Resumo: Redes e canais de TV tradicionais, como RTP [Rádio e Televisão de Portugal] e SIC [Sociedade Independente de Comunicação] em Portugal e Globosat e HBO [Home Box Office] no Brasil, têm uma abordagem mais conservadora em suas diretrizes gerais de legendagem no que diz respeito à norma padrão da língua (Ramos Pinto, 2010) e ao uso de palavrões e turpilóquios (HBO, 2001). Entre as orientações gerais para os tradutores de legendas estão, por exemplo, amenizar a linguagem de baixo calão e respeitar a norma culta do português. Com a chegada da Netflix ao mercado de legendagem, notou-se um afrouxamento dessas regras. O serviço de streaming permite o uso de palavrões sem qualquer tipo de censura e a redação de legendas mais idiomáticas e coloquiais (Netflix, 2023). O presente artigo pretende identificar orientações explícitas ou implícitas que justifiquem essa mudança de abordagem na confecção das legendas do serviço de streaming para o português. Para isso, procedemos ao levantamento e à análise das diretrizes gerais de legendagem de dois provedores de conteúdo audiovisual: HBO Latin America (2001) e Netflix (2023), lançando mão do conceito de normas de tradução (Toury, 1978) para detectar três conjuntos distintos de normas que atualmente coexistem no sistema de tradução audiovisual do português. O artigo discute ainda se as traduções amadoras, que costumam ignorar os parâmetros profissionais da indústria, exigem do espectador um esforço cognitivo maior. Como conclusão, sugerimos três explicações para o comportamento não normativo por parte dos tradutores da Netflix: (1) o desconhecimento das normas restritivas de outros agentes da indústria de legendagem, pois, com o advento da Netflix, uma nova geração de tradutores entrou no mercado; (2) o fato de os assinantes do serviço de streaming terem voz ativa na produção e na pós-produção dos programas que consomem; (3) as diretrizes linguísticas menos normativas da Netflix de fato deram espaço a um maior grau de liberdade às soluções tradutórias.
Palavras-chave: Tradução audiovisual, legendagem interlinguística, normas de tradução, serviços de streaming.
Abstract: Traditional networks and TV channels, such as RTP [Rádio e Televisão de Portugal] and SIC [Sociedade Independente de Comunicação] in Portugal, and Globosat and HBO [Home Box Office] in Brazil, have a more conservative approach in their general subtitling guidelines regarding the standard language norm (Ramos Pinto, 2010) and the use of profanity and vulgar language (HBO, 2001). Among the general guidelines for subtitle translators are, for example, toning down offensive language and respecting the educated norm of the Portuguese language. With the arrival of Netflix in the subtitling market, a relaxation of these rules has been observed. The streaming service allows the use of profanity without any form of censorship and the creation of more idiomatic and colloquial subtitles (Netflix, 2023). This article aims at identifying the explicit or implicit guidelines that justify this change of approach in the production of subtitles for the Portuguese language on the streaming service. To do so, we conducted an analysis of the general subtitling guidelines from two audiovisual content providers: HBO Latin America (2001) and Netflix (2023), utilizing the concept of translation norms (Toury, 1978) to identify three distinct sets of norms that currently coexist within the Portuguese audiovisual translation system. The article also discusses whether amateur translations, which often disregard the industry's professional guidelines, require a higher cognitive effort from the viewer. As a conclusion, we suggest three explanations for the non-normative behavior on the part of Netflix translators: (1) unfamiliarity with the restrictive norms of other subtitling industry agents, as the advent of Netflix brought a new generation of translators into the market; (2) the fact that streaming service subscribers have an active voice in the production and post-production of the programs they consume; (3) the less normative language guidelines of Netflix have indeed allowed for a greater degree of freedom in translation solutions.
Keywords: Audiovisual translation, interlingual subtitling, translation norms, streaming services.
