Resenha de Tradução
Condé MPolesso N. B.. Eu, Tituba: bruxa negra de Salem. 2019. Rosa dos Tempos |
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Received: 08 April 2024
Revised document received: 22 November 2024
Accepted: 15 October 2024
Published: December 2024
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2024.e96093
Funding
Funding source: Capes
Contract number: 23067.036989/2024-04
Funding statement: Capes SEI 23067.036989/2024-04
A escritora guadalupense Maryse Condé talvez seja uma das autoras de expressão francesa mais prolíficas dos últimos anos, tendo escrito dezoito romances desde 1976 — ano de publicação de Heremakhonon, seu primeiro romance —, além de diversos ensaios, peças teatrais e livros voltados para o público infanto-juvenil. Algumas obras lhe trouxeram maior visibilidade, como a saga de Ségou, sem tradução no Brasil, dividida em dois volumes — Ségou, les murailles de terre, de 1984, e Ségou, la terre en miettes, de 1985 — que se tornou best seller e a colocou em lugar de destaque entre os escritores caribenhos. Mas foi Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem, de 1986, que lhe rendeu o primeiro de muitos prêmios literários, o Grand Prix Littéraire de la Femme.
Nesse romance, Condé cria, a partir dos poucos registros existentes, uma história para Tituba, mulher originária da ilha caribenha de Barbados, escravizada no século XVII, que, apesar de ter o nome envolvido em um episódio histórico bastante conhecido, o julgamento das bruxas de Salem nos Estados Unidos, em 1692, muito pouco se sabe sobre sua vida, principalmente após esse episódio. Ainda escravizada, foi vendida, mas para quem? Permaneceu nos Estados Unidos? Retornou para Barbados? Para a História, sua história não interessava, foi ignorada e deixou de ser contada, mas em Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem, ela é reconstituída, recriada e escrita pelas mãos de Maryse Condé e narrada pela voz da própria Tituba.
Esse foi o primeiro livro da autora a ser publicado no Brasil, em 1997, como Eu, Tituba, feiticeira... negra de Salem, com tradução de Angela Melim, que foi seguido, em 2002, de Corações migrantes, com tradução de Júlio Bandeira para La migration des coeurs, ambas publicadas pela editora Rocco e já fora de circulação. O público brasileiro ficou mais de quinze anos sem ver o nome de Maryse Condé nas prateleiras das livrarias até que, em 2019, a Rosa dos Tempos, selo da editora Record, publicou a retradução Eu, Tituba: bruxa negra de Salem, dessa vez elaborada pela gaúcha Natalia Borges Polesso que, além de tradutora — Nós & Eles (2019), de Bahiyyih Nakhjavani, e Febre Tropical (2021), de Juliana Delgado Lopera, são traduções suas — também é escritora, tendo sido premiada em 2016 com o Jabuti na categoria “Contos” pelo livro Amora.
A publicação dessa retradução possivelmente foi motivada pelo prêmio conferido a Maryse Condé em 2018, o New Academy Prize in Literature, criado como alternativa ao Nobel que foi suspenso naquele ano, fato que é destacado na capa desta edição, que conta com a inscrição “Vencedora do New Academy Prize 2018 (Prêmio Nobel Alternativo)”. Outras premiações concedidas à autora pelo romance também são destacadas na contracapa, que traz referência ao já mencionado Grand Prix Littéraire de la Femme, de 1986, e ao Grand Prix des Jeunes Lecteurs, de 1994.
Ainda observando os elementos paratextuais de Eu, Tituba: bruxa negra de Salem, sua capa traz a tradução de um trecho do prefácio escrito por Angela Davis para I, Tituba, Black witch of Salem, tradução para a língua inglesa publicada pela primeira vez em 1992 e elaborada por Richard Philcox. O nome de Davis aparece abaixo do trecho traduzido e, do outro lado, é indicado o nome de Conceição Evaristo, autora do prefácio da edição brasileira. Seus nomes na capa parecem tanto direcionar o livro para determinado público leitor — aquele interessado em livros escritos por mulheres negras — quanto respaldar o nome de Maryse Condé, autora que, pelo tempo que passou sem publicação no Brasil, talvez só tenha se tornado conhecida do grande público em função da premiação de 2018, um ano antes do lançamento da edição da Rosa dos Tempos.
