Resumo: O presente trabalho apresenta três análises referentes a contextos amazônicos, buscando, a partir das reflexões de Paul Zumthor sobre oralidade e narrativas orais, exemplificar como estas categorias podem ser articuladas para diferentes fins, seja na transmissão de conhecimento tradicional passado de geração em geração, seja para fins de lutas políticas e/ou artísticas, tendo como ponto de conexão os pluriversos amazônicos que emergem e consolidam formas outras de produção do saber. Como aporte teórico para as discussões aqui apresentadas utilizamos textos como os de Paul Zumthor (1997, 2007), Hampaté Bâ (2010), Walter Benjamin (1987), Alessandro Portelli (2016), Antonieta Antonacci (2014) entre outros.
Palavras-chave: Amazônia, Oralidade, Narrativas Orais.
Abstract: The present essay presents three analyzes referring to Amazonic contexts, from Paul Zumthor’s reflections about orality and oral narratives, to exemplify how these categories can be articulated to different purposes, either in the transmission of traditional knowledge passed through generations, or for the purposes of political and/or artistic issues, having as a connection point the Amazonic pluriverses that emerge and consolidate other forms of knowledge production. As a theoretical framework for the discussions presented here, we draw upon texts such as Paul Zumthor (1997, 2007), Hampaté Bâ (2010), Stuart Hall (2006), Walter Benjamin (1987), Alessandro Portelli (2016), Antonieta Antonacci (2014) among others.
Keywords: Amazon, Orality, Oral Narratives.
Artigos
FORMAS DE NARRAR: MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL DAS/NAS AMAZÔNIAS

Received: 24 May 2024
Accepted: 31 May 2024
[...] o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo. (ZUMTHOR, 2012, p. 77)
O presente trabalho apresenta três análises referentes a contextos amazônicos, buscando, a partir das reflexões de Paul Zumthor sobre oralidade e narrativas orais, exemplificar como estas categorias podem ser articuladas para diferentes fins, seja na transmissão de conhecimento tradicional passado de geração em geração, seja para fins de lutas políticas e/ou artísticas, tendo como ponto de conexão os pluriversos amazônicos que emergem e consolidam formas outras de produção do saber. Como aporte teórico para as discussões aqui apresentadas utilizamos textos como os de Paul Zumthor (1997, 2007), Hampaté Bâ (2010), Walter Benjamin (1987), Alessandro Portelli (2016), Antonieta Antonacci (2014) entre outros.
O presente trabalho busca mergulhar em três narrativas orais proferidas nas Amazônias e analisá-las dentro do ponto de vista das reflexões de Paul Zumthor (1997, 2007), junto à categoria da oralidade. O texto apresenta uma narrativa de tradição oral da cosmologia do povo indígena Wapishana na seção intitulada “Transmissão de conhecimentos tradicionais por meio da oralidade: uma narrativa Wapishana”; a análise de um conto de José Marques de Souza, um teatrólogo da cidade de Rio Branco - Acre, na seção “Dimensões da oralidade no conto A história do jacamim de José Marques de Souza”; e, narrativas de Dercy Teles, a primeira mulher a presidir um sindicato na Amazônia acreana, na seção “Dercy Teles: uma narradora”.
Quando se fala de oralidade/memória/história é impossível não desenvolver uma reflexão em torno do campo da linguagem e das diversas formas de compreender o que isso pode significar. Tendo em vista que algumas escolhas metodológicas precisam ser feitas e compreendidas, acreditamos que o discurso cria realidades, não como em um passe de mágica mas em acordos sociais, o imaginário como o imaginado que se institui.
Nessa linha de pensamento nos aproximamos de Stuart Hall com a categoria de sujeito pós-moderno em seus fluxos contínuos do cotidiano que formam, reformam e transformam realidades a todo instante, sujeitos que estão sempre em trânsito, nunca estáticos. Nesse sentido, a cultura é entendida como esta categoria que se aplica em lutas, tensões e negociações.
Isso significa dizer que não se duvida da existência de um real, de que pisamos em um chão, que respiramos, sentimos dores, desejos, vontades, paixões, que sonhamos e que nos desesperamos diversas vezes na cadência de um único dia, mas, todos estes sentimentos só podem ser manifestados e compartilhados através da palavra dita ou escrita. A realidade não nos chega senão atravessada pelo filtro da linguagem e, ainda assim, o real não se apresenta no momento da narrativa, ele é representado.
Nossa busca está no exercício de atenção a estes aspectos que fazem da oralidade este lugar móvel, não seguro de certezas, mas de brechas, de possibilidades de leituras, de possibilidades de compreensões de mundos e não de uma fatalidade histórica. Os/ as sujeitos/as dos relatos ora apresentados nesta escrita estão presentes nas Amazônias, marcadamente grafada no plural e estão sim espacialmente localizados/as, mas se relacionam com o mundo em constante movimento porque estão no mundo e não porque o mundo lhes vem.
Ao ler um relato é possível ter a informação sobre traços, momentos da vida deste/a sujeito/a mas somente a partir da forma como este/a viveu, absorveu, sentiu e traduziu os acontecimentos no exato momento em que suas vivências são narradas, ou seja, o passado só nos chega pelo filtro do presente e neste movimento é atualizado. Teceremos nossas reflexões levando em consideração que não trabalharemos pela perspectiva de considerá-las como fatos únicos e inalteráveis de verdade, pois, o processo de rememorar inclui a imaginação e outros aspectos presentes tanto na dinâmica de entrevistas como em outras formas narrativas que possuem base na oralidade.
Nas sociedades ditas modernas, em que a palavra escrita aparece talvez como a fonte de informação e registro de maior prestígio, sociedades ditas ágrafas pela epistemologia ocidental, como os Wapishana, são, muitas vezes, julgadas sob o crivo do atraso, em que suas narrativas de transmissão oral não são tidas ou consolidadas enquanto oficiais, ou, ainda, são vistas como inferiores ante narrativas daquelas sociedades que possuem sistemas de escrita alfabética. Nessa perspectiva, diversas comunidades indígenas, desde a invasão do homem branco em seus territórios, foram vistas como desprovidas de cultura por terem como veículo de transmissão de suas memórias a tradição oral.
Contudo, ainda que não tenham sistemas de transmissão de saberes equivalentes aos de seus algozes, sistemas baseados na oralidade não podem ser considerados menos efetivos do que os que possuem tradição escrita, pois, segundo Vansina (2010, p. 140), a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade. Assim, povos que fazem uso do sistema oral de transmissão de conhecimentos não são menos aptos ou menos desenvolvidos do que aqueles que fazem uso de outras formas de transmissão, como a escrita, mas utilizam de outras estratégias.
Em uma perspectiva benjaminiana, a narrativa, em especial a oral, pode ser entendida como uma espécie de trabalho artesanal, pois é urdida, moldada, cultivada, fiada cuidadosamente. Para o autor, a verdadeira narrativa é artesanal no sentido em que não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou relatório (BENJAMIN, 1987, p. 205), mas a cada vez que é ouvida e passada adiante carrega consigo um ensinamento que transpassa as barreiras do tempo em que é proferida. Nessa direção, a narrativa mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1987, p. 205). Saber narrar é primeiro saber ouvir e aprender com aquilo que está sendo dito. Nesse movimento é que nascem os bons narradores.
Paul Zumthor, em livro intitulado “Introdução à Poesia Oral” (1997), chama a atenção para o fato de que textos cunhados na oralidade devem ser pesquisados por meio de noções operatórias que dêem conta desses textos, e abranjam o fenômeno da transmissão oral de saberes pela voz e pela memória como poesia. Para este autor, a voz humana é:
esta incongruência entre o universo dos signos e as determinações pesadas da matéria; esta emanação de um fundo mal discernível de nossas memórias, esta ruptura das lógicas, esta saída dos trilhos do ser e da vida... que é preciso tentar, fora de toda exaltação incontrolada de racionalizar a história. (ZUMTHOR, 1997, p. 10)
Nessa direção, ao tentar estritamente racionalizar pesquisas que giram em torno da voz não conseguiríamos entender esse fenômeno, pois ele está para além dos moldes destinados a outros modos de comunicação que empregam a linguagem: como a escrita. Dessa forma, pesquisar e trazer para o debate acadêmico textos que possuem sua origem em tradições orais é importante, assim como perceber e comentar aquilo contido neles que foge ao pensamento racionalizado.
