Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a coletânea de contos de Machado de Assis lançada na China em 2020, que foi organizada por Xuefei Min. Em um primeiro momento, traçamos um breve panorama da presença de Machado de Assis na China. Na sequência, com base em Genette (2009), analisamos os paratextos da coletânea e ainda, com o auxílio de Berman (1995) e Pym (2012), discutimos a posição tradutiva, o projeto de tradução e o horizonte do(s) tradutor (es), bem como aspectos ligados à ética da tradução.
Palavras-chave: Literatura brasileira, Machado de Assis, contos, tradução, sistema literário chinês.
Abstract: This article aims to highlight the collection of short stories by Machado de Assis released in China in 2020, organized by Xuefei Min. In this text, based on Genette (2009), we will first analyze the paratexts, and then, with the help, mainly of Berman (1995) and Pym (2012), we will discuss the translational position, the translation project and the horizon of the translator(s) of this collection, as well as aspects related to the ethics of translation.
Keywords: Brazilian literature, Machado de Assis, short stories, translation, Chinese literary system.
Artigo
Machado de Assis na China: contos traduzidos
Machado de Assis in China: Translated short stories
Received: 07 July 2024
Revised document received: 01 December 2024
Accepted: 17 October 2024
Published: December 2024
Machado de Assis é considerado um dos maiores escritores da literatura brasileira, que lentamente foi incorporado ao cânone ocidental. Esse reconhecimento pode ser evidenciado pelo fato de Harold Bloom (2003) ter incluído o escritor brasileiro na sua lista dos 100 autores mais criativos da história da literatura1. Embora a aceitação internacional de Machado tenha sido tardia e tenha acontecido a partir de alguns centros culturais e linguísticos mais “hegemônicos”2, como a França, Inglaterra e Estados Unidos, o autor brasileiro ainda é pouco conhecido no exterior e a China não foge à regra. Uma das razões para o desconhecimento desse importante escritor de língua portuguesa na China talvez esteja relacionada à falta de interesse das editoras, à ausência de tradutores qualificados e à pouca circulação do autor nos cursos de português em universidades chinesas, ou ainda, por esse escritor pertencer, usando a expressão de Even-Zohar (1990), a um sistema literário “periférico”.
Contudo, em 2020 foi publicado o livro intitulado马查多•德•阿西斯小说集Antologia de Contos de Machado de Assis (Assis, 2020), pela Editora Citic Press, que é a primeira editora de livros dirigida por uma empresa estatal do Governo Central da China, cuja criação foi aprovada pela Administração de Imprensa e Publicações do Estado e tem uma ampla e significativa influência no mercado de livros na China. Essa coletânea apresenta 21 contos de Machado de Assis traduzidos para o chinês, tendo sido organizada por Xuefei Min, que é a fundadora do curso de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade de Pequim. Além de ser docente e pesquisadora nas áreas de literatura e tradução, Xuefei Min é tradutora e já verteu para o chinês obras de Paulo Coelho, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Mia Couto e Machado de Assis3. Xuefei Min também foi a primeira e até o presente momento é uma das poucas a traduzir obras de Clarice Lispector diretamente do português para o chinês. Além de organizar a coletânea de contos de Machado de Assis, aqui em discussão, ela traduziu dois textos que integram esse livro, “O Alienista” e “Mariana” e também atuou como revisora geral de todas as traduções presentes na coletânea.
Dito isso, o objetivo deste artigo é analisar a coletânea de contos de Machado de Assis lançada na China em 2020, que foi organizada por Xuefei Min. Em um primeiro momento, traçaremos um breve panorama da presença de Machado de Assis na China para, na sequência, com base em alguns pressupostos teóricos de Genette (2009), destacar os paratextos e ainda, com o auxílio de Berman (1995) e Pym (2012), discutir sobre a posição tradutiva, o projeto de tradução e o horizonte do(s) tradutor(es), bem como aspectos ligados à ética da tradução.