O respaldo trazido pelos nomes de Angela Davis e Conceição Evaristo é reforçado na contracapa, que traz excertos de textos em que se comenta sobre o livro ou sobre sua autora: o primeiro deles foi retirado do próprio prefácio escrito por Conceição Evaristo; o segundo é a tradução de um trecho do discurso de anúncio do New Academy Prize 2018, proferido por Ann Pålsson, e os dois outros foram retirados de Publishers Weekly e The New York Times Book Review, sendo que aquele também está presente na tradução para o inglês de 1992, e este foi inserido em uma nova edição da mesma tradução, publicada em 2009.
Na capa e na contracapa, não há informações que explicitem que se trata de uma obra traduzida, o que só se sabe na primeira orelha do livro que, na sua parte superior, traz a seguinte inscrição em caixa alta: “A obra-prima de Maryse Condé, em tradução da premiada escritora Natalia Borges Polesso, com prefácio da aclamada escritora Conceição Evaristo”. É interessante observar como a escolha dos termos para apresentar o livro, sua tradutora e sua prefaciadora buscam incentivar aquele que tem o livro em mãos a lê-lo ou a comprá-lo: de acordo com essa apresentação, não se trata apenas de um dos livros da autora, mas de sua “obra-prima”; sua tradutora não é “qualquer” tradutora, mas uma escritora “premiada”; sua prefaciadora não é “qualquer” pessoa, mas uma “aclamada” escritora. Em relação à tradutora, é curioso notar que mesmo se tratando de uma “escritora premiada”, o seu prestígio não foi suficiente para que a editora fugisse de certo padrão editorial e colocasse seu nome na capa, ao lado dos nomes de Conceição Evaristo e de Angela Davis, estando presente apenas na primeira orelha, como já mencionado, na folha de rosto e na ficha catalográfica.
A estrutura do texto fonte é mantida: duas epígrafes, uma assinada por Maryse Condé e outra extraída de um poema de um escritor inglês puritano do século XVI; a narrativa de Tituba é dividida em duas partes, a primeira com doze capítulos e a segunda com quinze; um epílogo é também narrado por Tituba e uma nota historiográfica é assinada pela autora. De novidade, a edição da Rosa dos Tempos apresenta um sumário, o prefácio escrito por Conceição Evaristo e uma “Nota da edição brasileira”.
No prefácio, Conceição Evaristo destaca alguns elementos da narrativa, como o fato de que a concepção de Tituba ter se dado a partir de um estupro simboliza o próprio processo de colonização do que chamamos Américas, que se deu a partir de invasões e violações. Evaristo também ressalta do texto de Condé a condição das mulheres mantidas sob o poder do patriarcado e a relação entre mulheres brancas e negras. Este último ponto acaba por levantar a seguinte reflexão: seria possível as primeiras entenderem as vivências das últimas? Por fim, a escritora brasileira elogia o texto da escritora guadalupense e a sua habilidade em mesclar história e ficção, alinhavando com invenção quando faltam informações.
Já a “Nota da edição brasileira” indica a edição que serviu de base para a tradução, aquela publicada em 2017 pela Mercure de France. Além disso, traz algumas explicações a respeito de certas escolhas, ou imposições, tradutórias: as notas contidas na edição-base teriam sido mantidas; para elementos da fauna e da flora de Barbados mencionados por Maryse Condé em Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem, teriam sido utilizados elementos correspondentes existentes no Brasil, mas quando não havia essa possibilidade, se indicariam similares; os termos criados pela autora, assim como palavras estrangeiras à língua francesa e à língua portuguesa, teriam sido mantidos sem destaque gráfico, como apresentados no texto fonte; notas seriam evitadas, com a justificativa de que a busca de informações pelo leitor enriquece sua leitura, mas para determinadas informações mais difíceis de recuperar, seriam adicionadas notas elaboradas pela tradutora, inseridas no rodapé e identificadas por “[N. T.]”.
Verificando essas informações, constata-se que das onze notas presentes no texto fonte, todas foram mantidas. A maioria delas é utilizada para explicar termos inexistentes na língua francesa, como “akwaba” (Condé, 2020, p. 27), “konoko” (Condé, 2020, p. 44), “canari” (Condé, 2020, p. 45) e “gangreks” (Condé, 2020, p. 207). Esses termos, tampouco existentes na língua portuguesa, tiveram sua escrita mantida, mas sem destaque gráfico, como no texto fonte. No entanto, aqueles com correspondentes em português tiveram sua escrita adequada, como é o caso de “boçais” (Condé, 2020, p. 203) — termo utilizado para se referir aos escravizados recém-chegados e não batizados — e “anólis” (Condé, 2020, p. 247) — nome de um pequeno lagarto. Essas notas foram numeradas de 1 a 11 e a elas foram somadas quatro notas da tradutora, identificadas por “[N. T.]”, conforme mencionado na “Nota da edição”, e uma nota identificada por “[N. E.]”, que se supõe nota da editora e que não é mencionada na “Nota da edição”. Tanto as notas da tradutora quanto a nota da editora são indicadas por pequenas estrelas onde comumente se utilizam asteriscos.
