Resumo: O objetivo deste ensaio é abordar a Educação Química em um currículo com influência fenomenológica. Sob as lentes de uma abordagem fenomenológica à Educação em Ciências, apresentamos problemáticas (dualismo cartesiano, purificação galileana, matematização da natureza, cognitivismo e reversão ontológica) encontradas também na Educação Química. O currículo fenomenológico aparece aqui como uma proposição para fomentar as experiências sensoriais dos alunos antes de abordar as abstrações que têm sido foco do Ensino de Química. Como resultado, traremos exemplos da Educação Superior de como é possível articular a abordagem educacional fenomenológica como um caminho para reconhecer as experiências dos alunos na Educação Química.
Palavras-chave: Fenomenologia, Educação Química, Currículo.
Abstract: The objective of this essay is to address Chemistry Education in a curriculum with phenomenological influence. Under the lens of a phenomenological approach to Science Education, we present problems (Cartesian dualism, Galilean purification, mathematization of nature, cognitivism and ontological reversal) also found in Chemistry Education. The phenomenological curriculum appears here as a proposition to foster students' sensory experiences before addressing the abstractions that have been the focus of Chemistry Teaching. As a result, we will bring examples from Higher Education of how it is possible to articulate the phenomenological educational approach as a way to recognize students' experiences in Chemistry l Education.
Keywords: Phenomenology, Chemistry Education, Curriculum.
Resumen: El objetivo de este ensayo es abordar la Educación Química en un currículo con influencia fenomenológica. Bajo la lente de un enfoque fenomenológico de la Educación Científica, presentamos problemas (dualismo cartesiano, purificación galileana, matematización de la naturaleza, cognitivismo e inversión ontológica) que también se encuentran en la Educación Química. El currículo fenomenológico aparece aquí como una propuesta para fomentar las experiencias sensoriales de los estudiantes antes de abordar las abstracciones que han sido el foco de la enseñanza de la química. Como resultado, traeremos ejemplos desde la Educación Superior de cómo es posible articular el enfoque educativo fenomenológico como una forma de reconocer las experiencias de los estudiantes en la Educación Química.
Palabras clave: Fenomenología, Educación Química, Currículum.
Artigos do fluxo
Por um currículo fenomenológico para a educação química: um caminho para experiências ontológicas
Towards a phenomenological curriculum for chemistry education: a path to ontological experiences
Hacia un currículo fenomenológico para la educación química: un camino hacia las experiencias ontológicas
Recepción: 01 Noviembre 2022
Aprobación: 23 Julio 2024
O Ensino de Química tem sido vinculado, entre outras teorias da aprendizagem, especialmente ao cognitivismo (Gaudêncio et al., 2023). Esta perspectiva coloca a cognição conceitual e teórica na centralidade da pesquisa ou prática em lidar com ensino, aprendizagem e com o desenvolvimento do conhecimento, o que leva a considerar a aquisição de conceitos o objetivo primário da escolarização (Dahlin, 2001). Trata-se de uma base epistemológica clássica calcada no dualismo sujeito-objeto, de dominação do segundo pelo primeiro, o que limita a aprendizagem aos seus efeitos cognitivos. No intuito proporcionar ao aluno a aquisição de conceitos, a Educação em Ciências e de Química partem, em geral, de modelos abstratos (Dahlin, 2001; Dahlin; Østergaard; Hugo, 2009; Østergaard; Dahlin; Hugo, 2008, Østergaard, 2014;Østergaard, 2017), o que distancia a teoria abordada das experiências vividas dos alunos.
Apresentamos, neste artigo, a influência de uma abordagem educacional fenomenológica à Educação em Ciências - ainda pouco inserida neste campo (Santos; Sousa, 2022) - como um caminho para primariamente oportunizar a expressão de experiências na Educação Química. A Fenomenologia é o estudo das experiências do indivíduo uma vez que, como se mostra em Cerbone (2014, p. 160), a Fenomenologia busca descrever “nossa experiência perceptual, corporificada, do mundo”. Tais descrições, tornam possíveis a compreensão das teorias desenvolvidas para explicar os fenômenos das ciências naturais. Cerbone (2014) evidencia que a Fenomenologia surgiu com Edmund Husserl (1859-1938). A Fenomenologia de Husserl se concentra na descrição das estruturas da consciência e na maneira como os objetos são percebidos e experienciados. Consiste em suspender julgamentos sobre a existência do mundo externo para focar na experiência subjetiva pura e, por isso, este autor a considerava como uma disciplina pura e transcendental.
A Fenomenologia, no entanto, sofreu transformações com alguns autores como Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) (Cerbone, 2014). A fenomenologia existencial desenvolvida por Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty amplia a Fenomenologia de Husserl para incluir uma análise da existência humana questionando a capacidade de isolar a experiência sem negligenciar seu contexto situacional.
Merleau-Ponty, em “Fenomenologia da Percepção”, destaca o corpo vivido como o principal local da experiência, desafiando assim, tanto o dualismo husserliano quanto o cartesiano. O autor também exibe que a experiência ontológica está profundamente ligada à percepção e à corporeidade, argumentando que a nossa compreensão do ser é mediada pela experiência sensorial e pelo corpo, que não é apenas um objeto no mundo, mas um meio de estar no mundo (Cerbone, 2014).