Paul Zumthor usa o termo simbolismo primordial para fazer referência aos elementos simbólicos e culturais que são comuns a muitas sociedades e culturas humanas, fundamentais para a compreensão da natureza da experiência humana e das formas como sujeitos e sujeitas constroem significados em suas vidas como, por exemplo, a água, a luz, a escuridão, o fogo, a terra e o céu; bem como figuras como a mãe, o pai, o herói e o vilão. Esses símbolos são encontrados em histórias, mitos, rituais e outras formas de expressão cultural em muitas partes do mundo. Assim, o simbolismo primordial age como elo de conexão entre as pessoas e os aspectos coletivos da experiência humana, independentemente de sua origem ou cultura.
Para Zumthor, da combinação do simbolismo primordial (as experiências comuns aos seres humanos) e do exercício fônico (a voz), emerge a poesia. Esse movimento inicial é capaz de engendrar diversas formas de linguagem. Movimento esse que tem a oralidade como componente fundamental, pois da combinação da voz com os simbolismos surgem as palavras que são usadas por nós para darmos sentido e imaginarmos o mundo que nos cerca, e também aquilo que não conhecemos.
A linguagem oral não nasce da racionalidade, ela é antes a mistura de movimentos e sensações irracionais, não pensadas de antemão. Tentamos racionalizá-la ao enclausurar seus sons em grafemas ou símbolos. Para Zumthor (1997, p. 10) é por meio da oralidade e das tradições orais que as civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm, e sua importância é tamanha que é inegável que outras culturas, incluindo a ocidental, estão impregnadas dessa força. No ato da fala ativamos nossas memórias, lembramos, pois na voz a palavra se enuncia como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial, na aurora de toda vida e cuja marca permanece em nós um tanto apagada, como a figura de uma promessa (ZUMTHOR, 1997, p. 13).
Nessa direção, a palavra, termo associado por Zumthor, a linguagem vocalizada, é mantenedora de sentidos, sentimentos, memórias, pois a palavra se apóia no instinto de conservação; conservar-se é nutrir-se; uma pulsão de linguagem repete na articulação da voz aquilo que se confirma alhures (ZUMTHOR, 1997, p. 16). Ao falar o narrador alimenta de sentidos aquele que ouve, nutre-o com suas palavras, e, assim, perpetua aquilo que foi dito.
Próximo a nós, os sistemas de transmissão baseados na oralidade dos mais diferentes povos indígenas presentes no território brasileiro são um exemplo de como os saberes transmitidos por esse mecanismo são propagados ao longo do tempo e permanecem vivos dentro dessas comunidades. Nessas sociedades, as palavras não são usadas apenas como instrumento de nomeação, mas possuem alma. Diante disso, narrativas cunhadas em cosmovisões indígenas podem ser vistas como poesias orais, pois abrigam entendimentos outros que transpassam o caráter racional do uso das palavras.
Por não ser matéria tateável, a oralidade ainda é julgada como forma de registro menor em relação à escrita. Contudo, o que é a voz e a oralidade se não o disfarce de uma escritura primeira (ZUMTHOR, 1997, p. 28), pois são elas as forças que forjam a linguagem que antecede a escrita. A oralidade não é única, não há oralidade em si mesma, mas múltiplas estruturas de manifestações simultâneas, que, cada uma na ordem que lhe é própria, chegaram a graus muito desiguais de desenvolvimento (ZUMTHOR, 1997, p. 31). Contudo, há um substrato comum, em que pelo menos dois sujeitos se relacionam, locutor e ouvinte, articulando um duplo desejo, o de falar e o de ouvir (ainda que diferentes variáveis possam moldar esses sujeitos de diferentes maneiras).
Na concepção trazida por Zumthor, a voz realiza duas oralidades no âmbito social, a primeira fundada na experiência imediata de cada um e a segunda sobre um conhecimento mediatizado, pelo menos em parte, por uma tradição, ou seja, ela atua nos âmbitos individual e coletivo. Com isso, é possível observar que a palavra parece apresentar uma ideia de eterno retorno. Assim, o conhecimento ao qual eu dou forma ao falar e de que, pela via do ouvido, você se apodera, se inscreve num modelo ao qual ele faz referência: ele é reconhecimento (ZUMTHOR, 1997, p. 35). Diante disso, a voz, a oralidade e o ato de ouvir retroalimentam os conhecimentos gestados na sua produção. O conhecimento transmitido e compartilhado por um grupo faz com que ele possua um sentimento de pertencimento, pois ao se reconhecer no que é dito você se torna parte dele. Nesse sentido,
Marcadamente conotativo, ligado a todos os jogos de linguagem cuja combinação forma o vínculo social, ele [o discurso de comunicação] deve sua legitimidade e sua força persuasiva muito mais ao testemunho que constitui, do que ao que expõe, de modo que o critério de verdade desaparece em benefício de um outro muito mais fluido: a comunicação é memória dócil, flexível, maleável, nômade e (graças à presença dos corpos) globalizada. (ZUMTHOR, 1997, p. 35)
É a partir dessas reflexões articuladas por Paul Zumthor (1997) que essa breve análise tecida a partir de uma narrativa indígena Wapishana, coletada por Nádia Farage, está apoiada. Podemos dizer que narrativas orais tecidas por povos indígenas apresentam traços que podem ser analisados dentro das mecânicas de perpetuação de conhecimentos que envolvem a voz e memória e deságuam na tradição oral.
Em certas sociedades indígenas, como a exemplo os Wapishana, estabelecidos em territórios do estado de Roraima, a tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 169). Por meio dela são passadas as memórias que transmitem para as novas gerações conhecimentos fundamentais para a organização da vida individual e em sociedade de todos aqueles vinculados a esse povo. Entre esses conhecimentos, os Wapishana perpetuam narrativas que explicam aspectos importantes para os membros de sua comunidade, em níveis individual e coletivo.
Em relato oral, coletado pela antropóloga Nádia Farage, proferido em 1992 por Harry, indígena do povo Wapishana, podemos acompanhar, pelo prisma do orador, moldado a partir de suas vivências e conhecimentos adquiridos, como seu povo cunhou e transmitiu oralmente, entre outras narrativas, uma que explica questões que organizam esta sociedade, como é o caso da existência de diferentes espécies de animais e vegetais, bem como dos acidentes geográficos que englobam o horizonte de conhecimentos dos Wapishana.
A narrativa aqui analisada passa por no mínimo quatro filtros: pelo filtro de quem narra para Harry, pelo filtro de Harry que narra para Nádia; pelo filtro de Nádia que analisa essa narrativa e destaca aquilo que considera mais importante; e, por fim, pelo filtro deste texto, que analisa o produto dessa sequência de narrações e produz também um sentido. Esse movimento, inclusive, pode ser comparado com aquilo que acontece com as narrativas orais, que são atualizadas a cada vez que são passadas adiante. Assim, fazemos uma leitura em cima de outras leituras, o que não impede que este material ofereça instrumentos valiosos para a percepção de como as narrativas orais são transportadas através do tempo, dentro e fora de comunidades que fazem uso da oralidade como forma de perpetuação de saberes.
Afastando-se de uma narrativa racionalizada, a fala de Harry apresenta uma cosmovisão indígena. As cosmovisões indígenas se baseiam em um entendimento apurado que interconecta a natureza com os costumes e modos de ver o mundo dos indígenas, reconhecendo a interdependência entre todas as formas de vida, priorizando a harmonia com o ambiente em que habitam. Para muitas populações indígenas, a natureza não é tida apenas como um recurso a ser explorado e governado, mas como um ser complexo e sagrado, que precisa ser respeitado e conservado.
A narrativa a seguir está presente em artigo intitulado “Instruções para o presente: os brancos em práticas retóricas Wapishana” (2021). Na transcrição produzida por Farage,
O tema inaugural da narrativa de Harry é uma dentre as muitas aventuras dos demiurgos Duid e seu irmão, não nomeado neste contexto, a disputa por uma mulher que, ao final, conduzirá à especiação do mundo tal como o conhecemos hoje. [...] o tema maior da narrativa [...] é o estado de sociedade. (FARAGE, 2021, p. 15)
Os Wapishana são moradores de uma região cuja paisagem social é constituída de intensas relações entre diversos povos indígenas e de fronteiras internacionais; participam da extensa rede de relações com estes outros povos, em especial os Macuxi (OLIVEIRA, 2014, p. 4). Ocupam um amplo território na fronteira entre Brasil (Roraima) e Guiana. Esta região geográfica, marcada pelo monte Roraima, é uma referência central na cosmologia compartilhada pelos diversos povos que o circulam (OLIVEIRA, 2014, p. 4).
