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Cinema Afirmativo: alteridade, educação e Direitos Humanos
Alexandre Silva Guerreiro
Alexandre Silva Guerreiro
Cinema Afirmativo: alteridade, educação e Direitos Humanos
Affirmative cinema: otherness, education and human rights
Cine afirmativo: alteridad, educación y derechos humanos
Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 2, pp. 190-205, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: O cinema está na escola de diversas formas, mas a interseção cinema e educação traz uma abordagem bastante específica, alicerçada em estudos que pensam a entrada do cinema na escola atravessado pela ideia de alteridade e do cinema como arte e não como mero amparo pedagógico. Este trabalho tem por objetivo refletir sobre cinema, educação e direitos humanos, assumindo a perspectiva de uma pesquisa exploratória, e formulando, com ênfase nos modos de endereçamento, o conceito de cinema afirmativo como ferramenta para nossas práticas pedagógicas, pensando os direitos humanos na educação como definidor da alteridade e refletindo sobre como o cinema deve ser afetado por esses conceitos.

Palavras-chave: Cinema, Alteridade, Educação, Direitos Humanos.

Abstract: Cinema exists at school in different ways, but the intersection between cinema and education generates a specific type of approach, based on studies about the presence of the cinema in school crossed by the idea of otherness and cinema as an art form and not as a mere pedagogical support. This work aims to reflect on cinema, education and human rights, taking the perspective of an exploratory research, and formulating the concept of affirmative cinema as a tool for our pedagogical practices with an emphasis on modes of addressing, thinking human rights in education as a way to define otherness and reflect on how cinema should be affected by these concepts.

Keywords: Cinema, Otherness, Education, Human rights.

Resumen: El cine está en la escuela de diferentes maneras, pero la intersección entre cine y educación aporta un enfoque muy específico, basado en estudios que piensan la entrada del cine en la escuela cruzada por la idea de la alteridad y el cine como arte y no como um mero apoyo pedagógico. Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el cine, la educación y los derechos humanos, tomando la perspectiva de la investigación exploratoria y formulando, con énfasis en los modos de abordaje, el concepto de cine afirmativo como una herramienta para nuestras prácticas pedagógicas, pensando en los derechos humanos en la educación como alteridade y en como el cine debe incorporar estos conceptos.

Palabras clave: Cine, Alteridad, Educación, Derechos humanos.

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Cinema Afirmativo: alteridade, educação e Direitos Humanos

Affirmative cinema: otherness, education and human rights

Cine afirmativo: alteridad, educación y derechos humanos

Alexandre Silva Guerreiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 2, pp. 190-205, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 21 Agosto 2020

Aprobación: 24 Agosto 2020

INTRODUÇÃO

Refletir sobre a escola a partir de uma relação simbiótica entre cinema e direitos humanos é um movimento importante para chegarmos à noção de cinema afirmativo. O cinema está na escola de diversas formas, mas o modo como pensamos a interseção cinema e educação traz uma abordagem bastante específica, alicerçada em inúmeros estudos recentes e que pensam a entrada do cinema na escola atravessado pela ideia de alteridade, que se traduz pelo cinema como arte no espaço escolar, o que nos afasta de seu uso como amparo pedagógica para facilitar a apreensão de determinado conteúdo. Essa aproximação entre cinema e educação encontra certa unanimidade entre pensadores e teóricos que se debruçam sobre esse encontro dos campos específicos do cinema com a educação (BERGALA, 2008; FRESQUET, 2013).

Por sua vez, os direitos humanos na escola surgem na esteira de uma luta de décadas e que pretende uma Educação em direitos humanos como eixo fundamental da educação. Ter os direitos humanos como elemento intrínseco à educação, apesar de parecer trivial, uma vez que toda e qualquer educação deveria ter como objetivo a defesa da dignidade da pessoa humana, acaba por se revelar uma empreitada de difícil realização. Os sistemas de ensino mundo afora, com suas diferenças entre si, e também as discrepâncias regionais no interior de cada país, poderiam justificar a impossibilidade de se ponderar e de se defender uma Educação em direitos humanos que, de certa forma, busca padronizar, impor algo em comum a culturas as mais diversas. A perspectiva universalizante dos direitos humanos, frequentemente criticada (SANTOS; MARTINS, 2019; ZIZEK, 2010), atesta a complexidade dessa tarefa, mas não anula a relevância de concebermos uma educação que seja plataforma para que os fundamentos dos direitos humanos se disseminem nas sociedades, de uma maneira geral.

Pensar em cinema e direitos humanos na escola significa, portanto, aceitar o desafio que nos faz abrir um leque de discussões aos campos do cinema e da educação, bem como da educação e dos direitos humanos. Passamos, então, ao encontro de três campos, e a tríade cinema-educação-direitos humanos inaugura especificidades que precisam ser observadas. Este trabalho propõe uma reflexão sobre cinema, educação e direitos humanos, assumindo uma perspectiva exploratória na medida em que pesquisamos a junção pouco abordada desses três campos e construímos a noção de cinema afirmativo que servirá de base para desdobramentos desta pesquisa, atentos às contribuições dos modos de endereçamento (ELLSWORTH, 2011) como estratégia para a autonomia docente na escolha dos filmes.

Concluímos este trabalho com uma análise das possibilidades da exibição audiovisual na escola à luz de um cinema pautado pelos direitos humanos, que chamamos de cinema afirmativo. Para isso, abordaremos os filmes Vazante (Brasil, 2017) e Café com Canela (Brasil, 2017) considerando a exibição desses filmes no espaço escolar. Com isso, buscamos contribuir para que o trabalho docente encontre mais ferramentas na efetivação de uma educação em direitos humanos amparada no cinema, que sintetiza, aqui, as diversas formas de imagem em movimento que atravessam a contemporaneidade.

