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Received: 08 February 2023
Accepted: 30 May 2023
DOI: https://doi.org/10.29327/210932.11.1-6
Resumo: Breno Accioly (Santana do Ipanema/AL,1921 — Rio de Janeiro/RJ, 1966) estreou no cenário literário brasileiro no final de 1944 com a coletânea de contos João Urso. Este artigo analisa alguns elementos espaciais observados pelo narrador, tais como: a janela, a casa e a cidade. Busca-se compreender como espaço e personagem estão interligados. Além disso, este texto divide-se em três partes, sendo a primeira uma contextualização biobibliográfica, uma vez que tanto autor quanto sua obra são pouco conhecidos; em seguida, discute-se algumas das abordagens críticas frequentemente utilizadas sobre o espaço na crítica literária; e, por fim, a análise do conto, que seguirá pari passu a visão do narrador sobre os espaços examinados. Esta leitura ampara-se nos estudos de Brandão (2013), Lins (1976), Blanchot (2011).
Palavras-chave: Breno Accioly, João Urso, Espaço Literário.
Abstract: Breno Accioly (Santana do Ipanema/Alagoas, 1921 – Rio de Janeiro/, 1966) entered the Brazilian literary scene in late 1944 with the short-story collection João Urso. This article analyzes some spatial elements observed by the narrator, such as: the window, the house and the city. The aim is to understand how space and character are interlinked. In addition, this text is divided into three parts, the first being a biobibliographical context, since both the author and his work are little known; then, some of the frequent critical approaches used in literary criticism about space are discussed; and finally, the analysis of the story, which will follow the narrator’s view of the spaces examined. This approach is supported by the studies of Brandão (2013), Lins (1976), Blanchot (2011).
Keywords: Breno Accioly, João Urso, Literary Space.
O AUTOR E SUA OBRA ESQUECIDA: BREVES APONTAMENTOS
Breno Accioly nasceu na cidade alagoana de Santana do Ipanema, em 1921, e viveu parte de sua infância em Maceió. Sua família era conhecida e gozava de prestígio econômico-social. O pai do contista era o juiz Dr. Manuel Xavier Accioly e a mãe chamava-se D. Maria de Lourdes, apaixonada por teatro clássico, tocava piano e foi a figura mais influente na formação do filho (BOMFIM, 2005). A família Rocha morava em um sobrado que costumava receber nomes importantes, como o governador Costa Rêgo, o industrial Lionel Iona e o pioneiro Delmiro Gouveia, além de hospedar clérigos e homens de negócios. Segundo Tadeu Rocha[1], “foi entre as paredes desse sobrado que Breno Accioly viveu os seus primeiros sete anos, num ambiente de misticismo religioso, transações comerciais e formalismo jurídico” (ROCHA, 2014, p. 95). É em Santana do Ipanema que “o pequeno Accioly” tem contato com a cidade, a loucura e os traços que marcarão seus contos.
[...] na praça fronteira ele completou sua experiência de menino, entrando em contato com a cidade: no outro lado da praça, ficava a Matriz da Paróquia, dirigida pelo seu padrinho, o vigário José Bulhões (que veio a falecer no dia 17 de outubro de 1952); no lado esquerdo do logradouro, ainda não ajardinado, via-se do sobrado a escola pública da professora Zefinha (D. Josefa Lima), sua madrinha de São João, que lhe ensinou as primeiras letras, juntamente com a devoção obrigatória a São José; nas duas casas à direita do sobrado residiam a avó e os pais de Agissé, Poni e Berenice Feitosa, cuja insanidade lhe inspirou as figuras de João Urso, Poni e Cíntia; e na segunda casa à esquerda morava o insuperável Hermídio Firmo (falecido em meados de 1951), que não saia nunca de casa (ROCHA, 2014, p. 95).
Compõem a memória ficcional do autor a atmosfera de todo o sobrado, casarão em que ecoa pelos espaços vazios a gargalhada de João Urso (“De repente os ecos dos risos de João Urso atravessavam os corredores, enchiam o quarto, venciam a monotonia do imenso sobrado”, ACCIOLY, 1995, p. 22), e a superfície da cidade, que se contamina, na ficção, de ruas escuras, onde ora os personagens figurantes se refugiam com medo das loucuras dos protagonistas, ora os próprios protagonistas se espreitam nas sombras.
Vê-se afastado do mundo, sem mesmo saber se os seus risos eram contagiosos (até no sanatório os médicos tomavam cautela). Vivendo como um bicho que ama as madrugadas, o ermo das ruas adormecidas. E João Urso sentia-se feliz quando algum tresnoitado dava-lhe boa noite, pedia-lhe fósforo. E era com o olhar cheio de saudade que ele via o vulto se afastar. E também João Urso se afastava, temendo ser reconhecido, medroso de ver o tresnoitado fugir às carreiras, distanciar-se cheio de pavor [...] (ACCIOLY, 1995, p.30-31).