Antes da coletânea de contos organizada por Xuefei Min em 2020, apenas quatro edições de obras de Machado de Assis haviam sido publicadas na China: Trilogia Realista (幻灭三部曲), de 1992, que conta com Memórias Póstumas de Brás Cubas (布拉斯•库巴斯死后的回忆), Quincas Borba (金卡斯•博尔巴) e Dom Casmurro (堂卡斯穆罗), traduzida por Yilan Weng e outros tradutores (Assis, 1992); a (re)tradução de Quincas Borba (金卡斯•博尔巴), de 1999, traduzida por Cheng´ao Sun (Assis, 1999); a (re)tradução de Dom Casmurro, publicada com o título Senhor do Silêncio (沉默先生) em 2001 e traduzida por Junbao Li (Assis, 2001); e a coletânea intitulada Contos escolhidos - O Alienista e outras estórias (精神病医生), de 2004, que além de “O Alienista”, inclui “O Espelho”, “Um Homem Célebre”, “O Enfermeiro” e “Pai Contra Mãe”, tendo sido organizada e traduzida por Junbao Li (Assis, 2004).
Embora a China tenha investido bastante na área de tradução de textos literários4 (Guerini et al., 2023), chama a atenção o fato de Machado de Assis ter sido traduzido apenas no final do século XX e de se ter (re)traduções dos livros Quincas Borba e Dom Casmurro. O baixo número de traduções da extensa obra de Machado de Assis motivou Xuefei Min a organizar a coletânea de 2020, em que foram selecionados e traduzidos 21 textos: “O Alienista”, “Mariana”, “O Espelho”, “Missa do Galo”, “Pai contra Mãe”, “Adão e Eva”, “A Cartomante”, “Pílades e Orestes”, “A Carteira”, “Uns Braços”, “O Enfermeiro”, “A Igreja do Diabo”, “Conto de Escola”, “O Diplomático”, “Teoria do Medalhão”, “Um Homem Célebre”, “O Caso da Vara”, “O Segredo do Bonzo”, “Noite de Almirante”, “Entre Santos” e “Um Apólogo”. Dessas traduções, oito5 já haviam sido publicadas em uma edição de junho de 2020 da revista Literatura Estrangeira6, pela Editora de Tradução de Shanghai (上海译文出版社). Essa nova coletânea de contos de Machado de Assis chegou inclusive a atrair a atenção do Consulado Geral do Brasil em Xangai, e no lançamento, em julho de 2020, o consulado e a editora realizaram um evento conjunto de promoção, durante o qual o então vice-cônsul do Brasil em Xangai, Mario Araújo, falou da importância de Machado de Assis, em geral, e desse livro, em particular.
Traçada essa breve contextualização, passamos, com base nos pressupostos de Genette (2009), a descrever os paratextos da antologia de 2020 e, na sequência, comentar a partir das reflexões de Berman (1995) sobre o projeto, o horizonte e a posição do(s) tradutor(es), bem como alguns dos aspectos “éticos” desta tradução.
Em relação aos paratextos, destacamos a capa e a contracapa, dois importantes peritextos (Cherobin, 2011). A capa e a contracapa, conforme vemos na Figura 1, disposta abaixo, apresentam alguns elementos que podem atrair e chamar a atenção de leitores potenciais.
Na capa, que é o primeiro contato do leitor com o texto e local privilegiado para dar uma certa identidade à obra, como já observado por Genette (2009), aparece uma imagem composta por figuras geométricas: triângulo, retângulo e círculos, de diversas cores, com a sobreposição de uma imagem dos famosos óculos de Machado de Assis. Aparece também o nome do autor, com destaque em maiúscula para o sobrenome “ASSIS”, e o primeiro nome, em letras minúsculas, ambos dentro do triângulo. Na capa temos ainda o nome da organizadora, que também é tradutora, e como são vários os tradutores, temos “etc” [闵雪飞 等].
