Resumo: No final do século XVIII mudanças sociais e econômicas ocasionaram uma série de transformações na cultura ocidental. Acontecimentos marcantes, tais como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, criaram um ambiente social muito diferente daquele vivido até então. Literatura, Teatro, Artes Plásticas tiveram que buscar novas formas de expressão para retratar a classe social que naquele momento histórico tornava-se hegemônica: a Burguesia. Por isso a Cultura sofre abalos profundos que geram uma nova concepção do Homem, do Belo, da Vida, iniciando um processo de renovação nas artes que irá se estender pelos séculos XIX e XX. O autor, especialista em história intelectual, procura mostrar ao longo de seu ensaio quais foram as ideias fundamentais que orientaram a transformação estética conhecida pelo nome de Romantismo.
Palavras-chave: Classicismo, Arte, Gênio, Razão, Sentimento.
Abstract: At the end of 18th century a lot of social and economic changes led to a set of transformations in Western culture. Remarkable occurrences, such as Industrial Revolution and French Revolution created a social environment very different from the one Europe had lived so far. Literature, Performing Arts, Fine Arts had to seek for new ways of expression in order to portray the emerging social class of that historical moment: the Bourgeoisie. Hence Culture has undergone a lot of deep clashes which have generated new conceptions of Man, Beauty, Life starting a process of renovation in the arts that will go on throughout 19th and 20th centuries. The author, a specialist in intellectual history, tries to show in his essay which ideas were essential for the radical aesthetic change known by the name of Romanticism.
Keywords: Classicism, Art, Genius, Reason, Feeling.
Artigos
AS TRANSFORMAÇÕES ESTÉTICAS QUE LEVARAM AO ROMANTISMO

Received: 31 March 2023
Accepted: 19 July 2023
O século XVIII foi um período histórico marcado por mudanças profundas. Como exemplo dessas alterações podemos citar as consequências políticas da Guerra da Sucessão Espanhola, terminada em 1714, que assinalou o fim do predomínio da Espanha e a ascensão da França como grande potência continental na Europa. Devemos igualmente levar em conta o impacto duradouro que as guerras de religião travadas no século XVII tiveram sobre o pensamento europeu ao longo dos Setecentos, gerando uma grande descrença religiosa. Também os avanços tecnológicos que propiciaram a Revolução Industrial na Inglaterra decretaram o fim do Mercantilismo e, ao criarem novas formas de produção, modificaram os hábitos de consumo e os modos de comercialização. As oportunidades geradas pela abertura de mercados consumidores de manufaturas possibilitaram a formação de patrimônios derivados do Comércio e da Indústria, que passaram a rivalizar com a riqueza proveniente da propriedade de terras. Em decorrência da industrialização houve um processo acelerado de urbanização, pois a demanda por mão-de-obra concentrou-se nas cidades e não mais nos campos. Porém, apesar dos avanços científicos e econômicos a Europa do século XVIII continuava a conviver com epidemias, fanatismos religiosos e injustiças de toda espécie. A incapacidade de formular soluções factíveis para as contradições surgidas em consequência dessa nova realidade levou ao colapso do Antigo Regime, cristalizado de forma brutal na Revolução Francesa. O que nos propomos a expor, respeitando os limites inerentes a um artigo, é como as ideias que sustentavam a velha ordem foram gradualmente sendo substituídas por outras concepções que procuravam dar conta das transformações que estavam ocorrendo, ou, em outras palavras, como o Classicismo[1] foi substituído pelo Romantismo.
Entre 1750 e 1830 ocorreram eventos de grande impacto no Ocidente: a Revolução Americana, a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o Império Napoleônico, a independência da América Espanhola, as revoluções liberais em vários países europeus, a independência do Brasil. No campo das ideias, segundo René Welleck, “esse é o período (1750-1830) no qual o grande sistema crítico neoclássico, que fora herdado da antiguidade e construído e codificado na Itália e na França durante os séculos XVI e XVII, desintegra-se e quando ele afunda emergem novas tendências que se cristalizam, no início do século XIX, nos movimentos românticos.” (Welleck, 1955, p. 1, nossa tradução). Acrescentaríamos que o Romantismo foi uma escola de pensamento plural, ou seja, abarcou várias áreas do Conhecimento, tais como a Literatura, a Poesia, o Teatro, a Pintura, a Arquitetura, etc., porém através de uma abordagem local, o que gerou uma miríade de interpretações. Por isso, em nossa opinião, é mais correto falar em movimentos românticos, que embora possuíssem um propósito comum muitas vezes se diferenciavam em suas ações e se desenvolviam de maneiras díspares. Mas, como afirma Welleck, “a mudança mais poderosa e mais óbvia na metade do século XVIII foi a troca da preocupação com a crítica pela reação da audiência, que levou à dissolução do Neoclassicismo em Emocionalismo e Sentimentalismo.” (Welleck, 1955, p. 26, nossa tradução). É possível inferir que o fim do Antigo Regime e de seu sistema de mecenato jogou artistas e escritores no mercado consumidor. Se antes atores, pintores e poetas eram financiados pelos nobres e suas academias de artes e ciências a partir das décadas finais dos Setecentos a bússola da criação artística passou a ser o gosto do público, já que as artes tornaram-se uma mercadoria vendida em teatros, livrarias e galerias. Essa foi uma transformação notável.
