Dossiê: Alternativas Pedagógicas e Prospectivas Educacionais na América Latina

Recepción: 22 Marzo 2022
Aprobación: 03 Abril 2022
DOI: https://doi.org/10.17058/rea.v31i1.17482
Resumo: Este artigo apresenta o Mapeamento de Práticas Tradicionais de Cuidado e Cura realizado no Quilombo de Mata Cavalo situado no município de Nossa Senhora do Livramento/MT que visa resgatar e salvaguardar saberes e práticas ancestrais ligadas aos ofícios de cuidado e cura, por meio de um processo formativo a partir de oficinas presenciais. Buscamos aqui refletir acerca dos saberes vinculados a tais práticas, numa perspectiva da educação não escolar desde os saberes culturais. É uma pesquisa de cunho qualitativo, situando-se metodologicamente no bojo da Educação Popular, considerando a sabedoria das vivências e os saberes da experiência.
Palavras-chave: Saberes da experiência, Educação popular, Educação não escolar, Medicina Popular.
Abstract: This article presents the Mapping of Traditional Practices of Care and Healing carried out in the “Quilombo de Mata Cavalo” located in the county of Nossa Senhora do Livramento/MT. The project aims to rescue and safeguard ancestral knowledge and practices linked to the crafts of care and healing, through a training process based on face-to-face workshops. We also seek to reflect on the knowledge linked to such practices, in a non-school education perspective from cultural knowledge. It is a qualitative research, placing itself methodologically within the scope of Popular Education, considering the wisdom of experiences and the knowledge of experience.
Keywords: Knowledge of experience, Popular education, Non-school education, Folk medicine.
Resumen: Este artículo presenta la Cartografía de Prácticas Tradicionales de Cuidado y Curación realizado en el Quilombo de Mata Cavalo ubicado en el municipio de Nossa Senhora do Livramento / MT, que tiene como objetivo rescatar y salvaguardar conocimientos y prácticas ancestrales vinculadas a los oficios de cuidado y sanación, a través de un proceso formativo basado en talleres presenciales. Buscamos aquí reflexionar sobre los saberes vinculados a tales prácticas, en una perspectiva de educación no escolar desde los saberes culturales. Es una investigación cualitativa, situándose metodológicamente en el ámbito de la Educación Popular, considerando la sabiduría y los saberes de la experiencia.
Palabras clave: Saberes de la experiencia, Educación popular, Educación no escolar, Medicina Popular.
INTRODUÇÃO
A Medicina Popular tem suas raízes nas práticas de cuidado e cura do povo, podendo variar de acordo com a região onde é realizada. Ancestralmente, os processos de cuidado e cura estão vinculados a uma vida plena, que tem a ver não com doenças, mas com uma existência digna, alegre e comunitária. Segundo Oliveira (1985a, p. 8),
A Medicina Popular é realizada em diferentes circunstâncias e espaços (em casa, em agências religiosas de cura) e por várias pessoas (pais, tios, avós), ou por profissionais populares de cura (benzedeiras, médiuns, raizeiros, ervateiros, parteiras, curandeiros, feiticeiros). Nesta perspectiva, a Medicina Popular é uma prática de cura que oferece respostas concretas aos problemas de doenças e sofrimentos vividos no dia-a-dia.
Assim, a medicina popular percebe o ser humano de forma integral e não em partes. Além de não sermos divididos em partes, somos integrados com o planeta, com nossa espiritualidade, com nossos sentimentos, com os outros seres com quem compartilhamos a produção da existência, com os costumes e a cultura e com a Mãe Terra.
Las cosmovisiones moderno-desarrollistas, por el contrario, entienden a la salud desde la patología, como la ausencia de enfermedad. Esta diferencia ontológica insta a las voces em resistencia a reafirmar el control sobre el ejercicio de la sanación para que no siga siendo desde esta perspectiva. En primer lugar, porque esta lógica occidental concibe a la salud como un servicio que se practica dentro de una facilidad lejos de la selva, impidiendo la conexión holística entre la persona “enferma” y la naturaliza para poder curarse. En segundo lugar, porque fomenta el uso de remedios farmacológicos que únicamente abordan las sintomatologías físicas. Finalmente, se refiere a los padecimientos de las personas con denominaciones exógenas que imposibilitan que los médicos ancestrales los reconozcan con exactitud. (PÉREZ, 2017, p. 80)
É nessa perspectiva que buscamos apresentar o mapeamento das práticas da Medicina Popular, aqui chamadas Práticas Tradicionais de Cuidado e Cura, no Quilombo de Mata Cavalo, município de Nossa Senhora do Livramento/MT. Ali sua importância não está restrita à cura de enfermidades em si, mas ainda à ancestralidade e história do Quilombo, à partilha de saberes e fazeres, à fé e à dádiva.
