Artigos

Received: 09 April 2023
Accepted: 18 July 2023
DOI: https://doi.org/10.29327/210932.11.1-2
Resumo: Este trabalho apresenta reflexões em torno às formas abstratas e concretas a partir das teorias de Deleuze, Guattari, Foucault e Eco e questiona, principalmente, seus limites, sua possível divisão, hierarquia e implicações na construção de sentido. Além disso, procura sair das proposições linguísticas sem negá-las, e propor uma formulação esquemática da construção de sentido. Refletimos sobre o diálogo entre “formas abstratas” e “formas concretas”, e dos possíveis desvios que implica a eleição de certas formas e outras não. A respeito das implicações na tradução, pretende-se destacar as possíveis problemáticas que o sentido apresenta ao passar por três processos de construção que chamamos de “tradutor-primeiro”, “tradutor-segundo” e “leitor” (ou tradutorterceiro), considerando que este processo já está condicionado por dois fenômenos que têm lugar na interpretação: o fracasso e a entropia.
Palavras-chave: Formas, Sentido, Tradução, Fracasso-Entropia, Interpretação.
Resumen: Este artículo presenta reflexiones sobre las formas, a partir de las propuestas teóricas de Deleuze, Guattari, Foucault y Eco, principalmente, y se interrogan los límites de las formas, su posible división, jerarquía e implicaciones en la construcción de sentido. Además, se busca salir de los planteamientos lingüísticos sin negarlos, y proponer una formulación esquemática para la construcción de sentido. Reflexionamos sobre el diálogo entre las “formas abstractas” y las “formas concretas” y de los posibles desvíos que implica la elección de unas formas y no otras. Con respecto a las implicaciones en la traducción, se pretende destacar las posibles problemáticas que presenta el sentido al pasar por tres procesos de construcción, que hemos llamado de “traductor-primero”, “traductor-segundo” y “lector” (o traductor-tercero); aunado a que este proceso se ve condicionado por dos fenómenos acaecidos durante la interpretación: el fracaso y la entropía.
Palabras clave: Formas, Sentido, Traducción, Fracaso-Entropía, Interpretación.
INTRODUÇÃO
A interpretação como processo de entendimento, de conhecimento, de releitura, apresenta complicações que não estão simplesmente ligadas à decodificação de signos linguísticos, ou signos escriturais. Ela constitui, efetivamente, processos complexos de construção de sentido. Se bem outorgou-se à escrita um papel fundamental na transmissão de saberes, também é certo que esses saberes não estão realmente nas formas gráficas da escrita, isto é, não estão exatamente nas palavras que os nomeiam, mas estão além de qualquer forma material, seja escrita, pictural, musical, etc.
Quando praticamos qualquer processo de leitura, não observamos um processo único de construção de sentido. Realmente, vemos um processo onde avançamos sempre na tentativa de harmonizar as formas que estão diante de nós, formas que se apresentam como um fenômeno empírico de leitura. Esse fenômeno com suas formas modela nosso pensamento, e consequentemente, dão forma às nossas ideias, às nossas formas de ver e pensar o mundo. Somente na harmonia dessas formas, na coincidência de umas com outras, é possível construir um caminho que nos leve até o sentido profundo que se encontra muito além do processo de leitura, de decodificação de signos. Mas, como a construção desse caminho é feita por alguém, por um ser humano interpretante e percipiente de formas, então há uma eleição particular dessas formas. Por isso, esse processo eletivo já nos coloca num caminho particular, o caminho do interpretante A, ou do interpretante B, C etc.
Se estamos diante de um processo complexo de interpretações, podemos ver que a complexidade vai além quando falamos de tradução, porque parte do trabalho do tradutor implica o entendimento do sentido nas formas utilizadas na língua de origem, além do possível conhecimento dos porquês dessas eleições formais, isto com o intuito de levar esse sentido a outras formas na língua para qual se traduz. Complexo porque se trata de harmonizar as formas da língua 1 com as formas da língua 2. Neste sentido, este trabalho apresenta algumas reflexões a respeito das formas na construção de sentido e a implicação dessa construção de sentido nos processos traslatícios.