Aos nove anos, devido a uma promoção do pai, Breno Accioly mudou-se para Maceió[2]. Quando tinha 17 anos, passou a residir em Recife e iniciou seus estudos de Medicina. Na capital pernambucana, Accioly conhece escritores como João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e José Octávio de Freitas Júnior, e publica, na edição local do Jornal do Commercio, alguns de seus primeiros contos. Em 1943, Accioly vai residir no Rio de Janeiro, e lá conclui sua formação em Medicina. No ano seguinte, lança seu primeiro livro, João Urso, pela editora EPASA (em uma belíssima edição ilustrada por Santa Rosa e prefaciada por José Lins do Rego).
Breno Accioly morreu em 13 de março de 1966, vítima de infarto, aos 44 anos. Ele foi patrono das cadeiras nº 19 da Academia Arapiraquense de Letras e Artes, ACALA, e nº 137 da Academia de Letras e Artes do Nordeste, ALANE. Uma rua lhe foi dedicada na cidade de Americana/SP, e uma biblioteca municipal ganhou o seu nome em sua cidade natal. Além de João Urso, o santanense lançou mais quatro obras: Cogumelos (1949, contos), lançado pela editora A Noite; Maria Pudim (1955, contos), pela editora José Olympio; Dunas (1955, romance), pela editora O Cruzeiro; e Os Cata-ventos (1962, contos), novamente pela José Olympio. Embora tenha conseguido lançar vários títulos, inclusive pela renomada José Olympio, hoje selo da editora Record, sua obra mais conhecida permanece sendo seu livro de estreia que teve — até o momento — quatro edições.
A biobibliografia de Breno Accioly ajuda a entender como suas experiências reverberam no conjunto de sua obra, como a relação que ele teve com a medicina e os vários personagens que possuem alguma doença, que são médicos ou têm alguma ligação com esse universo. Assim, Breno Accioly toma para sua poética um espaço medicinal (voltado à loucura e ao estranhamento de personagens perturbados pelo mundo em que estão inseridos).
Atualmente, Breno Accioly é um autor pouco conhecido pela crítica e editoras, com a maior parte de sua obra aguardando por reedições. A fortuna crítica de toda sua obra é escassa, existem somente uma tese de doutorado, de Edilma Acioli Bomfim, intitulada Razão mutilada: ficção e loucura em Breno Accioly (2005), em que se discute a loucura nos contos do livro João Urso; e alguns artigos esparsos de outros estudiosos.
É sobre o conto “João Urso” (1995) que se debruça este artigo, investigando a focalização do espaço a partir da qual o narrador vê e apresenta o protagonista da narrativa. Assim, a análise que aqui se propõe seguirá pari passu a visão do narrador sobre os espaços da janela, da casa e da cidade.
O ESPAÇO: ALGUMAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS
Na estrutura narrativa existem alguns pilares fundamentais, tais como personagem, tempo, enredo, narrador e espaço, que alicerçam o texto ficcional. Trata-se de um enredamento em que pequenas partes se unem e formam um amplo quadro: o texto literário. Analisar qualquer um desses aspectos não significa perder de vista os demais.
Em Lima Barreto e o espaço romanesco, Osman Lins (1976) formula uma definição do espaço literário, compreendido como “tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela personagem” (LINS, 1976, p. 72). Essa concepção de espaço se opõe à ideia de espaço como algo estático e linear, que serve apenas como pano de fundo para uma história. Entender o espaço como um elemento dinâmico faz com que os sentidos conotativos se sobreponham aos denotativos, pois a linguagem literária pode revestir o espaço com várias características simbólicas e metafóricas, amplificando a significação espacial. Tendo brevemente percorrido algumas acepções acerca do espaço, faz-se necessário ver algumas abordagens sobre o espaço na literatura.
Quatro são as abordagens apresentadas por Luis Alberto Brandão em Teorias do espaço literário (2013) sobre o estudo do espaço mais utilizado pela crítica literária. Apresentaremos, sem a pretensão de esgotar o tema, cada uma delas na seguinte disposição: a representação do espaço, o espaço como forma de estruturação textual, o espaço como focalização e o espaço da linguagem.
O modo de abordagem mais recorrente é o da “representação do espaço” (BRANDÃO, 2013), em que não se investiga o que é o espaço, pois já se trata de um dado extratextual porque na perspectiva naturalizante é atribuído ao espaço elementos concretos. É corriqueiro compreender o espaço como “cenário”, isto é, um lugar no qual as ações dos seres fictícios se desenvolvem. Na contemporaneidade, a difusão dessa perspectiva espacial recai em maior grau sobre a representação do “espaço urbano” na ficção. Nos estudos culturais, há uma maior diversidade quanto ao léxico espacial, que inclui alguns termos como margem, território, fronteira. Assim, o que se busca é compreender os vários tipos de espaço que são representados na narrativa.
A abordagem de “estruturação do espaço” diz respeito, segundo Brandão (2013, p. 60), aos “[...] procedimentos formais de estruturação do texto”. Existe uma tendência de enfatizar os recursos que criam a sensação de simultaneidade como pertencentes às características espaciais (BRANDÃO, 2013).