A Fenomenologia tem uma ênfase na pré-cognição, em que o perceber e o sentir diferem da cognição puramente conceitual, e busca equilibrar o foco nas explicações conceituais abstratas, conectando-as ao ser e agir no mundo como base para uma compreensão genuína (Østergaard et al., 2008). Assim, uma educação fundamentada em uma abordagem fenomenológica se preocupa com a formação integral do indivíduo, a partir da sua cultura, das suas experiências e dos seus conhecimentos históricos e sociais. A partir da abordagem educacional fenomenológica, buscamos apresentar caminhos para que os alunos possam experienciar e perceber o mundo no qual eles já estão “enraizados” (Østergaard, 2017).
A Fenomenologia como abordagem filosófica enfatiza a experiência subjetiva, o que pode fornecer uma perspectiva de compreendermos currículo como um resgate da experiência vivida pelo ser no mundo pela educação (Martins, 1992). Desta forma, ao focar na experiência vivida dos alunos, uma abordagem fenomenológica à Educação e à Educação em Ciências implica na criação de currículos mais centrados no aluno, que respeitem e integrem suas vivências, motivações e contextos socioculturais. Partimos da seguinte pergunta: como um currículo fenomenológico pode contribuir para as experiências ontológicas dos alunos na Educação Química? Na tentativa de respondê-la, este trabalho tem como intencionalidade apresentar um ensaio acadêmico (Larrosa, 2003) que aborda a Educação Química a partir de um currículo Fenomenológico. Para Larrosa (2003), o ensaio acadêmico é uma forma de escrita que problematiza pensamento e conhecimento, em que o ensaísta questiona a escrita a cada vez que escreve e a leitura a cada vez que lê. No ensaio, a leitura e a escrita são lugares de experiência uma vez que, o ensaísta está continuamente aprendendo a escrever enquanto escreve e a ler enquanto lê (Larrosa, 2003). Os caminhos percorridos, neste trabalho, estão delineados da seguinte forma: i. apresentaremos como se mostram algumas problemáticas da Educação em Ciências e como elas podem ser contornadas a partir de uma Educação em Ciências integrada à Fenomenologia. Depois mostraremos como se apresenta um currículo em uma abordagem fenomenológica. Finalmente, exemplificaremos uma abordagem fenomenológica como possibilitadora das experiências ontológicas na Educação Química.
Dahlin (2001) expõe que um dos problemas encontrados na Educação em Ciências se baseia no dualismo cartesiano. O dualismo cartesiano, a partir das ideias de René Descartes (1596-1650), concebe o corpo e a mente como substâncias distintas, podendo existir independentemente um do outro (Cerbone, 20122014). "O sonho de Descartes era que os passos questionadores das ciências então recém-emergentes pudessem aderir ao primeiro princípio do pensamento - 'penso, logo existo' - e pudessem participar de sua indubitabilidade” (Jardine, 1990, p. 214, tradução nossa). Ou seja, Descartes buscava uma base sólida e inquestionável para o conhecimento em um processo que desconsidera a complexidade e a ambiguidade da vida humana. Entretanto, essa concepção cartesiana acaba se mostrando uma visão desumanizadora que tenta eliminar a ambiguidade e a diferença, aspectos essenciais da existência e da educação.
Para Alsop (2005, p. 6), “dualismo cartesiano oferecia um meio conveniente de elevar a pureza da razão da bagunça e do irracionalismo da emoção”. Embora muito disso tenha sido superado pela ciência e filosofia, “seus resquícios são encontrados na pesquisa contemporânea de educação em ciências e na reforma de políticas” (Alsop, 2005, p. 6). Consequência disso é que,
De tradição cartesiana, muitos currículos se concentram inteiramente em atitudes científicas (a racionalidade da investigação, hipótese, experimentação e conclusão) e ignoram completamente as atitudes em relação à ciência (as emoções associadas ao estudo da ciência escolar e aquelas associadas à própria ciência (Alsop, 2005, p. 7).
Assim, a influência do dualismo cartesiano permanece na maneira como a Educação em Ciências é estruturada. Essa abordagem também influenciou no desenvolvimento do currículo, ao priorizar o conhecimento teórico e científico precedente à experiência vivida. Consequentemente, temos um currículo, muitas vezes, desconectado da realidade vivida pelos estudantes e focado excessivamente em abstrações ao invés de práticas e em oposição a experiência vivida.
Essa desconexão, aliada mais tarde às maneiras pelas quais as então emergentes ciências humanas vieram a dominar as ciências naturais no século XIX, não apenas afastou o sujeito da vida como ela é realmente vivida, mas tornou nossas vidas cognoscíveis apenas por meio de tal desconexão (Jardine, 1990, p. 214, tradução nossa).
Ao separar o sujeito da sua vida cotidiana, o dualismo cartesiano moldou nossa compreensão do mundo de tal maneira, que a experiência vivida se tornou secundária à cognição. Além disso, o dualismo restringe a relação entre o sujeito-objeto, influenciando inclusive na objetificação do ser, como nos traz Flickinger (2010, p 29-30) ao nos dizer que
O ato de tornar o mundo um possível objeto do conhecimento precede, assim, a investigação racional. Por mais natural que pareça ser, ao tratar-se da abordagem epistemológica nas Ciências Naturais - a história da teoria de sistema dá-nos a entender muito bem essa necessidade de objetificação do mundo externo -, os problemas se multiplicam quando tratamos do próprio ser humano. Porque, também, nesse caso, uma epistemologia comprometida com as trilhas pós-cartesianas vê-se obrigada a objetificar o que interessa, a saber, o próprio ser. [...] Dentro da visão da epistemologia pós-cartesiana, não há como fugir, portanto, do risco da autoinstrumentalização do próprio homem. Ao que tudo indica, a autonomia da razão parece ter inscrito essa dinâmica perigosa que não poupa nem o próprio ser humano (Flickinger, 2010, p. 29-30).