DAS FORMAS À CONSTRUÇÃO DE SENTIDO[1]
Há uma complicação de explicar as questões que escapam constantemente da concreção, da construção de objetividade. Se formos (verdadeiramente) cientes do mundo em que vivemos, das suas leis já enunciadas por grandes pensadores e redescobertas por outros tantos, daríamos conta de um princípio básico que perpassa todos os âmbitos da Vida. Entenda-se Vida com “V” maiúsculo num sentido amplo, abrangente e transcendental, diferente de vida com “v” minúsculo que seria num sentido mais fechado, centrado, tipo biológico. Esse princípio básico é o binômio transcendental da Vida: tempo/ espaço.
A questão problemática com esse princípio é que nos enfrentamos com ele sempre em desvantagem. Por um lado, nossa capacidade cognitiva, intelectiva e sensitiva, não é suficientemente apta para captar a magnitude do princípio. É por isso que só alguns personagens, com certa capacidade, e dividindo em parcelas a realidade, tenham se acercado a ele, embora, não saibamos quão perto ou quão longe. E, por outro lado, a maior desvantagem que temos diante do princípio tempo/espaço é não poder nomeá-lo na sua vastidão, na sua amplitude. Quanto mais sabemos dele, menos podemos dizer. O próprio Santo Agostinho identificou esta aporia ao se perguntar dialogicamente: “O que é o tempo? Se ninguém me pergunta eu sei; se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei” (AGOSTINHO, 2017, p. 348).
Tempo/espaço implicam movimento. Tempo/espaço implicam a impossibilidade de um mundo concreto e objetivo via discurso porque, quando construído, ele mesmo se transforma em outro mundo no instante seguinte. Em um outro que, ainda que pareça similar ao anterior, o tempo e o espaço, no seu infinito movimento, mudam e, ao tempo, debilitam os laços que unem o primeiro com o final, e que terminam conferindo certa autonomia entre ambos mundos, entre aquele da origem e aquele do final. Assim, é claro que não escapamos a aquela ideia associada ao pensamento de Heráclito de Éfeso: “Todas as coisas estão em movimento e nada permanece, e, comparando as coisas ao fluxo de um rio, ele diz [Heráclito] que não se poderia entrar duas vezes no mesmo rio.” (KIRK, apud SILVA, 2017, p. 61)
No mundo, não existe per se uma divisão categorial e disciplinar que favoreça o estudo do próprio mundo em tal ou qual sentido, em tal ou qual direção. Essa divisão é o produto empírico e singular da ação humana sobre a natureza. Quer dizer, a humanidade criou uma vasta série de abstrações para poder compreendê-lo. Sem essas abstrações, o desenvolvimento das ciências haveria sido impossível, simplesmente não existiria nada do que o mundo atual oferece tecnologicamente, nem muita da compreensão humana que temos hoje de nós mesmos.
Através dessas abstrações é que chegamos ao problema das formas na construção de sentido, não sem reconhecer que isso represente um outro impasse, uma outra aporia, porque só podemos aproximar-nos ao conhecimento desse sentido, mas não chegar a ele precisamente. Ao longo do tempo viemos construindo formas para pensar e entender a realidade[2], formas de interpretá-la. Foucault, em Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum (1997), afirmou: “[...] cada forma cultural da civilização ocidental, teve o seu sistema de interpretação, as suas técnicas, os seus métodos, as suas formas próprias de suspeitar que a linguagem quer dizer algo de diferente do que diz, a entrever que há linguagens dentro da mesma linguagem” (FOUCAULT, 1997, p. 15, tradução de Antonio Daniel Abreu).