Na contracapa, aparecem alguns comentários sobre o autor brasileiro feito por escritores famosos, como Susan Sontag que descreve Machado de Assis como “o mais grandioso escritor na história da América Latina”7 e Salman Rushdie que diz ser Machado de Assis “um escritor 100 anos à frente de seu tempo”8. O trecho do texto do The New York Times Book Review caracteriza-o como “uma força literária que transcende a nacionalidade e a língua podendo ser suficientemente comparado a Flaubert e Hardy”9. Além disso, aparecem outros comentários como: “Bruxo do Cosme Velho”10, “Pai da literatura brasileira moderna”11, “Uma fonte inesgotável de inspiração para romancistas latino-americanos”12, “Tendo nascido das ruínas do século XIX, suas obras alcançam cada alma do século XXI”13.
Um destaque da contracapa é o fato de se ter em português a informação de que se trata de uma antologia de contos de Machado de Assis de forma estilizada, especialmente em relação ao sobrenome “Assis”, o que confere uma certa modernidade ao autor e à sua obra.
Na lombada estão escritos de cima para baixo o nome chinês da editora Citic Press, a tradução do sobrenome do autor, o título em português da obra Antologia de Contos de Machado de Assis, a tradução da antologia para o chinês, bem como as informações da autoria, da nacionalidade brasileira do autor e os tradutores, com o tamanho menor dos caracteres chineses. Além da capa e contracapa descritos acima que destacam a origem da obra e do autor, a imagem da capa chama a atenção pela suavidade e modernidade, mas com figuras geométricas sugerindo a complexidade da temática dos contos.
Outro importante paratexto desta edição é o prefácio de 11 páginas, assinado pela organizadora do volume, Xuefei Min. O prefácio é dividido em duas partes, na primeira, temos resumidamente aspectos da vida de Machado de Assis, informações sobre as obras e as suas principais características, com destaque para os textos da coletânea, em que cada conto é apresentado com um resumo. Na segunda parte, Xuefei Min fala sobre a motivação para a tradução das obras de Machado de Assis, o método da tradução e o objetivo a ser alcançado. Nesse paratexto, são informados os nomes dos tradutores: a própria Xuefei Min, como já referido, dois egressos da Universidade de Pequim, Chenxi Fu e Lin Ma, que traduziram “O Espelho” e “Missa do Galo”, respectivamente, e mais oito alunos da turma do quarto ano do curso de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade de Pequim, que trabalharam no projeto durante o ano letivo de 2019 a 2020. As traduções dos alunos foram realizadas na disciplina de tradução literária, ministrada por Xuefei Min, que explicita ter executado a tradução em sala de aula dentro de uma ação planejada e preparatória para realizar traduções literárias de maior escala e de forma mais organizada para ser aplicada no futuro.
O texto do prefácio revela ainda o projeto e o horizonte da tradução, pois nele temos as razões pelas quais a organizadora escolheu os textos de Machado de Assis para serem usados na disciplina de tradução literária. A escolha se deu, em primeiro lugar, conforme lemos no prefácio, por Machado de Assis ser um escritor importante e um clássico da literatura brasileira, que ainda carece de traduções na China. Em segundo, pela complexidade da linguagem usada por Machado de Assis, que aparentemente não apresenta dificuldades de leitura, mas é desafiadora para ser traduzida, porque a linguagem machadiana conta com ricas informações históricas, e com aquilo que Xuefei Min considera ser uma “perfeita” lógica narrativa, e uma tradução ambígua e vaga não consegue reproduzir:
马查多•德•阿西斯的语言虽然难,但历史信息量较大,但是他写得非常清楚,有完美的叙事逻辑,非常抗拒不痛不痒、含含糊糊、似是而非的翻译,
(闵雪飞,2020,第IX页) 。Por meio das suas experiências didáticas, Xuefei Min descobriu que alunos iniciantes apresentam uma tendência a deixarem sua tradução mais ambígua por não terem entendido profundamente a lógica inerente ao texto. Escolher Machado de Assis para o “experimento” de tradução na disciplina tinha também a finalidade de ajudar a estabelecer um conceito de tradução.