Nas notas da tradutora, Natalia Polesso busca principalmente explicitar ou recuperar o sentido de expressões, como é o caso de “Tim tim, bois sèche! La Cour dort?” (Condé, 1995, p. 156) que foi traduzido como “Tum, tum, madeira seca! A Corte dorme?” (Condé, 2020, p. 50). Na nota, a tradutora explica que a expressão em francês é utilizada em Guadalupe quando se começa a contar uma história, e a compara com a expressão “Era uma vez...”. Polesso também utiliza o recurso da nota para explicar o significado do termo “shohet” (Condé, 2020, p. 181) — “açougueiro kosher” (Condé, 2020, p. 181), ou seja, aquele que faz os cortes das carnes de acordo com as leis judaicas — e para traduzir, talvez por solicitação da editora, a epígrafe que traz um trecho de um poema de John Harrington colocado em inglês e sem tradução no texto em francês. Já a nota da editora, como um complemento às notas da tradutora, explica o termo “quimboisseur” (Condé, 2020, p. 207) como aquele que “desempenha funções místicas e curadoras na religião quimbois” (Condé, 2020, p. 207).
Com a economia no uso de notas, justificada na “Nota da edição”, utilizadas apenas em casos “em que a informação não podia ser facilmente recuperável” (Condé, 2020, p. 17), é de se questionar que se tenha deixado de lado termos talvez tão difíceis, ou mais, de se encontrar o significado quanto, por exemplo, o termo judaico “shohet”, como alguns específicos da cultura caribenha, no qual parte da narrativa se insere, como “chabine” (Condé, 2020, p. 42) “soucougnan” (Condé, 2020, p. 74), “Man Hibé” (Condé, 2020, p.74) e “gwo-ka” (Condé, 2020, p. 244).
Fica evidente, inclusive, que essa limitação do uso de notas faz com que tradutores tenham que realizar verdadeiros malabarismos através de interferências mais invasivas, incluindo no próprio texto o que poderia ser colocado em nota. Isso pode ser exemplificado com o trecho do texto fonte onde Tituba diz “John Indien dansait avec une hautechabine en madras calendé” (Condé, 1995, p. 32, grifo nosso), trecho que é seguido por repetidas referências a essa “chabine”, como em “Parfois, la hautechabine en madras calendétentait d’interposer sa silhouette entre John Indien et moi” (Condé, 1995, p. 33, grifo nosso). É possível que para que a tradutora pudesse fazer essas repetições e o leitor fosse capaz de entender, na primeira ocorrência, Polesso tenha escolhido traduzir como “John Indien dançava com uma antilhana com pele clara e traços africanos — um tipo conhecido como chabine —, alta, que usava um turbante típico, o madras calendé” (Condé, 2020, p. 41, grifo nosso). Assim ela poderia repetir: “Às vezes, a chabine alta de madras calendé tentava interpor sua figura entre John Indien e eu” (Condé, 2020, p. 42, grifo nosso).
Sobre os elementos da fauna e da flora citados na “Nota da edição”, nos casos em que existiam correspondências no português, os termos correspondentes foram utilizados, como o caso de árvores possíveis de serem encontradas tanto no Brasil quanto em regiões caribenhas — “calebassier” (Condé, 1995, p. 14)/“cabaceira” (Condé, 2020, p. 26), “mapou” (Condé, 1995, p. 14)/“mafumeira” (Condé, 2020, p. 26). Já aqueles que não tinham equivalentes, foram substituídos por similares da mesma família, como o “acomat” (Condé, 1995, p. 15), mais conhecido como “acomat boucan”, que foi substituído pela “laranjeira-do-mato” (Condé, 2020, p. 27) e o “iroko” (Condé, 1995, p. 16) pela “figueira-brava” (Condé, 2020, p. 27).