Mudanças nos critérios críticos e no gosto do público costumam ser lentas, começam de maneira discreta e geralmente percorrem um caminho árduo até estabelecerem-se como tendência dominante. Toda arte de vanguarda almeja ser a arte oficial, ganhar o reconhecimento da elite intelectual e colher os frutos proporcionados pelo aceite de suas ideias. O historiador intelectual procura identificar as trilhas percorridas pelos criadores e entender as razões do sucesso ou do fracasso de uma proposta artística. No caso específico do Romantismo podemos dizer que ele surgiu como uma reação a uma estagnação cultural, a um certo cansaço em relação às formas eruditas da arte praticada no interior das academias classicistas. De acordo com Harold Osborne
A gradativa substituição da Razão pelo Sentimento como critério fundamental em nosso comércio com as Belas Artes principiou a ocorrer nos últimos anos do século XVII, quando os críticos passaram, aos poucos, a acreditar que a Literatura e a Arte não devem ser julgadas segundo cânones clássicos de correção mas, antes, pela atração direta que exercem sobre homens de sensibilidade cultivada e requintada. (Osborne, 1978, p. 145).
Os modelos formais herdados da Antiguidade chegaram a um ponto de esgotamento. Na verdade, o grande problema da crítica neoclássica na segunda metade do século XVIII, como notou René Welleck, era que “por três séculos as pessoas repetiam os pontos de vista sustentados por Aristóteles e Horácio.” No entanto as artes haviam passado por profundas transformações, algumas delas revolucionárias, desde a Renascença mas, segundo Welleck, “nenhuma nova ou diferente teoria da literatura fora formulada.” (Welleck, 1955, p. 6, nossa tradução). É preciso dizer, à guisa de esclarecimento, que os conceitos nos quais o Classicismo se apoiava eram uma leitura de Aristóteles e de Horácio realizada por teóricos italianos e franceses ao longo do século XVI. O que esses estudiosos buscavam era uma definição atemporal do Belo, que não considerava as diferenças históricas entre o mundo moderno e o mundo antigo, uma vez que para eles o Homem era, em essência, o mesmo através dos tempos.
As transformações estéticas que procuramos identificar neste artigo começaram a tomar forma na década de 1750. A partir de então uma mudança no gosto do público, segundo nos relatam Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg, “deixa de favorecer as figuras bem proporcionadas e as vistas bucólicas, para destacar, por exemplo, as solitárias, selvagens e melancólicas paisagens inglesas que recebem o nome de ‘românticas’, como que se contrapondo à paisagística serena e composta, de linha ‘clássica’ francesa.” (Rosenfeld e Guinsburg, 1978, p. 264). Acrescentaríamos que o termo “romântico” surgiu primeiramente na Pintura como reação à produção artística que se tornara hegemônica nas primeiras décadas do século XVIII. De acordo com Carla Apollonio, “na vida setentesca aflora pouco a pouco entre outros sentimentos essa vaga sensibilidade entre o melancólico e o lânguido (...).” Surgem assim gravuras com árvores torcidas, céus tempestuosos, ruínas ermas e desoladas, castelos no alto de montanhas sombrias afrontando uma natureza inóspita. Essas imagens procuram levar seu apreciador a um mundo distante, evocando cenários muito diferentes da vida cotidiana dos campos e das cidades. Seria razoável supor que elas representavam um convite ao Sonho, um incentivo à crença de que era possível transcender a realidade da existência mundana. Na verdade, tais pinturas passam a suscitar emoções e sentimentos que, nas palavras de Apollonio, “logo começarão a tornarem-se nítidos também na linguagem poética.” (Apollonio, 1958, pp. 50-51, nossa tradução).
Essa transposição de temas sombrios que evocam sentimentos lânguidos e melancólicos da Pintura para a Poesia pode ser rastreada em Denis Diderot (1713-1784). No ano de 1758, já um filósofo de certo renome na Europa, Diderot publicou junto com sua peça de teatro O Pai de Família um estudo crítico chamado Discurso sobre a Poesia Dramática. Ao longo de vinte e dois capítulos ele faz uma reflexão sobre as produções dramáticas, sobre o público, os comediantes e os dramaturgos de sua época. Diderot identifica um artificialismo estéril nos textos dramáticos e preconiza uma volta aos espetáculos da Grécia antiga, onde os atores contavam apenas com seu talento natural e os dramaturgos eram também filósofos. Não pretendemos discutir aqui a visão estética do Enciclopedista. O que nos interesse é um parágrafo do capítulo XVIII, intitulado “Dos Costumes”, no qual ele pergunta:
De que precisa o Poeta? De uma natureza bruta ou cultivada, pacífica ou agitada? Preferirá ele a beleza de um dia puro e sereno ao horror de uma noite escura, onde o assobio intermitente dos ventos se mistura ao murmúrio surdo e contínuo de um trovão longínquo, e na qual vê o relâmpago iluminar o céu sobre sua cabeça? Preferirá o espetáculo do mar tranquilo ao das ondas agitadas? Preferirá o mudo e frio aspecto de um palácio, ao passeio entre ruínas? Um edifício construído, um espaço plantado pela mão dos homens, à espessura de uma grande floresta, ao desvão ignorado de uma rocha deserta? Lençóis d’água, bacias, cascatas à visão de uma catarata que se quebra caindo pelos rochedos, e cujo estrondo se faz ouvir pelo pastor aterrorizado que conduziu seu rebanho à montanha? (Diderot, 1986, p. 190).