O monte Roraima, na cosmologia dos Macuxi e dos Wapishana, condiz ao tronco de uma grande árvore da qual advinham as plantas que subsidiavam a alimentação de todos os seres vivos. Podemos observar isso na narrativa oral proferida por Harry, quando ele aponta que, nesta grande árvore da vida:
Em um galho há banana, em outro galho há cana, há laranja em outro galho, em outro ainda há mamão. Há de tudo misturado ali, até riqueza há, há até agora ouro, há até agora diamante. Aí, há até agora alguma coisa brilhante que pinga, talvez aquilo chamado mercúrio. Sim, de verdade, o há pingando de outro galho, todo ele existindo no galho. (FARAGE, 2014, p. 16)
Pode-se notar neste trecho que a narrativa não delineia apenas o tempo passado, em que havia a grande árvore, mas também o tempo presente, em que há, no que agora é um tronco partido desta árvore (o monte Roraima), a presença de riquezas como ouro e diamantes. Neste texto transmitido de geração em geração entre os Wapishana, a tradição oral narra, nos termos desse evento, a origem do cultivo, que marca a humanidade e sua diferenciação étnica, expressa também na localização geográfica (OLIVEIRA, 2014, p. 4).
Existe no texto a diferenciação entre o tempo passado e o presente. Assim, podemos perceber que estamos diante de uma narrativa proferida em gerações anteriores e repassada para as gerações seguintes. Podemos observar que na narrativa wapichana a diferenciação entre tempo e espaço no mundo de hoje, assim como a especiação, são resultantes da ruptura daquela ordem primordial, promovida pela força da palavra utilizada por estes irmãos demiurgos para modelar o mundo (OLIVEIRA, 2014, p. 4).
Esta força criadora pode ser vista na narrativa de Harry, quando ele conta como Duid tentou impedir que seu irmão pudesse alcançar a mulher que habitava a área circum-Roraima, criando obstáculos que o frustrasse de chegar ao seu objetivo: Ele disse, então ele disse: eu quero pedra, a que impedirá o rio, a que impedirá o rio, ele dizia. Pedra criou-se e impediu a água de correr. Ela cai assim, não há como canoa, aquela chamada corial, atravessá-la (FARAGE, 2021, p. 15).
A explicação para a especiação (formação de espécies) acontece com o ato de Duid de derrubar a árvore da vida, como forma de criar um obstáculo ainda maior para que seu irmão não pudesse chegar até a figura feminina que ambos disputavam. Assim, ao derrubar a árvore que tudo dava, seus galhos espalharam sementes que começaram a brotar na terra, tendo os Wapishana, a partir deste momento, que cultivar essas espécies de plantas para que pudessem delas se alimentar, aponta Harry em seu relato. Diante disso, Farage comenta que:
Reconheçamos, pois, que a insensatez de Duid consistiu em romper, por suas ações, a ordem original, que se pautava pela indiferenciação: da árvore pendiam todas as espécies, nem só as vegetais; o espaço não exibia acidentes. O corte da árvore, por sua vez, espalhando as espécies, vem a instituir não só a diferenciação – o que a trajetória de Duid, criando acidentes geográficos, já indica – mas ainda um outro modo de reprodução: nada mais brotará por si, mas antes requisitará o cultivo, o trabalho humano. (FARAGE, 2021, p. 17)
Percebemos, por meio desta narrativa, como o mundo dos Wapishana se organizou após as ações de Duid. O relato de Harry mostra como para este povo questões como o cultivo da terra, os acidentes geográficos e as diferentes espécies de plantas e animais surgiram, alterando, assim, o modo como eles deveriam agir diante da nova realidade que lhes foi imposta. Observamos que havia um tempo em que tudo era dado pela natureza, pela árvore da vida e, após um rompimento com essa ordem, para que sobrevivessem, homens e mulheres Wapishana deveriam adequar-se às adversidades causadas pelas ações de Duid.
Nessa direção, observamos como a cosmovisão dos Wapishana é densamente habitada pelo horizonte de conhecimentos de sua cultura, história e experiência de vida, não podendo ser exclusivamente explicada pela racionalidade ocidental adotada pelos centros acadêmicos. Para esse povo, a compreensão do mundo está calcada em uma visão holística, que valoriza a interdependência entre as diferentes formas de vida. Isso posto, analisar uma narrativa baseada em aspectos da cosmovisão do povo Wapishana deve levar em consideração os conhecimentos empíricos adquiridos ao longo das gerações e transmitidos pela ferramenta oral, que incluem diferentes gêneros textuais e não textuais.
A partir de performances orais, como a proferida por Harry, manifestadas em diferentes maneiras ao longo dos anos, cunhou-se uma tradição viva, que se atualiza a cada nova performance, e busca dar sentido a eventos passados, presentes e futuros. Os conhecimentos forjados pela voz, desprendidos da racionalidade atribuída aos textos escritos, buscam e conseguem manifestar sentidos e sentimentos que explicam e norteiam a vida daqueles que compartilham de uma mesma tradição oral.
No caso da narrativa de Harry, a explicação da dureza do trabalho que homens e mulheres precisam vivenciar no presente resulta do fato dos deuses, no passado, terem tornado o mundo duro por capricho e rivalidade. Farage comenta que:
Nesse sentido, podemos entender que as plantas cultivadas, resultantes do trabalho agrícola, prestam-se na narrativa à metáfora para o estado de sociedade, um tempo e um mundo acidentados de homens. É o que pondera Harry: “Sim, assim a velha contava, foi assim mesmo que naquele tempo aqueles insensatos fizeram o mundo assim, duro, fizeram rio só por causa de mulher”. (FARAGE, 2021, p. 17)
Vansina (2010, p. 146) assinala que, nas sociedades de transmissão oral, tudo aquilo que é julgado como importante para o perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. É o caso desta narrativa relatada por Harry que tem como função orientar as ações dos Wapishana em sociedade. Isso está relacionado ao fato de que, uma sociedade de tradição oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral (VANSINA, 2010, p. 139-140). Assim, os conhecimentos ecoam ao longo do tempo a partir das trocas entre locutores e interlocutores, do jogo construído a partir da voz e dos gestos de alguém que fala e de alguém que escuta e que leva consigo aquilo que foi dito.
Diante disso, uma tradição oral abrange uma infinidade de textos orais que podem ser utilizados para os mais diferentes fins, textos esses em que podemos encontrar inúmeras informações e detalhes sobre o passado, [...] fonte importante para a história das ideias, dos valores e da habilidade social (VANSINA, 2010, p. 142). Textos cunhados em tradições de transmissão oral, como este de Harry do povo Wapishana, nos mostram como este veículo de perpetuação de saberes é válido, importante e fundamental tanto para a organização da sociedade a que pertence quanto para que outras sociedades possam conhecer seus modos de ver e narrar suas vidas e as coisas do mundo que os cercam. Nessa direção, Harry age como um oleiro manuseando a argila na confecção de um vaso. Por meio de seu trabalho artesanal narrativo, molda os conhecimentos para sua geração e para as posteriores, tendo na voz a ferramenta para moldá-los, ressoando em tempos e lugares próximos e longínquos.
A carga de oposição construída para que literatura e oralidade apresentem diferenças irreconciliáveis em nosso imaginário, mesmo que pareçam perpetuar em tempos de longa duração, foram sedimentadas em não mais que dois ou três séculos. Contudo, as dimensões que se apresentam na relação oralidade e escrita estão/são desde sempre presentes como tema de grande interesse para o campo dos estudos da linguagem.
Nas reflexões incorporadas em Performance, recepção e leitura (2007), Paul Zumthor considera a voz a força global de toda cultura humana, sendo ela movida ou não pela palavra escrita, e, apresenta aspectos enfatizando que pesquisas sobre essa temática não podem ser propriedade de um campo exclusivo de estudos, dessa maneira transitando na interdisciplinaridade para estruturação de seu pensamento. É no compasso dessa perspectiva que veremos de que forma o teatrólogo acreano José Marques de Souza, no conto A história do Jacamim (1990) trabalha as dimensões da oralidade em sua escrita.
Partindo de uma série de exemplos que desmistificam estas que são tidas como verdades absolutas, Zumthor ao ser perguntado se a oposição entre palavra oral e escrita trata-se de uma simples antítese retórica ou habita uma condição irredutível de diferenças, responde que essa dicotomia é datada e que nada é mais estranho ao seu temperamento e à sua prática que o uso de oposições binárias, ou seja, nitidamente demarcadas, de modo que a oralidade não se define por subtração de certos caracteres da escrita, da mesma forma que esta não se reduz a uma transposição daquela. (1997 p. 35)
O autor utiliza estudiosos de diversos campos, bem como de suas pesquisas pessoais para pensar os conceitos de recepção, autoria, performance e oralidade, atravessadas pela dimensão corporal. Para ele o leitor/receptor/ouvinte é tão importante quanto o autor, tendo em vista que seu papel na passagem do conhecimento, feito pelo processo mnemônico da rememoração é fundamental, sendo assim considerado também um coautor já que sem ele não há nenhuma função na autoria como via de mão única. Utilizando o exemplo do texto teatral, o autor diz que é no ruído da arquipalavra teatral que se desenrola esse ato, quaisquer que sejam os condicionamentos culturais (2007, p. 62).