CINEMA AFIRMATIVO: PROPONDO UMA DEFINIÇÃO

Ao propormos a noção de cinema afirmativo, procuramos trazer para nossas práticas pedagógicas o cinema atravessado pelos direitos humanos. Uma característica dos documentos e tratados sobre direitos humanos é o acentuado grau de generalismo, até certo ponto necessário para que esses textos circulem em diversas regiões do mundo ou mesmo no interior de países de proporções continentais como o Brasil. No entanto, é inegável o desejo de se estabelecer um ponto de convergência nas mais diversas culturas, e que consiste na construção de uma cultura de direitos humanos a partir da escola. É isso o que acontece, por exemplo, com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2007). Com efeito, quando pensamos em colocar em prática as orientações advindas desses documentos, é primordial uma dose de criatividade para conceber como o encontro dos direitos humanos com outros campos se dará na prática.

É nesse sentido que pensamos na formulação do cinema afirmativo como ideia que agrega os direitos humanos a dois campos autônomos: cinema e educação. Pensar o cinema afirmativo é prever um uso do cinema e do audiovisual na escola que paute a prática docente e ilumine as escolhas e abordagens dos filmes, bem como a postura e as relações entre professoras/professores e alunas/alunos na realização audiovisual.

O cinema afirmativo pressupõe uma abordagem do cinema na escola atenta aos direitos humanos. Nesse sentido, pensamos em duas formas de abordagem dos filmes na escola. Por um lado, podemos exibir ou realizar filmes que estejam amparados pelos direitos humanos; por outro lado, é possível exibir ou realizar filmes que rompem com os preceitos dos direitos humanos, desde que haja o endereçamento da obra, abrindo espaço para a desconstrução discursiva e para o entendimento ético, estético e político da mesma.

O conceito de modos de endereçamento é fundamental para compreender a importância do docente se apropriar da obra audiovisual a ser discutida com alunas e alunos. Para Elizabeth Ellsworth, o espectador nem sempre é o que o filme pensa que ele é, o que significa dizer que, ao realizar um filme, o mesmo é destinado a determinado público, mas que públicos diversos podem e devem se apropriar desse filme e, ao fazê-lo, complexificam leituras possíveis da obra em questão. Segundo Ellsworth,

O conceito de modo de endereçamento está baseado no seguinte argumento: para que um filme funcione para um determinado público, para que ele chegue a fazer sentido para uma espectadora, ou para que ele a faça rir, para que a faça torcer por um personagem, para que um filme a faça suspender sua descrença [na “realidade” do filme], chorar, gritar, sentir-se feliz ao final – a espectadora deve entrar em uma relação particular com a história e o sistema de imagem do filme. (ELLSWORTH, 2001, p.14).

No contexto escolar, podemos pensar que um filme que seja acusado, por exemplo, de coisificar a população negra, indígena, de estereotipar a população LGBTQIAPN+, de representar a mulher de maneira não crítica, poderá ser trabalhado afirmativamente se, e somente se, professoras e professores souberem extrair discussões críticas da obra. O risco do cinema na escola perpetuar preconceitos num cenário de desigualdade social é real, mas através de modos de endereçamento, provenientes de um uso consciente do cinema, o docente pode promover discussões que tomem o filme em sua complexidade, através de uma análise que privilegie as contribuições éticas, estéticas e políticas do filme.

Vale ressaltar que Ellsworth discorre sobre a importância dos modos de endereçamento tanto no campo do cinema quanto no da educação. Segundo a autora, os modos de endereçamento foram pensados pelos teóricos do cinema para dar conta de questões próprias desse campo, como a relação que se estabelece entre o texto de um filme e a experiência do espectador. São questões que dizem respeito ao social e ao individual, “a relação entre o lado de ‘fora’ da sociedade e o lado de ‘dentro’ da psique humana”. (ELLSWORTH, 2001, p.12). A depender dos aspectos éticos, estéticos e políticos de um filme, mas também dos endereçamentos, a relação entre a obra e o espectador pode se dar de maneiras diferentes.

O agenciamento dessas questões se dá no encontro entre obra e espectador, bem como entre indivíduo e sociedade. Assim, assistir a filmes e discutí-los em grupo pode ter uma potência transformadora que, considerando o ambiente escolar, é maximizada. Essa é a relevância que os modos de endereçamento adquirem nas mãos de professoras e professores. Mas é necessário pensar, também, que existe um componente volátil, e que não há garantias sobre a forma como determinada obra será recebida por alunas e alunos. Os modos de endereçamento são, sobretudo, uma ferramenta que se abre ao imprevisível, ao inesperado, abertura que precisa existir quando pensamos nas relações entre arte e educação.

Outrossim, é fundamental pensarmos nas escolhas que fazemos e nas afetações que queremos promover. Filmes que estejam mais ou menos conectados com o universo dos direitos humanos poderão ser exibidos e trabalhados por professoras e professores, a partir de seu repertório, de suas intenções, dos interesses da turma, tendo como objetivo a sensibilização dos sujeitos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. E é nesse ínterim que os modos de endereçamento podem funcionar como aliados ao trabalho docente, com especial atenção para a forma como os filmes impactam ética, estética e politicamente a todas e todos em sala de aula.