É como se pudéssemos entender que ao fazer certas escolhas entre as opções propostas por Diderot tais como “uma natureza bruta”, “horror de uma noite escura”, “murmúrio surdo e contínuo de um trovão longínquo”, “o espetáculo (...) das ondas agitadas”, “passeio entre ruínas”, “espessura de uma grande floresta”, “desvão ignorado de uma rocha deserta”, “uma catarata que se quebra caindo pelos rochedos”, um poeta ou romancista estaria mais próximo dos cenários pintados nas chamadas paisagens românticas, que tanto encantavam o público na segunda metade do século XVIII. Também é possível inferir que a solução oferecida por Diderot ao artificialismo polido dos salões, que ele dizia intoxicar os palcos, fosse uma volta a uma natureza mais rústica, menos civilizada. Seria isso Romantismo? Não, mas uma indicação de que o Classicismo chegara a um ponto de estagnação e precisava buscar novos paradigmas criativos.
O Neoclassicismo, como foi denominada a produção artística da segunda metade do século XVIII, foi uma tentativa de renovação. Porém, as mudanças estruturais impulsionadas pela Revolução Industrial (no plano econômico) e pela Revolução Francesa (no plano político) demandavam uma transformação mais radical do que aquela oferecida pelos artistas neoclassicistas. Manifestava-se, então, no campo das artes e na cultura em geral, uma tendência que privilegiava uma abordagem particular da Natureza, estribada no Sentimento, em detrimento de uma abordagem generalizante, fundamentada na Razão.
Grande parte das transformações estéticas aqui abordadas tiveram origem na Inglaterra. Segundo Vera Lúcia Felício, “a escola dos empiristas ingleses, oposta à linha racionalista, seu contrário, embora ambas façam parte de um mesmo espaço no período clássico, partia do Sentimento ou percepção sensíveis individuais, coerente com a afirmação de que é dos sentidos ou das sensações que provém o Conhecimento, que é relativo.” (Felício, 1999, pp 38-39). Acrescentaríamos que essa visão chocava-se com o racionalismo defendido ardorosamente por Descartes e seus seguidores.
Entre os pensadores ingleses do final do século XVII destacava-se o Conde de Shaftesbury (1621-1683). De acordo com Ernest Cassirer, para Shaftesbury “a Arte está ligada muito intimamente à Natureza, nada pode atingir e nada deve tentar que ultrapasse os limites da Natureza.” Seria razoável supor que isso exigiria dos artistas uma sensibilidade muito apurada pois, como explica Cassirer, dentro da concepção de Shaftesbury “é na criação, não na imitação, que se atingirá a ‘verdade’ da Natureza, no seu sentido mais profundo (...).” Destarte o processo criativo não consiste em coletar elementos na Natureza através de fórmulas pré-estabelecidas para a confecção do Belo, na forma preconizada pelos estetas franceses da época, mas em exprimir por meio desses elementos selecionados pelos artistas “uma necessidade, uma lei verdadeiramente interior”, na explanação de Cassirer. Por isso podemos inferir que enquanto os franceses exigiam na obra de arte a Habilidade, os ingleses passam a demandar a Originalidade, já que o artista de talento, o gênio criador por excelência, não recebe estímulos externos mas expressa a sua verdade interior. Para Shaftesbury, nas palavras de Cassirer, “o gênio não tem que ir em busca da Natureza e da Verdade; tem-nas em si mesmo e, se se mantiver sempre fiel a si mesmo pode estar certo de que elas jamais lhe faltarão.” (Cassirer, 1994, pp 427-428).
Outro pensador fundamental no encaminhamento das mudanças estéticas que se desenvolviam na segunda metade do século XVIII foi Jean Jacques Rousseau (17121778). Na opinião de Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg, “o que distingue Rousseau e o transforma em fonte inspiradora da escola romântica é o seu profundo pessimismo no tocante à Sociedade e à Civilização. Ele não acredita nem em uma nem em outra, estabelecendo o postulado de uma natureza humana, que vai sendo corrompida pela Cultura.” (Rosenfeld e Guinsburg, 1978, p. 266). Nos escritos rousseauianos podemos encontrar aquela insatisfação com as estruturas sociais e as concepções artísticas que estavam na base do Antigo Regime. Para Walter Zanini, “uma contribuição por todos os títulos essencial é evidentemente a de Rousseau, pensamento e ação que contagiam as novas gerações insuflando-as à prática de uma moral rebelde, de repercussões profundas na esfera social e política e na linguagem das letras e das artes.” (Zanini, 1978, pp 185-186). Seria razoável supor que do ano de 1683, quando morreu Shaftesbury, até 1778, ano do falecimento de Rousseau, foi-se criando uma corrente de pensamento anti-classicista que aos poucos ganhou força dentro do cenário artístico e cultural europeu. Muito embora concedamos que estamos a fixar marcos temporais aleatórios, esses quase cem anos (1683 a 1778) representam um período de tempo aceitável para a criação de conceitos sólidos. O que pretendemos argumentar é que os poetas e artistas surgidos na década de 1780 encontraram uma base filosófica bastante estável na qual podiam se apoiar para tentar o grande salto renovador a que damos o nome de Romantismo.
Na verdade, o século XVII foi marcado pelas guerras religiosas que abalaram a Europa. No início do século XVIII a Guerra da Sucessão Espanhola possibilitou à França, vencedora do conflito finalizado em 1714, assumir o posto de principal potência continental, ocupando o lugar que antes pertencera à Espanha. Houve então uma mudança no panorama cultura europeu. Os homens de letras do início dos Setecentos eram avessos às querelas religiosas e passaram a privilegiar a interpretação racional dos fatos. A ideologia dominante passou a ser o Cartesianismo, a matematização da Natureza e a exaltação da Razão como mediadora das desavenças, ocorressem elas na esfera pública ou na esfera privada. No campo das artes, a partir da década de 1750, aproximadamente, começou a germinar a ideia de que a Razão não explicava todas as coisas e também surgiu a percepção segundo a qual a Natureza, enquanto criação divina, não devia ser reduzida a fórmulas puramente matemáticas.