Escrito, o texto é fixado, mas a interpretação permanece entregue à iniciativa do diretor e, mais ainda, à liberdade controlada dos atores, de sorte que sua variação se manifesta, em última análise, pela maneira como é levado em conta por um corpo individual. Assistir a uma representação teatral emblematiza, assim, aquilo ao que tende o que é potencialmente - todo ato de leitura. (ZUMTHOR, 2007. p. 62)
Nesse sentido todo ato de leitura seria uma performatização em maior ou menor grau da linguagem. Por performance tendem (em todo caso, no uso anglo-saxão) a cobrir toda uma espécie de teatralidade: aí está um sinal. Toda “literatura” não é fundamentalmente teatro? (2007, p. 18). A performance rege a finalidade do locutor na transmissão que é ampliada pelo público, ela, no entanto, não é simplesmente um meio de comunicação, pois transforma o conhecimento que está sendo transmitido, fazendo-o ter outros alcances, propondo formas diferentes de subjetivações.
Segundo o autor, que assume o termo poesia oral enquanto palavra conceito, uma poética da escrita em alguns casos até poderia ser de algum modo mais comedida ou até mesmo econômica, mas nunca uma poética da voz conseguiria tal efeito. No caso da performance, sendo uma poeticidade dimensionada a partir do corpo, do sensorial, compreende-se que a diferença entre escrita e oralidade é que a segunda se dá na coletividade enquanto a primeira foi historicamente construída para ser um exercício solitário, O que opõe uma mensagem escrita a uma oral é mais exterior a essas próprias mensagens, e reside no estilo de existência ligado a um e outro dos media mais do que ao estatuto do poético (ZUMTHOR, 2007, p. 57).
Mesmo sendo um exercício solitário, o ato de ler atua nas dimensões do corpo pois é através das possibilidades sensoriais que uma leitura pode ser decodificada. É então comum ver empregadas expressões para se referir ao texto literário como: esse poema ou esse romance, ou essa página me diz. Ou então invocamos o tom de tal autor. Essas são, sem dúvida, metáforas, e que parecem referir muito banalmente à oralidade. (ZUMTHOR, 2007. p.82)
O que se pode entender é que a diferença da forma não afeta a condição sensorial já que ambas passam pela dimensão do corpo para serem absorvidas pelo receptor. O corpo que envolto por uma cultura colonial adormeceu por alguns séculos, desperta, vez ou outra, em manifestações artísticas que convergem a existência da voz como instinto criador, o leitor/ouvinte/espectador, este que lê e significa através das vibrações de seu corpo convertendo signos e significados, sente o vibrar da voz, o mover das veias, as batidas do coração, nessa sensação rítmica das palavras em dança, compreende a presença-ausência da performance seja ela produzida vocalmente ou através da escrita
(...) a leitura é a apreensão de uma performance ausente-presente; uma tomada da linguagem falando-se (e não apenas se liberando sob a forma de traços negros no papel). A leitura é a percepção, em uma situação transitória e única, da expressão e da elocução juntas. O texto poético, no patamar de nossa cultura, comporta sempre um elemento informativo (salvo raras exceções). Ora, a informação assim transmitida pelo texto produz-se em um campo dêitico particular. Um aqui-eu-agora jamais exatamente reproduzível. (ZUMTHOR, 2007, p. 56)
Seguindo nessa linha, a historiadora Antonieta Antonacci, em suas pesquisas sobre oralidade destaca que na ausência de fronteiras da norma culta entre fala, leitura, escritura, deixamos de “assistir estarrecidos ao divórcio crescente entre a norma gramatical canônica e a criação literária livre” (2014, p.58), produzindo assim, uma leitura poética que se coloca no mundo (ZUMTHOR, 2007), utilizando as particularidades da oralidade, nas quais o mestre, o aprendiz, o ouvinte, o locutor, o autor, o leitor ambos constituem a poesia da comunicação, considerando que o conhecimento está a serviço do vivo, a quem ele permite perseverar no seu ser. Por isso a cadeia epistemológica continua a fazer do vivente um sujeito; ela coloca o sujeito no mundo. (ZUMTHOR, 2007, p. 81). Nessa perspectiva, o locutor e o receptor, o mestre e o aprendiz assim como o ator e o espectador são partes em movimento, que se misturam, se complementam e também se alternam.
É partindo dessas articulações que esta breve análise se debruça sobre o conto do teatrólogo acreano José Marques de Souza, o Matias, intitulado A história do jacamim, no qual as dimensões de oralidade atravessam a construção narrativa de um sujeito que transmite seu saber em uma relação artesanal, em que não somente a voz mas toda a dimensão corporal, conectada à prática da reminiscência contribui para a transmissão de conhecimento, engendrado na contramão da lógica de separação corpo e mente - herança do pensamento cientificista que se institui como hegemonia a partir do século XIX.
As informações ora apresentadas e o material posto aqui em análise foram coletados partir de pesquisas em acervo documental organizado pela Federação de Teatro do Acre (FETAC), intitulado Coleção Matias (2020), que contém uma expressiva quantidade de registros escritos e/ou datilografados de peças, textos, reflexões, atas de reuniões de grupo teatral, dentre outros. Também foram incorporadas três fontes bibliográficas que são: uma revista produzida pela FETAC, anexada à Coleção, intitulada As matas de Matias (2020) que traz aspectos historiográficos e algumas falas de pessoas que conheceram e/ ou trabalharam com o teatrólogo, uma entrevista que o mesmo concedeu a Souza (1997) para a revista TempOral e a tese de doutorado de Rocha (2008) intitulada A reinvenção e representação do seringueiro na cidade de Rio Branco, Acre (1971-1996).
A partir das informações narradas nesses registros é possível dizer que em meados da década de 1970, Matias que residia no seringal Restauração, localizado no município de Tarauacá desloca-se para a cidade de Rio Branco, em sua trajetória de vida exerce diversas atividades, como seringueiro, extrativista, pedreiro, carpinteiro, orador e inicia na vivência artística, assim como uma boa parcela dos artistas ativistas da época, a partir de um teatro que surge de dentro das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)[1], um teatro com viés de articulação política, utilizado como instrumento de resistência, voltado a pensar, abordar e questionar temáticas de desapropriação das populações que migravam dos seringais para a cidade de Rio Branco (AC) na década de 1980.
Durante este período, ocorreu o aparecimento de diversos grupos de teatro motivados a utilizar a arte como instrumento de lutas, de conscientização política e disseminação do acesso à informações, movimento que teve grande influência de uma parcela da Igreja Católica, alinhada à Teologia da Libertação.[2] As dramatizações, assim chamadas as peças produzidas nesse contexto, direcionaram boa parte da formação política dessas populações, funcionando como uma ferramenta de articulação, agrupamento e instrução, tendo em vista que os veículos oficiais públicos como o rádio e o jornal e mais tarde a televisão não noticiavam o que possivelmente poderiam ser de interesse de quem residia em bairros surgidos das invasões, como a exemplo dos bairros da baixada da Sobral, dentre os quais o teatrólogo desenvolveu um constante trabalho político e artístico (ROCHA, 2008).
Matias estava inserido em um movimento artístico de militância que teve grande expressividade nas décadas de 1970-1990. Os conhecimentos absorvidos em seus trânsitos espaciais e relacionais, incorporados, traduzidos cenicamente expressam enfrentamentos, desde a dramaturgia às visualidades da cena. Suas produções articulam as esferas dos mundos visíveis e invisíveis, seja através das temáticas abordadas em seus textos, nas oficinas de máscaras com material reciclável, mesclando elementos circenses, como a perna de pau, nos cenários de casas, árvores, animais, igarapés e também prédios e repartições públicas, apresentando-se ao palco-floresta-cidade, já que boa parte de suas encenações aconteciam em locais públicos como ruas, praças, ônibus, vielas, becos e invasões.
Enquanto um transmissor de saber oral, Matias destaca-se por sua habilidade com a performance, no entendimento da poesia oral (ZUMTHOR, 2007), utilizando-a nas dramatizações, no contexto das CEBs, no teatro de militância, enquanto figura que insere a prática da contação de histórias e a arte circense para crianças dos bairros da baixada, bem como figura pública e política, que dialoga de dentro das organizações sindicais e dos movimentos populares os seus embates com as lógicas hegemônicas de saber e de poder.