Do ponto de vista dos filmes feitos dentro de uma perspectiva afirmativa, um primeiro ponto a ser destacado é o recorte temático. Nesse sentido, o tema abordado pelo filme precisa ser considerado observando as discussões mais atuais dentro do universo dos direitos humanos. Como campo em construção, o modo como os temas são tratados dentro desse cenário muda com o tempo. Assim, é preciso estar atento à forma como a obra aborda determinado tema. Pensar nos termos de um cinema afirmativo pressupõe estar em sintonia com a luta dos direitos humanos na contemporaneidade.

Outro ponto importante dentro do cinema afirmativo é a não vitimização das personagens que representam grupos defendidos pelos direitos humanos. A forma como determinado filme aborda essa representação pode ou não estar conectada com a pauta dos direitos humanos, mas o tom afirmativo será dado pela não vitimização, por mais que a narrativa em questão retrate uma realidade de violação de direitos. Isso serve para quebrar um quadro de conformismo e, até mesmo, estimular o engajamento de alunas e alunos, transmitindo uma mensagem afirmativa. Mesmo a partir de temas negativos, como a escravização da população negra ou a violência contra a mulher, por exemplo, é possível verificar se o filme tem a preocupação de não naturalizar a violência, de apresentar um horizonte possível de luta e de empoderamento das minorias. Se o filme não o fizer, os modos de endereçamento poderão dar conta de desnudar os mecanismos de vitimização e de conformismo.

Esse alinhamento com a pauta dos direitos humanos é chave para pensarmos em termos de um cinema afirmativo. Considerando que os direitos humanos são um campo em construção, estar atento à pauta contemporânea dos direitos humanos é condição para que professoras e professores possam fazer escolhas acertadas, dentro da perspectiva de uma curadoria educativa, e que leve aos alunos e alunas temas atuais e pertinentes. Entender que os direitos humanos se constituem como um campo em construção é fundamental pois inúmeras questões que hoje estão dadas pelos direitos humanos não figuravam nesse horizonte no momento em que a Declaração Universal de 1948 foi assinada. Um exemplo é o meio ambiente, que não aparece como preocupação dessa pauta até a Declaração de Estocolmo, de 1972, e apenas a partir da ECO92, realizada no Rio de Janeiro, passa a ganhar força. O meio ambiente, podemos dizer, é um tema transversal, e vale salientar que o mesmo é considerado, hoje, um direito humano. Assim, filmes que abordem essa temática figuram entre obras que atendem à pauta dos direitos humanos, e podem ser entendidos por professoras e professores como filmes que estão totalmente em sintonia com questões mais contemporâneas, mais atuais desses direitos.

Porém, resta claro, a atenção à pauta dos direitos humanos como norteadora das escolhas feitas por professoras e professores não é suficiente para que consideremos o cinema afirmativo. Isso porque, ao mesmo tempo que um filme pode abordar, inicialmente, uma temática de interesse para trabalharmos com cinema e direitos humanos, esse mesmo filme pode figurar como um exemplar de um sistema de produção de cinema industrial, e pode fazer um uso corriqueiro da linguagem cinematográfica, que o torne menos interessante do que outros mais inovadores, em termos de linguagem, ou mesmo frutos do cinema independente, que está na contramão do que podemos chamar de cinema comercial.

Considerando que o audiovisual que atravessa a vida de alunas, alunos e docentes é, em sua maioria, decorrência e imposição da indústria, seja cinematográfica, seja televisiva, pensar em imagens que rompem com o lugar comum é relevante na medida em que apresentam para o corpo discente outras possibilidades estéticas e de linguagem. Pensar os filmes em termos éticos, estéticos e políticos é crucial para conceber um cinema afirmativo na escola.

Naturalmente, como já apontamos, os modos de endereçamento poderão redirecionar obras que não estejam em sintonia com os direitos humanos ética, estética ou politicamente. Sustentamos essa posição por considerarmos de fundamental importância que professoras e professores tenham autonomia para fazer suas escolhas. Sendo assim, dentro de seu universo e de suas preferências, o docente poderá optar pelas obras audiovisuais que achar melhor, desde que sua formação inicial e continuada seja atravessada pelos direitos humanos, o que despertará um novo olhar sobre o cinema e o audiovisual. Mais importante do que conceber e impor listas de filmes é valorizar o repertório do docente e, também, das turmas, para que desse encontro de universos sejam extraídos títulos que dialoguem com professoras/professores e alunas/alunos enquanto protagonistas.

Ao comentarmos sobre listas de filmes impostas aos docentes, não queremos invalidar projetos que elaboram materiais de apoio, incluindo listas como essas. Nossa intenção é marcar a importância do docente da Educação Básica como protagonista no processo de ensino- aprendizagem, ao lado dos discentes. Nesse sentido, projetos que pensem como cinema e direitos humanos devem ser abordados por professoras e professores perdem algo de primordial que é a própria noção de autonomia. Muito se tem falado sobre o necessário empoderamento das mulheres, dos negros, da população LGBTQIAPN+, da população indígena, e devemos acrescentar a necessidade urgente de pensarmos o empoderamento docente, inegociável e promotor da sua esperada valorização nas sociedades contemporâneas. Partimos do princípio de que ninguém sabe mais do que o/a professor/a o que deve ser feito em sua sala de aula. Para isso, é preciso acreditar na formação inicial e continuada, bem como incorporar à prática docente a perspectiva freireana de que “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino” (FREIRE, 2015, p.30). A partir desses pilares, professoras e professores podem e devem fazer suas escolhas para que o trabalho com cinema e direitos humanos seja proveitoso e transformador em sua sala de aula.

