos). Ele me ensina a subir em árvore. Ele não tá aqui [na escola], ele tá lá em casa! Também tem o “Bakugan”, ele tem poder, eu gosto, é legal! Ele luta! Eu brinco, finjo que tem alguém lá, aí faço alguém de pedra e tá e brinco de lutar! Aprendo a lutar! Ele, o guri do “Bakugan”, também fica lá em casa, igual ao “Pica-Pau”!!! Sabe onde? Dentro de casa, ele vive lá no meu quarto! Eu o chamo para brincar, assim ó: Bakugaaaan?! (...) Ciúmes?! Não, ele [o “Pica-Pau”] gosta do “Bakugan”! E eu também tenho poder! Mas aqui na escola não pode brincar com poder não, se não acaba a minha bateria! (JVF, 5 anos, M)
Esses episódios brincantes indicam como a influência dos desenhos animados dão asas a imaginação das crianças, bem como, essa mesma influência, também, pode ser apropriada pelos professores. Uma alternativa pedagógica é aprender a brincar com elas, é uma forma de desmistificar ações que para as crianças são brincantes e para os adultos podem soar como algo que pode atrapalhar o processo pedagógico. Conhecer e usar a produção de conhecimento infantil a favor da ludicidade em aula é dar sentido as brincadeiras de forma contextualizada. Ou seja, é aproveitar o que as próprias crianças revelam como possibilidades pedagógicas, enriquecendo os enredos a serem adotados no terreno escolar.
Jones (2004) enfatiza, em seus estudos, que é através dos desenhos animados, com a TV e outros gadgets, que tanto antropólogos como psicólogos que estudam as brincadeiras identificaram que além das funções primordiais, a brincadeira permite também
[...] às crianças que finjam ser o que sabem que nunca serão. Explorar o que é impossível, perigoso demais ou proibido, para elas, em um contexto controlado e seguro, é uma ferramenta importante para que aceitem os limites da realidade. Brincar com o ódio é uma maneira valiosa de reduzir seu poder. Ser mau e destrutivo na imaginação é uma compensação vital para a loucura a que todos nós precisamos nos submeter se quisermos ser uma pessoa boa. (JONES, 2004, p. 12).
Isto é, brincar com violência de faz-de-conta é trabalhar com medos e angústias da vida real, desenvolvendo consciência da diferença entre o que é real e o que não é, faz com que se sintam fortes e protegidos, além de canalizarem suas emoções e diminuírem suas ansiedades, funcionando como uma válvula de escape.
Metaforizando ainda mais, é como se as atividades brincantes passassem por um processo de estados físicos da brincadeira (BARBOSA, 2011), se transformando em fases: líquida, sólida e gasosa. Como a água, a brincadeira também apresentaria possibilidades proteiformes de mudar de estado, caracterizando a ligação com a dita sociedade “pós-moderna” e seu status quo na contemporaneidade.
Isso sugeriria que a brincadeira, ao estar no estado líquido, apresentaria um aspecto fluido, tomando forma e se ajustando com quem estivesse brincando. Isto é, nem todos brincam com personagens de desenhos animados da mesma forma, alguns inserem elementos da sua realidade, bem como deixam a sua assinatura na brincadeira, identificando-a.
Outra característica da brincadeira no estado líquido é que ela se combinaria facilmente com outras, já que é de fácil solução, irrigando o terreno brincante, de acordo com a vontade, a imaginação e o critério da criança e/ou de seus pares, caracterizando elementos da “pós- modernidade”. Observamos esses pontos por meio da mutação dos personagens, da união de brincadeiras tradicionais e atuais e de um hibridismo brincante5(BARBOSA, 2018), com a união de brincadeiras lúdico-agressivas6 (BARBOSA, 2018), tanto por parte dos meninos, como das meninas.