O que se observa ao lermos os contos traduzidos é que Xuefei Min e sua equipe procuraram ser “fiéis” às palavras e ao sentido do texto, e “fiéis” à “lógica” do autor. Para a organizadora da coletânea, somente uma tradução que apresenta a essência e a lógica da obra estabelecidas pelo autor da língua de partida pode reproduzir a literalidade de uma obra na língua de chegada. Aqui, fidelidade caminha na direção do proposto por Umberto Eco em Quase a mesma coisa: experiências de tradução, ou seja, significa “a capacidade de negociar a cada instante a solução que parece mais justa”, até porque como lembra Eco, entre “os sinônimos de fidelidade não está a palavra exatidão. Lá estão antes lealdade, honestidade, respeito, piedade” (Eco, 2007, p. 426). Esse procedimento pode ser visto, por exemplo, em dois trechos da tradução de “O Alienista”:
TP (português): Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.
TC (chinês): 精神病医生细薄而谨慎的嘴唇上,一抹笑意模糊的影子呼之欲出,其中掺杂着不屑与同情,尽管心中澎湃,他却不吐一语。
TP (português): Três horas depois, cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador.
TC (chinês): 三个小时之后,大约五十位宾客围坐在西芒·巴卡马特家中的桌子旁。这是一场接风宴,艾娃丽丝塔夫人自然成为祝酒、致辞、献诗、比喻、夸张、比兴的主角。她是新希波克拉底的妻子、科学女神、天使、神祇、曙光、仁慈、生命、抚慰。在克里斯平·苏亚雷斯谦卑的吹捧中,她的眼睛宛如星辰,而在一位议员的吹捧中,她的眼睛是两颗太阳。
Nesses exemplos, fica clara a postura de “fidelidade” adotada como projeto norteador da tradução.
A terceira razão é que este projeto de tradução de Machado de Assis significa uma integração de tradução literária com a pesquisa acadêmica. Xuefei Min defende que a tradução literária deve estar associada à pesquisa acadêmica. Além de explicitar as razões pela escolha de Machado de Assis como alvo da prática de tradução em sala de aula, a pesquisadora também explica os motivos de traduzir obras mais curtas, como os contos, ao invés dos romances. A preferência por esse tipo de obra está relacionada ao tempo limitado da disciplina e à experiência dos alunos. Ademais, a escolha pelos contos é também motivada pelo fato de Machado de Assis ser um mestre nesse gênero, os quais foram pouco traduzidos para o chinês.
A metodologia seguida em sala de aula para traduzir Machado de Assis também é informada no prefácio: a realização da tradução de dois ou três contos, uma rodada de crítica de tradução entre os alunos, correções e revisões pela professora e elaboração de um resumo da experiência tradutória no final do semestre feito por cada aluno da disciplina.
Ainda no prefácio, a autora relata os desafios que os alunos iniciantes enfrentaram e que se relacionam, basicamente, à falta de experiência em tradução e à falta de estabelecimento de critérios e conceitos da tradução. O maior desafio em particular foi o da reconstrução da cadeia lógica do texto machadiano na língua de chegada. Xuefei Min destaca que a tradução literária não é simplesmente a questão de uso de estratégias de “domesticação” e “estrangeirização”, mas uma reconstrução da “intenção” do autor original na forma de um texto integral na língua de chegada, que muitas vezes é a língua materna do tradutor. E essa natureza da tradução como reconstrução de um texto em uma outra língua determina as escolhas relativas às palavras e à sintaxe usadas pelo tradutor.