Na Alemanha a revisão do pensamento classicista de matriz francesa foi empreendida por Gothold Ephraim Lessing (1729-1781). Suas ideias estéticas foram expostas principalmente em duas obras, Laocoonte e A Dramaturgia de Hamburgo, lançadas entre 1766 e 1768. Cerca de setenta anos mais tarde, em 1834, Heinrich Heine (17971856) disse
Lessing morreu em Braunschweig, em 1781, incompreendido, odiado e caluniado. No mesmo ano, publicava-se, em Könisberg, a Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. Com esse livro, que por estranha demora só se tornou amplamente conhecido no final dos anos 80, iniciava-se na Alemanha uma revolução espiritual que possibilita as mais extraordinárias analogias com a revolução material na França, e deve ter tanta importância quanto esta para o pensador mais profundo. (Heine, 1991, pp 85-86, segundo livro).
Podemos dizer que o Mundo jamais foi o mesmo depois de Immanuel Kant (17241804), pois a sua reflexão sobre a nossa maneira de pensar e de formular nossos juízos de valor causou um impacto profundo e duradouro na cultura ocidental. Em sua tentativa de explicar aos franceses da década de 1830 por que o estudo das ideias de seu compatriota era tão fundamental e necessário Heine argumentou
Os filósofos que precederam Kant certamente refletiram sobre a origem de nossos conhecimentos (...); sobre a própria faculdade de conhecimento, se refletiu, todavia, muito pouco. Tal foi a tarefa de Kant, que submeteu nossa faculdade de conhecimento a uma investigação implacável, sondando-lhe toda a profundeza e constatando-lhe os limites. Descobriu, então, que no fundo nada podemos saber acerca de muitas coisas com as quais antes supúnhamos estar no mais íntimo contato. (Heine, 1991, pp 93-94, terceiro livro).
É possível inferir que o pensamento kantiano, difundido nas décadas finais do século XVIII, marcou o fim da concepção classicista de pensamento e abriu as portas para um novo entendimento do mundo em que vivemos.
Em 1790, Kant publicou A Crítica do Juízo, obra na qual ele explicou a sua concepção das artes. Na opinião de Harold Osborne, “ao elaborar o seu sistema de estética filosófica, Kant se valeu muitíssimo das ideias e doutrinas de outros, inclusive as que prevaleciam entre os estetas ingleses do século XVIII. Deu expressão filosófica a algumas das principais noções do movimento romântico – os conceitos de Originalidade e do Gênio, por exemplo (...)” (Osborne, 1978, p. 155). Segundo René Welleck, “no final do século XVIII, principalmente como efeito de A Crítica do Juízo, de Kant, a Alemanha começou a produzir uma infindável corrente de livros sobre estética e poética.” Seria razoável supor que as ideias que vinham sendo gestadas na Inglaterra havia um século ganharam corpo em sistemas de pensamento desenvolvidos em solo germânico, pois ainda de acordo com Welleck, “parcialmente sob a influência direta dos filósofos, poetas e historiadores literários popularizaram, aplicaram e modificaram as ideias propostas pelas grandes mentes especulativas. Schiller, Novalis, Tieck, Jean Paul – cada um deles expôs sua filosofia da arte e da literatura.” (Welleck, 1955, p. 227, nossa tradução). O que podemos inferir então é que esse turbilhão de conceitos, espalhado pela Europa nas décadas subsequentes, representou aquilo conhecido como Romantismo.
Dentre os chamados filósofos pós-kantianos um dos que mais influenciou a nascente escola romântica foi Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). De acordo com a análise da filosofia alemã empreendida por Heine em 1834, “assim como a Crítica da Razão Pura é o principal livro de Kant, assim também a Doutrina da Ciência é o de Fichte. Este livro é como uma continuação daquele.” (Heine, 1991, p. 101, terceiro livro). Conforme nos explicam Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg, Fichte “estabeleceu toda uma filosofia do Eu, onde sustenta, em termos radicalmente idealistas, que o Eu é o construtor do Mundo, ele o cria.” Não se trata porém do nosso eu pessoal, mas sim de uma força psíquica, criativa, de uma energia espiritual comum a todos os seres humanos. Desta maneira, especulam Rosenfeld e Guinsburg, “em todos nós está o núcleo criativo, o qual, diriam os românticos, por certo se expande com um vigor incrível no Gênio.” (Rosenfeld e Guinsburg, 1978/2, p. 283). É como se pudéssemos entender que o Gênio traz dentro de si uma capacidade que o habilita a criar um mundo diferente daquele criado por Deus. O Gênio possui em seu inconsciente imagens e formas que seriam a expressão individual de uma imaginação coletiva. Para o Gênio a Natureza não funciona como fonte de inspiração, ela é na verdade um indutor de suas emoções e um impulso para a sua energia criativa.