O Quilombo de Mata Cavalo está localizado a cerca de 50 km da capital de Mato Grosso, Cuiabá, na Baixada Cuiabana, sendo seu bioma predominante o Cerrado, embora esteja em zona de transição para o bioma Pantanal. Desde 1930, mas de forma mais intensa durante os governos do regime militar, a região vem sendo ocupada de forma crescente, já que o Cerrado, de berço de vida para as diversas populações tradicionais que ali habitam ancestralmente, passa a ser divulgado como terra fértil para o agronegócio, promovendo uma relação bastante danosa com a terra, onde se apaga seu valor de uso e sobressai seu valor de troca. Silva; Jaber (2014), a partir de pesquisas realizadas na Comunidade de Mata Cavalo, refletem sobre o impacto da pecuária extensiva na região do Quilombo:
A substituição de áreas de Cerrado para pecuária extensiva é vista como uma forte ação responsável pela descaracterização ambiental e cultural. Muitos dos serviços ecossistêmicos, anteriormente, desfrutados pelos quilombolas, não estão mais disponíveis, devido às extensas áreas desmatadas. As palmeiras de babaçu, bacuri, buriti, bocaiúva sempre muito abundantes na região estão se tornando escassas, são consideradas por eles espécies de vegetação importantes, tanto como alimento como para construção de suas casas e perpetuação de seu modo de vida singular. (SILVA; JABER, 2014, p. 11)
Convivendo com latifúndios, via de regra de maneira conflituosa, povos originários e comunidades tradicionais sofrem o impacto de tal contradição: a terra do agronegócio, ao invés de produzir alimentos para o povo, semeia a fome e a violência, espolia e expulsa populações inteiras de seus territórios (a partir de múltiplas estratégias), forçando o êxodo de parcela dessa população camponesa para os centros urbanos, intensificando assim, o processo de concentração fundiária.
Nesse cenário de contradições, a população quilombola de Mata Cavalo re-existe1, constituindo e consolidando seu território pela força da tradição ancestral, da identidade quilombola e da luta de suas lideranças. Dentre as formas de re-existir no território, ressaltamos a prática da Medicina Popular, por ser significativa em Mata Cavalo. A sabedoria ancestral presente na Medicina Popular é repassada de geração em geração, sendo que a cada geração e de acordo com as vivências e o contexto histórico, adaptações e novas descobertas vão sendo feitas. Buscamos aqui apresentar o mapeamento das práticas de cuidado e cura de Mata Cavalo para, a partir dele, compreender e evidenciar as formas de aprender, ensinar e atualizar tais ofícios. Percebemos que essa prática de cuidado e cura pressupõe o diálogo e o respeito à ancestralidade, às divindades e à natureza, num processo de produção e compartilhamento de saberes complexos a partir dos saberes da experiência2.
A realização do mapeamento faz parte do projeto de extensão “Conhecimentos tradicionais e o direito de reconhecimento de benzedeiras e benzedores do Quilombo de Mata Cavalo/Nossa Senhora do Livramento”, submetido à FAPEMAT – Fundação de Amparo à Pesquisa em Mato Grosso, por meio do Edital 003/2021 Extensão Tecnológica, Conhecimento à Serviço da População. O projeto, desenvolvido por integrantes do GEPTE (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação) vinculado ao PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação) da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), teve início em junho de 2021, com duração prevista de 12 meses, e objetivava, inicialmente, resgatar e salvaguardar saberes e práticas ancestrais ligadas ao ofício da benzeção, por meio de um processo formativo a partir de oficinas presenciais na comunidade de Mata Cavalo. Para tanto, inicialmente, previu-se a realização de um mapeamento das benzedeiras e benzedores da localidade. No transcorrer dos diálogos no processo de mapeamento, percebemos a necessidade de ampliação para as distintas práticas de cura e cuidado, passando a abranger, além das já citadas benzedeiras e benzedores, garrafeiros e garrafeiras, erveiros e erveiras, pais e mães de santo, fazedores e fazedoras de chás e outras beberagens, raizeiros e raizeiras, e outras denominações que elas e eles fossem identificando ao longo do mapeamento.
SABERES CULTURAIS, SABERES DA EXPERIÊNCIA
O mapeamento das práticas de cuidado e cura em Mata Cavalo se ocupou dos saberes culturais que se situam no âmbito do ofício da benzeção, raizadas, garrafadas, chás e outras beberagens, que remetem aos saberes ancestrais, tradicionais, populares e da experiência. Assim, entendemos os saberes enquanto conhecimentos gestados a partir de um contexto e uma prática social e cultural.
Para Albuquerque; Sousa (2016), “Se todo conhecimento é uma forma de saber, nem todo saber pode ser considerado como conhecimento de natureza científica. Portanto, para além do conhecimento científico existem saberes que se inscrevem em outros critérios de inteligibilidade do real, não necessariamente estabelecidos pela ciência moderna [...].” (2016, p. 231 e 232).
Desde uma perspectiva da educação dos saberes, percebemos que em todos os espaços há uma construção de sentidos e significados. Como todo agir humano, esses saberes estão ligados a contextos culturais e costumes vinculados ao cotidiano que diferentes povos e grupos experienciam na produção de suas existências.