Artigo
Palavrões e turpilóquios à vontade: os serviços de streaming e a atualização das normas de tradução para legendagem
Curse words and turpiloquies galore: streaming services and the new translation norms for subtitling texts
Received: 20 March 2024
Revised document received: 04 June 2024
Accepted: 09 May 2024
Published: 01 June 2024
A tradução audiovisual (TAV) é um campo em franco crescimento nos Estudos de Tradução, graças principalmente ao aumento da relevância e do consumo de produtos audiovisuais em todo o mundo, possibilitado pela tecnologia digital e pela internet. A título de exemplo, no YouTube, plataforma de compartilhamento de vídeos da Google e segundo site mais visitado do mundo, cinco bilhões de vídeos chegam a ser assistidos em um só dia. Um bilhão de horas de conteúdo são consumidas por dia, e 500 horas de vídeos são publicadas na plataforma por minuto (Aslam, 2023). Esse conteúdo circula instantaneamente por todo o planeta, e os criadores sabem que, se acrescentarem algum tipo de tradução audiovisual aos vídeos (geralmente legendas, modalidade mais barata e fácil de adicionar), seu alcance aumenta exponencialmente.
Se por um lado, seguindo as instruções contidas em alguns tutoriais simples, qualquer tradutor amador é capaz de aprender a legendar vídeos1, no caso da legendagem profissional, as grandes empresas de streaming estão provocando uma mudança no perfil do tradutor de legendas, pois o alcance da Netflix, empresa de referência na indústria audiovisual e presente em mais de 190 países (Brennan, 2018), gera um tal volume de conteúdo a ser traduzido que, pelo menos num primeiro momento, muitos amadores se profissionalizaram traduzindo para a empresa (Ghoshal, 2017). De fato, a evolução da tecnologia facilitou a criação, difusão e tradução de obras audiovisuais, o que por sua vez deu origem a novas práticas de TAV que vêm recebendo cada vez mais atenção da academia (O’Hagan, 2009; Orrego-Carmona, 2018).
Além da instantaneidade da circulação global de informação, a digitalização e a internet permitiram a formação de novos públicos. No caso da indústria audiovisual, a tecnologia digital deu origem a consumidores mais ativos, com mais poder sobre a produção do conteúdo e novos hábitos de consumo. Hoje, a experiência de assistir a um filme ou série é muito mais individual do que coletiva. Geralmente se dá em telas menores (computadores portáteis, tablets, smartphones), e os tradicionais conceitos de “país de legendagem” e “país de dublagem” (Gottlieb, 1998, p. 244) deixaram de fazer sentido (Pedersen, 2018, p. 84), pois o assinante de serviços de streaming tem cada vez mais opções à sua disposição. Ele pode assistir ao conteúdo com o áudio original e sem legendas, com o áudio dublado, ou ainda com o áudio original e legendas tradicionais (interlinguísticas) ou legendas para surdos e ensurdecidos (intralinguísticas). Em alguns casos, é possível também ativar o recurso da audiodescrição para cegos.
Outra consequência dos avanços tecnológicos foi o surgimento do conceito de prosumer (Pérez-González, 2012), o consumidor que também é produtor de conteúdo, um usuário que participa ativamente da produção e da pós-produção dos programas que consome. Há exemplos no jornalismo (telespectadores que mandam imagens de incêndios, acidentes, fazem denúncias etc.), na indústria fotográfica (fotógrafos amadores que disponibilizam imagens para venda em plataformas on-line) e também na indústria audiovisual, para citar apenas algumas áreas. Atualmente, os assinantes são muito ativos nas redes sociais, dando opiniões sobre o enredo de seriados, escolhendo pilotos que ganharão temporadas (caso das séries Mozart in the Jungle e Transparent, da Amazon) e se comunicando diretamente com os criadores de conteúdo. Esse empoderamento do consumidor levou a uma mudança no panorama de produção da indústria audiovisual, que passou a se guiar também pelas ações e reações quase imediatas do público espectador, um fenômeno que ganhou o nome de convergência (Jenkins, 2004).