Diante das fontes coletadas, foi possível perceber a relevância atribuída ao teatro enquanto ferramenta política de conscientização, bem como às relações de companheirismo que articulam uma consciência ativa quanto às práticas culturais da vida comunitária na floresta (ROCHA, 2008). As experiências partilhadas nessa coletividade, transformadas em artes da cena, fixam sua marca na história do teatro acreano não apenas pelo uso da teatralidade como essa ferramenta de lutas, mas porque através do exercício da oralidade, que reflete a importância da manutenção de saberes dentro de uma dinâmica coletiva, este sujeito desloca a lógica do sistema e nesse movimento modifica e propõe outros imaginários sobre realidades distintas.
Em A história do Jacamim, estão presentes os entrelaçamentos culturais que inevitavelmente são partes do ser sendo que é este sujeito artista. O material analisado, como já citado, faz parte das fontes coletadas no acervo da FETAC (2020) e sua transcrição foi feita a partir de uma imagem salva em PDF de um registro em papel, datilografado e assinado pelo teatrólogo. O material está anexado a um conjunto de outros documentos que traz recortes de informações sobre alguns dos cenários vivenciados pelo autor bem como de suas produções teatrais.
Segundo o texto, Jacamim é uma ave que possui coloração branca e preta, pés azul, o corpo todo preto, e o mucumbu (cóccix) branco, e o pescoço azulado (SOUZA, 1990) que vive nas regiões de floresta da Amazônia. A ave faz seus ninhos na madeira da paxiúba, costuma andar em bando e quando ameaçada reage em grupo, emitindo um som chamado esturro
O jacamim é um animalzinho que vive na floresta, ele vive em comum-idade. Tem bando que chega a ter até cem deles, eles são muito resistentes qualquer bicho que quiser lhe atacar eles reagem juntos e brigão todos, eles tem esturro muito bonito, eles sempre tem um lugar de dormir, que agente da mata chama de puleiro, a noite eles cantam e é muito bonito pois cantão todos juntos dá um som lindo, eles, eles fazem seus ninhos em oucos de paus pachiuba, como são muito grande muitas vezes os oucos são aonde eles fazem ninhos não comporta os dois para chocar os ovos, chega até quebrar pois o tamanho deles é de uma galinha grande o interessante é que eles fazem rodigio. (SOUZA, 1990)
O autor destaca aspectos comportamentais do animal, entre eles o viver em comunidade, característica encontrada em diversos grupos de seres vivos, incluindo os humanos. Em seguida é narrado o processo de domesticação dessa ave, capturada enquanto filhote, o jacamim criado em casa tem senso de humanidade que deixa muita gente admirado muitas vezes houvi história dizem até que é mentira, porque ele é uma ave de pena e alguém acha impulsivel ele fazer isso. (SOUZA, 1990). Os elementos estruturados na narrativa produzem imagens-ação no leitor/ouvinte/espectador, de mundos que não pertencem a uma concepção de linearidade civilizacional: uma ave cuida, ou melhor pastora um bebê humano, e que converte o seu esturro, em alguns contextos, em signo de alerta para a mãe humana, posto que representa um indicador de que seu filho está chorando. Causa estranheza abordar uma relação de convivência cotidiana naquilo que se condicionou a subjetivar pela oposição cultura e natureza e a racionalidade rapidamente nos induz à posição que compreende a invenção como pura fantasia.
O texto anuncia que os homens capturam o jacamim filhote, retiram-lhe de seu habitat natural, afastando-o de seus pares, para viver em condições construídas/assumidas nas estruturas simbólicas, representacionais de uma comunidade de sociabilidade humana, sendo-lhe atribuído sentimentos constituintes a este tipo de organização racional, como na passagem em que a ave é considerada como um assistente social
eu: considero o jacamim como um assistente social pois ele sendo inocente ele não quer nem saber de quem é filho, ele cria pinto novo, cachorro novo, pato, periquito, ele até bate nas galinhas para tomar os filhos dela, eu mim admiro do senso de humanidade, que tem essa ave de pena. (SOUZA, 1990)
Mas o que deve ser considerado aqui é que os contextos sociais e históricos estão imbricados em práticas e vivências constituídas de muitos trânsitos, trocas e deslocamentos culturais. Em trechos como o jacamim criado em casa tem senso de humanidade se destaca a relação de equivalência entre homem e natureza pois o senso de humanidade atribuído a uma ave que não quer nem saber de quem é filho, ele cria pinto novo, cachorro novo, pato, periquito, aproxima-se das compreensões de humanidade que Krenak (2020, p. 07) desde uma cosmovisão indígena sintetiza em A vida não é útil em que o autor referindo-se ao termo diz Quando falo de humanidade não estou falando só do homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre (...).
De modo semelhante Antonacci (2014), pontua a problemática dos termos utilizados para catalogar os modos de ser e viver das populações africanas, feitas a partir uma estrutura de classificação colonial, a exemplo do Animismo, usado para descrever culturas e “mentalidades primitivas”
por atribuírem vitalidade a seres da natureza em seus cosmos. Por conceberem e viverem o mundo como um todo orgânico, do qual são parte, compartilhando vivências com mundos natural e sobrenatural, que sentem e experimentam em seus corpos, historicamente feitos em interface cultura/natureza, povos africanos foram estigmatizados. (ANTONACCI, 2014, p.252)
Outro ponto também trabalhado por Antonacci é como a literatura/poesia oral apresenta as interconexões presentes nessa compreensão que não hierarquiza homem/ natureza e como essa questão se materializa e atravessa também as obras artísticas pois as culturas, seus imaginários e realidades, são modos de apreender e viver o mundo.( ANTONACCI, 2014, p.249). Matias ao destacar aspectos comportamentais do jacamim, entre eles o de viver em comunidade, os atos de resistência e a capacidade organizacional no enfrentamento de adversidades, em que reagem juntos e brigao todos, esse senso de coletividade em uma ave de pena, equivale às práticas comunitárias dos grupos humanos que residiam na floresta, tanto através dos mutirões em que a comunidade colabora mutuamente nas atividades coletivas, como nos movimentos de luta pelo direito à permanência na floresta, os chamados empates.
O conto do jacamim reafirma a importância da produção de materiais que narram experiências e conhecimentos de mundos deslocados das esferas científicas de saber/ poder, estrutura de pensamento alinhada ao que críticos do coletivo modernidade/colonialidade vão chamar de diferença colonial em que valores, saberes, imaginários em subjetividades extraocidentais se firmam transgredindo e enfrentando o expansionismo eurocentrado (ANTONACCI, 2014 p. 258).
Matias encerra sua narrativa com a seguinte frase: você conhece o jacamim? Procure conhecer. O convite que é feito ao leitor/ouvinte/espectador é de expandir seus horizontes, apresentando um cenário pertencente a mundos amazônicos que incorporam no texto escrito elementos da oralidade, e não pela forma que inicialmente salta aos desavisados olhos da colonialidade, no caso, a estrutura da escrita, mas pelo compartilhamento de experiências de uma narrativa que pretende realçar outras possibilidades de interação, compreensão e ação no mundo, partindo de conhecimentos vivenciados por populações historicamente relegadas às margens em que suas produções são desvalorizadas posto que subjetivadas como um tipo de conhecimento inferior.
Chamo essa estrutura textual do Jacamim de conto por uma simples comodidade metodológica, tendo em vista que sua estrutura textual contém as seguintes características: uma narrativa dada como fictícia, com começo, meio e fim. Contudo faço um parêntese, de que é possível compreender que se trata de um texto produzido para ser montado, podendo, por isso, também ser considerado um roteiro de dramaturgia. Levando em conta que os textos do teatrólogo eram pensados para o ato cênico, mesmo não apresentando estrutura de dramaturgia ou mesmo de um roteiro clássico, trata-se de um texto que prevê uma narrativa pensada para o exercício da cena, da performance corporal.
A performance, na qual a corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão (ZUMTHOR, 2007, p.16) é grafada no tempo e no espaço como acontecimento único no âmbito da experiência coletiva, pois mesmo que o fenômeno da repetição seja condição sine qua non no âmbito da tradição oral, ela nunca é a mesma, pois o ato de narrar carrega consigo as intenções de voz, a movimentação corporal, a recepção do ouvinte, a particularidade do narrador, entre outros diversos fatores que fazem do momento da narração sempre, e nunca, o mesmo.