Ainda quando Foucault analisa o assunto como um problema de linguagem, nós sabemos que “linguagem” é já um viés da realidade ampla, pois, conforme afirma Guattari:
Meu sentimento de identidade pessoal vê-se atraído em diferentes direções. Atravessado por semelhante diversidade de componentes de subjetividade, como posso conservar um sentimento de unicidade? [...] Os diversos componentes conservam sua heterogeneidade, mas são captados por um ritornelo que fixa o território existencial do eu[3]. (GUATTARI, 2015, p. 30, tradução nossa)
Por outras palavras, percebemos o mundo com amplitude, sem o que parece ser o artifício de unicidade; isto devido a que a realidade, embora seja observável como um todo, como uma categoria totalizante, para si mesma nos encontramos com heterogeneidades, com elementos individuais e individualizantes.
A importância de trazer à tona a reflexão de Foucault deve-se a seu apontamento sobre o sistema interpretativo do século XVI, baseado na semelhança (convenientia, emulatio, signatura e analogia), já que posteriormente traça a relação existente entre essas diferentes semelhanças na construção de sentido (cognitio, divinatio, consensus, simulacrum) e na construção de novos sistemas interpretativos da realidade no século XIX (FOUCAULT, 1997, pp. 15-20). Parece claro, então, que, nesse caminho de interpretação do mundo, foi sempre necessário construir formas que pudessem nos apoiar na compreensão da realidade totalizante e/ou individual, quer dizer, interpretá-la como fenômeno total ou como conjunto de fenômenos. Eis aqui que precisamos tomar cuidado, porque, quando falamos de formas, deve-se entender que não devemos confundir as formas abstratas com as formas concretas.
O mundo, sua realidade e tudo quanto ele é, se encontra fluindo ad eternum no espaço/tempo como se fosse uma unidade, mas uma unidade amorfa[4]. Nós pertencemos a seu nível de realidade, como os órgãos e as células pertencem ao nosso nível de realidade, mas com a grande diferença que ele não é dependente de nós, ainda quando nós possamos afetá-lo em uma ou outra medida. A questão é, quando precisamos compreender esse mundo, escindimos com o fio da abstração sua realidade imanente e o despojamos de sua unidade amorfa, isto é, cortamos abstratamente seu fluxo ad eternum de espaço/ tempo e construímos formas desses cortes. De tal sorte que podemos observar os cortes como se fosse a natureza matemática, a natureza química, a física, a linguística etc. Essas primeiras formas serão necessariamente abstratas e serão aquelas que permitirão o trânsito entre a percepção e a afecção como se fosse a interação entre corpos na realidade:
O que se chama de percepção não é mais um estado de coisas, mas um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo, e afecção é a passagem deste estado a um outro, como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos: nenhum é passivo, mas tudo é interação. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 183)
E é precisamente nesta interação entre corpos percipientes, nesta criação de formas abstratas, que se constrói o sentido do mundo percebido. Essas formas, por serem abstratas, se encontram muito além da própria realidade convencional.
Dizer que existe um outro lugar à parte da realidade per se, onde se encontram as formas abstratas, nos leva a considerar a existência de uma outra realidade, que chamaremos aqui de realidade utópica ou dimensão das utopias. É nessa realidade utópica onde se encontram as potências das formas abstratas, isto é, seu “poder-dizer-abstrato”, por outras palavras, a potência da abstração de poder ser transformada em fenômeno do “dizer”. Mesmo que possamos nomear agora essas abstrações como “ideia, se formos além, diríamos que essas potências também são “conceitos”, “prospectos”, “perceptos” e “afectos”[5]. Vemos como, para explicitar-nos, também utilizamos essas formas num diálogo sináptico, porque uma chama outra, os conceitos chamam os prospectos, os afectos, etc. possibilitando-se assim o sentido. Quando se chama uma ideia a nossa mente, esta chama a outras ideias, chama a várias palavras[6] para ser nomeada e chama a muitas outras formas para se constituir em sentido.