As novas concepções estéticas vão se aglutinando durante as últimas décadas do século XVIII e lentamente acabam por constituir uma escola de pensamento. Segundo Benedito Nunes, “as ideias da visão romântica do Mundo nascem em oposição às do Iluminismo, e agrupam-se, como estas, de maneira ordenada, num esquema de caráter sistemático. As matrizes filosóficas que permitem encadeá-las, e que imprimem ao esquema que elas compõe a unidade de uma constelação de princípios interdependentes, procedem de uma combinação das linhas mestras das doutrinas idealistas pós-kantianas de Fichte e Schelling.” (Nunes, 1978, pp 55-56).
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) foi um dos primeiros pensadores a defender que a Arte é o produto de uma visão interior. Na sua concepção estética tanto o Filósofo quanto o Artista são capazes de penetrar até a essência do Universo, que ele chamou de Absoluto. Assim a Arte quebra a barreira existente entre o Real e o Ideal, proporcionando a união entre a Natureza e a Liberdade. Conforme nos explica René Welleck, para Schelling, “a Arte constitui uma ligação ativa entre a Alma e a Natureza. A Arte não imita a Natureza, mas tem que competir com o poder criativo da Natureza.” (Welleck, 1955/2, p. 76, nossa tradução). Seria razoável supor que essa visão profundamente idealista do fazer artístico chocava-se com a concepção classicista do artista-artesão, submetido a regras estritas acerca da criação do Belo. Podemos identificar em Schelling uma reação ao ideal da Arte como um princípio formador do caráter, através da educação pelo deleite, um dos conceitos que os renascentistas haviam extraído da Arte Poética, de Horácio. O que podemos notar nos pensadores alemães do final do século XVIII, mas principalmente em Fichte e Schelling, é a construção de uma sólida estética apta a fazer frente às concepções do Classicismo.
A nova estética pós-kantiana propôs uma mudança no conceito de Inspiração. Desde a Antiguidade o Artista era visto como alguém inspirado por elementos externos a ele: para a mitologia grega as Musas incutiam nos homens os ideais de beleza; na concepção classicista a contemplação da obra de Deus – a Natureza – cumpria a mesma função. No Romantismo, o Artista inspira-se em si mesmo. A sua criatividade é produto de seu inconsciente, de suas emoções e de seus sentimentos. Para os críticos românticos, o valor da obra de arte não está na habilidade de execução do Artista, mas na originalidade do trabalho por ele produzido.
Não pretendemos, dentro dos limites de um artigo, fazer uma análise aprofundada das transformações estéticas que levaram a cultura ocidental a abandonar o Classicismo e a adotar o Romantismo. Nossa intenção é apenas mostrar algumas dessas mudanças, circunscrevendo nosso olhar às décadas finais do século XVIII. Um historiador intelectual frequentemente se depara com dificuldades para delimitar o período no qual ocorrem trocas de paradigmas no campo das artes. Muitas transformações não acontecem de forma linear, existem avanços e recuos, às vezes mudanças fundamentais só podem ser percebidas ao longo de um extenso período de tempo. Não é fácil determinar as razões pelas quais as pessoas passam a rejeitar certas concepções e adotar outras. O que podemos fazer é identificar tendências e acompanhar os seus desenvolvimentos.
Uma característica marcante da elite letrada do século XVIII, e que teve um impacto profundo no início do século XIX, foi a sua irreligiosidade. De acordo com Peter Gay, “para os homens do Iluminismo, qualquer cristianismo era inimigo declarado tanto da Razão quanto da Paixão, o Protestantismo só um pouco menos que o Catolicismo. A seu ver, o Cristianismo era dado à superstição e à produção de mitos, e preferia contos de fadas a explicações científicas.” (Gay, 1990, p. 50). Em 1856, Alexis de Tocqueville (1805-1859), em sua reflexão sobre as causas da ruína do Antigo Regime, também mencionou a falta de um espírito religioso nas elites da época:
Pode-se dizer de uma maneira geral que, no século XVIII, o Cristianismo tinha perdido em todo o continente da Europa uma grande parte de sua força. Todavia, na maioria dos países, era antes abandonado que combatido com violência e até aqueles que o deixavam pareciam fazê-lo a contragosto. A irreligiosidade estava difundida entre os príncipes e os intelectuais; ainda não penetrara no seio das classes média e baixa; continuava sendo um capricho de determinados espíritos e não uma opinião comum. (Tocqueville, 1997, p. 149).
Na opinião de Eric J. Hobsbawn, “o ateísmo declarado ainda era relativamente raro, mas entre os eruditos, escritores e cavalheiros que ditavam as modas intelectuais do final do século XVIII, o cristianismo franco era ainda mais raro.” (Hobsbawn, 1997, p. 240). Seria razoável supor que essa postura causaria um impacto na produção artística, uma vez que a Igreja, desde o Renascimento, fora uma instituição que apoiara firmemente as artes. Porém, a contra-partida a esse apoio fora um controle ideológico rígido sobre aquilo que os artistas pensavam e faziam. Por isso a irreligiosidade poderia funcionar como um desejo de independência, que explicaria a posição radical assumida por muitos intelectuais. Segundo Alexis de Tocqueville, “os filósofos do século XVIII agrediram com uma espécie de furor a Igreja; atacaram seu clero, sua hierarquia, suas instituições, seus dogmas e para melhor derrubá-los quiseram arrancar os próprios fundamentos do Cristianismo.” (Tocqueville, 1997, p. 55).