O conto, constituído de marcas de tempos, respiração e corporalidade, mesmo sem o elemento da narração feita em coletividade, deixa perceber que essas marcas conscientemente incorporadas por seu escritor, resultam em um texto que é lido como se falasse, e já que como narram os registros, um traço característico de sua personalidade era a capacidade de desenvolver boas relações, e considerando o ano em que o texto foi escrito, Matias facilmente poderia encontrar quem o datilografasse na norma canônica. Por este motivo é possível considerar que se trata de uma escolha primeiro política do próprio autor de construir e manter essa estrutura textual através de seu processo mnemônico, assim como estratégica, de aproximação entre autor e receptor, conferindo os aspectos da poesia oral nele, este ouvinte/leitor/espectador para que dê significância às palavras, e mesmo que lendo no silêncio de sua casa produza ressonância vocal, aquela que mesmo sem ser proferida habita seu ser.
A relação entre o narrador e sua matéria: a vida, é uma relação artesanal, a mão/ corpo do artesão cria os movimentos constituintes da sua performance (BENJAMIN, 1987, p. 221) as quais não apenas narram, mas também criam mundos. Relação artesanal presente no ato de construir grandes histórias pela habilidade das mãos, em um corpo que performa as experiências de suas memórias, narrando, seja através da voz ou da escrita os saberes que se estabelecem das trocas e vivências de um homem que chega na capital do Aquiry já conhecido como um contador de histórias (ROCHA, 2008), que abrange as possibilidades orais para espacialidades e temporalidades diversificadas dentro da própria cidade e com o mesmo domínio deixa um legado para a historiografia do teatro de Rio Branco, usando a possibilidade de reimaginar imaginários, incorporando saberes que possibilitam questionar a métrica e o espaço que é reservado para a arte produzida na Amazônia acreana.
Ao passo que as memórias são partes constituintes da vida, é inviável tirá-las do núcleo de análise quando falamos de narrativas orais. Portelli (2016) ressalta que a memória não é boa ou má, não trabalha a serviço de um agente de controle exato e definido para assim ser considerada controlável. Por isso, pode ser pensada como um músculo involuntário, uma ação independente de comandos levemente conscientes, como o músculo do diafragma o qual se move para acontecer a ação constante, necessária e involuntária da respiração.
O papel da memória aqui é de desmontar. Desmontar a partir da pulsão essencial para a construção de novas narrativas diante da historiografia dita oficial, tratada como linear e vista por monumentos épicos de apenas uma face da moeda. Algo que Didi-Huberman (2015) propõe pensar a partir de Benjamin e das obras de arte. Para o filósofo francês, a história da arte envolta nas falácias sobre forma e conteúdo precisa começar e recomeçar a existir a partir da própria história das obras de arte. Assim dizendo, as narrativas orais enquanto formas exorcizadas e grafadas da memória para serem rememoradas, reescritas ou escritas precisam passar por uma leitura a contrapelo. Olhar entre os entres é o que torna a memória não só aceitável, mas vital para o conhecimento de novos mundos, ou antigos mundos conhecidos, mas nunca escutados.
A memória mesmo incontrolável é passível de identificação quando materializada. Zumthor (1997) assume que a palavra quando se torna som passa a existir de forma independente e simbolizada, transformando-se em algo não necessariamente palpável e sólido, mas vivo e simbólico. As nascentes da poesia oral surgem do processo entre simbólico-imaginário. Quando as memórias, enquanto produto das vivências, histórias ou eventos tornam-se poesia oral, são resultados da transformação interna gerada no limiar entre o vivido e o imaginado.
Essa materialização da memória em seu caráter oral é questionada há tempos. Nos séculos XIX e XX, a representação e o distanciamento da burguesia da maioria da população foi recriada de diferentes formas. No caso da cultura, os termos folklore e popular transformaram-se em conceitos referentes a obras simples, rústicas e anônimas. Enquanto as classes subalternizadas tinham como representação estética canções, cantos e lendas orais, a burguesia criou suas obras como eruditas e exclusivas, e não por coincidência, escritas.
A concepção de hierarquia entre as obras orais e escritas buscou se sustentar na discussão sobre a massificação das produções e de sua difusão mecânica (ZUMTHOR, 1997). Ou seja, acreditou-se que a alienação causada pela expressão artística da massa deveria ser combatida pela educação e cultura burguesa, representadas pela ordem e a estrutura da grafia. Entretanto, a oralidade foi e é uma ferramenta cabível de uso prático para a reafirmação das culturas, costumes e vivências da massa. O narrar, cantar e recitar são transmitidos entre gerações através dos intercâmbios que garantem a comunicação do novo com o antigo.
Neste sentido, a narração analisada nesta seção é produzida por Dercy Teles de Carvalho Cunha, a primeira mulher a assumir a posição de presidente de um sindicato na Amazônia acreana. Em um momento de fortes ameaças às lideranças sindicais, Teles foi escolhida e aceitou presidir o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Xapuri, em uma assembleia pública no ano de 1981. Se candidatou novamente em 2006 e foi eleita presidente, ocupando o cargo até 2009. Nas eleições seguintes, atuou como vice-presidente na chapa vencedora, permanecendo nessa posição até 2013. E manteve-se como membro do STR de Xapuri até 2017.
As fontes orais manuseadas a seguir são oriundas do debate e reflexão, feitos por Teles, advindas do evento acadêmico XIII Jornadas Andinas de Literaturas Latinoamericanas (JALLA), em agosto de 2018, na Universidade Federal do Acre, retirada de acervo online. Da entrevista cedida aos pesquisadores Ana Pizarro, Raquel Ishii e Gerson Albuquerque, em 2012, na sede do STR de Xapuri, oriunda de acervo privado. E da entrevista realizada por Estefany France, na cidade de Rio Branco, em 2022, fazendo parte da coleta de dados da dissertação de mestrado intitulada “Memórias e leituras de Dercy Teles sobre a luta pela terra em Xapuri – Alto Acre”.
Nas falas de Dercy Teles o pessoal, profissional e político se entrelaçam criando trajetórias únicas. As vivências individuais são grafadas a partir do seu avanço na luta pela terra em Xapuri e o seu ingresso no movimento sindical. O primeiro marco a ser analisado em sua vida tem caráter, inicialmente, pessoal, como podemos observar na seguinte citação:
Nasci no seringal. Recebi a educação que toda mulher e família rural recebem. Quando eu tinha 20 anos meu pai morreu, em 1974, tive que assumir a condução da colocação administrativamente. Meu irmão mais velho é alcoólatra, porque não existe ex-alcoólatra, a qualquer momento eles podem reincidir. E minha mãe era uma daquelas mulheres do lar, o marido que escolhia o tecido, a costureira, a altura, se era curto, se era longo, se era médio (Entrevista cedida a Estefany France na cidade de Rio Branco, em 2022).
Com o falecimento de seu pai, as ações de Teles passam a ser moldadas pela necessidade de liderança da família antes desempenhada pela figura paterna. A contraposição de posições ocupadas por pai e mãe na organização familiar da sujeita a fez entender que os lugares pré-estabelecidos quando criança não poderiam mais ser pensados como antes. Teles (2022) narra que neste período cortava estrada de seringa, ajudava a raspar a estrada no preparo da área para fazer a sangria na colheita do látex, brocava roçado e fazia cerca. Atividades essas vistas como masculinas no meio rural, mas que com a morte de seu pai ela passou a desempenhar. Com isso, as rupturas internas e externas começam seus processos de feitura por meio do trabalho. Porém, trabalhar neste contexto não era apenas uma forma de garantir o alimento para toda sua família, pois, à medida que seu trabalho ia avançando no contexto familiar e local do seringal, passou a ser também uma voz de liderança dentro de seu núcleo familiar.
Quando Teles (2022) rememora que qualquer estrada era roçada em dois dias porque colocava ordem e todos só comiam na hora de ir embora; ou, quando colocava a chave do armário de bebidas na cinta após recolher as bebidas da única festa anual permitida por ela em sua casa, na colheita de mandioca, remete ao traçado simbólico de limitadora e facilitadora social e política dentro da primeira instituição comandada por ela, a família.
Na construção da posição de seu núcleo familiar, seja como estratégia no trabalho braçal desempenhado na agricultura, ou no controle do alcoolismo do irmão, a sujeita rompe a ideia de liderança esperada por uma sociedade patriarcal, instituída na família tradicional da zona rural, e cria espaço para si em meio as estradas de seringas, e mais tarde na plenária do sindicato. Para Zumthor (1997, p. 17), na articulação entre sujeito e objeto, entre um e o Outro, a voz permanece objetivável, enigmática, não especular. Ela interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma alteridade. Assim, nos processos de construção e desconstrução das identidades de Dercy Teles nos diversos espaços ocupados e rejeitados por ela, entre o caminhar e o romper com os seus objetos de desejo, o narrar foi e é o fio condutor que costura, fia e tece sua trajetória entre si e o outro, entre o agora, antes e o depois.