A partir da noção de costumes, Thompson (2005) sugere que estes marcam a própria produção da vida: se é no cotidiano que se desenvolve a experiência da vida, os costumes comuns estão carregados de sentidos. Para o autor, o costume está em fluxo contínuo; se constrói a partir das contradições, inflexões, relações ou falta de relações entre as classes; é um campo para a mudança e a disputa; mas não pode ser percebido como um conjunto harmônico de regras e normas que regem uma determinada classe, que se subordina a ela. É, antes,
um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um “sistema”. E na verdade o próprio termo “cultura” com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. (THOMPSON, 2005, p. 17)
Entendemos, assim, que os saberes gestados na dimensão dos costumes terminam por diferirem de sociedade para sociedade, de uma geração à outra, em função de que determinados grupos buscam soluções diferentes para questões de seu tempo, mas trazendo o aprendizado de seus antepassados em sua memória e na sua ancestralidade. “As práticas e as normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares” (THOMPSON, 2005, p.18)
Se os saberes são históricos e, portanto, sujeitos à mudança, para Albuquerque; Sousa (2016), os chamados saberes populares baseiam-se em práticas que podem produzir conhecimentos para o desenvolvimento da vida, seja em atividades cotidianas, seja em questões de maior complexidade. Percebe-se, assim, que os saberes não estão relacionados a uma dimensão menos complexa da produção da vida. “Desse modo, fundamenta-se na empiria, no experimentalismo e na observação direta e nela repousa a sua validade.” (ALBUQUERQUE; SOUSA, 2016, p. 236)
Entendemos que a sabedoria presente nos processos de cuidado e cura da Medicina Popular opera em maior nível de complexidade, já que, embora também se estabeleça social e culturalmente em função do reconhecimento social da população à qual tal saber se direciona, prescindindo ainda das percepções ligadas à dimensão local (fauna e flora, contexto sociocultural, ancestralidade, sabedoria local, doenças específicas da localidade, conflitos com o Capital, entre outros) este saber não pode ser apropriado por qualquer morador ou moradora, por mais que estejam ligados à comunidade. É o que Albuquerque; Sousa (2016, p. 236) percebem enquanto saber como elaboração ou sabedoria popular a qual “também pode transcender os hábitos da empiria e da instrumentalidade convertendo-se em um campo autônomo estruturado logicamente.”
Estes saberes não se confundem com os saberes escolarizados, estruturados a partir de outras lógicas. A forma de transmissão desses saberes também não implica necessariamente um gesto de ensino. “Trata-se muitas vezes de um aprender solitário, ou um aprender com ninguém”. (ALBUQUERQUE; SOUSA, 2016, p. 239).
Nesse processo de aprendizado das vivências é que percebemos os saberes vinculados à Medicina Popular. Dada sua especificidade, abordaremos a seguir brevemente sobre um processo de cura e cuidado bastante comum em Mata Cavalo: a benzeção.
SABERES DE BENZEDEIRAS E BENZEDORES: O ELO ENTRE O SAGRADO E A CURA
A benzeção é uma prática da medicina popular que se realiza por meio de uma relação entre a pessoa que benze e a que está sendo benzida. Nessa relação, a benzedeira ou benzedor exerce um papel de intermediação com o sagrado, por meio do qual tenta obter a cura; em geral, se utiliza de alguma prece, ramos, ervas, chás e outras beberagens, além de objetos específicos de acordo com o tipo de benzeção (brasa, tesoura, lenço, vela, garrafa de água). Conforme Andrade,
[...] a história da humanidade aponta que o cuidar e curar sempre estiveram presentes nas diferentes dimensões do processo de viver, adoecer e morrer, mesmo antes do surgimento das profissões. A Benzedura, é a cura de diversos males através de rezas e orações, ramos verdes, remédios naturais, rituais de cura, entre outras formas. Está presente em todo território brasileiro, são práticas ligadas às religiões e a modos de fazer tradicionais de cada região, podendo assumir diversas formas, mas todas facilmente reconhecidas sob o título de benzeduras. (ANDRADE, 2019, p. 20)
Para Oliveira (1985a, p 78), “todas as pessoas que lidam com doenças e curas da população, ao prestarem seus serviços de saúde, reproduzem o seu modo de viver”. As práticas populares de cuidado e cura constituem-se, assim, em espaços de re-produção de modos de existência por meio de saberes e fazeres comunitários, solidários, populares e totalmente acessíveis a quem quer que seja, constituindo suas práticas de acordo com a memória e a materialidade.
Assim como toda prática social, a benzeção se ressignifica e se modifica, ganhando sentido apenas na medida em que se articula com a concretude da vida.
Cada benzedor tem a sua própria forma de benzer, porque a cada um foi dado um dom para curar. Um dom que se traduz na fé, aprendida com seus antepassados e de onde aprenderam a ver o mundo que os cerca. Rezadores, benzedores e curadores estabelecem com a comunidade um sistema próprio de comunicação que está além da comunicação oficial da mídia de massa, através de seus cantos, gestos, rezas e orações, que refletem vigorosamente a mais pura expressão das classes menos cultas e mais carentes da população. (NERY, 2006, p. 2)
Ao estabelecer sua relação com o sagrado, benzedeiras e benzedores criam um sistema de trocas com essas divindades; tais trocas não necessariamente resultam em bem materiais, o que termina por lhes restar um modo de vida comumente humilde.