Ao se vincular a uma relação dualística, o professor tende a limitar a ação pedagógica à relação sujeito-objeto, impedindo, assim, que seus alunos vivenciem experiências ontológicas. Inspiramo-nos em Magrini (2013) para tratarmos da experiência ontológica. Para o autor, a experiência se refere à maneira como os indivíduos existem e interagem com o mundo, especialmente no contexto educacional. A fenomenologia enfatiza que os indivíduos não são apenas receptores passivos de estímulos externos, mas participantes ativos que interpretam e dão significado às suas experiências. Essa abordagem fenomenológica realiza uma "ontologia fundamental da experiência vivida" dos praticantes e estudantes, revelando aspectos da educação que estão ocultos, mas que influenciam profundamente nossa compreensão inicial e cotidiana da educação (Magrini, 2013). Ou seja, estamos tratando a experiência como ontológica por entendermos que a educação e o aprendizado são processos profundamente enraizados na existência humana, em que os indivíduos estão imersos no mundo e continuamente constroem e reinterpretam o significado de suas experiências (Magrini, 2013).
Assim, a “objetificação e autoinstrumentalização do ser humano apontam o risco de desviarmos a pedagogia de seu enfoque originário, ou seja, do desenvolvimento da personalidade e sociabilidade do indivíduo” (Flickinger, 2010, p. 31). A fim de lidar com o dualismo cartesiano arraigado na Educação em Ciências, Dahlin (2001) busca apresentar perspectivas fenomenológicas e estéticas na pesquisa e prática educativas. Busca-se, com isso, uma educação fenomenológica que aproxime os alunos à natureza pela provocação da percepção pelo mundo pela via das experiências sensoriais corpóreas (Santos; Sousa, 2024).
Østergaard (2017) apresenta um argumento de Husserl mostrando que a cultura científica ‘europeia não realizou críticas ao dualismo cartesiano, e essa atitude transpassou por tradições e mantém-se presente nas salas de aula de ciências. Além disso, alguns problemas que serão abordados a seguir, contribuem para uma relação dualística na Educação em Ciências como o intelectualismo, o cognitivismo, a purificação galileana e a reversão ontológica (Dahlin, 2001).
Dahlin (2001) também apresenta que, após a chamada Revolução Científica do século XVII, os filósofos passaram a considerar a experiência sensorial como irrelevante ao conhecimento científico, o que Husserl chamou de “matematização da natureza”. Para ele, “filósofos e cientistas naturais começaram a ouvir a voz da natureza através de paredes muito grossas, por assim dizer, paredes que deixavam passar apenas o som tênue e abstrato de números e fórmulas” (Dahlin, 2001, p. 454, tradução nossa). Essa problemática também é evidenciada em Dahlin, Østergaard e Hugo (2009), quando os autores expõem um distanciamento entre a ciência e a experiência perceptiva-sensorial do mundo. Apesar dessas transformações matemáticas se mostrarem bastante satisfatórias em seu caráter utilitário, elas fazem com que a linguagem apresentada pela natureza se torne silenciada.
A “matematização da natureza” na Educação em Ciências está intimamente vinculada à denominada “purificação galileana”, na qual a experiência cotidiana e os fatores acidentais não são considerados na elaboração de fórmulas. De acordo com Dahlin (2001), a purificação galileana pode ser exemplificada pela lei dos corpos em queda livre de Galileu Galilei (1564-1642), que ao ser elaborada, ignora fatores como a fricção do ar e outras circunstâncias acidentais, tornando esses fenômenos invisíveis.
Foi a grande descoberta de Galileu que o contexto confuso da experiência cotidiana poderia ser substituído por uma situação idealizada em que todos os fatores acidentais e contingentes foram tornados invisíveis. Isso tornou possível construir o princípio matemático que regula um corpo em queda livre (DAHLIN, 2001, p. 455, tradução nossa).
A eficiência das leis matemáticas na Educação Ciências levou os filósofos a buscarem purificações galileanas em suas próprias teorias (Dahlin, 2001), tornando seu uso frequente nas salas de aula e contribuindo, assim, para um ensino com foco nas abstrações de modelos e cálculos. A crítica apresentada por Dahlin, não está na formulação dessas leis, mas no fato de serem consideradas, muitas vezes, mais reais que os fenômenos que levaram a sua elaboração.
O foco na abstração na Educação em Ciências nos leva a uma outra problemática, o cognitivismo, que de acordo com Dahlin (2001) é uma postura educacional que varia da teoria intelectualista.
O intelectualismo é uma postura filosófica, em particular uma postura epistemológica, o cognitivismo, que é uma postura educacional. Na educação, estamos principalmente preocupados com a aprendizagem e o desenvolvimento, e quando essa preocupação é exclusivamente voltada para a formação e desenvolvimento de conceitos, eu chamo de cognitivismo. O intelectualismo, por outro lado, é a superinterpretação ontológica do papel dos elementos abstratos e conceituais em nosso conhecimento, compreensão e experiência do mundo. Os dois estão intimamente ligados, mas não são idênticos (Dahlin, 2001, p. 459-460, tradução nossa).
O cognitivismo, então, está centrado na aprendizagem e no desenvolvimento de teorias e conceitos para construção de conhecimento, em que a cognição constitui o centro da prática e pesquisa educacional. Assim, as experiências, em geral, muitas vezes, deixam de ser consideradas ou, quando consideradas, aparecem como um plano secundário para comprovação das teorias estudadas. O cognitivismo também apresenta características das influências do dualismo cartesiano, da purificação galileana e da matematização da natureza, que colocam a primazia do conhecimento nos modelos abstratos.