O ingresso da Teologia da Libertação em Xapuri, no ano de 1978 ajudou a fortalecer a luta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR de Xapuri, fundado em 1977. Por meio do grupo de evangelização da igreja católica, Dercy Teles passa a ser delegada sindical, cargo ocupado por ela quando a diretoria do STR de Xapuri é denunciada por negociações ilegais que visavam o beneficiamento próprio do presidente do sindicato com fazendeiros, indo contra os trabalhadores. Quando a sujeita entra para a Teologia da Libertação como monitora, e posteriormente, no cargo de delegada sindical, se inicia a sua vida política pública, já que seu primeiro papel político foi expressado inicialmente em seu núcleo privado, a família.
Seu Luiz foi deposto em agosto de 1981 e fizemos uma eleição para eleger uma diretoria provisória. Até porque o mandato era de 2 anos, ele foi o presidente fundador, o mandato era de 2 anos e ele estava há um ano. Eu cumpri o mandato dele, esse último ano que ele não poderia concluir. Fui presidente eleita em uma assembleia, tinha uns 1.500 trabalhadores. Foi uma eleição muito bonita e eu conduzi os destinos do sindicato de agosto de 1981 até agosto de 1982. Quando saí do sindicato eles queriam que eu continuasse, mas, eu sempre fui contra a concentração do poder (Entrevista cedida a Estefany France na cidade de Rio Branco, em 2022).
A união de privado e público é refletida em ambos os polos da vida de Teles. O período de um ano do seu primeiro mandato, em 1981, significou muito em sua trajetória em diversos sentidos, pois relata: fui a segunda presidente do STR de Xapuri e a primeira mulher na Amazônia. Muita gente fala que fui a primeira no Brasil, mas a primeira foi a Margarida Alves, em Pernambuco. Eu fui a segunda, a primeira na Amazônia.
Além do significado histórico deste feito em sua trajetória, este posto ocupado também impactou diretamente na forma como a comunidade a tratava. Durante o período em que Teles ocupou a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais-STR de Xapuri pela primeira vez, ocorreu simultaneamente a ditadura militar no Brasil, contexto que agravou os questionamentos sobre o papel político desta sujeita, tanto por homens quanto por mulheres.
As violências e silenciamentos vividos pela sujeita perpassaram entre os conceitos de machismo e misoginia em diferentes ocasiões, sobre essas vivências ela narra: eu escutava as mulheres comentando pelo outro lado da parede: “Essa mulher só aparece aqui com homens diferentes”; alguns homens tomavam umas cachaças e falavam “eu não quero que essa mulher assine meus documentos do sindicato não”. Os pontos que simbolizam a negação da comunidade diante da função de presidenta, representam uma parte das adversidades criadas pela sociedade. A comunidade a considera inapta devido à falta de preenchimento dos pré-requisitos impostos pelo contexto social, como a instituição do casamento e de gênero. No entanto, o posto de liderança que ela já ocupava em seu núcleo familiar se reflete de maneira semelhante no âmbito público. Apesar de enfrentar violências, a sujeita não se intimidou e concluiu seu mandato com louvor. Tanto é que os dirigentes desejavam sua reeleição, mas ela declinou. Em 1982, Chico Mendes foi eleito como o novo presidente do STR de Xapuri.
Após 30 anos do assassinato do líder sindical, Teles inclui em suas narrativas as memórias do passado, enxergadas a partir dos filtros do presente, visto que para ela o tempo não é medido apenas pelo conceito cronológico de marcação, mas também pelos retrocessos e avanços de sua luta. A respeito disso comenta
Diante desses conflitos a gente avançou muito, construímos um sindicato forte, lutador, que foi reconhecido mundialmente pela luta que desempenhou. Lamentamos a perda de alguns dos nossos lutadores nessa estrada, inclusive, uma pessoa como Chico Mendes. Hoje, a gente tá comemorando os 30 anos sem ele e com um grande retrocesso de luta. De tudo aquilo que a gente construiu e foi destruído ao decorrer desses 30 anos, o mais lamentável é que usam o nome do Chico Mendes para legitimar essa farsa que foi implantada no nosso estado. (Debate de Dercy Teles, no JALLA, em agosto de 2018).
O retrocesso para Teles é pensado a partir das perdas de espaço nas discussões sobre a preservação da floresta e dos povos tradicionais, simbolizado com o assassinato de Chico Mendes. A pontuação feita por ela sobre os 30 anos do assassinato do líder sindical pode ser lida como uma ferida em processo constante de feitura, visto que a ameaça de assassinato do estado e dos agentes de interesse sobre as áreas de mata, como a Reserva Extrativista Chico Mendes - RESEX, não cessaram.
Para Benjamin (1987, p. 170), o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros, desse modo, as narrativas de Teles são construídas a partir de suas vivências enquanto moradora há quase meio século do mesmo local. Para além disso, suas falas carregadas de denúncia ocupam um espaço que Zumthor (1997, p. 14) explica como: o papel social do falante. Ou seja, quem fala o faz em determinado momento, para certo público, com certo objetivo. O falar sentada, em pé, muito, pouco, concordar ou discordar transforma a posição ocupada por esta narradora na comunidade em que habita.
Ao continuar a narrativa de pesar sobre retrocesso e morte de Chico, Teles mais uma vez denuncia e lamenta a exposição da imagem do líder sindical durante esses 30 anos: e o mais lamentável é que usam o nome do Chico Mendes para legitimar essa farsa que foi implantada no nosso estado. Com essa fala, a sujeita ressalta pontos relacionados ao legado de Chico Mendes sobre as questões agrárias e de preservação da floresta, estes, por vezes, alvo de apropriação pelo governo da Frente Popular[3] enquanto discurso de fundamentação para suas políticas voltadas ao meio ambiente. Porém, a sindicalista e trabalhadora rural se posiciona contra qualquer discurso de caráter de preservação e proteção criado e midiatizado pelo governo, visto que, aos seus olhos, a imagem de Chico foi usada de forma indevida, pois, se estivesse vivo, não compactuaria com as farsas do governo.
A narrativa de Teles não é apenas sobre sua vivência enquanto moradora da RESEX Chico Mendes, é também uma construção narrativa voltada à denúncia das adversidades vividas ali. Além das dificuldades com o governo e os órgãos de proteção da RESEX, são relatados os obstáculos encontrados em meio ao diálogo com outros moradores a respeito das atividades realizadas no local. Quando ela cita que: não decolou esse debate por falta de pessoas com essa habilidade, com essa capacidade de fazer discussão, se referindo a questão da sustentabilidade, remete à falta de compreensão da importância do assunto e das consequências iminentes a uma parte da comunidade.
Já tentamos fazer esse debate entre os diretores. Perdemos diretores porque não aceitaram a discussão, e se negaram a fazer a discussão, a ter informação a respeito. Já trouxemos uma pessoa pra fazer uma explanação do que significa esse manejo que chamam de sustentável, mas é insustentável. Não decolou esse debate por falta de pessoas com essa habilidade, com essa capacidade de fazer discussão. E o grande x da questão é uma complexidade sem tamanho. Quando você está numa situação onde tem figuras que contribuíram significativamente com a luta deste sindicato, com a construção dessa luta, como Raimundo Mendes de Barros e outros, que hoje estão defendendo o manejo, inclusive, colocando suas áreas e moradias à disposição, é difícil para os trabalhadores que não tem muita informação entender que essas pessoas, hoje, não são mais a favor do trabalhador. Elas estão defendendo os interesses do capital e consequentemente do governo que está a serviço desse capital (Entrevista cedida a Ana Pizarro, Raquel Ishii e Gerson Albuquerque, na sede do STR de Xapuri, 2012).
Citando a metáfora de Benjamin (1987) sobre a narração rica de experiências feita por dois tipos de sábios conselheiros: o mestre sedentário e o aprendiz migrante, procuramos pensar em relação ao papel da presente narradora. Entendendo que o sedentário é aquele que conhece muito bem o local onde construiu e desconstruiu suas vivências por estar sempre no mesmo lugar, o migrante tem suas histórias tecidas nos seus movimentos e contatos traçados pelo mundo.
Pensando nisso, Dercy Teles pode ser vista como uma mestre-aprendiz, visto que em suas narrativas há uma mistura do estrangeiro, do mundo intelectual e das vivências acadêmicas, mas, sem se desligar de seu conhecimento sedentário, aquilo construído em meio aos seringais, a Reserva Extrativista Chico Mendes – RESEX e o STR de Xapuri. Entre os mundos de Teles, um depende e retroalimenta o outro. As vivências como palestrante e militante a ajudaram a ler o seu lugar de sábia sedentária a partir de novas perspectivas, essas usadas por ela como objeto de apoio para continuar a lutar pelas causas relacionadas à terra e aos direitos dos trabalhadores rurais.