Os presentes em forma de alimentos (mel, melado, cerveja caseira, feijão crioulo, ovos caipira, galinha caipira, leite, manteiga, doces de frutas), mudas e sementes (plantas medicinais, alimentícias e florais), roupas, calçados, utensílios domésticos (pano de prato, toalha de banho, potes de plástico), artigos religiosos (velas, terços, livros, imagens de santos), lenha e palha; e os serviços como trazer lenha, dar caronas, fazer favores que concernem em entregar recados, buscar e trazer coisas, estabelecem reciprocidade entre benzedeiras e visitantes. Ação conformada pelo dar e receber, que extrapola a transação do benzimento, sendo uma regra que integra o modo de vida das benzedeiras e de suas comunidades. (LEWITZKI, 2019, p. 44)
Em Mata Cavalo, foram mapeados 15 benzedores e benzedeiras, e em cada história de vida percebemos especificidades e muitas convergências nas formas de aprendizado do ofício, nas plantas e objetos utilizados na benzeção, nas rezas e religiões praticadas. A principal convergência observada está numa frase quase sempre repetida: quem cura é Deus. É o que nos conta Dona Estevina: “Entrego na mão de Deus, pra Deus curar a pessoa que tá precisando curar, se curar. Enquanto existe vida que a pessoa precisar de mim minha fia, Deus vai curar a pessoa. Mais eu num quero dinheiro não.” (Dona Estevina, benzedeira e raizeira, 61 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021).
Imbuídos do dom, não são capazes de negar a cura a quem quer que seja, sendo essa uma missão divina: “Não cobro! Eu benzo é mesmo por gostar de fazer o bem pras pessoas.” (Dona Berenice, benzedeira, 64 anos, entrevista realizada em 05/10/2021). Dona Paulina também explica essa relação ética que ela estabelece com a dor e a cura.
Eu nunca cobrei, nem falo e falo que também num vô cobrar porque nós tá benzendo, as vezes trás uma criança, (...) então se nois cobrar aquela benzeção a mãe falava isso prá mim, falou pra mim antes dela morrer ela falou assim ‘aqui se ocê cobrar uma benzeção nois tá cobrando dor dos outros’... Então sabe pá benzer num é prá cobrar né? Ou será que dinheiro dessa dessa benzeção vai fazer o que né?! (Dona Paulina, benzedeira, 70 anos. Entrevista realizada em 06/10/2021)
Essa fé leva à compreensão da naturalidade com que afirmam não cobrar pelas benzeções, já que isso as torna intermediárias do processo de cura. Assim, cobrar pelos benzimentos seria como agenciar a cura divina. Se reconhecendo como portadores e portadoras de um dom divino, seguem oferecendo a cura e realizando uma espécie de intermédio, por meio de orações e pedidos de bênçãos a Deus e a santos e santas de sua devoção, que também podem ser específicos de acordo com o tipo de mal para o qual buscam cura: “É.. tem que ser, a devoção com o santo né. Tendeu? O valor da benzição… Pá cobra é São Bento. Porque livra dos, dos bicho peçonhento. Primeiramente Deus e São Bento.” (Seu Arnaldo, benzedor, 72 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021).
Por mais que haja uma diversidade de plantas e objetos utilizados no benzimento, além de diferentes santos e santas de devoção, o processo de cura por benzimento é singular, tendo como eixo a religiosidade que liga o benzedor ou benzedeira à sua santidade/divindade de devoção, além de uma relação de reciprocidade com a cura. Segundo Oliveira (1985b, p. 9),
A bênção é um veículo que possibilita a seu executor estabelecer relações de solidariedade e de aliança com os santos, de um lado, e com os homens, de outro, e entre ambos simultaneamente. A bênção é então um instrumento pelo qual os homens produzem serviços e símbolos de solidariedade para si e para sujeitos da classe social da qual fazem parte. E, na maioria das vezes, eles produzem bênçãos através da religião a que pertencem.
Sousa; Albuquerque evidenciam o caráter de legitimidade que a medicina popular possui entre os sujeitos históricos que dela desfrutam:
Ainda que relegada, em alguns momentos, a um status marginal perante o saber científico, a medicina popular no tempo presente permanece operando no interior da sabedoria popular e erudita. Isso evidencia o caráter de legitimidade que a medicina popular possui entre os sujeitos históricos que dela desfrutam nas sociedades. (SOUSA; ALBUQUERQUE, 2018, p. 4)
Assim, por meio desses processos e desses saberes complexos, tais sujeitos experienciam, no cotidiano, e dão sentido às suas existências. São – entre outras tantas - formas de interpretação da realidade e de re-existência.
MAPEANDO PRÁTICAS DE CUIDADO E CURA: UMA COSMOLOGIA DE SABERES RE- EXISTENTES
A impossibilidade da presença física de pesquisadores na comunidade durante o primeiro semestre e parte do segundo semestre de 2021, em função da Pandemia de COVID-19, fez com que optássemos por realizar as atividades de busca e identificação de práticas de cuidado e cura, inicialmente, de forma remota, pela colaboração da professora Lucilene, do agente de saúde local, seu Edson, e por meio de duas bolsistas vinculadas ao projeto, moradoras da comunidade. Em sua etapa presencial, a partir do mês de outubro de 2021, foi construído a partir da autoidentificação, alimentada através de visitas em domicílio, onde se estabeleceu conversas e entrevistas gravadas, e por meio de subsídios gerados pelas oficinas previstas no projeto.