Para se moldar aos novos hábitos de consumo e tentar contornar o problema da pirataria — uma das consequências negativas da globalização da distribuição do material audiovisual —, as empresas produtoras precisaram se adaptar, acelerando o fluxo de conteúdo através dos canais de distribuição, promovendo lançamentos mundiais simultâneos (como por exemplo Game of Thrones, da HBO) e lançando temporadas inteiras de séries ao mesmo tempo (prática introduzida pela Netflix, que levou ao fenômeno do binge watching) (Jenkins, 2004, p. 37). Apesar disso, mesmo se os diferentes serviços2 estivessem disponíveis em todos os mercados consumidores, o que não acontece, a fatia do público com condições de pagar as assinaturas de todos eles seria bastante reduzida, e muitas vezes a programação não é traduzida para todas as línguas. É aí que entram os chamados fansubbers, uma subcategoria de prosumers que podem ser classificados como tradutores não profissionais que produzem traduções3 voluntárias para seus filmes e séries favoritos.
Neste artigo, exploraremos como a atuação de fansubbers, cuja prática de tradução já foi classificada como “subversiva”, “abusiva” e “criativa”, e de tradutores novatos está levando a uma atualização das normas da tradução para legendagem profissional. Discutiremos ainda se as traduções amadoras, que muitas vezes desrespeitam parâmetros profissionais indicados nos guias de boas práticas da indústria, exigem um esforço cognitivo maior por parte dos espectadores.
A tradução para legendagem é restringida por limitações de espaço — o número de toques por linha depende do tamanho e do formato da fonte utilizada no texto das legendas — e de tempo, pois o texto das legendas deve estar bem sincronizado com o áudio correspondente. Como normalmente o ritmo de fala dos personagens é mais rápido do que o ritmo de leitura dos espectadores, o conteúdo das legendas precisa ser resumido para que o espectador tenha tempo suficiente de lê-las e assimilá-las sem que o processamento dos outros canais semióticos contidos na peça audiovisual (imagens e sons) seja prejudicado. Todo tradutor de legendas profissional tem — ou deveria ter — consciência desse aspecto multimodal do texto audiovisual e geralmente trabalha com softwares que calculam o número de caracteres e espaços que o tradutor tem à disposição por legenda em relação ao tempo que ela deve permanecer na tela. Esse parâmetro técnico, chamado velocidade de leitura, é indicado pela empresa que contrata o tradutor. Outra restrição à qual o tradutor de legendas precisa se adequar, e que também é indicado nos guias de estilo das grandes empresas de legendagem, dá-se no nível textual: regionalismos, palavrões, turpilóquios e nacionalizações de referências são desaconselháveis, pelo menos entre os grandes clientes do mercado brasileiro.
Todas essas restrições levaram Nornes (1999, p.17) a afirmar que “all subtitles are corrupt”. Em seu artigo polêmico, ele argumenta que a prática da tradução para legendagem é uma violência ao texto de partida, por configurar-se tanto um estorvo à imagem como por deixar de fora informações textuais relevantes. O autor defende então que essa violência, em vez de “corrupt”, que poderíamos traduzir como “desonesta”, deve ser abusiva, tanto no nível linguístico como no gráfico. A legenda abusiva deve levar a soluções criativas em vez de domesticar toda a alteridade (Nornes, 1999, p. 18). Nornes cita como exemplos a adoção de recursos como “[piada intraduzível]”, quando não há tradução adequada possível, e o aumento da fonte das legendas para indicar que um personagem está gritando.
Na gênese da legendagem amadora, isso era muito frequente. Os fansubbers não se preocupavam com restrições de tempo e espaço nem com a censura de turpilóquios, por exemplo. Para eles, os tradutores profissionais resumiam demais a informação e adotavam uma atitude servil, de autoanulação. Por isso, os amadores tinham o desejo explícito de se distanciar dos profissionais, tornando-se visíveis para os usuários de suas legendas, fosse desafiando narrativas convencionais — o que Pérez-González (2012) chama de remediação — através de comentários e explicações sobre o que se passava no vídeo, fosse exercendo o papel ativo de cocriadores de conteúdo — ou participação (Pérez-González, 2012) — através de inovações estéticas, como legendas de mais de duas linhas, de tamanhos e cores diferentes e surgindo em locais inesperados da tela. Era prática comum entre os tradutores amadores, por exemplo, incluir explicações longas entre parênteses e adotar uma velocidade de leitura muito alta, o que exigia que o espectador pausasse o vídeo para ler toda a informação contida nas legendas e nas caixas de texto adicionadas à imagem.