Outra característica que consideramos central no cinema afirmativo é a recusa do melodrama, que dialoga com a não vitimização da forma como os temas são tratados nos filmes. Se, por um lado, a vitimização se refere especificamente ao modo como personagens que representam minorias são desenvolvidos, por outro lado, a recusa ao melodrama coloca em pauta a própria questão do gênero do filme, do modo como a narrativa conduz, de maneira mais geral, o desenrolar das situações, mantendo uma distância segura do melodrama enquanto gênero que, inclusive, carrega mais fortemente a questão da vitimização dessas personagens.

É nesse sentido que pensamos num cinema afirmativo a partir de abordagens mais leves, que não sobrecarreguem nas tintas dramáticas sob o risco de se afastarem de uma perspectiva afirmativa. Não se trata, porém, de limitar as escolhas possíveis para pensarmos uma educação atravessada pelos direitos humanos e pelo cinema. Antes, consideramos producente conceber um cinema que se dê de maneira mais fácil ao trabalho com os direitos humanos. Através dessa perspectiva, o cinema afirmativo ganha contornos de um operador de análise que funcione como moderador, uma noção que nos aproxima do cinema atravessado pelos direitos humanos ética, estética e politicamente.

A leveza na resolução dos problemas colocados pelo filme, assim, funciona dentro dessa mesma lógica. Não adianta construir uma personagem dentro de uma perspectiva afirmativa se, ao longo do percurso, essa personagem não encontrar alguma forma de engajamento, de um despertar ético, que sinalize para a construção de um mundo imaginado. O cinema que vitimiza, que utiliza as cores do melodrama, que decora o desfecho com sangue e com negativismo, pode carregar uma mensagem de conformismo. Robert McKee afirma que é através do desfecho dos filmes que o cineasta/escritor revela seu propósito que, segundo o autor, pode ser idealista, pessimista ou irônico. As ideias governantes idealistas são marcadas por finais positivos “que expressam o otimismo, as esperanças e os sonhos da humanidade, uma visão positivamente carregada do espírito humano: a vida como desejamos que ela fosse” (MCKEE, 2006, p.125). Poderíamos, então, sustentar que uma das características elementares do cinema afirmativo é a existência de desfechos afirmativos.

É importante salientar, ainda, que diversos estudos têm se debruçado sobre as relações possíveis entre cinema e educação, e também entre educação e direitos humanos. Poderíamos pensar no quanto as discussões em torno de um filme podem ser significativas, seguindo os eixos linguístico-expressivo, narrativo-temático e ético-valorativo (FANTIN, 2014) ou, ainda, na relevância das cineconversas no ambiente escolar (MACHADO et al., 2020). No entanto, o conceito de cinema afirmativo é novo no sentido de alinhavar, de uma só vez, cinema, educação e direitos humanos, razão pela qual a rarefação do termo é notada em estudos anteriores.

Aqui, cabe destacar a importância da dimensão política, além das questões éticas e estéticas agenciadas pelos filmes. Sabemos que dar aula é um ato politico, mas também são políticas as escolhas que fazemos sobre os filmes que levamos para sala de aula, as discussões que promovemos a partir dos filmes exibidos, os temas que decidimos destacar, os modos de endereçamento que utilizamos. Através do encontro entre cinema, educação e direitos humanos, o cinema afirmativo promove uma política de combate às desigualdades que marcam a sociedade hodierna, e contribui para a construção de uma sociedade mais justa, através da criação de uma cultura de direitos humanos.

Dessa forma, desenvolver a noção de um cinema afirmativo pode ser bastante proveitoso para trabalharmos com cinema e direitos humanos na escola. Assim, essa concepção funciona como um farol a iluminar filmes que estão em sintonia com os direitos humanos na contemporaneidade. E a mesma noção que nos ajuda a desenhar o cinema afirmativo para a escolha de filmes a serem exibidos na escola pode, também, nos pautar sobre como devemos nos posicionar diante das escolhas de alunas e alunos, que devem participar ativamente dessa curadoria. Professoras e professores que tenham formação em direitos humanos saberão o que fazer diante de uma situação em que a exibição audiovisual na escola se distancie dos fundamentos de uma educação em direitos humanos.

POR QUE CINEMA AFIRMATIVO?

Ponto fundamental no enfrentamento das desigualdades socioeconômicas, as ações afirmativas são uma ferramenta de valorização de grupos tradicionalmente discriminados, seja por questões raciais, de gênero, religiosas etc., e que se constituem como políticas que visam aumentar a participação política, social, econômica desses grupos.

É nesse sentido que aproximamos o cinema de uma dimensão afirmativa na medida em que representar determinados grupos dentro da compreensão de um engajamento com os direitos humanos pressupõe respeitar esses grupos dando a eles um tratamento audiovisual afirmativo. Isso indica que tanto a representação quanto a representatividade são fundamentais para aproximarmos cinema e direitos humanos. Para além de considerarmos os modos de endereçamento como ferramentas garantidoras da autonomia de professoras e professores e do empoderamento docente, não podemos negar que o tratamento que o cinema dá às personagens e às narrativas seja, também, central para pensarmos nos termos de um cinema afirmativo. Assim, os modos de endereçamento funcionam mais como uma solução em alguns casos do que como um procedimento obrigatório. O ideal é que o filme seja atravessado pelos direitos humanos de maneira orgânica, propiciando um trabalho pleno entre direitos humanos e cinema na escola.