O contraste entre sua trajetória e a de outros trabalhadores rurais de Xapuri é ressaltado em meio as discordâncias sobre o manejo florestal ilegal e a preservação da reserva. Quando cita a falta de habilidades de outros moradores em entender que alguns agentes, antes ativistas políticos pelos direitos dos trabalhadores rurais, não são mais a favor do trabalhador por estarem defendendo os interesses do capital, e consequentemente do governo que está a serviço desse capital, coloca em evidência a diferença das perspectivas em questão. Teles se propõe a enxergar as questões políticas da reserva de forma ampla, inclusive, remetendo ao capital, sistema de economia capitalista.
A habilidade cobrada por ela em sua narrativa perante os moradores da RESEX Chico Mendes, é oriunda de sua face aprendiz-migrante, a qual o choque de discussões e interesses faz a sua figura oscilar constantemente entre migrante, alguém de longe com algo a ensinar, e de sedentária sábia, conhecedora de sua comunidade e dos problemas ali enfrentados. O contato dela com as perspectivas fora da reserva a coloca em uma situação narradora-errante. Ela narra o que conhece e o que vive, mas nem tudo o que narra é conhecido e aceito por quem escuta.
Sobre seu papel de narradora, Teles (2022) destaca: já dei minha contribuição, já dei meu exemplo. Agora eu estou só cuidando da minha vida e contando a história como eu tô aqui contando para você, e já contei para várias pessoas. O contar neste sentido surge como a continuação de seu trabalho na luta pela terra, mas também, na batalha para ser ouvida. Pois, para Zumthor (1997, p. 15), tudo provém da voz, saída da boca, seja ela concebida como o oposto do exílio ou como o lugar de retorno, assim, o processo de feitura das narrativas enquanto viveu/vive sua trajetória pessoal e política é marcado pelo romper com o antes falado e feito, já que a vida pode ser pensada como uma finita linha entre um não eterno processo de come-se, mas também vomita-se.
Continuando com as palavras de Zumthor (1997, p. 11), o narrador é um artista que molda a história por meio de sua voz e presença física, criando um ambiente de intimidade e conexão emocional com o público. Nesse sentido, a atuação de Teles como sindicalista e militante pode ser vista como uma forma de narrativa da resistência. Enquanto conta a história de luta e resistência dos trabalhadores rurais no Acre, cria uma ruptura no imaginário da história oficial, e, por vezes, épico de figuras importantes, mas, ainda sim, envoltas no processo de silenciamento de vozes e corpos necessários neste movimento de luta. Ainda para o autor
a voz é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmicos que nos atravessam e capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar toda matéria... como o atestam tantas lendas sobre plantas e pedras enfeitiçadas que, um dia, foram dóceis.
A voz desta narradora ecoa para além da sua própria experiência, ou de um tempo singular, e paira sobre as feituras da história escrita nos plurais. Sua voz preenche a ausência tecida por tantos na grafia da dita história oficial. Sua matéria é captada e espalhada através de suas narrativas com emoção, tristeza, desacordos, denúncias, controvérsias, faltas e exageros. Seu papel social em constante feitura é grafado pelas marcas de suas decisões, e essas grafias são possíveis de um breve conhecimento a partir de sua posição de narradora do mundo.
O trabalho com as dimensões da oralidade consiste em manusear arquivos, narrativas, entrevistas, histórias, rememorações, vocalidades e afetos, um trabalho de feitura constante que necessita do exercício de ouvintes e falantes para continuar existindo. Para Walter Benjamin, o ato de ouvir e a comunidade dos ouvintes estão desaparecendo. Esta percepção se baliza no fato de que na atualidade as histórias que são proferidas são praticamente descartáveis, pois são transmitidas sob a forma de notícia.
O autor acredita que no presente a busca por saber o que acontece no agora, no instante mesmo da narração, faz com que as narrativas que eram passadas adiante entre as gerações não soem mais tão atrativas. Benjamin (1987, p. 205) afirma que as histórias se perdem porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve aquilo que está sendo dito. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido.
Nessa direção, o presente trabalho busca analisar três diferentes textos que estão cunhados na tradição oral, na qual há o movimento de fala, escuta e transmissão de narrativas vivas e cambiantes, que se atualizam ao longo dos tempos e dos espaços. O narrador de histórias orais caminha entre os mestres e os sábios, pois seus conhecimentos, transmitidos ao longo dos tempos, por meio da memória e da rememoração, fabricam sentidos que ajudam homens e mulheres a traçarem seus caminhos. Esse movimento pode ser facilmente identificado em comunidades em que o veículo de transmissão oral é a principal ferramenta de perpetuação de saberes.
Por meio da oralidade e da memória, conservam-se e se passam adiante as narrativas que orientam e aconselham as gerações passadas e futuras a respeito das coisas do mundo, como é o caso do conhecimento tradicional Wapishana proferido por Harry, presente na seção “Transmissão de conhecimentos tradicionais por meio da oralidade: uma narrativa Wapishana”. Esta possui um propósito dentro da sociedade em que circula, organizando a vida em comunidade, direcionando os membros daquele povo em relação às atitudes que devem tomar diante do contexto em que vivem. Nesse movimento, a transmissão de conhecimentos tradicionais por meio da oralidade é uma força ativa que mantém em circulação narrativas importantes para a perpetuação da cultura e dos modos de ver o mundo e de viver em sociedade dos Wapishana e de tantos outros povos que encontram na oralidade o instrumento para manterem vivas suas cosmovisões.
Para Zumthor (1997, p. 33), o locutor não tem como finalidade apenas comunicar algo, mas conseguir a atenção para aquilo que está sendo dito. Locutor e interlocutor participam de um jogo de trocas de experiências no momento da transmissão. Diante disso, o autor apresenta a ideia de performance, entendida por ele como a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Na performance, três elementos se apresentam simultaneamente e simultaneamente são confrontados por intermédio de meios linguísticos: o locutor, o destinatário e as circunstâncias em que a mensagem foi transmitida.
A seção “Dimensões da oralidade no conto A história do Jacamim de José Marques de Souza” aponta para os elementos constituintes da performance e de que maneira eles se modificam, misturam-se e se alternam no ato da produção dessa poesia oral. Matias, elabora este jogo de alternância mnemônica com seu leitor/ouvinte/espectador, utilizando as dimensões corporais que cambiam entre a escrita e a palavra proferida, sem dicotomias. Através da escolha estratégica e política desse texto, escrito como se se falasse, no qual enfatiza os atravessamentos da palavra pelo corpo, que se expande pela voz, e que através de um documento datilografado produz elementos da oralidade, como já dito, não pelo formato da escrita mas pela possibilidade de engendrar espaços e tempos fora da linha evolutiva de racionalização de mundos. Nesse movimento, produz caminhos que dão acesso a imaginários outros diante do pluriverso de possibilidades de existir, pensar, dizer e produzir arte na Amazônia acreana.
O limiar entre o narrar-escutar cria a pulsão poética necessária entre vida e morte, memória e esquecimento, tornando possível refletir sobre aquilo que uma sociedade tem a dizer sobre si mesma, ouvindo e conservando este jogo entre locutor e interlocutor. Com isso, aquilo que é dito se expande, perpetua-se perto ou longe, pois, aquém das atividades cujo desdobramento nos constitui como corpo social, nossas vozes ressoam, em ondas próximas ou longínquas, como um ruído de fundo, um perpétuo estímulo sonoro, sem o qual o medo nos paralisaria (ZUMTHOR, 1997, p. 34).
Na seção “Dercy Teles: uma narradora”, Teles é uma locutora que constrói o fluxo da comunicação. Suas narrativas são repletas de emoções, denúncias, conselhos e críticas relacionadas às suas experiências pessoais e políticas advindas da luta pela terra na Amazônia acreana. Em sua função de narradora, ela tece pelos fios da memória um discurso crítico e persuasivo moldando a linguagem de forma a criar uma atmosfera poética que desperta a sensibilidade do interlocutor e o convida a refletir sobre os seus motivos de risos e choros entrelaçados entre as costuras do passado-presente-futuro.
Nas três diferentes análises de fontes orais apresentadas ao longo deste texto, buscamos mostrar um vislumbre da diversidade de narrativas que emergem a partir dos pluriversos amazônicos, narrativas essas que se propõem a diferentes fins, tais como a transmissão de conhecimentos tradicionais, cosmológicos, artísticos, políticos e militantes. Assim, o texto apresentado procura visibilizar populações que historicamente encontram-se à margem da história a partir de seus relatos como forças transformadoras tão importantes quanto outras formas de registro e transmissão de conhecimentos e saberes.