Como é óbvio, se o espectador não consegue acompanhar o ritmo natural do programa nem ler o conteúdo das legendas sem pausar o vídeo, a legendagem perde sua eficácia cognitiva. A hipótese da eficácia cognitiva da legendagem profissional foi amplamente investigada desde a década de 1980 (D’Ydewalle et al., 1987) e confirmada mais recentemente através de investigações empíricas que lançam mão de métodos mistos de coleta de dados (rastreamento ocular, questionários e entrevistas), o que levou a resultados mais confiáveis e cientificamente rigorosos (Lång, 2016; Perego et al., 2010). Essa hipótese defende que, se as legendas forem confeccionadas obedecendo a parâmetros profissionais de segmentação, velocidade de leitura e número de linhas, a legendagem é uma modalidade de TAV tão eficaz quanto a dublagem ou a narração (também chamada de voice-over ou sonorização) para a compreensão geral do conteúdo audiovisual.
Se o tradutor, nos termos defendidos por Nornes, abusa da criatividade, seja ela estética, ao posicionar legendas ou caixas de texto em locais inesperados da tela, ou linguística, ao optar por uma tradução mais extensa e próxima ao texto de partida, ou até mesmo ao recorrer a comentários textuais adicionais, o esforço cognitivo exigido do espectador para decodificar a legenda será maior. Logo, pode-se argumentar que a criatividade deixa de servir a seu propósito.
McClarty (2012) parte do conceito de “legendagem abusiva” de Nornes para propor um meio-termo, ou seja, uma legendagem profissional mais criativa, sim, mas que tenha em conta os códigos da linguagem cinematográfica. As legendas não devem ser abusivas a ponto de prejudicar a fruição das imagens, como às vezes sugere Nornes. McClarty defende que, para produzir legendas de fato criativas, o tradutor precisa estar ciente da multimodalidade do texto audiovisual e adquirir um certo conjunto de competências. Segundo a autora:
This expanded skill set means that the subtitler must possess, not only the skills of a translator (with all the linguistic capabilities and cultural awareness that this entails), but also the skills of a cineliterate film viewer, capable of reading the film text, its characters and their relationships, and the various filmic devices used to convey meaning
(McClarty, 2012, p. 149).E de fato é isso que está acontecendo. Depois desse primeiro momento de distanciamento proposital do tradutor profissional “desonesto” e “subserviente”, testemunhamos um momento de confluência. Inúmeros fatores contribuíram para isso, entre eles as inovações estéticas possibilitadas pela tecnologia e a chegada de novas empresas ao mercado da TAV, o que promoveu a profissionalização de tradutores audiovisuais novatos, que haviam começado a traduzir de forma mais livre por desconhecerem muitas de suas normas e parâmetros.
Se por um lado algumas práticas abusivas comuns na legendagem amadora, como legendas que “flutuam” na tela (Figura 1), hoje já são comuns na legendagem profissional, por outro, as comunidades on-line de fansubbers passaram a adotar práticas cada vez mais profissionais, com guias de estilo e parâmetros técnicos a serem seguidos pelos tradutores e uma etapa de revisão do arquivo legendado. Essa convergência também teve consequências claras no texto das legendas profissionais. As traduções veiculadas pela Netflix são marcadamente mais coloquiais e criativas, nos termos propostos por Nornes, pois rompem com as regras até então vigentes no mercado de legendagem, como veremos a seguir.
Redes e canais de TV tradicionais, como RTP e SIC em Portugal e Globosat e HBO no Brasil, apesar de apresentarem perfis bastante distintos, têm uma abordagem mais conservadora em suas diretrizes gerais de legendagem no que diz respeito à norma padrão da língua (Ramos Pinto, 2010, p. 261) e ao uso de palavrões4. A orientação geral costuma ser amenizar linguagem de baixo calão e turpilóquios e respeitar a norma culta do português, como evitar a mistura de conjugações em segunda e terceira pessoa do singular (“tu” e “você”) na mesma legenda e o uso da próclise no início de frases (“Me dá isso!”), ambas práticas correntes no português brasileiro coloquial.