Ao longo do processo de mapeamento em Mata Cavalo foram localizados, inicialmente, 14 benzedores e benzedeiras, raizeiros, raizeiras, garrafeiros e garrafeiras, pais de santo e fazedores de chás: Rosa Maria Campo Silva (Benzedeira); Paulina Rosaria de Pinho (Benzedeira); Pedro Gonçalo de Medeiros (Benzedor); Emiliano Venâncio de Campos (Benzedor); Lúcia Conceição de Arruda Almeida (Benzedeira e Chás); Maria Verônica Raldi (Benzedeira e Raizeira); Sizernando (Nezinho) (Benzedor, Pai de santo, raizeiro e garrafeiro); Maria Nailza (Raizeira e garrafeira); Maria Pinto Moraes (Chás e garrafadas); Berenice Lemos do Espírito Santo (Raizeira); Lúcia Felicidade de Pinto (Raizeira); Edwiges Severina de Pinho (Garrafeira); Ana Maria da Silva Reis (Raizeira e garrafeira); Cecília Maria de Pinho (Raizeira).
A partir de outubro, com o esquema vacinal completo (tanto o nosso, com duas doses, quanto a da comunidade, com 3 doses), iniciamos as caminhadas pela comunidade, para aprimorar o mapeamento. Passamos a contar com o auxílio do agente de saúde da comunidade, seu Edson. A partir das conversas com ele, ampliamos o número de moradores e moradoras que se dedicam às práticas de cuidado e de cura, e alguns deixaram de compor o mapeamento (Dona Rosa Maria se mudou da comunidade e seu Pedro faleceu antes de nos encontrarmos com ele).
Visitamos, entre os dias 04 e 07 de outubro de 2021, 22 pessoas:
1. Dona Paulina Rosária de Pinho – benzedeira;
2. Dona Lúcia Felicidade – raizeira e chás;
3. Dona Cecília Maria de pinho – raizeira xaropes e chás;
4. Dona Maria Verônica (gaúcha) – benzedeira, raizeira e chá;
5. Dona Estevina - raizeira e benzedeira;
6. Dona Vanilza Moreira da Silva (Samara) – benzedeira;
7. Dona Maria Pinto Morais (Maria do Chá) – chás e garrafadas;
8. Maria Nailza – xaropes, pomadas, sabonetes, raizeira e garrafeira;
9. Dona Berenice Lemos do Espírito Santo – Benzedeira;
10. Dona Sebastiana Moreira da Silva – benzedeira;
11. Seu Mizael – garrafeiro;
12. Seu Ozenil Martins do Santos – benzedor;
13. Dona Ana Maria da Silva – garrafeira;
14. Dona Jacira garrafadas, raizeira, erveira;
15. Dona Lúcia Conceição – benzedeira e chá;
16. Sizernando – Seu Nezinho – benzedor, pai de santo, garrafeiro, raizeiro;
17. Seu Emiliano Venâncio – benzedor;
18. Dona Paulina Martins de Jesus – benzedora;
19. Seu Clemêncio Ferreira de Jesus – benzedor; faz lambedor;
20. Seu Arnaldo Rosa de Arruda – benzedor, raizeiro e garrafeiro;
21. Dona Carmem Rosa da Silva – benzedeira;
22. Dona Antônia – benzedeira e garrafeira.
Ao longo do processo de validação do mapeamento, iniciado na oficina de 23/11/2021, algumas alterações ainda aconteceram: Dona Carmem, benzedeira, se mudou da comunidade e Dona Ana Maria, que faz garrafadas, não quis mais compor o mapeamento, por questões pessoais ligadas à sua nova religião.
Refletimos que o processo de autoidentificação, quando realizado em grupo, potencializou os sentidos e os sentimentos com relação a seus saberes. É o caso de dona Estevina, que somente se identificou como benzedeira no primeiro encontro coletivo, na oficina sobre o Trabalho Coletivo, ministrada pelo professor Edson Caetano. Até então, ela se identificava como raizeira. Quando as outras ouviram que ela não se declarou benzedeira, já foram logo chamando a atenção dela: Estevina benze, e benze bem! Aparentemente sentindo-se orgulhosa pelo reconhecimento, ela então confirmou, que além de raizeira e garrafeira, era benzedeira.

Após a autoidentificação e localização (de foma coletiva), visando tornar o mapa acessível e esteticamente vinculado às vivências pessoais/sentimentais dos sujeitos, optamos por bordá-lo e só então digitalizá-lo.

“E ENQUANTO VOCÊ REZA, VÁ FAZENDO3”
Dentre as pessoas mapeadas, observa-se algumas formas de se desenvolver o dom e também de aprimorá-lo. Ao longo do processo de mapeamento, nas conversas e entrevistas, pudemos ouvir relatos de pessoas que se descobriram benzedeiras benzendo. É o caso de uma criança da comunidade, neta de uma raizeira, sobrinha-neta de outra benzedeira, bisneta de parteira. A avó percebe a criança como benzedeira, embora ela não a tenha ensinado. São as sabedorias das vivências, conforme Albuquerque; Sousa (2016), do “Aprender de ninguém, aprender olhando ou por influência”. Nascida entre benzedeiras, criou-se como uma observadora aprendente, ativa. Já conhece as plantas de chás, os gestos das orações, as rezas que curam, a postura de benzedeira.