Após as formas abstratas, passamos agora para as formas concretas. Eis aqui que aparecem todas as substâncias materiais com a capacidade de conter em si próprias a marca da realidade utópica. As mais importantes são a oralidade e a escrita. Seu conjunto ajuda-nos na recuperação do sentido, isto é, nesse andar do caminho das formas na construção de sentido. Essas substâncias materiais, no entanto, podem ser de natureza diversa, sobretudo porque o indivíduo faz do mundo um tecido semiótico. Por exemplo, quando alguém vê um fenômeno natural, várias interpretações surgem desse fenômeno que não só integra a percepção pela visão, mas também pela audição e todos os outros sentidos. Desse modo constrói-se um ou vários sentidos passando por todas as dimensões de realidade, e necessariamente o interpretante reage de um modo X. Então, a substância material das formas concretas pode ser de natureza visual, acústica, olfativa, gustativa e tátil (por dizer o mínimo), porque, reiterando as palavras de Guattari, percebemos a heterogeneidade do mundo como um todo (GUATTARI, 2015, p. 30).
A voz, a palavra e a escrita contêm as marcas das abstrações porque são o locus das formas concretas, e obrigam seu interpretante a reagir de certos modos, segundo tenha interpretado essas formas, isto é, segundo tenha avançado no caminho das formas e no seu diálogo sináptico. Manifesta-se, porém, um outro problema na tentativa de achar o sentido: o problema da interpretação das formas (abstratas e concretas).
Se a realidade primeira é um fluir constante no tempo/espaço, e dela fizermos um corte sincrônico para obter suas abstrações, que logo depois transformamos em formas concretas, então, necessitamos saber como interpretar estes signos despojados de sua matéria prima: o tempo e o espaço. A questão é que não basta saber que essa forma concreta, também chamada signo, está apontando em uma direção X, que é a direção do seu sentido, mas também saber que:
Cada classe de signos tem sua própria linha de tempo privilegiado que lhe é correspondente. Porém, também está o pluralismo, que multiplica as combinações. Cada classe de signos participa de modo desigual em várias linhas de tempos, uma mesma linha mistura de forma desigual várias classes de signos.[7] (DELEUZE, 2021, p. 29)
Isto quer dizer que: 1) estamos construindo o sentido como quem navega só conhecendo o mapa e não o mar, isto é, só pelos signos que podem “ser” e “aparece” em vários lugares; e que 2) nós somos sujeitos afetados também pelo tempo e pelo espaço e, portanto, nossa interpretação estará na medida dessa afecção que representa uma desigualdade na interrelação dos signos e seus tempos.
Uma forma concreta também será afetada em sua interpretação sem importar quanto esteja apontando fixamente para seu sentido, porque a interpretação também se vê condicionada pelo que Umberto Eco (2015) chama de intentio (auctoris, operis e lectoris), e, sobretudo, porque já podemos observar como coincidimos com esta ideia do próprio Eco: “Os signos [...] são uma organização de significantes que, ao invés de servirem para designar um objeto, designam instruções para a produção de um significado” (ECO, 2015, p. 6). Nós diríamos, as formas (signos) são uma organização (um caminho) para a construção do sentido.
Onde está o sentido? ou, qual é o sentido? Sabemos que ele é construído através das formas (abstratas e concretas) e da interpretação das intentio, sob o denominador tempo/ espaço. Daí que, num primeiro momento, possamos dizer que esquematicamente temos dois modelos que apontam para o sentido. Esses dois modelos vão depender segundo consideremos soma ou multiplicação das formas e das intentio.


É através destes esquemas que se revela o sentido quando percebemos que estamos diante de uma equação do tipo: “x+y=0”, ou, por colocar outra formulação que contemple espaço/tempo: “(x+y)/z=0. Ainda quando possa parecer complexa, esta equação não é outra coisa diferente do que Lukács afirma sobre o sentido: “O sentido mais profundo das formas consiste em: conduzir ao momento de grande silêncio e dar à variegação sem objetivos da vida uma forma tal como se for na busca de esses instantes” (YVARS, apud LUKÁCS, 2018, p. 26, tradução nossa). As relações entre formas abstratas e concretas, ligadas às intentio sobre o denominador espaço/tempo, nos conduzem ao silêncio profundo, ao sentido, à harmonia das formas.