A brincadeira no estado sólido seria uma maneira de expressar sua forma própria, sua consistência ao realizar a materialização brincante, resistindo ao tempo. Este é o caso de todas as experiências brincantes pelas quais as crianças permanecem desenvolvendo com o mesmo sentido: brincadeiras tradicionais, de retratar o cotidiano e o adulto, as brincadeiras atemporais como bonecas e pega-pega. Esses aspectos vão de forma contrária aos ideais pós-modernos, de incerteza e de variação. Por outro lado, a brincadeira também estaria no estado sólido quando ela se materializa e se fixa no corpo do ser brincante, com a escolha de um único personagem, por exemplo, apresentando uma maneira ativa de se socializar com o conteúdo do desenho animado.
No estado gasoso, a brincadeira assumiria como característica principal a transformação. Dando uma sensação de movimento, de dinamicidade e de atualização, de mudar de estado físico durante a brincadeira. Percebemos isso, no momento que a criança se transforma no seu personagem favorito e busca sempre a renovação, misturando personagens, hibridizando comportamentos, tipos de brincadeiras e ambientes brincantes.
Não podemos esquecer que nessas mudanças de estado físico ocorrem a fusão, . solidificação, . vaporização, . evaporação e a sublimação, constituindo as diferentes variações que podem ocorrer em cada mudança de estado físico no decorrer da brincadeira.
Tanto a fusão, que é a passagem do estado sólido para o líquido, como a solidificação, do líquido ao sólido, é representada, por exemplo, como as identidades contraditórias7 e a ambiguidade durante a brincadeira, como a questão do gênero e os aprendizados brincantes.
Já a vaporização, que é a passagem do estado líquido para o gasoso, pode ser relacionada a um grande potencial para impregnar o que a criança gostaria de manipular, ou seja, a passagem da fluidez da brincadeira para a multiformidade brincante que ela pode possibilitar. Acrescentando ainda que, quando a criança brinca, ela consome imagens e gestos brincantes e, em questões de segundos, podem mudar a brincadeira, ou seja, a brincadeira passa para o estado de evaporação, que faz parte desse processo de dissipar as ilusões.
E, por fim, a sublimação, que é caracterizado como a passagem direta do estado sólido para o estado gasoso, que pode ser percebido nos momentos imaginativos. Agem de maneira a consumir o desenho animado, como algo sólido e, através das representações e sonhos, como um processo de “ex-istir”, como considera Maffesoli (2003), no sentido de movimento, de sair de si, ir para fora, é tão intenso e forte, que se transformam, brincam e evaporam. Somente quando sentem necessidade de brincar novamente, fazem o processo inverso. Todos esses processos acontecem com todos os estados físicos da brincadeira, possibilitando um modus faciendi particular.
Desta maneira, ao observar as narrativas e a contemplação dos atos das crianças pesquisadas nos deu a dimensão do que seria se aproximar e compreender o imaginário, a cultura lúdica infantil e as suas experiências brincantes. Permitiu que suas fantasias ganhassem corpo e fossem compartilhadas, oferecendo um espaço de mistério ao tentar descobrir o que as crianças iriam revelar e a sua ligação com o lúdico, que ocorrem a todo momento na escola.
Quando as crianças constroem e reconstroem as histórias, misturam personagens e cenas, que o seu imaginário é fortalecido. Saber sobre imaginações e brincadeiras infantis nos faz repensar a forma de trabalhar com esses conteúdos próprios da criança na escola. É uma maneira de valorizarmos o processo que constitui as brincadeiras e (re)significar a produção de conhecimento infantil, que nessa pesquisa revelou metáforas e materializações brincantes como linguagens, espelho do imaginário e estados físicos da brincadeira (BARBOSA, 2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar sobre a cultura lúdica infantil nos possibilita interagir com o que as crianças veem e brincam e, assim, identificar o repertório de brincadeiras infantis em diferentes espaços na escola e o uso dos seus diferentes avatares. Ou seja, sugere-se que consigamos enxergar um saber brincante socialmente produzido e suas autorias por meio de metáforas como espelho do imaginário . estados físicos da brincadeira (BARBOSA, 2011).