Percebemos que os saberes vinculados às práticas tradicionais de cuidado e cura possuem grande elaboração e complexidade, e em geral seus detentores são aquelas e aqueles que receberam o dom (habilidade) de alguém (um familiar/amigo, um ente da natureza, uma divindade). Isso pode acontecer de forma intencional, como um gesto de ensino, ou pelo convívio e pela observação, em geral desde a infância. O dom ou poder para a cura pode ser revelado de diferentes formas (um sonho, uma conexão com o sagrado ou com a natureza, uma percepção por parte de outro detentor ou detentora de saberes que nota tal habilidade na pessoa). É assim que dona Samara, uma das benzedeiras mapeadas, entende essa relação com os saberes:
Cada um tem um dom. Né? Então Deus já deu aquele dom prá cada um de nós, né? Então todos têm um, uma grande importância né. Mas eu nunca olhei por esse lado. Acho que quando a gente benze uma pessoa a gente tá ali conectado com a natureza, com deus primeiramente e a natureza, né e é Deus que faz, a gente só é instrumento dele, né então assim, nós a gente só segue aquilo que Deus coloca no nosso coração, né. Então eu tive esse privilégio aí né de de ganhar essa bênção de deus. (Dona Samara, benzedeira e raizeira, 60 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021)
Saber ouvir os desígnios de Deus e da natureza é uma habilidade destacada entre aqueles e aquelas que se ocupam do ofício de cura e cuidado. Ter ouvidos e sensibilidade para o que a natureza e o sagrado ensinam é um saber fundamental. Além disso, mesmo diante de tanta sabedoria e poder de cura, observa-se a necessária humildade: apequenar-se diante de Deus e da natureza, já que são eles que curam. Foi a lição que seu Ozenil aprendeu com o senhor que lhe ensinou o ofício da benzeção: “Ele falou assim prá mim: olha, quem for procurar o senhor prá benzer, senhor fala que não é o senhor que vai benzer, quem vai benzer é Deus, né. Tenha fé em Deus. Aí assim eu fazia. Aí tudo que eu benzia, tudo fica bom.” (Seu Ozenil, benzedor, 59 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021). Também é o que nos explica Dona Samara, que aprendeu a benzer com seu pai.
(...) tudo o que a gente faz, o que eu faço é crer em Deus, porque ele é o nosso mestre, né. Sem ele nós não somos nada não é verdade? É, ele é o médico dos médicos, ele é o benzedor dos benzedores, né? Então é o que a gente faz é buscar muita fé nele e colocar isso em prática e graças a Deus daí prá cá sempre as pessoas pedem ajuda e a gente nunca pode falar não, e eu falo não prá ninguém né. Então é uma coisa assim muito boa, gostosa né de você se sente bem, poder ajudar uma pessoa que chega com dor né, e infelizmente não são todos médicos que conhecem né. (Dona Samara, benzedeira e raizeira, 60 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021).
Seu Clemêncio, que além de benzer faz lambedores, explica assim sua relação com Deus no processo de cura: “Num é eu, é Deus, Deus que tem que… eu peço pra ele. (risadas) É ele que dá o dom. Muitos falam: ‘- É eu!’ Eu não, eu num sou ninguém. (risos) Quem dá é ele. Então eu falo pr’ocê que eu tenho a confiança no que eu falo pr’ocê. (Seu Clemêncio, benzedor, 76 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021). Quando ele me afirma que ele tem confiança no que fala prá mim, ele se refere à confiança de quem está guiado pelo divino. Seu Clemêncio não teve intermediários em seu processo de aprendizagem da benzeção. Segundo ele, recebeu o dom diretamente de Deus. Nesse trecho de nossa conversa ele explica:
- Seu Clemêncio, é, o senhor é benzedor né? O senhor faz orações pelas pessoas, ora pra Deus né, pra Deus dar a cura né…
Ah, oro sim.
- Com quem que o senhor aprendeu benzer? Eu?
- É!
Não… ?? Deus que me deu essa inclinação pra mim.
- Deus que deu.
É, Deus que me deu. Ninguém me ensinou, foi providência divina. (Seu Clemêncio, benzedor, 76 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021)
Eles e elas são instrumentos, não passivos. Pelo contrário: há um gesto intencional de aprender e um gesto intencional de manter-se no ofício. Não é como um milagre de fé: há que se considerar a materialidade e a intencionalidade com que tais sujeitos atuam nos processos de cuidado e cura. Seu Clemêncio, mesmo tendo recebido o poder de cura para realizar benzeções, nos afirma que sempre tem que estudar: “Aí duns tempo pra cá eu vim assim analisando porque hoje quem num estuda num aprende nada né?!” (Seu Clemêncio, benzedor, 76 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021). Geralmente esse desejo de aprender o ofício aparece ainda na infância, por meio da observação ativa.