Talvez o mais extremado desses pensadores ateus tenha sido Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade (1740-1814). Ele foi um dos maiores defensores da livre manifestação dos instintos básicos do Homem, que em sua concepção são inatos à natureza humana e que teriam sido domados pela Civilização. Segundo Giovanni Macchia, “para Sade a Piedade (...) não é uma virtude: é o oposto da Força enquanto energia vital, é uma debilidade que perverte as leis universais e que necessita ser superada assim como se procura superar a sensibilidade excessiva.” (Macchia, 1976, p. 372, nossa tradução). Sade parece, às vezes, inverter a moral cristã, pois para ele, “a Crueldade não é outra coisa que a energia do Homem ainda não corrompida pela Civilização; é uma virtude portanto, e não um vício.” (Marquês de Sade, 1988, p. 46). Notamos nessa afirmação uma discordância radical da cultura iluminista, já que esta se propunha, em consonância com os ditames clássicos, a fazer, pelo uso da Razão, os homens cada vez melhores. Porém Sade acha que não deveria existir nenhum limite à vontade individual, pois se o mais celerado dos criminosos “torna-se o mais feliz pelos seus crimes por não se perturbar com remorsos, logo, daí resulta que o Crime contribui mais para a Felicidade que a Virtude.” (Marquês de Sade, 1988/2, p. 122). Para o nosso marquês a cultura e a moderação nos costumes de nada servem para o bem-estar das pessoas pois “só sacrificando tudo à Volúpia, o infeliz indivíduo conhecido pelo nome de Homem, jogado contra a sua vontade neste infeliz universo, poderá semear algumas rosas entre os espinhos da Vida.” (Marquês de Sade, 1988/3, p. 40).
À guisa de esclarecimento diríamos que a retórica inflamada de Sade, a sua brutal exposição de uma sexualidade sem limites morais ou racionais, muito embora fosse algo extremada não descrevia uma atitude de todo estranha às elites dominantes no apagar das luzes do Antigo Regime. Na década de 1790, ou seja, nos anos imediatamente posteriores à Revolução Francesa, a Europa foi tomada por um sentimento de angústia, de perda do equilíbrio emocional que a crença religiosa, bem ou mal, proporcionava. De acordo com Francesco Flora, “na dúvida religiosa surge a tristeza do mundo moderno, e a vida faz-se desconsolada até quando um novo sentido de religião ou o mito da ilusão não descubra, ou acredite descobrir, o divino na cidade terrena.” (Flora, 1950, p. 31, nossa tradução). Ainda segundo Flora esse ambiente de desolação espiritual explica o motivo pelo qual “o tema do suicídio, consequência não rara daquela angústia de viver que surgia da crise religiosa, foi um tema romântico por excelência.” (Flora, 1950, p. 51, nossa tradução).
O cientificismo iluminista banira das artes a ideia de mistério e de maravilhoso, por isso, segundo Peter Gay, “os líderes do movimento romântico consideravam que sua tarefa consistia em voltar a fazer do Mundo um lugar encantado.” E aqui aparece mais uma das transformações estéticas que buscamos ressaltar neste estudo: o resgate da Fantasia através da devoção religiosa. Essa era uma maneira de se contrapor aos classicistas já que, como nos diz Peter Gay, “os românticos acusavam o Iluminismo de ter danificado a vida interior do Homem quase definitivamente, e trabalhavam para desfazer a secularização do Mundo – uma realização melancólica da geração de seus pais.” (Gay, 1999, p. 49). Acrescentaríamos que muito embora houvesse entre os românticos uma falta de unidade em relação à Religião era quase consensual a ideia de que as pessoas estavam necessitadas de um consolo que só o amor a Deus poderia proporcionar. De acordo com Benedito Nunes, “a poetização da Religião é, no entanto, parte de um processo geral de poetização da Vida, que o movimento romântico impulsionou.” É como se pudéssemos entender o Romantismo como um portador de elementos estéticos renovadores não apenas na forma, mas principalmente no conteúdo das obras de arte. Na opinião de Nunes, “metáfora integrante da visão romântica, o florescimento do Espírito e da Natureza – do eu transcendente e da natureza orgânica – produz-se na Arte”, que os pensadores românticos entendiam como sendo, nas palavras de Nunes, “a imagem de uma plenitude originária perdida e de uma perfeição futura a conquistar.” (Nunes, 1978, p. 64). É possível inferir que o sentimento religioso que os românticos colocaram na gênese da criação artística, ao enfatizar o seu caráter espiritual, significou uma mudança não apenas no fazer artístico mas também no consumo das obras de arte. O Romantismo trouxe consigo, de acordo com Francis Claudon, “o sentimento de um acordar espiritual: é o regresso à Bíblia, à Religião, ou, o que vai dar no mesmo, às tradições iluministas ou ocultistas. Daí a constante preocupação dos líricos românticos acerca do sentido da Humanidade, de sua origem e do seu fim misterioso (...).” (Claudon, 1986, p. 188).
Como exemplo da religiosidade romântica, ou seja, da crença anti-iluminista de que é o amor a Deus (e não a Razão) que eleva o Homem acima das outras criaturas existentes na Terra, citaríamos Vitor Hugo (1802-1885):
O livro que o leitor neste momento tem perante os olhos é, desde o princípio ao fim, quer no todo, quer nas suas partes, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou as frouxidões, é, repetimos a marcha do Mal para o Bem, do Injusto para o Justo, do Falso para o Verdadeiro, da Noite para o Dia,do Apetite para a Consciência, da Podridão para a Vida e da Bestialidade para Deus. (Hugo, s/d, p. 1258, quinta parte, capítulo XX).