A respeito dos termos criados pela autora, já que eles não são identificados como criação no texto fonte, nem diferenciados graficamente no texto, é provável que tenham sido reconhecidos a partir da tradução para o inglês, feita por Richard Philcox, que acompanha um glossário, com seis termos identificados como “literary invention by the author” (Philcox, 1992, p. 185−186): “azalée-des-azalées”, “passiflorinde”, “persulfureuse”, “populara indica”, “prune taureau” e “salapertuis”. Polesso adapta para o português quatro desses termos: “azalée-des-azalées” — que é indicado com hífens no texto em inglês e não no texto fonte, o que indica que a tradutora tenha tido acesso a tradução — passa a ser “azaleia-das-azaleias” (Condé, 2020, p. 34), “passiflorinde”/“passiflora” (Condé, 2020, p. 34), “persulfureuse”/ “persulfúrico” (Condé, 2020, p. 34) e “prune taureau”/ “ameixa” (Condé, 2020, p. 34). Apenas no primeiro caso a criação de Condé é mantida, enquanto nos outros três os termos escolhidos para traduzir os neologismos da autora são termos existentes em português, o que pode ter acontecido por escolha tradutória ou pode ser atribuído a interferências ocorridas pós-tradução em função de uma possível reação à utilização de termos “estranhos”, como seria “passiflorinda”, “persulfurosa” ou “ameixa-touro”.
Os outros dois termos criados por Condé, “populara indica” e “salapertuis”, não têm sua escrita alterada na tradução de Polesso, mas foram postas em itálico, portanto com destaque gráfico, ao contrário do que é dito na “Nota da edição”, o que também pode ser indício do acesso à tradução para o inglês, que também traz essas duas palavras em itálico. Alguns vocábulos estrangeiros à língua francesa e portuguesa — “chabine” (Condé, 2020, p. 42), “biguine” (Condé, 2020, p. 63), “hoodoo” (Condé, 2020, p. 215), “abeng” (Condé, 2020, p. 232) — também são colocados em itálico, diferentemente do texto fonte, onde não apresentam destaque algum, o que também se opõe ao que se afirma na “Nota da edição”.
Apesar de nessa edição não ter sido dado espaço para que a tradutora falasse sobre suas escolhas tradutórias, é possível coletar pequenas pistas. Uma delas diz respeito à distinção dos termos “escravizado” e “escravo” para traduzir “esclave”. Atualmente, em português, especialmente no Brasil, entende-se que “escravo” é uma condição tida como inerente à pessoa — que pode ser exemplificada pela frase “ele é escravo” — e “escravizado” é uma condição à qual uma pessoa foi submetida — exemplificada pela frase “ele foi escravizado”. Em francês, essa distinção não estava em discussão na época em que Maryse Condé escreveu Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem e ainda não foi estabelecida nos dias atuais, sendo a palavra “esclavisé” tratada como neologismo.
Polesso faz uso do termo “escravo” em poucas situações: quando é utilizado em expressões, como em “mercado de escravos” (Condé, 2020, p. 26, grifo nosso) — tradução para “marché auxesclaves” (Condé, 1995, p. 15, grifo nosso) — e quando está inserido na fala de alguns personagens, como no caso de Susanna Endicott, mulher branca, senhora de John Indien, homem escravizado com quem Tituba se casa. Em determinado momento da narrativa, ela afirma que “Le devoir d’un maître en pareil cas est de songer à l’avenir de ceux dont Dieu lui a donné la charge : je veux dire ses enfants et sesesclaves” (Condé, 1995, p. 60, grifo nosso), que foi traduzido como “O dever de um senhor em tal caso é pensar no futuro daqueles que lhe foram ofertados por Deus, quero dizer, de seus filhos e seus escravos” (Condé, 2020, p. 65, grifo nosso). Nos outros casos, “esclave” foi traduzido por “escravizado”, sobretudo quando parte da voz de Tituba, como em: “Elas sentiam falta da doçura de uma vida mais fácil, uma vida de brancas, servidas, rodeadas de escravizados atentos” (Condé, 2020, p. 99). É como se ela tivesse consciência de que alguém nunca é escravo, mas é submetido à condição de escravizado. Essa distinção entre os usos dos termos pode indicar tanto uma interpretação de que Tituba não usaria o termo “escravo” pela consciência que tinha, quanto um posicionamento da tradutora, que pode ser visto como linguístico, mas também como político, numa postura anticolonialista que se coaduna com a própria postura que Maryse Condé apresenta em seus textos.
Focando em termos relacionados ao regime escravista, vemos que alguns deles perderam sua referência, o que pode provocar no leitor uma momentânea dissociação do texto e do contexto no qual a narrativa está inserida. É o que ocorre no trecho “Ele me disse que o Tratado se intensificava. É aos milhares que os nossos são arrancados de África” (Condé, 2020, p. 80, grifo nosso). A palavra “Tratado” parece estranha na frase, mas ao buscá-la no texto fonte — “Il m’apprit que laTraites’intensifiait. C’est par milliers que les nôtres étaient arrachés d’Afrique” (Condé, 1995, p. 78, grifo nosso) — descobre-se que houve uma confusão com as palavras “traité”, que quer dizer “tratado” e “traite”, que significa “tráfico” e que, na verdade, se trata do tráfico negreiro, chamado em francês de “traite négrière”.