Na sala de aula de ciências, o conhecimento e as teorias por trás do que os alunos vivenciam tornaram-se cientificamente mais corretos do que o próprio fenômeno vivenciado. Essa situação cria uma lacuna entre o mundo da explicação baseada no conhecimento científico e o mundo da vida vivenciado pelos alunos (Østergaard, 2014, p. 516, tradução nossa).
Østergaard (2017) ainda traz relatos de uma entrevista com o educador de Ciências alemão Martin Wagenschein (1896–1988), apontando outro problema encontrado no Educação em Ciências: a ordem das sequências em que se apresenta o ensino. Os professores planejam suas aulas dedutivamente a partir do fim, trazendo conceitos e fórmulas para depois fazerem experimentos ilustrativos. “Os modelos abstratos, muitas vezes matemáticos, são considerados como causas reais por trás das experiências cotidianas. Assim, de uma perspectiva ontológica, o que é real foi invertido” (Østergaard, 2014, p. 517, tradução nossa). Isso é chamado de “reversão ontológica”, a ideia de que as ciências naturais perderam o contato com o mundo da vida ao não perceber a relação entre conhecimento científico e a experiência (Dahlin; Østergaard; Hugo, 2009). As experiências que deveriam ser consideradas como primárias são colocadas em segundo plano, proporcionando o “desenraizamento” (Østergaard, 2014; Østergaard, 2017) dos alunos.
Nas últimas décadas, diversos estudos indicam que a Educação em Ciências pode desenraizar estudantes ao confrontar suas formas familiares de entendimento do mundo e outras formas cotidianas de conhecimento com a ciência ocidental, sem oferecer experiências relevantes que os ajudem a criar um novo senso de pertencimento (Roth, 2014). Por esse motivo, ao valorizar inicialmente a experiência perceptiva, mantemos os nossos alunos enraizados em suas próprias experiências, possibilitando uma maior compreensão dos conceitos abstratos que exige da cognição. Partindo dessas problemáticas, na próxima seção, buscaremos apontar caminhos que diferem das utilizadas usualmente Educação em Ciências, por isso, mostraremos como a abordagem fenomenológica influencia a Educação e o Currículo.
Como apresentamos, a Fenomenologia é uma filosofia que se preocupa com as experiências vividas dos indivíduos no mundo. Com sua longa tradição em outros países também no Brasil, a Fenomenologia ainda é pouco usual na Educação em Ciências como fundamento educacional (Santos; Sousa, 2022). Martins (1992) apresenta que, na educação, a Fenomenologia surge como um processo social, histórico e cultural, com o intuito de considerar as vivências e experiências dos alunos. Ela também oportuniza que os indivíduos vivenciem experiências sensoriais e corpóreas para possibilitar a percepção e a compreensão, além de contrapor a primazia da cognição que é muito utilizada no âmbito educacional. Por isso, é papel do pesquisador fenomenológico trabalhar para compreender o sentido de estar no mundo. Tal compreensão requer o conhecimento das tradições históricas, culturais e políticas (Pinar et al., 1995).
Uma educação fenomenológica nos convida a buscar um currículo que considere as experiências dos alunos, um currículo que considere a primazia da consciência e da percepção de si e dos outros. Isso porque, como nos traz Martins (1992, p. 74), “a ideia da primazia da consciência envolve necessariamente uma consciência de si-mesmo. O conhecimento da própria consciência, portanto, da sua subjetividade que precede o conhecimento sobre o mundo, incluindo especificamente o conhecimento dos outros indivíduos”. Quando um indivíduo busca perceber o mundo a fim de conhecê-lo, precisamos considerar que de início ele já tem o seu próprio mundo, com suas próprias vivências, experiências e compreensões. É por esse motivo que cada indivíduo percebe o mundo da sua maneira e os novos significados e compreensões são atribuídos pela nossa consciência.
Fazer Currículo não se trata mais de construir um instrumento a ser planejado por um grupo de especialista em educação, elaborado com a finalidade de envolver a escola como um todo para exercer a obra de educar. [...] envolve o reconhecimento de uma primazia própria ao humano, a de desenvolver talentos e capacidades que se fundamentam na liberdade de agir (Martins, 1992, p. 75).
Para que professores instiguem seus alunos a buscar novas experiências, percepções e compreensões, algumas atitudes precisam estar envolvidas como: o cuidado, o zelo e a formação de atitudes. Isto quer dizer que “o investigador fenomenológico questiona como os fenômenos – “as próprias coisas” – se apresentam na experiência vivida do indivíduo, especialmente como se apresentam no tempo vivido” (Pinar et al., 1995, p. 405, tradução nossa). Por isso, o currículo fenomenológico se preocupa com o processo social e cultural do aluno, uma vez que “ao construir currículo, há que se ter a preocupação de que este venha a constituir-se num meio e não num fim em si mesmo” (Martins, 1992, p. 75). As compreensões realizadas nesse processo partem de experiências vivenciadas e, por isso, são ontológicas e levam a novas interpretações, a novas compreensões e, consequentemente, geram novas aprendizagens, que são individuais e próprias de cada sujeito.