Ao pensarmos a representação e a representatividade dos grupos oprimidos e excluídos socialmente da tela, torna-se relevante indicar que esses grupos devem ser mostrados, atualmente, de maneira afirmativa. É nesse sentido que coisificar, através das personagens, as pessoas que pertencem a grupos historicamente marginalizados, como, por exemplo, a população negra, as mulheres, a comunidade LGBTQIAPN+, é um desserviço aos direitos humanos na medida em que descarta os significativos avanços da luta de mulheres e homens engajados nessas bandeiras específicas.

Tendo se desenvolvido com mais força nos EUA, nos anos de 1960, no contexto das lutas pelos direitos civis da população negra, as ações afirmativas surgem como uma demanda de que o Estado não se limite a garantir o fim das leis segregacionistas, mas atue de maneira positiva no sentido de promover a melhoria das condições de vida das negras e dos negros estadunidenses (MOEHLECKE, 2002).

Exportadas para diversos outros países, as ações afirmativas chegam a regiões marcadas por acentuada desigualdade social, como o Brasil, com um caráter de urgência, mas também suscitando protestos e controvérsias. O argumento de que as ações afirmativas funcionam como um tipo de discriminação ignora um panorama de intensa desigualdade que marca o país. Com efeito, as ações afirmativas inserem-se num panorama mais geral que se denomina discriminação positiva. São ações voltadas para retirar o Estado de uma posição de neutralidade, assumindo a missão, ainda que temporária, de buscar reverter um quadro de desigualdade em prol do desenvolvimento da sociedade como um todo.

Sendo assim, o cinema afirmativo cumpre a função de ouvir a voz das minorias, encenar a afirmação dos grupos tradicionalmente excluídos e oprimidos, abarcando tanto a ideia de representação quanto de representatividade, na medida em que prioriza como protagonistas essas minorias, e desenvolve ética, estética e politicamente uma abordagem dos temas que marcam os direitos humanos na contemporaneidade.

SOBRE O CONCEITO DE ALTERIDADE

Quando observamos as resistências frente a medidas que buscam diminuir as desigualdades sociais e construir um mundo mais justo para todas e todos, perguntamo-nos se essas resistências não estariam respaldadas por uma noção de alteridade que toma o outro como um produto do Eu. É nesse sentido que Gallo (2008) chama atenção para duas perspectivas filosóficas distintas sobre alteridade. O que poderia justificar um pensamento que apenas tolera a existência alheia e como essa tolerância pode ter uma conotação negativa?

A Filosofia nos aponta duas possibilidades para pensarmos a alteridade. Por um lado, o outro seria uma representação do Eu. Nesse sentido, a alteridade significaria pensar o outro como o mesmo. Pelo sistema cartesiano, eu sou uma coisa que pensa. Nesse sistema, o outro é um produto do meu pensamento. O outro de que falo é uma representação. Assim, para a filosofia da representação, e que se confunde com a filosofia hegemônica, o outro sou eu mesmo.

Por outro lado, o outro pode ser tomado como Outro de maneira plena, o que revela o outro como diferença. Essa filosofia da diferença promove uma ruptura no pensamento hegemônico, marcado pelo outro como representação do Eu. É por isso que a própria definição de tolerância pode ser criticada, na medida em que a tolerância não deixa de ser um a partir do Eu. Ao contrário da filosofia da representação, a filosofia da diferença é uma filosofia da multiplicidade, e não da unidade. Aqui, autores como Foucault e Deleuze ganham importância, mas é a contribuição de Emmanuel Lévinas (2008), ao definir o outro como exterioridade plena, que queremos destacar.

Para Lévinas, a Ética é a filosofia primeira e o Outro é exterioridade plena. Não se pode capturar ou compreender o Outro visto que ele é infinito. Ao discorrer sobre a alteridade absoluta, Lévinas denuncia as estratégias de aniquilamento do Outro. “A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental” (LEVINAS, 2008, p.8). Seria a própria tradição filosófica tributária de atos de violência contra o Outro que testemunhamos através dos séculos? A noção de alteridade em Lévinas passa pela responsabilidade pelo Outro, uma responsabilidade que concebe o Outro como exterioridade plena: “Desde a sensibilidade, o sujeito é para o outro: substituição, responsabilidade, expiação.” (LÉVINAS, 2012, p.101).

De certa forma, a noção de exterioridade plena alimenta a filosofia da diferença e atravessa noções como a de Paulo Freire, quando este indica que “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, s/p). Entender a alteridade dentro dessa perspectiva é abandonar a ideia de representação do eu no outro e assumir uma perspectiva de alteridade baseada na diferença.

Quando pensamos cinema, educação e direitos humanos, a alteridade aparece como conceito central. Alteridade do cinema, alteridade dos sujeitos. É fundamental, sob esse ponto de vista, os ensinamentos de Alain Bergala e de Adriana Fresquet, que insistem no cinema na escola como alteridade. Por isso, é indispensável reafirmarmos o cinema na escola como arte, como um experimentar ético, estético e político, e não como mera instrumentalização que reduza o cinema à condição de ilustração dentro de determinado conteúdo programático. Bergala afirma que:

... talvez fosse preciso começar a pensar – mas não é fácil do ponto de vista pedagógico – o filme não como objeto, mas como marca final de um processo criativo como arte. Pensar o filme como a marca de um gesto de criação. Não como um objeto de leitura, descodificável, mas, cada plano, como a pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação. (BERGALA, 2008, p.33).