Em outro momento, na edição em português, Tituba diz que “John Indien encontrou trabalho em uma taverna” (Condé, 2020, p. 79, grifo nosso), o que pode gerar dúvida, já que a ideia de um trabalho remunerado para uma pessoa escravizada seria, a princípio, contraditória. No texto fonte — “John Indientrouva à se louerdans une taverne” (Condé, 1995, p. 77, grifo nosso) — entende-se que o personagem se transformou no que no Brasil se chamou de “negro de ganho” ou “negro de aluguel”, que tinham a renda do seu “trabalho” destinada ao seu senhor. Se esses pontos levantados se originaram no processo de tradução, poderiam ter sido observados nos processos que o seguem, como o de preparação ou revisão, trabalho que, é importante frisar, não é creditado na ficha catalográfica.
No entanto, esses pequenos detalhes não interferem na compreensão dos terrores vividos por Tituba, reconstituídos por Maryse Condé e traduzidos por Natalia Polesso. O ritmo da narrativa flui naturalmente, apesar das constantes alterações na pontuação e das recorrentes trocas dos tempos verbais, do passado para o presente histórico, que não acontecem no texto fonte, como exemplificado no trecho:
Je suppliai :
— Est-ce que je retournerai à la Barbade ?
Man Yaya haussa les épaules et fit seulement :
— Est-ce que c’est une question, celle-là ?
Puis avec un léger signe de la main, elle disparut. Abena ma mère s’attarda plus longtemps, émettant son quota habituel de soupirs. Enfin, elle disparut à son tour, sans m’avoir apporté d’autres éclaircissements
(Condé, 1995, p. 135, grifo nosso).Na tradução, temos:
Eu supliquei:
— Eu vou voltar a Barbados?
Man Yaya ergue os ombros e somente diz:
— Isso é uma questão?
Depois, com um leve sinal de mão, ela desaparece. Abena, minha mãe, ficou um pouco mais, emitindo sua cota usual de suspiros. Por fim, desapareceu, sem me dar nenhum outro esclarecimento
(Condé, 2020, p. 129−130, grifo nosso).Essas trocas, porém, podem fazer com que a narrativa se assemelhe àquelas contadas oralmente, já que é comum que essas alternâncias dos tempos verbais aconteçam no uso do português falado no Brasil.
Algo que se destaca bastante é a habilidade da tradutora em lidar com trechos de cânticos inseridos por Condé, alguns incluindo termos de línguas crioulas das Antilhas, como o seguinte:
Mougué, eh, mougué eh :
Coq-là chanté cokiyoko… (Condé, 1995, p. 67−68)
Traduzido como:
Muguê, ê, muguê, ê
O galo canta ê galokokó (Condé, 2020, p. 72)
O termo “mougué”, de acordo com o glossário de Philcox, é um termo desconhecido, de origem africana. Polesso o manteve, adaptando sua grafia para “muguê”, mantendo a sonoridade em português. Já a palavra “coq”, que quer dizer “galo”, foi traduzida e aglutinada a uma aproximação da onomatopeia “galokokó”, para se obter efeito parecido ao de “cokiyoko”.
Essa breve análise, que se concentrou principalmente no que foi apresentado em uma nota de edição, mostrou que, mesmo na ausência de uma nota elaborada por quem traduziu, é possível recuperar ou inferir questões que estão por trás de escolhas tradutórias, como posicionamentos dos tradutores ou decisões editoriais, como é o caso da restrição do uso de notas. A tradução de Natalia Borges Polesso para Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem permite que se escute a voz de Tituba que reverbera pela escrita de Maryse Condé, através da recriação de imagens muito fortes e simbólicas criadas pela autora e da linguagem que lhe é característica e que muito se aproxima da oralidade.
Referências
Condé, M. (1994). I, Tituba, Black Witch of Salem. (R. Philcox, Trad.). Ballantine Books Edition.
Condé, M. (1995). Moi, Tituba ... sorcière noire de Salem. Gallimard.
Condé, M. (2020). Eu, Tituba: bruxa negra de Salem. (N. B. Polesso, Trad.). Rosa dos Tempos.
Notes
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