Considerando-se educar como cuidado para que o ser possa viver na plenitude de sua existência, a trajetória do aluno a ser feita na escola deverá ser vista como um projeto pedagógico, como caminho a ser percorrido. Nesse enfoque é que Currículo deverá ser enfatizado como construção cultural, pois toda cultura se caracteriza por ter acumulado, no processo de seu desenvolvimento histórico, um acervo de conhecimento. A construção da cultura envolve artes, experiências vividas e registradas na história, visões de mundo, expressões, estilos e símbolos que são usados por um povo, conhecimentos e conceitos que contêm um potencial poderoso a ser outorgado às novas gerações (Martins, 1992, p. 76).
O currículo fenomenológico como construção cultural tem sua ênfase na existência do ser, nas suas experiências e percepções, por isso, se apresenta como um caminho para reconhecer as experiências ontológicas dos alunos.
Ver currículo como construção cultural implica ver a escola como um lugar especial, espaço que tem existência e um ser próprio e que não está aí apenas presente. Consiste em nos vermos como homens, existindo frente a outros, que têm um pensar e uma história própria; consiste, ainda, em nós compreendermos existindo naquilo que fazemos na escola enquanto partes da obra educacional. Pela expressão estar na escola colocamo-nos frente a duas possibilidades: aí estar simplesmente presente ou existir na presença, fazendo parte da obra educacional (Martins, 1992, p. 76).
Em um currículo fenomenológico, os alunos são vistos como seres de possibilidades, em que o conhecimento parte de suas experiências, da sua cultura e das suas relações sociais e familiares. As compreensões dos alunos ocorrem a partir de suas compreensões anteriores e o professor é o possibilitador de novas experiências.
A compreensão não se dá no vazio. Para que ela se manifeste é preciso que haja algo ou alguém que, intencionalmente, esteja tentando se comunicar, seja verbalmente, por meio da escrita, ou na maneira própria de se mostrar pedindo um significado. A compreensão é, pois, a capacidade fundamental do homem, que lhe permite o acesso a outros seres humanos como tal, e ao mundo que se lhe mostra (Martins, 1992, p. 78).
As compreensões dos alunos ocorrem a partir de seus conhecimentos anteriores e são ampliadas com suas as experiências atuais proporcionadas pelo professor por meio do diálogo, da arte, da linguagem, da escrita, entre outras inúmeras possibilidades. Quando percebemos algo novo, que está além de nosso horizonte de compreensão, nossas certezas são desafiadas e temos nossas pré-compreensões colocadas a prova (Gadamer, 2015). Se nos abrirmos ao novo e aceitarmos esse convite, nosso horizonte de compreensão poderá ser ampliado.
Para a fenomenologia, no enfoque aqui dado a Currículo, este ponto é fundamental; não haverá, pois, a preocupação em ensinar nada a ninguém, nem a pretensão de pensar que alguém ensina alguma coisa a alguém. O ser humano é visto como um ser-no-mundo e nunca de outra forma. Como tal, o homem pretende se ver sempre além de onde está, isto é, saindo de áreas de apropriação para entrar em novas áreas de não apropriação, produzindo novos conhecimentos a partir da própria experiência (Martins, 1992, p. 79-80).
Desta forma, fenomenologicamente entendemos o indivíduo como parte do mundo, buscando ampliar seu conhecimento por meio da própria experiência. Suas percepções estão “enraizadas nas experiências” (Østergaard, 2017) cotidianas, na cultura e na tradição. O professor fenomenológico usa todos os recursos possíveis para abrir um leque de possibilidades de experiências aos seus alunos. “A ideia de Currículo na Fenomenologia prevê que toda experiência seja uma experiência reflexiva, no sentido de que o sujeito possa pela reflexão chegar ao autoconhecimento, a partir da análise de decisões passadas” (Martins, 1992, p. 86). Se refletirmos sobre nossas próprias experiências, abrimo-nos ao novo e ampliamos os nossos conhecimentos.
Semelhante ao currículo fenomenológico, a sensibilidade estética também envolve uma abertura ao novo, permitindo que o indivíduo vivencie a arte de maneira sensorial e perceptiva, o que conduz a uma reflexão profunda e à ampliação dos horizontes de entendimento. Desta forma, a sensibilidade estética é um caminho para uma educação fenomenológica por nos possibilitar o despertar para arte por meio das experiências sensoriais, perceptivas e corpóreas. De acordo com Caminha (2019, p. 12), “toda reflexão filosófica ou todo conhecimento científico é sempre posterior às nossas experiências sensíveis, que são vividas pelo corpo”. Assim, a sensibilidade estética ao exigir do indivíduo uma abertura ao novo, possibilita a primazia das experiências corpóreas que nos levam à reflexão.
No momento em que o indivíduo se posiciona diante de uma obra de arte, levando-a a sério, acaba por se envolver, render-se à experiência e ao horizonte do próprio sentido da obra. A obra de arte oferece um convite insistente para entrar em um novo mundo com ambientes desconhecidos (Flickinger, 2010). Essa aproximação inicialmente pode causar-lhe alguma estranheza, mas quando somos instigados a observar com mais atenção, o que não era percebido, começa a se mostrar. “A experiência de estranhamento com uma obra de arte é, por algum momento, um exercício de negação daquilo que está sendo percebido” (Sousa; Galiazzi, 2019, p. 112). Quando superamos a negação, somos capazes de buscar por novas interpretações, mesmo que, às vezes, seja preciso mudar o ângulo em que estamos experienciando, em busca de perceber novos horizontes.