Nessa mesma linha, Fresquet afirma que o “cinema provoca o devir da escola, prevê uma ’outra escola’, renovando-se pelo exercício que só a alteridade permite...” (2013, p. 62). Cinema e alteridade, então, estabelecem uma relação de reciprocidade definidora de determinado uso do filme na escola. Com efeito, é o cinema afirmativo que garante essa outra escola imaginada pela autora. O risco do cinema perpetuar desigualdades dentro do ambiente escolar é real, portanto, quando falamos em cinema na escola, em sintonia com os autores supracitados, acreditamos no cinema atravessado pela alteridade e pelos direitos humanos.

Da mesma forma, é preciso defender a alteridade dos sujeitos. Numa perspectiva contemporânea dos direitos humanos, antenados com um discurso contra-hegemônico dos mesmos (SANTOS; MARTINS, 2019), o que queremos é concretizar na escola a igualdade na diferença, promovendo relações marcadas pela horizontalidade, considerando, aqui, todos aqueles que integram, direta ou indiretamente, o universo escolar. A horizontalidade plena é uma construção necessária e preciosa para garantir a alteridade dos sujeitos e para fazer com que o encontro de alunas e alunos com o cinema se dê dentro da perspectiva dos direitos humanos.

Como veremos a seguir, a importância da reflexão que colocamos aqui se torna mais evidente quando imaginamos as formas pelas quais o cinema se concretiza na escola, uma vez que, por um lado, existe o risco de que a exibição audiovisual silencie vozes e fique na contramão dos direitos humanos, mas, por outro, é possível fazer um trabalho com cinema que seja pautado pela alteridade e pelos direitos humanos, e as noções de cinema afirmativo e de modos de endereçamento são fundamentais para garantir que apenas essa segunda possibilidade prevaleça.

EXIBINDO FILMES AFIRMATIVOS NA ESCOLA

Considerando a opção pela exibição cinematográfica, já que não abordaremos, aqui, o universo da realização audiovisual no espaço escolar1, é instigante pensar como um mesmo filme pode provocar efeitos tão díspares e contrários ao ser exibido na escola. O encontro com o cinema precisa, então, ser objeto de reflexão frequente, e acreditamos ser a formação continuada a melhor maneira de dialogar com professoras e professores para que o cinema possa estar na escola dentro de um ambiente de igualdade na diferença e de alteridade.

Examinaremos, a seguir, dois exemplos de filmes que podem ser exibidos no ambiente escolar tomando como referência a noção de cinema afirmativo. Para isso, optamos por abordar possibilidades opostas. Primeiramente, consideramos um filme que recebeu diversas críticas justamente por não estabelecer uma relação direta entre cinema e direitos humanos dentro da perspectiva do que propomos chamar de cinema afirmativo. Como podemos nos apropriar dos modos de endereçamento no sentido de trabalhar com filmes que estão na contramão do que uma relação entre cinema e direitos humanos poderia prever? Em seguida, abordamos outro filme que acreditamos ser atravessado pelos direitos humanos de maneira orgânica.

Vazante estreou no 67º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017, recebendo críticas favoráveis e projetando sua estreia no Brasil para setembro do mesmo ano, no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Mesmo com os elogios recebidos em Berlim, o filme protagonizou uma das maiores polêmicas recentes do cinema brasileiro quando foi exibido em Brasília.

Após a exibição do filme, o festival em questão, como de costume, promoveu um debate do qual participaram a diretora Daniela Thomas e outros integrantes do filme. Durante o debate, a diretora foi duramente acusada, por pessoas da plateia, de construir uma representação dos negros incompatível com o momento atual, em que se discute a importância das ações afirmativas e da necessidade de encararmos as desigualdades estruturais da sociedade brasileira, formada a partir da violência contra as populações indígena e africana. A repercussão desse debate se desdobrou em discussões nos jornais e gerou debates intensos nas redes sociais. O filme foi acusado de, através de sua estética e linguagem, coisificar as pessoas negras, utilizando-as como pano de fundo para contar o drama da personagem da casa grande.

A história narrada por Vazante começa em Minas Gerais, na Serra Diamantina, em 1821, conforme indica a cartela inicial. Esculpindo na tela nosso imaginário da relação casa grande x senzala, a narrativa avança para reservar aos atores sociais de um Brasil colonizado os espaços que eles sempre ocuparam. O protagonismo feminino não foi suficiente para evitar as acusações que o filme recebeu. Isso porque a história da menina Beatriz, que se casa com Antônio, um homem muito mais velho, é contada sempre do ponto de vista feminino, o que acaba, segundo determinada perspectiva, criando situações em que os negros são não apenas mantidos como pano de fundo, mas coisificados.

Dentre os muitos trechos que podem ser destacados, há uma cena que sintetiza o porquê das críticas que o filme recebeu. Aos 50 minutos de filme, Beatriz desce as escadas da casa da fazenda e se aproxima de uma porta da qual ela observa, assustada e estática, os negros dançarem ao som de um batuque, os corpos em movimentos impensáveis para a jovem branca, que após alguns instantes, sai correndo dali até encontrar seu pai numa varanda, do outro lado da casa, longe do som do batuque, e repousar a cabeça em seu ombro. A cena, segundo os detratores do filme, reduz o negro ao lugar do exótico, da sensualidade, do estranho ao universo branco da casa grande.