A origem do sentido se encontra nessa realidade primeira onde tudo começa. O caminho construído pelas formas e interpretações, sob o tempo/espaço, não é mais que a tentativa de achar o caminho de retorno à origem. É um ir e vir da realidade primeira até o sujeito percipiente (ou interpretante) e do sujeito percipiente até o mais próximo dessa realidade. Dizemos mais próximo da realidade primeira, porque a interpretação está condicionada pelo tempo e espaço, isto é, pelo aqui e agora da interpretação. Então, o sentido é esse encontro harmônico entre 1) a realidade primeira (qualquer que esta seja), 2) as formas (abstratas e concretas) e 3) a interpretação das formas (signos) através das intentio (auctoris, operis e lectoris), tudo sob condicionamento do binômio transcendental da vida: tempo/espaço. O sentido é a harmonização de todos esses elementos até chegar ao silêncio, a zero, quer dizer, à origem; e não existe só um caminho, senão vários e diversos.
Para melhor compreensão da ideia aqui exposta, faremos uma analogia com uma chave. Para que uma chave possa abrir a fechadura de uma porta, os ápices devem conseguir colocar os pinos e contrapinos no lugar certo, só desse modo a chave gira e libera o seguro. O caminho das formas (abstratas e concretas) buscam essa harmonia, essa colocação no lugar certo, para poder liberar o seguro, ou seja, para poder aceder ao sentido, à zona zero.
IMPLICAÇÕES NA TRADUÇÃO
Talvez seja necessário, ao começar esta parte, abandonar, se não todas, sim algumas certezas que temos sobre a tradução. Em primeiro lugar, porque há uma ligação muito forte entre a tarefa de traduzir e as formas linguísticas. Em segundo lugar porque, segundo o que propusemos anteriormente, não é nas formas linguísticas onde buscamos o sentido. E, finalmente, porque, como sujeitos percipientes de uma realidade ampla e continua, da que abstraímos formas, está claro que estamos condicionados por dois efeitos da interpretação: o fracasso e a entropia. Do mesmo modo, e como pode-se advertir nos três pontos anteriores, nossa visão de tradução pretende ser ampla, não apenas falar de tradução entre línguas.
A construção do conhecimento na ciência (em geral) esteve sempre no sentido de criar monolitos inamovíveis que dessem sustento aos saberes futuros (FOUCAULT, 2010a). Monolitos em forma de conceitos, termos, princípios etc. que, se bem não podemos nos afastar deles, de certa sincronicidade (ilusória) funcional, podemos e devemos questionar sua amplitude e funcionalidade na explicação, talvez, dos mesmos fenômenos, mas que estão sendo investigados desde focos muito distintos, desde outros tempos e espaços. E não podemos nos afastar desses monolitos, ora porque são fundamentais no desenvolvimento próprio das ciências, ora porque formam parte da herança que a ciência faz ao conhecimento humano.
Vale a pena assinalar que, o que rege este trabalho é a dúvida razoável, o questionamento constante sobre o que se afirma e afirmamos, com o intuito de nos aproximar àquilo que precisamente tentamos explicar: o sentido. Ao propor esse nosso ponto de vista sobre a construção de sentido, e agora sobre a tradução, não pretendemos que ele seja considerado como fixo, senão como aproximativo, como tentativo. Logo, este trabalho questiona seus próprios monolitos e não só fala do sentido como objeto abstrato de sua pesquisa, mas sim que, na sua elaboração, procura também achar um sentido final ao trabalho que escrevemos aqui, aquele sentido que se oculta na zona zero, no momento grande de silêncio (LUKÁCS, 2018, p. 26). Por tanto, esta segunda parte é regida pelo princípio de “incertidumbre”, palavra que utilizamos em espanhol cientes do paradoxo que é falar de tradução e não querer utilizar “incerteza”.