A compreensão de horizonte é apresentada por Gadamer que também cunhou a Hermenêutica Filosófica. Horizonte é a amplitude de nossa visão a partir de um determinado lugar, se eu mudo de lugar, meu horizonte muda também, assim, mudando nossa posição, podemos ampliar, diminuir e se abrir ao novo (Gadamer, 2015). Gadamer aproxima a maneira em que confrontamos a arte com o modo que compreendemos os objetos ao nosso redor. E, como aponta Hermann (2002), o horizonte está em constante formação, e ao ser submetido a nossos preconceitos, a compreensão possibilitada é em todo tempo uma fusão de horizontes.
Para que a educação seja uma experiência que se revele, precisamos questionar a limitação da inclusão de conhecimentos relacionados às emoções. Isso inclui conhecimento sobre intuições, normas e estética (Magrini, 2015). Dewey (2010) defende uma investigação de fenômenos naturais a partir da arte, uma vez que do ponto de vista educacional, teria a mesma legalidade de investigação científica, diferindo apenas em seus objetivos. Dahlin (2001) defende que poderia manter os mesmos objetivos e ainda dar ênfase na dimensão estética da formação do conhecimento. Assim, além do indivíduo apreciá-la, ele pode perceber como a natureza se apresenta em suas cores, formas, cheiros, entre outros.
A Fenomenologia se dá nas experiências do mundo, com a cultura, com a ética, com a arte. É, por isso, que “a pesquisa fenomenológica sempre incorpora uma qualidade poética” (Pinar et. al, 1995, p. 407, tradução nossa). Ao compará-la com um poema, os autores têm a intencionalidade de mostrar que ela não pode ser reduzida a resultados rigidamente estabelecidos. Magrini (2015) concorda com Pinar et al. (1995), mas demonstra preferência pela tradução do termo “poético” por “poiético”, que vem do grego: “poíesis”. Uma vez que,
A linguagem poiética da pesquisa fenomenológica evita a mera representação das questões de seu interesse e vive para além do potencial limitado e restrito das locuções do discurso proposicional na tentativa de comunicar a imensa diversidade da experiência humana (Magrini, 2015, p. 11, tradução nossa).
Assim, a linguagem usada na pesquisa fenomenológica não se limita a representar as questões estudadas, uma vez que, busca capturar a rica diversidade das experiências. Para Magrini (2012, p. 6, tradução nossa), “escrever é o ato poiético de formular e comunicar nossa compreensão ‘fenomenológico-ontológica’ da experiência vivida”. Martins (1992) expõe que a educação tem qualidades poiéticas ao utilizar o termo “educação como poiesis” defendendo um currículo com o enfoque fenomenológico. O termo poíesis “envolve, necessariamente, uma criação, um pensar, um construir onde o poeta habita. Constitui-se dessa forma um pensar criativo, um habitar” (Martins, 1992, p. 88). O autor justifica que espera que pela Fenomenologia se recupere a experiência vivida do indivíduo no mundo da educação. A partir das percepções estéticas e poiéticas que fundamentam um currículo fenomenológico, apresentaremos na próxima seção a perspectiva educacional fenomenológica como um possível caminho para possibilitar as experiências ontológicas dos alunos na Educação Química. Essas percepções partem das próprias experiências dos alunos e de suas relações com o mundo.
Para exemplificar a possibilidade dessa perspectiva educacional fenomenológica, usaremos como referência a dimensão estética descrita brevemente na seção anterior. Por estética, Dahlin (2001, p. 454, tradução nossa) entende como “um ponto de vista que cultiva uma atenção cuidadosa e exata a todas as qualidades inerentes à experiência sensorial”. Assim, relacionamo-nos esteticamente com a natureza quando nos deparamos com suas cores, formas, cheiros, sons, etc., mesmo que inicialmente isso nos cause estranheza. Isso porque “o estético abandona um pouco de sua concepção inicial – que se limitava à contemplação do belo – e passa a ser concebido como linha de fuga que contribui para a sustentação do sujeito” (Ferraro, 2017, p. 109). As experiências estéticas nos são possibilitadas em diversos ambientes, sejam elas boas ou ruins, familiares ou estranhas. Assim, “podemos ter experiências estéticas com relação a qualquer objeto ou acontecimento, independentemente de ser arte ou não, de ser belo ou não, de existir concretamente ou não” (Pereira, 2011, p. 115). Para tal, é preciso desenvolver uma atitude estética, ou seja, estar aberto a compreender como esse objeto se mostra para nós em sua existência.
Na Educação Química, Sousa e Galiazzi (2019) buscaram estabelecer diálogos com os objetos estéticos para ampliar as compreensões da pessoa que o interpreta e sobre o mundo. Isso porque uma experiência fenomenológica se dá tanto dentro quanto fora das salas de aula e pode ocorrer esteticamente por meio de: imagens, objetos, textos, poemas, músicas, entre tantas outras possibilidades. No entanto, o que buscamos aqui não é apontar uma metodologia para se trabalhar a estética fenomenologicamente, mas apresentar alguns caminhos que possam possibilitar essas experiências nas aulas de (Educação) Química. As experiências, de acordo com Ferraro (2017), diferem de experimentos, uma vez que, o experimento tem uma dimensão de reprodução, enquanto a experiência nos permite vivenciar, (res)significar e deformar, possibilitando uma aproximação da minha experiência com o novo do conhecimento.
A fim de elucidar como a experiência estética contribui para despertar a percepção dos alunos, descreveremos algumas experiências que foram possibilitadas na disciplina “O uso de Recursos Didáticos em Química” do curso de Licenciatura em Química em uma Universidade Federal. Elas nos ajudam a caracterizar uma aula orientada em direção a um currículo fenomenológico.