Não queremos, aqui, entrar num juízo de valor sobre o filme. Queremos tão somente evidenciar que uma obra como Vazante é capaz de mobilizar defensores e detratores com o mesmo ânimo, e que o filme pode entrar no espaço escolar provocando efeitos muito distintos. Uma exibição do filme seguindo o que se entende por instrumentalização do audiovisual na Educação apaga por completo as possibilidades de discussão em torno da recepção e das questões estéticas e de linguagem que o filme coloca. Nesse sentido, esse mesmo filme, exibido dentro de uma perspectiva dos direitos humanos, pode apontar para a experiência oposta, na medida em que convoca a comunidade escolar a refletir sobre o cinema de maneira mais profunda.

A exibição de Vazante, a partir das possibilidades colocadas pelos modos de endereçamento, contribui para uma discussão sobre se o filme coisifica a população negra, observando a obra em sua dimensão ética, estética e política, e promovendo uma reflexão sobre nossas desigualdades estruturais. Por outro lado, sua instrumentalização pode ser lida dentro de um contexto de violência simbólica, no qual as tensões são apagadas, as relações de poder são naturalizadas e as possibilidades de afirmação racial são impedidas na medida em que o filme é reduzido à mera exploração de seu conteúdo, configurando-se, talvez, como um ato de perpetuação da violência social em si. Esse cenário, sem dúvida, amplifica a importância de uma formação docente inicial e continuada, notadamente no que se refere ao uso do cinema e do audiovisual na escola.

Quando pensamos na gravidade da instrumentalização de um filme como Vazante, remetemo-nos, por exemplo, a seu uso em uma disciplina como História. Um docente que decida exibir Vazante dentro do conteúdo de sua disciplina para mostrar a alunas e alunos como se constituía a relação casa grande e senzala no Brasil da era colonial apagará por completo uma discussão de como os negros são (ou não são) negativamente representados no filme. Nessa perspectiva, ao fazerem uma abordagem do filme reduzindo o cinema ao lugar de ilustração, algo que no campo do cinema e educação já foi devidamente criticado, professoras e professores podem contribuir para uma situação de perpetuação de preconceitos ao silenciarem conversas e abordagens que poderiam ser mobilizadoras para alunas e alunos no que concerne à representação das pessoas negras no filme.

Naturalmente, mesmo que o filme seja exibido numa disciplina como História, o docente pode contribuir para que essa discussão tenha espaço a partir dos modos de endereçamento. A questão, aqui, é pensar o cinema na escola como mantenedor de uma situação de violência e preconceito ou como elemento fundamental no combate desse mesmo preconceito, numa perspectiva afirmativa. O sentido que queremos da arte para sensibilizar, para fazer aflorar e afirmar as diferenças, para combater as desigualdades, encontra aqui um ponto de reflexão sobre seu papel no ambiente escolar em um contexto de violência e desigualdade social. O que pode o cinema na escola? Acreditamos que as possibilidades são imensas, mas insistimos na importância de que o cinema esteja na escola mobilizando e conscientizando, e que os atores envolvidos na educação possam se sensibilizar diante da obra de arte, afastando-se de um quadro de desigualdade e preconceito que se perpetua diante de nossos olhos.

No sentido oposto ao que apontamos acima, destacamos o filme Café com Canela, lançado na mesma edição do Festival de Brasília, como exemplo para refletir sobre cinema e direitos humanos sob a perspectiva do cinema afirmativo. Esse filme evoca questões éticas, estéticas e políticas que oferecem aos docentes uma possibilidade de caminharem dentro de uma educação voltada para os direitos humanos, na medida em que suscitam discussões sobre a representação e a representatividade do negro no cinema.

As encenações, personagens e narrativas desse filme, bem como o engajamento de seus diretores, colocam em pauta a pertinência de refletirmos sobre nossas escolhas, seja quando exibimos um filme aos alunos, seja quando produzimos uma obra audiovisual. Café com Canela é uma realização contemporânea de grande destaque no que diz respeito ao ativismo negro, às políticas afirmativas e à legitimidade do discurso fílmico, trazendo para o primeiro plano uma série de tópicos que abarcam tanto a experiência estética do filme quanto a sua dimensão ética e política, abrindo espaço para que o cinema e a educação estejam conectados com os direitos humanos de maneira orgânica, promovendo um ensino voltado para a arte e a cidadania no espaço escolar.

Ao nos aproximarmos desses exemplos, encontramos elementos para pensarmos na relevância da curadoria educativa e da educação em direitos humanos. Quando um docente escolhe determinado filme e decide exibi-lo aos seus alunos e alunas, ele tem uma intenção que pode se restringir ao conteúdo ministrado em suas aulas, ou pode assumir o cinema como arte, trazendo para a discussão uma abordagem ética, estética e política da obra audiovisual em questão. Assim, a curadoria educativa atrela a exibição audiovisual a essa segunda possibilidade, colocando a ação cultural como elemento central.

Consciente da relevância de se entender a arte como ação cultural, o docente promove o encontro entre cinema e educação, oferecendo a alunas e alunos uma experiência que permita a construção de um novo olhar a partir da arte. Desde a relação individual que cada discente estabelece com o filme exibido, até a etapa da interação em grupo na qual a obra audiovisual será debatida e ressignificada pela turma, o que se vislumbra, aqui, é uma maneira de unir cinema, educação e direitos humanos a partir da experiência ética, estética e política proporcionada por filmes afirmativos.

Levar o cinema para a escola e silenciar discussões que permitam uma abordagem ética e estética, ou ignorar a dimensão política da obra audiovisual, é abandonar as premissas da educação em direitos humanos na medida em que, assim, não se promove um ambiente educacional voltado para o florescimento da diversidade. Fechar o alcance de um filme dentro dos limites de um conteúdo programático é, de certa forma, romper com uma educação em direitos humanos e seu encontro com o cinema.