O surgimento de novos e relevantes atores na indústria da legendagem levou a um afrouxamento das diretrizes de legendagem de canais de televisão tradicionais. Como Toury (1978) destaca em sua obra seminal sobre as normas de tradução, as normas que dominam o centro do sistema são chamadas de mainstream. Na periferia pairam os vestígios de conjuntos anteriores de normas (antiquadas) e os rudimentos de novas normas (de vanguarda). Não é raro encontrar lado a lado numa sociedade a mistura dessas três normas concorrentes. É possível traçar um paralelo com o que estamos testemunhando hoje: os parâmetros da TV aberta refletiriam normas antiquadas; as diretrizes dos canais de TV a cabo ocupariam o centro do sistema, e os serviços de streaming, os novos atores da indústria, seriam os responsáveis pelos rudimentos das normas de vanguarda, uma vez que seus tradutores, adeptos de um comportamento menos normativo, em vez de serem punidos por suas soluções criativas, estão recebendo elogios.
Apesar de a Netflix ter um perfil bem diferente daquele dos canais tradicionais abertos de televisão, em termos comerciais, tanto Netflix como SIC, HBO e Globosat são serviços fechados, pagos. Portanto, o que levaria a uma diferença tão significativa na forma como as legendas são produzidas? Uma análise comparativa entre os parâmetros do serviço de streaming, disponíveis on-line, e os do canal HBO Brasil5 pode revelar algumas pistas.
Na página intitulada “Timed Text Style Guide: General Requirements” não há nenhuma orientação em relação à forma como o tradutor deve encarar a tarefa da tradução. As instruções que tratam disso estão presentes nos guias de estilo específicos para cada língua. No item I.18 (Special Instructions) da página “Brazilian Portuguese Timed Text Style Guide”, por exemplo, encontramos as seguintes orientações:
• Dialogues must never be censored. Expletives should be rendered as faithfully as possible.
• […]
• Always match the tone of the original content, while remaining relevant to the target audience (e.g. replicate tone, register, class, formality, etc. in the target language in an equivalent way)
• […]
• Both language styles (i.e., educated norm and colloquial style) are acceptable, as long as they are appropriate to the nature of the program. For instance, a series such as Orange Is The New Black calls for the use of colloquial style, whereas as series such as Marco Polo should be subtitled using the educated norm.
• Both forms of the second person singular (você and tu) are acceptable.
• Using the correct grammatical form should always be preferred, except for clearly established deviations from the norm that would otherwise imply an artificial sophistication not intended in the content. E.g. “Eu te amo”, “Me liga”, etc.
• Contractions such as “né”, “pra”, and “tá” should be used only as needed to convey a high level of informality when appropriate for the content. “Num”, “numa”, and “cadê” are acceptable
(HBO, 2001).Trata-se de orientações gerais que permitem a tradutores e revisores um grau de liberdade bem maior do que alguns manuais de canais de TV, como os exemplos a seguir, retirados das diretrizes da HBO Latin America, revelarão.
A respeito da concepção de tradução para legendagem, o guia da HBO traz a seguinte orientação: “Subtitling is the art or rewriting the dialogue into another language or linguistic code enabling the viewer to comprehend and follow a plot” (HBO, 2001, p. 9). Essa afirmação está contida no item “Slang, Regionalism, Dialects” e vem logo após a orientação para omitir ou neutralizar gírias, regionalismos e dialetos.
O item “Subtitling Language Style” traz a seguinte informação:
HBO LAPS does not accept the usage of colloquial (spoken) language within translated subtitle files. Rather, proper written Portuguese should be used, observing rules of grammar, punctuation, language structure and word order. On the following page are some examples of colloquial forms (Incorrect) and the proper written forms to be adopted (Correct)
(HBO, 2001, p. 1, grifo do original).Os exemplos apresentados a seguir confirmam que de fato a HBO não aceita a linguagem corrente, pois inclui entre os “incorretos” termos já há muito consagrados no português brasileiro, como “ter que”, “me dá”, “Deixa eu sair daqui”, “Segura aí, John (forma imperativa)” e outros (p. 2), que tornam o texto da legenda mais natural e próximo da língua falada.