Uma das atividades proporcionadas nesta disciplina partiu da leitura de uma parte do livro Tio Tungstênio: memórias de uma infância química (Sacks, 2011). Nesta obra, Oliver Sacks traz lembranças sobre os materiais e seus mistérios, apontando questionamentos que nos mostram a importância da pergunta na percepção. Sacks chamava seu tio de “Tio Tungstênio”, por fabricar lâmpadas de tungstênio. O autor faz detalhadas descrições de suas frequentes visitas na infância à fábrica do tio, que tinha as mãos cheias de pó preto que não saía nem lavando e imaginava que após anos trabalhando com tungstênio ele ganharia força e resistência quase super-humanas.
A obra “Tio Tungstênio” de Sacks foi um recurso encontrado pelo professor para estimular a percepção em aulas de Química com uma perspectiva fenomenológica. Quando o autor apresenta suas lembranças Químicas vivenciadas na sua infância por meio da qualidade poiética, ele nos inspira a "reviver" nossas próprias memórias. Essa inspiração foi utilizada como modo de descrição das experiências dos alunos da disciplina com a Química vivenciada durante suas infâncias. Estimulados pelo personagem principal curioso e questionador, esta obra também mostra a importância dos questionamentos, algo crucial em uma abordagem fenomenológica, por estimular os alunos a observar e perceber o mundo como ele se apresenta a quem o experiencia. O texto oportuniza o reconhecimento da “primazia da consciência” apresentada por (Martins, 1992), uma vez que, os indivíduos já trazem consigo suas pré-compreensões antes mesmo de ser oportunizado a uma nova experiência. Assim, suas experiências vivenciadas durante a infância são valorizadas a partir das memórias Químicas.
Ao tomar como ponto de partida as experiências vividas pelos alunos para a percepção do mundo, o professor oportuniza diferentes possibilidades para que o aluno compreenda conceitos científicos por meio de novas experiências. Além disso, ele se opõe à problemática do “dualismo cartesiano” apresentado por Dahlin (2001), que limita o conhecimento a relação sujeito-objeto, em que o sujeito domina o objeto. Na Fenomenologia, especialmente a heideggeriana, essa relação é superada, porque se considera que o objeto também possui uma existência, um modo de ser que é um ser de possibilidades e que influencia na existência do sujeito e de outros seres. Sacks (2011) percebe fenomenologicamente as coisas do mundo e as reconhece, considerando sua existência e sua influência. A percepção das coisas do mundo também pode acontecer em sala de aula, quando o professor possibilita que os alunos descrevam sobre suas próprias experiências vivenciadas, rompendo com a relação de dominação do objeto pelo sujeito. Desse modo, intencionalmente estimulamos a retomada das experiências multissensoriais e corpóreas dos estudantes, colocando-as no diálogo pedagógico.
Uma abordagem fenomenológico-estética pode contribuir para se contrapor a um foco estritamente cognitivo. Ao descrever suas experiências, Sacks (2011) nos possibilita perceber sua dimensão estética do mundo. Quando o professor possibilita que os alunos experienciem corporalmente texturas, cheiros, cores, etc., estimula-os a adquirir uma atitude estética (Pereira, 2011) além de promover a percepção do estranho e do familiar. A atitude estética, para Pereira (2011) é uma atitude desinteressada, uma abertura não tanto para a coisa “em si”, mas para os efeitos que ela produz em mim, na minha percepção. Isto é importante, pois é o ponto de partida para que nossos estudantes ingressem num movimento de interpretação sobre as coisas do mundo, buscando compreendê-las, inclusive nas aulas de Química (Sousa; Galiazzi, 2019).
A obra de Sacks (2011) também foi utilizada para contrapor a “reversão ontológica” em que parte quase que exclusivamente de modelos abstratos para chegar a teorias e a conceitos científicos, deixando as experiências daqueles que participam do processo educativo de lado (Østergaard, 2017). O professor a utilizou como um meio para estimular os alunos a descreverem detalhadamente suas próprias memórias Químicas vivenciadas em suas infâncias, fazendo descrições do experienciado com a estética própria daquele que narra. Buscamos, com isso, partir das experiências dos alunos para possibilitar a compreensão de conceitos e teorias, uma “re-reversão ontológica” (Østergaard, 2017), valorizando os alunos e mantendo-os “enraizados” (Østergaard, 2014; Østergaard, 2017) em sua própria experiência vivida do mundo percebido. Assim, essas descrições foram compartilhadas com os outros alunos com a intencionalidade de que eles se sentissem reconhecidos e, assim, estivessem eticamente implicados no processo educativo
Outra atividade proporcionada na disciplina foi a leitura de um capítulo do livro Oxigênio (Djerassi; Hoffmann, 2009). A obra apresenta uma peça teatral que tinha a intenção homenagear quem realizou a “descoberta” do gás oxigênio com um prêmio Nobel. Na trama, concorriam ao prêmio três importantes cientistas, Carl Wilhelm Scheele, Joseph Priestley e Antoine Laurent Lavoisier. Os cientistas e suas esposas apresentam argumentos no intuito de justificar o motivo de merecer o prêmio. A história, apesar de ser fictícia, apresenta fatos verdadeiros sobre o gás oxigênio.