E também o nosso Bernardo Guimarães (1825-1884) diria, em 1858, na introdução de seu romance histórico O Ermitão de Muquém:
Os filósofos do século, os apóstolos da descrença, riem-se com desdém dessas ingênuas e tocantes crenças do Povo. Todavia seus engenhosos raciocínios, seus sistemas transcendentes, não podem substituir essa fé viva e singela, que alenta e consola o homem do povo nos trabalhosos caminhos da Vida. (Guimarães, 1975, pp xxiii-xxiv.
Existe no Romantismo uma tendência a valorizar as festas e as celebrações populares, muitas das quais de cunho religioso. Para se distanciar dos mitos e das lendas da Antiguidade utilizadas nas obras dos classicistas, os românticos buscaram inspiração no folclore, nas crenças e nas superstições do povo inculto, apropriando-se muitas vezes de uma tradição oral que fora rejeitada pelos cânones do Classicismo.
Através de uma visão sombria e melancólica da Natureza, que de certa forma retratava a angústia provocada pela dúvida religiosa, foi-se instalando na produção artística europeia, nas décadas finais do século XVIII, uma miríade de temas que desvendavam um mundo desorganizado e em convulsão. Dentro de nossa hipótese interpretativa as transformações econômicas provocadas pela Revolução Industrial e o terremoto político resultante da Revolução Francesa criaram uma nova concepção de indivíduo. Se por um lado a geração de jovens da década de 1790 foi abalada pelo fim da sociedade na qual viveram seus pais e avós, por outro pôde sentir toda a força criativa do seu sentimento de revolta. Abriam-se as portas de um mundo novo, surgiam perspectivas de ascensão social e apareciam oportunidades de enriquecimento. A Arte teria necessariamente que apropriar-se desse novo homem, pronto para afrontar os desafios de um novo período histórico, marcado pelo reconhecimento dos direitos individuais. É então que desponta outra grande transformação estética: o conceito romântico do Gênio.
É preciso que tenhamos em mente, como salientou Francis Claudon, que “contrariamente ao classicismo francês ou ao Renascimento, não há, no início do Romantismo, clara consciência dos fins a atingir, nem refletida poética, nem escolas, nem movimento internacional sincronizado.” (Claudon, 1986/2, p. 13). Mas isso não impediu, segundo Peter Gay, que os românticos criassem “um estilo próprio de pensamento.” (Gay, 1999, p. 86). Para Giovanni Macchia, “revelação da sensibilidade romântica foi reencontrar, na profundidade do Ser, uma consciência vital própria”. Na verdade, os primeiros românticos, influenciados por Rousseau e por Sade, descobriram no Homem uma força vital que, segundo eles, fora sufocada pelo processo civilizatório. O que eles desejavam era romper as barreiras impostas à livre manifestação da Imaginação. Macchia conclui: “o Romantismo não é uma doutrina, um lúdico, um conjunto de preceitos como o Classicismo. (...) É a denúncia de uma crise, de uma ruptura (...).” (Macchia, 1976, pp 371-372, nossa tradução). É como se pudéssemos entender que os vários movimentos surgidos em diferentes quadrantes manifestavam o esgotamento das propostas estéticas do Classicismo. Eles demandavam um outro tipo de concepção artística, eram contrários à matematização da Natureza, opunham-se à versificação das tragédias, preconizavam o uso de uma linguagem cotidiana nos romances. Em resumo, eles queriam criar uma outra beleza, um belo livre das regras impostas pelas academias.
Segundo Schiller (1759-1805), “a Beleza é o produto da consonância entre o Espírito e os sentidos, produto que fala simultaneamente a todas as faculdades do Homem e, por isso, só pode ser sentido e dignificado desde que se pressuponha um uso pleno e livre de todas as suas forças.” (Schiller, 1991, p. 98). É possível então inferir que o Belo não surgirá de uma construção racional amparada em preceitos previamente dados, como se o fazer artístico se limitasse à execução da obra, como advogavam os classicistas. Para Hegel (1770-1831), “a ambição do artista pode bem ser a Imitação; mas não é essa, porém, a função da Arte. Ao realizar uma obra artística, o Homem obedece a um interesse particular, é impelido pelo anseio de exteriorizar um conteúdo particular.” (Hegel, 1996, p. 31). Seria razoável supor que para expressar esse “conteúdo particular” demandado por Hegel haveria a necessidade de um outro tipo de artista, totalmente diferente daquele formado pelas academias do Classicismo. Para os críticos românticos o valor do artista não repousa em sua habilidade, mas em sua originalidade.
É então que aparece o conceito de Genealidade. O verdadeiro artista não imita, ele cria. E quanto mais original for a sua criação, mais genial ele será. Na opinião de Benedito Nunes, “a medida do individualismo egocêntrico e organicista da visão romântica pode ser aquilatada pela ideia do Gênio, que ocupou o centro das ideias na época do Romantismo.” (Nunes, 1978, p. 60). Acrescentaríamos que esse “individualismo egocêntrico” representou uma ruptura com a percepção renascentista do Homem. Conforme observa Giovanni
Macchia, “para os primeiros românticos o Homem era uma criatura que participava do Infinito, e o Gênio, com certeza, não se identificava com aquele que coloca ordem nas coisas: ao contrário. Ele tendia a incendiá-las para recriá-las”. Desde a Renascença Deus fora considerado o supremo arquiteto do Universo, o grande ordenador das forças cósmicas. Por isso, “Deus era então um poeta, (...) e os poetas eram intérpretes do poder divino.” O Romantismo transforma os poetas em “reveladores dos mistérios de Deus e dos homens.” (Macchia, 1976, pp 378-379, nossa tradução), criando uma nova categoria de indivíduo: o Gênio.