Café com Canela apresenta três personagens que lidam com grandes perdas. O encontro entre essas personagens é marcado pelo afeto, pela superação da indiferença e das distâncias. O fato dos personagens serem negros e a forma como a negritude é abordada no filme merece especial atenção quando o mesmo é exibido na escola. Trazer para a discussão após a exibição o modo como o filme resolve ética e esteticamente o ser negro é uma forma de possibilitar o encontro de alunas e alunos com uma lógica discursiva que vai ao encontro da diversidade e da afirmação das diferenças, considerando sua dimensão política.

Dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, o filme desenha a negritude de uma forma positiva, na maneira como as personagens se relacionam, trabalham, vivem, amam. A perda de um ente querido é sentida pelas três personagens principais sem que, em nenhum dos casos, a negritude seja apresentada como um problema ou coisificada. É uma abordagem afirmativa que pauta a construção das personagens, o que percebemos no monólogo inicial do personagem Ivan, no qual ele descreve como conheceu Adolfo. Homossexual, negro, Ivan sente a perda de Adolfo, mas o modo como o filme agencia essa e as demais perdas universaliza o drama vivido pelos personagens, instaurando uma perspectiva afirmativa.

Se, por um lado, Vazante constrói um cenário que vitimiza a população negra, opta por um desfecho trágico (ainda que resista a usar as cores do melodrama) e utiliza um recorte temático que termina por coisificar um grupo historicamente marginalizado como a população negra, por outro lado, Café com Canela adota a leveza tanto no desenrolar da trama quando no desfecho, sustentando um final afirmativo, com tom otimista, além de jamais vitimizar as personagens, colocando-as em situações que reafirmam sua existência, sua força, seu engajamento. A confrontação desses filmes nos mostra a pertinência de pensarmos a tríade cinema-educação- direitos humanos a partir da noção de cinema afirmativo, ao mesmo tempo em que nos indica a importância da formação docente e dos modos de endereçamento para a exibição de filmes dentro da escola.

A escolha desses e de muitos outros filmes a partir de uma curadoria feita por alunas/alunos e professoras/professores coloca cinema e educação em sintonia com os direitos humanos na medida em que temas relevantes são levados de maneira consciente para a escola através de abordagens afirmativas. A formação docente é essencial para que professoras e professores estejam preparadas/os para as discussões que surgirão a partir do visionamento de filmes que carregam consigo questões centrais na luta pelos direitos humanos e que não podem mais ser invisibilizadas, sobretudo na escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enriquecer o debate sobre a diversidade a partir do cinema na escola pressupõe valorizar o cinema como arte, como construção de um novo olhar, bem como compreender o alcance da educação em direitos humanos oportunizadas a cada exibição audiovisual dentro da escola. Assim, é a partir da formação docente e dos modos de endereçamento que vemos conexões orgânicas entre cinema, educação e direitos humanos.

O cinema afirmativo, como proposto aqui, constitui-se como uma forma de repensarmos a relação entre cinema e escola dentro da perspectiva dos direitos humanos na medida em que somos levados a uma reflexão sobre os modos como alunas, alunos e docentes interagem com o cinema no espaço escolar. O que defendemos é, portanto, que o cinema entre na escola como arte, como estratégia de sensibilização dos sujeitos e de valorização das diferenças, e que estejamos atentos aos riscos de sua utilização como mero suporte pedagógico que, como vimos, pode silenciar discussões importantes perpetuando preconceitos num cenário de desigualdades. Pensar nos termos de um cinema afirmativo significa absorver os direitos humanos em nossas práticas docentes.

Tendo como centrais os pilares apontados, a saber, a importância do recorte temático, a não vitimização das personagens, a recusa ao melodrama e a utilização de desfechos afirmativos, consideramos fundamental, ainda, assumirmos a relevância dos modos de endereçamento no sentido de garantir a autonomia de professoras e professores na escolha e abordagem do filme na escola e que essa escolha seja ética, estética e politicamente voltada para um cinema atravessado pelos direitos humanos. O cinema afirmativo se estabelece, assim, como uma noção fértil nas mãos de professoras e professores que utilizam o cinema e o audiovisual na escola, garantindo sua autonomia ao mesmo tempo em que fornece elementos para a escolha de filmes.

É a partir disso que podemos promover, de maneira plena, o encontro entre cinema, educação e direitos humanos. O cinema na escola será o que fizermos dele, emancipador ou hierarquizante, promotor da alteridade como representação ou como diferença, e as discussões conduzidas pelos docentes irão silenciar ou valorizar os diversos atores sociais envolvidos na educação. Os direitos humanos surgem, assim, como elemento fundamental para pensarmos cinema e educação a partir de um horizonte marcado pela igualdade na diferença, e a noção de cinema afirmativo apropriada por professoras e professores nos inspira a pensar que a exibição audiovisual no ambiente escolar poderá ser cada vez mais transformadora dentro do que se espera de uma relação entre cinema e educação atravessada pelos direitos humanos.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 Nesse ínterim, é digno de nota o projeto Inventar com a Diferença, que teve como foco a realização audiovisual no ambiente escolar a partir do cruzamento entre cinema, educação e direitos humanos. Para mais detalhes, ver o material de apoio realizado pelo projeto, disponível em: https://www.corais.org/sites/default/files/inventar_com_a_diferenca_20140514.pdf Acesso em: 18 ago. 2023
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