Nós não pensamos a tradução como processo traslatício de formas meramente linguísticas (linguagem-língua). Isto é, nós não falamos só de formas como monemas, grafemas, lexemas, ou aliás de morfossintaxe, pragmática, semântica, fonética, etc. (que também consideramos como formas da linguística). Nós nos referimos a tudo o que está além das questões verbais onde se expressa o conhecimento, falamos da realidade toda. Sobretudo porque, as formas materiais (concretas) da língua não são unívocas e equivalentes com seu conteúdo (FOUCAULT, 2016, p.79), mas sim, conforme afirmamos, são uma organização significante que aponta em direção ao sentido (ECO, 2015, p. 6), ao encontro da harmonia.
O problema aqui é que, se nosso princípio de pesquisa é a incertidumbre, a dúvida razoável sobre aquilo que recebemos como formas de realidade, ergo parece lógico aplicar a mesma incertidumbre nas formas construídas que nos habitam na vida cotidiana, quer dizer, duvidar daquilo que pensamos fixo, inamovível. Não obstante, não falo de uma dúvida descomunal explodindo as bases perceptuais do nosso mundo, mas de um tipo de dúvida que permita pensar novos caminhos de interpretação, que permita criar novas formas abstratas e concretas para pensar o mundo, e consequentemente que permita uma vida outra no cotidiano.
A tradução pode-se entender basicamente de duas maneiras, como processo e como produto. Porém, nos movamos para a prática traslatícia de eleições semióticas complexas ou para o resultado dessas eleições, o fundamento por trás será sempre o conhecimento, seja este construído, modelado, manipulado, recortado, mutilado, etc. Estas palavras, que poderiam parecer pejorativas, descrevem fenômenos dentro da própria tradução, porque indicam que a complexidade da tradução não começa certamente na língua de partida, começa bem antes, na subjetividade do sujeito criador, no seu modo de perceber a realidade (GUATTARI, 2015). Por isso, é importante duvidar do tradutor-primeiro que, por sua vez, nos leva a questionar o trabalho do tradutor-segundo.
O tradutor-primeiro será sempre o sujeito percipiente que está diante da realidade circundante. É ele herdeiro de toda uma tradição de formas abstratas e concretas, de modos de ver o mundo e pensá-lo. É ele quem tem que eleger as formas abstratas e concretas que melhor lhe pareçam para se expressar, e pode escolher formas não necessariamente linguísticas. Estas formas, embora sejam uma herança construída ao longo dos anos, são também, no instante justo em que ele as utiliza, as suas próprias formas; pertencem a ele e só a ele, deixando sua marca indelével na configuração que faz das formas (estilo). Este processo é mesmo uma tradução na procura e construção de conhecimento, mais especificamente, na procura e construção de sentido.
Considerando o anterior, podemos ver que a tarefa do tradutor-segundo, não é simples, sobretudo porque não está exatamente ligada a uma tradução de formas concretas nas línguas. É uma tarefa que vai além dessas manifestações concretas. É adentrar-se basicamente em duas cosmovisões distantes, é compreender essas cosmovisões na tentativa de harmonizar as formas do sujeito tradutor-primeiro com as formas do tradutor-segundo e finalmente com as formas do sujeito leitor (tradutor-terceiro?). Novamente dizemos que é uma harmonia que marca o caminho das formas no intuito de construir sentido.
Este caminho das formas, sua passagem pelos distintos processos subjetivos e interpretativos (tradutor-primeiro, tradutor-segundo, leitorn)[8] apresenta uma complexidade tal que, sem as formas concretas (paradoxalmente), poderia pensar-se que qualquer entendimento entre os sujeitos seria impossível. Mas a compreensão, o conhecimento e as interpretações acontecem apesar do desvio, ligeiro ou pronunciado, que as próprias formas apresentam no seu relacionamento. Não obstante, isto não quer dizer que o caminho das formas consiga sair dos efeitos da interpretação, do fracasso e da entropia.