Desta maneira, as imagens, a realidade e o que a criança fantasia e materializa com seus pares compõem a sua cultura lúdica. A pesquisa mostrou que os artifícios simbólicos que chamam a atenção, o desejo e o consumo por desenhos animados ampliam as referências infantis, produzindo brincadeiras e solidificando a cultura lúdica atual.
Parece óbvio que o processo de surgimento e de irrupção da mídia e de novas ferramentas tecnológicas são percebidos o tempo todo em nossas vidas e, mais do que nunca, no ambiente escolar, com características marcantes da pós-modernidade, tais como a descentralização, a instantaneidade do que se brinca e se descarta, certezas e incertezas das informações, bem diferente de outras épocas. No entanto, é possível administrar essa realidade. O primeiro passo é promover maneiras de ensinar, aprendizagens e linguagens que estejam de acordo com essa complexa realidade, que dialoguem com as crianças e suas experiências brincantes, bem diferentes de escolas conservadoras e suas velhas e inculcadas narrativas.
E, como arquétipos atuais, vemos através dos desenhos animados, que fazem parte do universo brincante e que circundam o imaginário infantil, uma tradução de possibilidades proteiformes de brincadeiras, que mudam, se transformam, se adaptam às mídias e à cultura, mas sem perder sua dupla mensagem de ser lúdica e, ao mesmo tempo, educativa.
A pesquisa possibilitou um espaço singular de tradução e compartilhamento do conhecimento brincante das crianças, oferecendo possíveis ligações e significações com o imaginário e suas autorias nos interstícios lúdicos do cotidiano. Isso demonstrou que, ao brincar, a criança se socializa, se movimenta, forma parcerias, explora o ambiente e situações cotidianas. Isto é, o sujeito pedagógico pode fortalecer seu eu e se expressar com uma rica linguagem lúdica infantil.
Este estudo quis mostrar que a criança brinca de diferentes formas: com o seu corpo, com a sua imaginação, com o outro e com a mídia, mas especificamente, com os desenhos animados. Porém, suas brincadeiras flutuam pelo aspecto tradicional, simbólico e contemporâneo, com ênfase na tradição, à sombra do mais velho e à influência da mídia televisiva, permitindo que elas, ao brincarem, subsumam ao arbítrio de sua imaginação, assumindo personagens, desejando o impossível e explorando o seu poder, a ludicidade, a agressividade e nonsense, evidenciando um hibridismo brincante (BARBOSA, 2018).
Nessa perspectiva, os resultados dessa pesquisa trazem como reflexão a sugestão para os investigadores e os professores que trabalham com crianças de observar, de discutir e de experimentar o que as crianças fazem em seu cotidiano, com quem e com o quê brincam. Isso possibilita o contato com o repertório brincante infantil e o conjunto de influências que se estendem sobre a brincadeira.
Dessa forma, pode ser possível mobilizar os professores a desfazer preconceitos e a descobrir saberes brincantes sobre o mundo da infância pelas vozes das próprias crianças. Um possível caminho e uma alternativa pedagógica para compreender a cultura lúdica da criança é incorporar os conhecimentos infantis produzidos socialmente ao conteúdo escolar, aproveitando as vicissitudes da brincadeira, o valor e a experiência compartilhada no presenteísmo. E, assim, permitir o diálogo entre o adulto e as crianças, ajustando a dinamicidade das influências brincantes à matriz escolar que as orienta, possibilitando (re)formulações a partir do protagonismo infantil.
Nessa perspectiva, surge uma via de mão dupla entre a criança e a sua cultura dentro e fora dos micros espaços da escola. Esse é o caminho que foi percorrido e que precisa ser ainda mais explorado por quem tem interesse em conhecer as estruturas que alicerçam o mundo brincante infantil, bem como seus labirintos fantasiosos.
REFERÊNCIAS
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13. SUTTON-SMITH, B. The ambiguity of play. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2nd. ed., 2001.
Notas