Olha quem me ensinou eu benzer foi a minha vó. Eu era criança ainda, mais eu era curiosa demais. (...) O remédio ela me ensinou, prá rancar as raiz, eu, nois, ficava tudo era curiosa ia junto com ela, aí ela falava ‘isso aqui é bão prá tal coisa, isso aqui é bão prá tal coisa’ ai assim… depois eu falei, eu vou sozinha, o trem é bão prá mim memo, eu já fazia pras minha criança quando eles casaro que ganhou criança tudo eu sempre memo que faço o remédio pra eles. (Dona Paulina, benzedeira, 70 anos. Entrevista realizada em 06/10/2021)
Seu Ozenil também relata ter sido uma criança curiosa, e que por meio da curiosidade foi aprendendo o ofício da benzeção com um outro benzedor:
(...) foi assim: eu trabaiava numa fazenda, aí ele morava lá nessa fazenda né. Aí um dia... aí nós tava lá a criançada brincando ele tinha uns moleque lá tamém, aí meu tio tava com dor de dente. Aí ele tava benzeno e eu tô ali olhando ele, né, curioso... (risos). Aí foi ino ele perguntou prá mim se eu queria aprender benzer. Aí eu fui, falei prá ele que queria né? Aí com isso ele foi me ensinando, foi me ensinando, aí aprendi. É. Eu aprendi. (Seu Ozenil, benzedor, 59 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021)
Dona Samara aprendeu a benzer com seu pai, ainda na infância. Além de ensinar, é preciso que o benzimento funcione, que cure aquilo a que se propôs.
Então assim, meu pai ele, ele benzia. Ele não era assim aquele benzedooor que tinha aquela obrigação de todos os dias tá ali, mas ele nunca falou não prás pessoas que chegavam em casa pedindo né o conhecimento dele. E com isso é ele passou prá gente né. Aí ele passou prá mim e e um dia assim por ironia do destino não sei ou era a minha sina mesmo, eu acabei benzendo meu próprio pai né, (risos) que ele mesmo que me ensinou. E aí um dia ele passou prá mim essa missão de benzer ele. E graças a deus funcionou, deu certo. (Dona Samara, benzedeira e raizeira, 60 anos. Entrevista realizada em 05/10/2021)
Obviamente, não é necessário um certificado que resulta do aprendizado dos saberes. A legitimidade está na prática, nas vivências. Se um processo de cura não deu certo, se não resultou em melhora, ele não será legitimado pela comunidade. Para Oliveira,
O processo de produção e de legitimidade do seu ofício leva anos. Ele é um saber de práticas rituais, levado adiante por pessoas que possuem algum tipo de legitimidade na comunidade. Esse processo de conhecer é gerado em linguagem e forma simples, ricas e diretas. E para os seus iguais como um alguém de dentro da sua própria classe. Ele se dá dentro de um mundo vasto e inteiramente organizado, dividido internamente, habitado por símbolos e lógicas próprias. (1985b, p. 44)
Mas uma benzedeira não busca deliberadamente esse reconhecimento social, como uma missão.
O campo da eficácia simbólica na medicina das benzedeiras ocorre não apenas quando se dá a eliminação dos sintomas. Ele é muito mais amplo; ocorre quando elas trazem para dentro dele pessoas e problemas produzidos dentro da cultura popular, relativizando-a. Nesse ato, ainda que elas não saibam, inscrevem a eficácia social do seu ofício dentro de um marco próprio, revelador de uma dada intervenção no processo histórico-social. (OLIVEIRA, 1985b, p. 89)
Ouvimos de benzedeiras de Mata Cavalo que não sabem benzer mordida de cobra, porque, segundo elas, nessa benzeção não se pode errar. São raras as pessoas que benzem mordida de cobra. É uma especialidade bastante respeitada. Por outro lado, todas com as quais conversamos nos informaram quais pessoas realizam tal benzimento. Aqui reside outra dimensão fundamental aos saberes e aos costumes populares: a relevância da coletividade para a vivência da ancestralidade entre povos originários e comunidades tradicionais. Clara percepção de que a coletividade não apaga as individualidades (cada um e cada uma benze de acordo com o que sabe). “Assim, com base em uma epistemologia pragmática a pergunta mais significativa não é tanto aquela que se refere à verdade ou falsidade de um dado saber, mas, fundamentalmente, sobre o que eles fazem na vida e no mundo dos sujeitos envolvidos na experiência.” (ALBUQUERQUE; SOUSA, 2016, p. 248)
O processo de mapeamento em Mata Cavalo, além de localizar quem se ocupa do ofício de cura e de cuidado, dando uma dimensão da prática, os coloca ativamente no processo de reconhecimento social de seus ofícios. Concordamos com Silva; Jaber (2014), no tocante às identidades coletivas:
As lutas das comunidades quilombolas somam-se as lutas de uma gama de grupos sociais que trazem uma identidade étnica e defendem outra territorialidade, com seus diferentes modos de vida e diferentes significações dos territórios. É preciso saber ouvir as vozes destes grupos que tem projetos de vida e ocupação do território diferenciados da grande maioria hegemônica do capital. Mais que isso, é preciso dar voz a estes esquecidos do modelo implantado, para que estes sejam protagonistas fortalecidos na luta pela defesa de seus territórios, modos de vida e identidades. (p. 13)
Realizadas de forma participativa, as pesquisas que envolvem mapeamentos e autorreconhecimento junto a povos originários e comunidades tradicionais potencializam a luta comum pela garantia e ampliação dos territórios, fortalecendo a reivindicação de direitos a partir das identidades coletivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mapeamento de práticas tradicionais de cuidado e cura da comunidade de Mata Cavalo foi realizado de forma colaborativa, e a impossibilidade de nossa presença física na comunidade durante o primeiro semestre e parte do segundo semestre de 2021, fez com que optássemos por realizar as atividades práticas de busca e identificação de benzedeiras e benzedores, inicialmente, de forma remota, tendo sido essencial a colaboração da comunidade no processo. A etapa presencial do mapeamento ocorreu a partir de outubro de 2021, fundamentada na autoidentificação, através da realização de reuniões na “Casa de Cultura”, localizada na Escola Estadual Quilombola Tereza de Conceição Arruda. Os processos de cartografar esses saberes e práticas podem, além de contribuir para a visibilidade de diferentes sujeitos, promover reflexões e ações coletivas, servindo ainda de subsídios para a implementação de políticas públicas e projetos acadêmicos.