O fracasso e a entropia são um binômio inserido na vida do sujeito, cuja função condiciona profundamente o devir do próprio sujeito no mundo. E, mesmo que esse binômio viva no sujeito, cada um dos seus elementos está em um lado da interpretação. O fracasso está no lado poético do sujeito, isto é, na criação. Deste modo, o fracasso condiciona a construção de sentido porque intervém na eleição das formas e na configuração que delas se faça. O fracasso é o estado do sujeito onde ele procura, dentro da herança formal da que faz parte, aquelas formas que melhor expressem o que ele percebe, mas não só elegê-las, também configurá-las para que nelas a marca do sentido último seja reconhecível, apreensível, primeiro por ele, e logo depois por outros sujeitos.
Por sua parte, a entropia está no lado estético do sujeito, ou seja, na recepção. A entropia condiciona a interpretação, porque intervém na eleição de formas que reproduzam o percebido. A entropia é o processo que determina o entendimento das formas no presente relativo dos sujeitos percipientes. Seu risco é maior porque é inelutável o desvio da harmonia que nos leva para o sentido, isto é, a entropia é uma tendência des-harmonizante da interpretação, seu propósito é nos levar a outro sentido que não seja aquele que queríamos encontrar. De fato, a entropia é um fator dialógico e de movimento, porque, ao colocar-nos por novos caminhos que conduzem a sentidos semelhantes ou diferentes, faz com que o conhecimento se mobilize, avance.
A importância do fracasso e da entropia não só no processo de tradução entre línguas, mas também na interpretação da realidade, deveria nos confirmar que 1) estamos diante de uma interpretação que faz interpretação de outra interpretação, 2) a constância de certas formas de interpretação está dada pela iteração que converte essa forma em unidade, em termo, e 3) ainda que legitimadas algumas formas, elas também estão e estarão sob a influência do fracasso e a entropia, quer dizer, não serão inteiramente fixas.
Se todo processo tradutório está condicionado por estes múltiplos fatores, então, não há, em termos qualitativos, nem boa, nem péssima tradução, simplesmente tradução. O tempo/espaço não só determina as eleições dos dois tradutores que vimos aqui, como determina também a recepção-interpretação dos leitores que finalmente serão encaminhados ao sentido. Sem importar qual tradução nos pareça melhor, devemos ser cientes de que ela passou por um duplo processo de fracasso e entropia, aquele do tradutor-primeiro e aquele do tradutor-segundo, e que no final passará também pelo processo de fracasso-entropia do próprio leitor (tradutor-terceiro?).
Certamente a tradução não se baseia só nas formas escriturais, pois sabemos que não é simplesmente passar, palavra por palavra, de uma língua para outra. A tradução é um trabalho complexo e dedicado que visa a construção de conhecimento, de sentido; é uma tentativa por parte do tradutor-segundo de transportar, quase que imaculadas, as formas abstratas do tradutor-primeiro, para que nas formas concretas do tradutor-segundo o leitor possa achar um caminho mais ou menos harmonizado que lhe permitam encontrar-se com o sentido. Por isso é tão importante no tradutor-segundo a aproximação à cosmovisão do tradutor-primeiro e a exploração profunda da sua própria, porque é a partir desse movimento que as formas de ambos poderão achar uma harmonia intercosmogônica, cujo conhecimento ou alinhamento, por lato ou torto que pareça, facultará no leitor ou tradutor-terceiro a interpretação mais próxima ao sentido de origem.
Este fenômeno traslatício é ainda mais complexo quando a distância entre cosmogonias não se pode percorrer tão facilmente, como no caso de línguas emparentadas ou culturas mais ou menos próximas, ou inclusive entre produtos contemporâneos. É pior quando as culturas têm histórias de formação diferente, ou quando uma delas perdeu todo seu passado cosmogônico, seja por guerra, invasão, destruição, etc. e só fica a interpretação de segunda mão de agentes alheios. Eis aqui que o trabalho do tradutor é muito mais importante e relevante na vida das ciências humanas, porque não só há uma tentativa por construir um caminho de formas para que o leitor encontre o sentido, há também uma tentativa por reconstruir essa cosmogonia alheia que deixou indícios dispersos pelo mundo todo, cuja natureza espaço-temporal atua contra o tradutor, pois quanto mais perto se sinta de encontrar o sentido, mais longe é o caminho das formas que nos levariam até ele.