O item “Offensive Words and Vulgarity” informa que:
Offensive words and vulgarity should not be translated verbatim […]. Specific cursing (…son of a b---, or f--- you, etc.) can easily be understood in its original language. If such cursing is present in a short sentence there is no need for translation. Let the soundtrack stand by itself
(HBO, 2001, p. 8).Além do fato de que pode haver surdos e ensurdecidos assistindo aos programas, será que todos os assinantes da HBO entendem facilmente palavrões em qualquer que seja a língua original do áudio?
A lista de vulgaridades proibidas é muito extensa. Reproduzimos aqui apenas aquelas consideradas mais leves: babaca, bicha, peido, peidou, peidar, peidando, bosta, cacete, cagando, cagar, cagou, sacana, sacanagem, sacanear (HBO, 2001, p. 8−9).
Em relação às gírias, o guia informa que elas são passageiras e devem ser evitadas, pois datam o programa. Os regionalismos devem ser neutralizados e os dialetos, apagados, como dito anteriormente.
Como a análise dos manuais demonstrou, de fato os parâmetros da HBO são muito mais rigorosos e restritivos do que os da Netflix, mas não há nenhuma orientação entre as diretrizes da segunda que aborde explicitamente os limites da criatividade permitidos na tradução. Então, o que faz com que os tradutores tomem tantas liberdades e produzam soluções mais criativas e idiomáticas em suas versões?
O que inferimos é que, livres das “estruturas normativas de equivalência” (Robinson, 1998), os tradutores conseguem, ao se deparar com um problema de tradução, criar soluções de sucesso. A análise das diretrizes da Netflix demonstrou que, por serem mais generalistas e menos restritivas, elas podem dar espaço a esse tipo de soluções.
Assim como aconteceu com o surgimento da SIC em Portugal, que, com sua renovação de práticas linguísticas, promoveu “um processo de democratização da tradução abrindo o mercado a novos tradutores [...], uma forma de tanto o canal de televisão como os próprios tradutores marcarem a diferença face ao canal público de televisão” (Ramos Pinto, 2010, p. 261), com o advento da Netflix, tradutores que nunca tinham trabalhado na indústria, e que portanto desconheciam suas normas, começaram a traduzir de forma mais livre.
Em um artigo que discute as leis de Toury e propõe que elas seriam estratégias para evitar riscos, Anthony Pym afirma que tradutores são avessos ao risco, pois a atividade tradutória não é sujeita a nenhuma estrutura de recompensa que justifique a disposição para correr riscos. Sendo assim, os tradutores tendem logicamente a evitá-los (Pym, 2008). Seguindo esse raciocínio, as traduções menos normativas e mais criativas dos novos tradutores da Netflix não seriam resultado de ousadia, pois dificilmente estariam dispostos a correr riscos que pudessem gerar punições. Como a punição não veio — pelo contrário, as traduções mais “criativas”, “coloquiais”, “subversivas” foram recompensadas, pois têm gerado elogios, como veremos — a estratégia foi aprovada e perpetuada.
Portanto, o surgimento da Netflix sem dúvida promoveu uma revisão das normas vigentes de legendagem. Além disso, trouxe inovação e renovação às estratégias adotadas pelos tradutores, que passaram a criar legendas mais coloquiais, naturais e linguisticamente mais próximas do registro do diálogo de partida. Pelo menos nesse caso, a criatividade pode ser associada a normas tradutórias menos restritivas.
Como dito anteriormente, essas traduções mais “subversivas” estão ganhando elogios nas redes sociais6 e em sites de notícias sobre entretenimento (Paz, 2018), o que colabora para que se perpetuem e promovam uma revisão das normas vigentes de legendagem. Vale chamar a atenção para a relevância da participação dos prosumers no contexto da Web 2.0, não só através de comentários externos como também avaliando as traduções na própria plataforma do serviço de streaming. A Netflix disponibiliza um recurso de feedback instantâneo para problemas de exibição de seu conteúdo que inclui a opção “Legendas” (Figura 2). Ao ativar o recurso, o assinante pode relatar problemas como legendas ausentes, difíceis de ler, que não correspondem ao áudio e com erros de ortografia e tradução.