Ao finalizarmos essa etapa pudemos perceber a importância do engajamento e da autonomia dos sujeitos mapeados, que contribui com a validação do mapa pela comunidade. Acreditamos que o trabalho de forma associada contribui na autoidentificação e na heteroidentificação dos sujeitos, contribuindo ainda na partilha de saberes e fazeres. A percepção da vida de forma solidária e coletiva está ligada de forma orgânica aos saberes e práticas de benzedeiras e benzedores, e o que fizemos foi ressaltar tal aspecto e demonstrar sua indissociabilidade com relação a suas práticas.
A partir de nossas conversas, leituras e reflexões, percebemos nos saberes e fazeres de benzedeiras e benzedores características específicas, que se delineiam numa lógica re-existente e que revolucionam as formas com que os seres humanos se relacionam consigo mesmos, uns com os outros, com a natureza e com as divindades. O mapeamento visa ampliar e dar visibilidade aos saberes, demonstrando que a prática, embora ancestral, não está presa ao passado.
Cabe aqui ressaltar a relevância das agências de fomento à pesquisa e extensão universitárias, por meio da qual pudemos realizar nossa pesquisa de campo. Promover a salvaguarda e a divulgação de tais saberes não somente os protege, mas dá visibilidade e reconhece a importância de tais processos de cuidado e cura, ancestralmente relevantes para dar sentido à complexidade de existências de povos originários e comunidades tradicionais. Como pesquisadores, como produziremos essa síntese de tantas contradições que as práticas de representação cotidianas nos revelam? Respeitar as contradições e perceber a dimensão da produção de sentidos e de significados pode ser um caminho que contribua para a produção intelectual e para a produção social de conhecimentos.
REFERÊNCIAS
1. ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa; SOUSA, Márcio Barradas. Saberes Culturais. In.: ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; PACHECO, Agenor Sarraf (Org.) Uwakürü: dicionário analítico. Rio Branco: Nepan Editora, 2016.
2. ANDRADE, Adriane de. O Movimento Aprendizes de Sabedoria (MASA): tecendo territorialidades de cura na disputa por saberes comuns. Dissertação (Mestrado em Geografia). Setor de Ciências da Terra, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2019.
3. CAETANO, Edson; CABRAL, Cristiano Apolucena; BRITO, Flávia Lorena. Bem Viveres: possíveis significados, virtualidades e limites presentes na produção da existência dos Povos e Comunidades Tradicionais e Assentamentos. Revista da ABET, v. 19, n. 2, Julho a Dezembro de 2020.
4. LEWITZKI, Taisa. A vida das benzedeiras: caminhos e movimentos. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2019.
5. NERY, Vanda Cunha Albieri. Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé. Trabalho apresentado ao NP Folkcomunicação do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom (Anais). Brasília, 2006. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/lista_resumos.htm Acesso em 23/02/2022.
6. OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é Medicina Popular. São Paulo: Brasiliense, 1985a (Coleção Primeiros Passos).
7. OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é Benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985b (Coleção Primeiros Passos).
8. PÉREZ, Carmen Seco. Sumak Kawsay: ¿Concepto sagrado o instrumento? In.: LARREA, Carlos; GREENE, Natalia. Buen vivir como alternativa al desarrollo: una construcción interdisciplinaria y participativa. UASB Digital. Equador, 2017.
9. SILVA, Regina; JABER, Michele. Metodologias e itinerários do mapeamento social da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo, Mato Grosso, Brasil. In.: Encontro de Pesquisa em Educação da Região Centro-Oeste – Anped, 12, 2014, Goiânia, Anais..., Goiânia, 19 a 22 de Outubro de 2014. Disponível em: www.fe.ufg.br/nedesc/cmv/DocumentoControle.php (Acesso em 05/02/2022).
10. SOUSA, Marcio Barradas. ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Benzer, orar e educar: percursos de uma curadora da Amazônia. Educação em Revista. Belo Horizonte, n.34, 2018.
11. THOMPSON, Edward Palmer. Introdução: Costume e Cultura. In.: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2005.
12. WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y pedagogía de-colonial: In-surgir, re-existir y revivir. En P. Melgarejo (Comp), Educación Intercultural en América Latina. Memorias, horizontes históricos y disyuntivas políticas. México: Universidad Pedagógica Nacional, CONACIT, Editorial Plaza y Valdés, 2009. Disponível em: http://www.saudecoletiva2012.com.br/userfiles/file/didatico03.pdf. Acesso em: 23/02/2022.
Notas