No final do prefácio, Xuefei Min, que procura aliar aspectos teóricos com a prática, declara ter realizado diversas revisões das traduções e as usou como exemplos reais nas aulas, descrevendo o seu percurso até as traduções serem aceitas pela editora, de modo que os alunos interessados em tradução literária pudessem conhecer o padrão e os critérios da publicação usados pelas editoras da China e quem sabe seguir com a atividade de tradução literária.
Esse percurso, minuciosamente descrito no prefácio, parece estar alinhado com a ética da tradução, como proposto por Berman (1995), pois quando a “ética” se conjuga com a tradução, podemos ver uma relação entre o tradutor e o texto, entre o tradutor e o autor, entre o tradutor e o patrocinador e outros. Ademais, é possível perceber que a organizadora da coletânea tem uma posição, um projeto e um horizonte tradutórios (Berman, 1995) bastante definidos, pois são dois sistemas linguísticos/culturais bastante diferentes e que ganham em complexidade quando se trata de texto literário, pois como observa Aguiar e Silva, o texto literário é sempre codificado pluralmente, além do código linguístico, ainda há um conjunto de códigos métrico, estilístico, retórico e ideológico que regula a sua literalidade (Aguiar e Silva, 2010, p. 96).
Essa pluricodificação do texto literário exibe a sua complexidade de ser transcodificada de uma língua para a outra, que se reflete na tomada de decisões pelo tradutor e isso deve ser sempre negociado, como apontado por Umberto Eco (2007). Portanto, podemos dizer que a organizadora, tradutora e revisora da tradução dos contos de Machado de Assis para o chinês possui uma ética holística da tradução literária, pois participa de todas as etapas relacionados à tradução, que vai da seleção do autor, do texto, passando pela tradução, revisão e, finalmente, pela negociação com a editora.
Dos 21 contos traduzidos, é possível identificar alguns dos procedimentos éticos adotados pelos tradutores, e minuciosamente supervisionados por Xuefei Min, pois conforme as palavras da organizadora, um tradutor não pode realizar uma tradução meramente dependendo da sua “intuição linguística”:
“语感”是一种玄学,通常只能代表个人的品味,依靠自己的预感而不是与原文深刻的对话去改稿,只能得到似是而非的表面油滑,而这样的译本是经不起时间考验的
(闵雪飞,2020,第11页)。Para Xuefei Min, a intuição linguística é um mistério, algo que representa o gosto pessoal. Uma tradução baseada na intuição, ao invés da análise minuciosa e profunda do texto de partida, provavelmente resultará em uma tradução “infiel”, que pode ser aparentemente boa, mas não resistente ao tempo. Por isso, ela destaca o trabalho da revisão da tradução literária, outro elemento da sua ética tradutória, que é estar em constante diálogo com o texto de partida e sua cultura. Essa perspectiva de Xuefei Min parece coincidir com a opinião de Pym de que os tradutores devem ser “responsible for the capacity of their work to contribute to long-term stable, cross-cultural cooperation”14 (Pym, 2012, p. 167). Isto quer dizer que, a responsabilidade da ética de tradução não é apenas um aspecto textual, mas deve ser uma responsabilidade social. Alguns exemplos dos procedimentos éticos seguidos por Xuefei Min e do grupo de tradutores podem ser vistos abaixo:
TP (português): No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar.
TC (chinês) por aluno: 第五日,大地上有了生灵、水和空气。
(Retrotradução literal: no quinto dia, na terra houve vida, água e ar.)
TC (chinês) revisto por Xufei Min: 第五日造出了陆地、水中与天空中的动物。
(Retrotradução literal: no quinto dia, criaram-se, na terra, dentro de água, no céu, animais.)