A peça teatral e sua dramatização se constituem objetos estéticos culturalmente construídos que são em si potenciais promovedores de experiências estéticas. A obra apresenta um viés “poiético” (Martins, 1992) que possibilita ao aluno se envolver com a temática, além de desenvolver “atitudes estéticas” (Pereira, 2011) que oportunizam a percepção do mundo. A partir da obra de Djerassi e Hoffmann (2009), as experiências dos alunos com a arte e a estética puderam ser tanto resgatadas quanto oportunizadas pela primeira vez. Estamos entendendo a experiência estética como Østergaard (2014) nos apresenta quando nos diz que se trata de “uma experiência pré-cognitiva, sensorial, uma experiência que se abre através da percepção sensorial” e que “abre um mundo através do puro sentir; permite que o mundo se revele”, ela se constitui na relação com o mundo (Østergaard, 2017, p. 574, tradução nossa). Nela “não há distinção entre o objeto e eu e, como tal, a experiência estética é de ser-no-mundo-com-os-outros” (Østergaard, 2017, p. 569, tradução nossa). Buscou-se, com a peça teatral, instigar os alunos a buscar por perceber, interpretar para compreender suas experiências, suas existências, tradições e cultura científicas. Além disso, as experiências dos alunos fomentaram a realização de um diálogo fundamentado a respeito do tema abordado. Assim, as compreensões não se limitam ao “dualismo cartesiano” (Dahlin, 2001), mas em uma re-reversão ontológica com o mundo no qual se insere a Química.
Ainda naquela disciplina de Educação Química, uma das aulas iniciou com a projeção de uma imagem de uma vela com duas pontas acesas, algo que nos causou estranheza por ser uma imagem nada habitual. Após um tempo de observação/contemplação e descrição daquele objeto, os alunos foram organizados em grupos. A intencionalidade era descrever a imagem como eles a percebiam e depois tentar imitá-la. Isso porque a “imitação consiste justamente em que vejamos naquele que representa o que é representado” (Gadamer, 2010, p. 18), entretanto, “o modo no qual o reconhecimento se realiza enquanto o conhecimento do verdadeiro não é o modo da diferenciação entre a representação e aquilo que é representado, mas o da não diferenciação, da identificação (idem). Ao perguntar como a imagem se apresentava, vários adjetivos foram atribuídos a ela: estranha, esquisita, diferente, engenhosa, legal, etc. Reproduzi-la possibilitou questionamentos e intensos diálogos entre os grupos. Várias ideias surgiram de como confeccionar, mas ninguém conseguiu reproduzir a imagem com exatidão, afinal as percepções e interpretações de cada indivíduo eram diferentes. O desafio foi perceber na vela seu formato, tamanho e buscar meios para tentar imitá-la a partir das percepções que se mostravam naquelas experiências.
O caso da vela de duas pontas acesas, iniciou com percepção e descrição de uma imagem e depois sua interpretação. No entanto, mesmo após muitas tentativas, ninguém conseguiu fazer exatamente igual. A experiência estética possibilitou perceber a limitação de fazer uma imitação idêntica ao objeto experienciado. Isso evidencia a finitude humana, o que Gadamer (2015) denominou por “consciência histórica”. Os estudantes passam a notar que o objeto tem uma existência que independe daqueles que o interpretam, sendo impossível dominá-lo, ou seja, um afastamento do “dualismo cartesiano” (Dahlin, 2001).
O contato com uma obra de arte exemplifica nosso próprio modo de ser-no-mundo, principalmente, quando esta obra nos estranha (Sousa; Galiazzi, 2019). Quando algo nos causa estranheza é preciso que olhemos mais atentamente para que possamos perceber como ela realmente se mostra. Essa aula possibilitou experiências como “emoção, surpresa, estranhamento e desacomodação” (Ferraro, 2017, p. 110). Na Educação Química, a imagem da vela possibilita experienciar a partir das pré-compreensões do aluno, da sua relação com o outro e da cultura a qual está enraizado (Østergaard, 2017). As experiências vividas pelos alunos são fundamentais, pois a imitação da imagem precisa tanto de habilidades científicas quanto de atitudes estéticas quando diante do fenômeno experienciado multissensorialmente e corporalmente. Em um educar em Química fenomenológica, centramos no “educar com cuidado” e em uma “liberdade de agir” (Martins, 1992), para que o aluno vivencie experiências e perceba o mundo a partir do contexto sócio-cultural que está inserido.
A Educação em Ciências, especialmente, a Educação Química, ainda se mantêm alicerçadas em algumas problemáticas, como o dualismo cartesiano, a matematização da natureza, a purificação galileana, o cognitivismo e a reversão ontológica. Eles acabam por não considerar as experiências dos alunos na percepção e interpretação de si e do mundo. Com a finalidade de buscar maneiras alternativas para contornar essas problemáticas, apresentamos a proposição de pensarmos um currículo fenomenológico no âmbito educacional com repercussões para a Educação Química.
Uma Educação Química alicerçada na Fenomenologia nos leva a entendermos as experiências como orientadoras do currículo como poíesis do ser e estar no mundo implicado com as “coisas” da Química que repercutem em nossa existência. Isso implica em considerarmos as experiências vividas pelos alunos pela via da sensibilidade estéticas ao termos como intencionalidade provocarmos a percepção e a compreensão do mundo lido sob as lentes da Ciência Química. O currículo fenomenológico oportuniza que o professor e o aluno tenham liberdade de agir à medida que desenvolvem atitudes estéticas possibilitando, assim, uma maior compreensão da existência de si, dos objetos, cultura e tradição científicas, e, por consequência, do mundo. Trata-se, portanto, de educarmos para a atenção ao mundo que experienciamos, à medida que nos implicamos esteticamente e eticamente em uma relação de reconhecimento de si e do outro.