A participação ativa do espectador poderá impactar não só o conteúdo das legendas como também a forma como consumimos produtos legendados, uma vez que o feedback que der a partir do conforto de seu lar pode lançar luz sobre perguntas que os investigadores de TAV tentam responder há décadas, sem sucesso, devido ao ambiente controlado e muitas vezes artificial dos laboratórios.
No livro Areas and Methods of Audiovisual Translation Research, Bogucki cita Jan Pedersen, para quem:
The predominant ideal of fluency in translation – so much despised by Venuti – is paramount in subtitling. It is simply just not possible to produce a ‘resistant’ TT […], because the viewer has in most cases no opportunity of going back and rereading the text
(Pedersen, citado por Bogucki, 2016, p. 46).De fato, os professores de legendagem ensinam que a legenda deve ser o menos intrusiva possível e transmitir de forma clara e resumida as ideias centrais dos diálogos, uma vez que raramente é possível traduzir todo o seu conteúdo. Uma legenda invisível, que não chame a atenção, é o que os alunos devem buscar. Um comentário comum entre os tradutores de legendas é que eles nunca ouvirão um espectador elogiar a tradução ao sair do cinema. As legendas só chamam a atenção quando contêm erros.
Mas há uma clara incongruência na afirmação de que a boa legenda é aquela invisível, posto que as legendas são informações textuais adicionadas às imagens. Muitas vezes, elas são exibidas independentemente da vontade ou da necessidade do espectador (como no cinema e na maioria dos canais de TV) e podem inclusive cobrir informações visuais importantes. Nornes (1999, p. 17) chama a atenção para essa inevitabilidade das legendas.
A fluência, que segundo Pedersen seria desprezada por Venuti, diz respeito ao conceito de “invisibilidade do tradutor”. Para Venuti (2017), que teorizou sobre a tradução literária, os editores, os críticos literários e os leitores aprovam traduções “fluentes”, que transmitem a sensação de terem sido escritas na língua da cultura de chegada. Essa domesticação, entre outras coisas, apaga as marcas culturais do outro e leva à invisibilidade do tradutor. Venuti (2017) defende, como estratégia de resistência, a estrangeirização: o tradutor deve registrar sua marca no texto, produzindo uma tradução marcadamente diferente do texto de partida, como forma de valorizar a cultura estrangeira e trazer visibilidade a si próprio como criador de uma nova obra.
Parece-nos possível transportar esse conceito para a legendagem, dado que, de certa forma, é isso que a nova geração de tradutores está fazendo, como mostra o artigo “Gols do Fantástico em série americana?” (Paz, 2018) e tantos outros exemplos que chamam a atenção não para as omissões e os defeitos contidos nas legendas, mas para a sua criatividade e qualidade. Portanto, a visibilidade da tradução para legendas não deve ser encarada exclusivamente como um problema que pode afetar a recepção no nível cognitivo, seja porque permaneceu na tela tempo insuficiente para ser lida na totalidade, seja porque continha um erro que fez o espectador hesitar e perder o fio da meada.
Como vimos, é perfeitamente possível que o tradutor de legendas se torne visível e atinja o estatuto de produtor de significados, de colaborador criativo, sem desrespeitar as normas técnicas, o que representaria um possível estorvo cognitivo para o espectador. Nas palavras de McClarty:
Creative subtitles, then, aim to achieve difference rather than sameness. Just as other texts are completed in translation, given new meaning as they move across cultures, so too will creative subtitles allow the film text to gain new meanings in translation
(McClarty, 2012, p. 140).Uma característica peculiar da legendagem, a de que o espectador tem acesso simultâneo ao texto de partida e ao texto de chegada, permite que as legendas sejam criticadas instantaneamente. E os elogios que as traduções criativas vêm recebendo podem ser um indício de que o público receptor as está aprovando, desde que usadas com bom senso.
sabrina.martinez@edu.ulisboa.pt