A revisão realizada por Xuefei Min revelou diversas vertentes das ditas considerações éticas. Primeiro, a do “erro” cometido por um aluno, que, de acordo com Xufei Min, poderia ser evitado com uma leitura minuciosa. Além de estar associado à sintaxe do texto de partida, o “erro” tem igualmente a ver com a lógica contextual, uma vez que a água e o ar foram criados no segundo dia. Em seguida, a escolha da palavra “vida” pelo aluno desvia-se do significado de “animais” que Machado Assis usou. Na perspectiva ética de Xuefei Min, o uso de certos floreios verbais aparentes poderá agradar a intuição pessoal, mas revela a falta de diálogo com o texto de partida. Terceiro, Xuefei Min verteu delicadamente a voz passiva do texto original em um texto típico chinês caracterizado por uma frase sem sujeito. A voz passiva em português pretende esfumar o sujeito, enquanto na frase traduzida em chinês, essa intenção foi ideal e naturalmente transmitida. A partir destas alterações, constatamos as decisões tomadas por Xuefei Min na negociação e no diálogo profundo com o texto e o autor. Por trás dessas decisões estão as suas convicções éticas em termos de tradução literária e que podem ser vistas em outros exemplos, como os que seguem abaixo:
TP (português): De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois anjos.
TC (chinês) por aluno: 晚间,他们一起看丽日西沉,皓月初生;他们数星星,但几乎没有哪次超过一千;因为在那之前,他们就染上睡意,像两个天使一样入眠。
(Retrotradução: à noite, eles juntaram-se a ver o descer do sol lindo no Ocidente, nascimento da lua brilhante; eles contaram estrelas, mas quase não ultrapassando mil cada vez; porque antes disso, eles sentiram-se com sono e como dois anjos adormeceram.)
TC (chinês) revisto por Xufei Min: 晚间,他们一起看金乌西沉,玉兔初升,开始数星星,但没有几次数过一千,睡意来临,两人入眠,如同两个天使。
(Retrotradução: à noite, eles juntaram-se a ver o descer do sol/corvo douro no Ocidente e o nascimento da lua/Coelho de jade, começando a contar estrelas e poucas vezes chegaram a contar até mil. O sono veio, as duas pessoas adormeceram, como dois anjos.)
A revisão de Xuefei Min continua salientando a sua proposta ética em relação à tradução literária. Dessa vez, a sua ética é representada na estética literária. Para a pesquisadora, a linguagem machadiana é difícil e conta com ricas informações históricas, entretanto, as suas obras possuem uma perfeita lógica narrativa. Primeiro, Min tentou manipular a imagem para reconstruir a “intenção” machadiana: ao invés de usar o “sol” e a “lua”, optou por usar “corvo dourado” e “coelho de jade”, imagens representativas de sol e de lua consagradas na mitologia chinesa. Na escrita de Machado de Assis, os dois predicados “morrer” e “nascer” que seguem os sujeitos (o sol e a lua) são dois verbos antônimos, criando um efeito literário - antítese. Na tradução realizada por um dos alunos, essa antítese não se reflete nem se traduz, uma vez que “o descer do sol” e “o nascimento da lua” enfraquece o contraste entre o “morrer” e “nascer”, enquanto o uso de adjetivos “lindo” e “brilhante” não corresponde ao estado em decadência de pôr-do-sol nem ao estado recém-nascido de lua. Porém, na mitologia chinesa, o corvo dourado e o coelho de jade são duas imagens que se associam a uma história de amor de um casal: Hou Yi e Chang E. Hou Yi matou nove sóis (corvos dourados) enquanto Chang E fugiu para a lua com o coelho. Esse mito expõe a antítese de morte e vida, assim como a transmigração do dia para a noite.