Dentre as transformações estéticas que tentamos apontar neste artigo a concepção do artista genial, ou seja, aquele ser dotado de uma força criativa, capaz de compor obras cuja originalidade lhe conferiam uma equiparação ao poder divino, talvez tenha sido a mais revolucionária e também a que teve efeitos mais duradouros. Para Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg
A essência do Romantismo, que rejeita o ideal harmônico da visão classicista, reside antes na contradição. Se de uma parte, ele é presidido por um anseio radical de totalização e integração, numa comunidade quase utópica, de outra, opõe aos padrões de toda a sociedade – não apenas a da ilustração racionalista – a grande personalidade, o gênio faustico, prometeico, que não pode ajustar-se a quaisquer limitações e estruturas sociais. Sua irrupção na Arte, além de um protesto contra a tentativa de agrilhoar a força criativa do Artista em uma legislação estética rígida, é um grito de libertação anárquico do plano político e cultural. (Rosenfeld e Guinsburg, 1978, p. 270).
Não temos espaço neste artigo para uma digressão acerca de como a Psicanálise, ao longo do século XX, transformou a Criatividade em uma potência do Inconsciente. Gostaríamos porém de lembrar que a concepção junguiana de inconsciente coletivo expandiu a noção de Genealidade além dos limites inicialmente definidos pelos românticos. Concordamos com Ivan Teixeira em que “a questão da Originalidade, tal como se entende hoje, passou a ser colocada somente após a formação da sensibilidade burguesa, depois do Romantismo, quando as poéticas começaram a incorporar a psicologia individual como categoria artística, (...).” (Teixeira, 1999, p. 216). E essa talvez tenha sido a transformação estética mais importante legada pelos românticos.
Para concluir nosso estudo gostaríamos de salientar que a compreensão de um fenômeno complexo como o Romantismo passa pelo entendimento do período histórico no qual ele surgiu. E quando falamos em período histórico não nos referimos a uma cronologia de eventos, mas a um conjunto de circunstâncias que moldaram a visão de mundo dos homens e das mulheres que, no caso aqui exposto, foram os consumidores e os propagadores da arte romântica. Segundo Bertrand Russell (1872-1970), “o período que vai de 1660 até Rousseau é dominado pela recordação das guerras de religião e das guerras civis na França, Inglaterra e Alemanha. Os homens tinham plena consciência do perigo do caos, das tendências anárquicas de todas as paixões fortes, da importância da segurança e dos sacrifícios necessários para consegui-la.” (Russell, 1957, p. 229). É possível inferir que essa foi a base histórica do Iluminismo.
De acordo com René Welleck o fim do Classicismo pode ser creditado “à influência de eventos históricos específicos, tais como a Revolução Francesa ou a derrota de Napoleão: os imigrantes franceses na Inglaterra e na Alemanha trouxeram, em sua volta para a França, novas ideias. A queda do império francês coincide com o declínio do prestígio dado ao gosto francês.” (Welleck, 1955/2, p. 9, nossa tradução). Mas poderíamos indagar: em que consistia afinal este novo paradigma artístico que então se impunha? A resposta para essa pergunta seria Subjetividade. Em oposição à clareza e à objetividade iluministas, segundo Francis Claudon, “o romantismo germânico propõe outra coisa que não descrever as leis do Espírito: postula a existência de um reino mágico que a Arte vai apreender por intermédio do Sonho.” Com o Romantismo ficam esmaecidas as fronteiras entre Realidade e Fantasia, ou entre o romancista e seus personagens. Para Claudon, em um ambiente romântico, “todos têm a sensação de pertencer a dois mundos: o exterior, visível, e o interior, da alma e do sonho.” (Claudon, 1986/2, pp 24-25).
Para que possamos entender as transformações sofridas pela cultura ocidental na segunda metade do século XVIII devemos levar em consideração, como bem notou Anatol Rosenfeld, que “essa tendência ao subjetivismo liga-se a uma concepção do Indivíduo. O individualismo racionalista e liberal da Ilustração é do tipo ‘mecanicista’: baseia-se na Razão, essência comum a todos os seres humanos.” (Rosenfeld, 1985, p. 152). É preciso salientar que a visão romântica acerca do papel social que os homens devem desempenhar não tem como fundamento o conceito de racionalidade. No Romantismo, segundo Hegel, “quer se trate da Honra, do Amor, da Lealdade, assiste-se sempre à afirmação de independência do Sujeito, às manifestações da vida interior que não cessa de se ampliar até abranger os interesses mais elevados e mais ricos, nos quais realiza a conciliação consigo mesma.” (Hegel, 1996, p. 626).
Nossa hipótese de interpretação é que a substituição da Razão pelo Sentimento como princípio estético fundamental na criação artística foi uma consequência das mudanças políticas e econômicas acontecidas na segunda metade do século XVIII. Graças a elas criou-se uma noção totalmente nova de Individualidade. Abriram-se possibilidades de ascensão social através das oportunidades surgidas com o crescimento econômico e com o aparecimento do mercado de consumo. Os direitos dos cidadãos também são reconhecidos em uma Europa que se libertava do absolutismo monárquico. A partir de então cada um podia, bem ou mal, escolher o seu próprio destino. Por isso o homem romântico será aquele que impõe ao Mundo a sua plena individualidade, vivendo de acordo com as suas razões, os seus sentimentos, os seus desejos e a sua coragem.