Casos concretos destes trabalhos traslatícios são todos aqueles que tentam recuperar a história de culturas que habitaram o que hoje chamamos América e das quais só temos indícios em alguns textos escritos[9] achados, preservados ou resguardados na tradição oral pelos povos em questão. Neles não só nos enfrentamos ao problema da interpretação de textos distantes no tempo/espaço, mas também distantes nas formas de perceber o mundo, porque os processos transculturais necessariamente tiveram que deixar alguma marca antes e depois das invasões da América. Sirvam estas reflexões em torno ao problema das formas e do sentido como incentivo para focalizar estes trabalhos de recuperação de conhecimentos antiquíssimos desde outras formas de pensar o passado e, por tanto, de interpretar o que está atravessado por fenômenos como o fracasso e a entropia, tanto dos tradutores primeiros, quanto dos tradutores segundos e terceiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento das ciências, seus avanços e tentativas de avanço expressados em milhares de artigos, pareceriam mostrar que estamos no caminho das objetividades, das concretudes, mas é simplesmente uma ilusão. Nunca chegaremos lá. Uma aporia mais, porque nunca faremos nada objetivo por mais que o procuremos. O máximo que podemos fazer é manter essa tentativa de querer captar o presente de um fenômeno que se afasta longe de nosso horizonte de fala, de nosso aqui e agora.
A realidade convencional, para ser interpretada, poderia ser dividida para construir formas abstratas que ajudem na sua interpretação, criando deste modo uma realidade utópica que não apenas está dividida em áreas de conhecimento, mas também em conceitos, prospectos, perceptos, afectos e em cuja interação construímos signos, significados e finalmente sentidos do mundo percebido. Em formulação algébrica podemos afirmar que o sentido deste mundo é construído como uma equação que nos leva para uma harmonia das formas, isto é, a uma combinação específica dessas formas que permita o trânsito de nossa interpretação até a zona zero ou até a origem do sentido. Essa formulação que propomos aqui é de dois formas segundo se some ou se multiplique: 1) “x+y=0”, 2) “(x+y)/z=0”.
Os atores principais na construção de sentido são basicamente três, o primeiro chamamos de “tradutor-primeiro”, que também pode ser considerado em outra terminologia como produtor, isto é, o produtor de um texto que já exerceu sua interpretação da realidade, seja esta convencional ou utópica e que elegeu formas para expressar sua opinião ou seu pensamento sobre o mundo que percebeu. O segundo ator é o “tradutor-segundo”, o qual deve compreender a cosmovisão do “tradutor-primeiro”, os possíveis motivos da escolha de suas formas, para então trasladar essas formas a outras que sejam aquelas com que se possa harmonizar o caminho desde a cosmovisão do “tradutor-segundo” até o sentido original. Finalmente, o “leitor” ou também poderíamos chamá-lo de “tradutor-terceiro”, em cuja tarefa de interpretação está o último processo de harmonia entre as duas formas (abstratas e concretas) com que um texto é colocado diante de sua interpretação.
Finalmente dizemos que o sentido, segundo o que vimos aqui, seria um processo de construção formal através do qual se escolhem precisamente formas abstratas e concretas. Essas formas modelam ou delimitam o caminho a seguir por parte do receptor, do percipiente, no processo de interpretação e tradução. Essa construção formal tem um viés por outros vários fenômenos alternos, como as intentio, mas principalmente pela inelutável condição imperante do fracasso e da entropia, sobretudo porque estas são manifestações do tempo e do espaço, tanto na produção quanto na recepção, que finalmente condicionam a construção de sentido e podem levar-nos para novos horizontes interpretativos.
REFERÊNCIAS
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Notas