Segundo, Xuefei Min tentou decifrar o estilo machadiano e reconstruir o estilo simples, sem enfeites, mas eficaz. Por exemplo, a expressão de Machado de Assis “dava-lhes o sono e dormiam como dois anjos”tem nove palavras, com ideias eficazes e claramente transmitidas. Na tradução de um aluno, a tradução “因为在那之前,他们就染上睡意,像两个天使一样入眠”(porque antes disso, eles sentiram-se com sono e como dois anjos adormeceram) registra vinte e duas palavras, com uma narração redundante, enquanto na tradução revista por Min “睡意来临,两人入眠,如同两个天使” (O sono veio, as duas pessoas adormeceram, como dois anjos) há apenas catorze palavras, com três frases curtas, expressando cada uma a ideia de maneira explícita e com uma estrutura equilibrada e eficaz. O estilo narrativo de Machado de Assis foi mantido em chinês quase como se fosse “originalmente” escrito em chinês. Essa visão holística leva em conta as características estilísticas do autor, resultando numa tradução resistente ao tempo:
TP (português): Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos.
TC (chinês) por aluno: 绿叶、蓝天、夜晚鲜活或苍白的色彩都将浮现在你的眼眸中。
(Retrotradução: folhas verdes, céus azuis, cores vivas ou pálidas da noite, vão comparecer nos teus olhos)
TC (chinês) revisto por Xuefei Min: 绿如树叶,蓝如天空,或淡或深,墨黑如夜,你的眼眸会映照这些色彩。
(Retrotradução: verde como folhas, azul como céu, claros ou escuros, cor da tina como noite, os teus olhos reflectem estas cores.)
Vale ressaltar outro aspecto valorizado muitas vezes por Xuefei Min: a prática da tradução literária deve estar intimamente associada à pesquisa acadêmica. Como pesquisadora de Machado de Assis, Min possui não apenas sensibilidade literária para a compreensão do texto e do uso da língua, mas também conhece as ferramentas para a análise. No exemplo citado acima, Machado de Assis emprega as cores (verde, azul, negro) nascidas da natureza para descrever os olhos. Obviamente, a tradução do aluno “falhou” nesse aspecto, resultando somente numa acumulação de imagens. A tradução revista por Min captou a “intenção” do texto de partida e resolveu empregar quatro expressões (cada uma com quatro caracteres), vertendo, delicada e elegantemente a poética machadiana na língua chinesa. A poética na tradução literária não é simplesmente a questão de uso de estratégias de “domesticação” e “estrangeirização” (Liang, 2023), mas engloba as duas estratégias, como uma engrenagem de (re)construção e (re)criação, que quando baseada na pesquisa acadêmica auxilia a melhor compreender as características do autor.
Diante do exposto e para concluir, podemos dizer que essa coletânea apresenta um projeto tradutório bastante explícito nos paratextos, especialmente, no prefácio. A voz da organizadora e a dos tradutores assume um papel importante e estimula novos pesquisadores a entrarem no campo da tradução, pois não é comum que alunos iniciantes de um curso de línguas/tradução tenham a oportunidade de traduzir obras literárias de importantes autores e possam publicar suas traduções em uma editora de prestígio.
Dessa forma, podemos afirmar que essa coletânea de Machado de Assis não é simplesmente uma tradução, mas funcionou como uma atividade crítica por excelência, pois o horizonte e a posição tradutória da organizadora envolveu os participantes em um projeto pragmático de tradução literária, que analisou os contos machadianos, para em conjunto com os alunos/tradutores, entender o estilo do autor brasileiro e ainda empregou criticamente teorias da tradução na prática e os resultados foram usados como exemplos de análise na sala de aula. Além disso, a tradução dos contos exigiu muitas pesquisas prévias dos tradutores e ao mesmo tempo serviu como banco de dados para pesquisas acadêmicas futuras nas áreas de estudos da tradução, estudos linguísticos e estudos literários, em uma ação que reúne ensino, tradução e pesquisa. Podemos dizer que é uma forma pioneira de ensinar a tradução literária nos cursos de língua portuguesa na China, que contribui para diminuir a distância entre a teoria e a prática e ainda as relações literárias entre os dois países. Por último, mas não menos importante, este projeto contribui para dar visibilidade aos tradutores e a um dos maiores escritores de língua portuguesa.
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