O desdobramento lugar/espaço arquiteta-se na compreensão do que é a obra. Esta constituída por partes independentes que podem estabelecer uma articulação entre si, de acordo com a concepção relacional de espaço. Assim, a ótica da “estruturação do espaço” envolve todas as partes que compõem a narrativa a fim de que se alcance a unidade da obra, dando-lhe um caráter uno, que só se alcança em um espaço absoluto e abstrato, o espaço da obra (BRANDÃO, 2013, p. 61-62).
A terceira abordagem, a “focalização do espaço”, entende como espacial aquilo que é responsável pelo ponto de vista (BRANDÃO, 2013, p. 62). Ainda de acordo com o crítico, existem um sentido estrito e um amplo. No primeiro, sobressaem-se a voz ou olhar do narrador; no segundo, evidencia-se o “efeito gerado pelo desdobramento do discurso verbal em enunciado”. O espaço torna-se, assim, um objeto observável que pode “equivaler a mimetizar o registro de uma experiência perceptiva” (BRANDÃO, 2013, p. 62). Por esse viés, o narrador é espaço. A observação do espaço pode ser equivalente a um campo de referência em que o configurador se destaca. Dessa maneira, é possível justificar uma autorreflexividade da voz poética. Essa abordagem trata da visão que o narrador tem do espaço, podendo ser o espaço visto, percebido, concebido ou configurado e, em outra vertente, vidente, conceptor e configurador.
A última abordagem do espaço, “espaço de linguagem”, parte da ideia de que há espacialidade na própria linguagem verbal. A palavra, por esse viés, é também espaço. O argumento apoia-se em dois pontos centrais. O primeiro considera que tudo o que é da ordem das relações é espacial. Tal ordem define a estrutura da linguagem à medida que considera o viés sincrônico em contraste com o diacrônico. Genette (1969, p. 44 apud BRANDÃO, 2013, p. 63) diz que “a linguagem [verbal] parece naturalmente mais apta a exprimir as relações espaciais do que qualquer outra espécie de relação (e, portanto, de realidade)”. O segundo ponto argumentativo diz que a linguagem é espacial porque é composta de signos. Seguindo esse raciocínio, a palavra é uma manifestação sensível que afeta os sentidos do ser: sonoridade, visualidade e até mesmo o tato e o olfato, o corpo como linguagem. Por esse ângulo, o que torna o texto literário espacial são os signos, que compõem um corpo material e não deixam apagar as percepções sensíveis quando de sua recepção pelo leitor.
Tendo em vista as discussões acerca dos estudos espaciais, adotar-se-á, na análise do conto “João Urso”, a focalização do espaço como método analítico, pois se compreende que o espaço é desenvolvido como objeto observável e que o narrador pode igualmente ser visto como espaço. Ressalta-se que, ao adotar essa abordagem, não se excluem totalmente aspectos inerentes às demais. Além disso, como afirma Lins (1976), analisar o espaço é ater-se, antes de mais nada, ao universo ficcional e não ao mundo fora do texto: “vemo-nos ante um espaço ou um tempo inventados, ficcionais, reflexos criados do mundo e que não raro subvertem — ou enriquecem, ou fazem explodir — nossa visão das coisas” (LINS, 1976, p. 64). Dessa forma, o espaço literário é uma representação do real (mimese), podendo ter uma relação próxima com aquilo que se conhece do mundo (extratextual), mas sem ser este de fato.
A JANELA, A CASA E A CIDADE: UMA LEITURA DOS ESPAÇOS EM "JOÃO URSO"
João Urso é um garoto que reside com sua mãe em um sobrado na cidade de Santana do Ipanema. Ele tem uma forte gargalhada — sem limites, pois ri em momentos inoportunos — que apavora a população local. O narrador pouco diz a respeito da mãe, não lhe atribui um rosto, um nome ou outra característica qualquer. Sabe-se tão somente que ela chora quando o filho gargalha. As ações dela resumem-se a impor castigos ao menino — ler sonetos e recitá-los — e a buscar uma cura para as risadas dele. O pai é uma figura pouco presente, que aparece e some ao bel-prazer, feito um aventureiro. Quando João Urso o conheceu, ele “já sabia falar, todos os dentes já lhe haviam nascido” (ACCIOLY, 1995, p. 28). João Urso tem “o peito atrofiado, as mãos pequenas, a cabeça descomunal” (ACCIOLY, 1995, p. 25). Rejeitado, restam-lhe as traquinagens como fuga da solidão que o aprisiona. Certa vez, pegou uma lanterna da igreja e saiu assustando crianças, beatas e devotos com seu riso assombroso. Ele era visto como um “excomungado”, a ponto de “nenhuma escola [querer] ensinar-lhe” (ACCIOLY, 1995, p. 25). Desesperada, a mãe procurou ajuda médica para tratar do filho, todavia as recomendações de que caminhasse ao ar livre e fizesse exercícios respiratórios não surtiram efeito. A mãe chegou a pensar que tudo não passava de alguma insubordinação do garoto. Sem saída, internou o filho em um sanatório por cinco anos. O tratamento do “doente precioso” (ACCIOLY, 1995, p. 27) fracassa e o menino passa a gargalhar ainda mais intensamente. O pai, então, aparece e decide levá-lo a Recife. João Urso retorna 30 anos depois à cidade natal, reencontra a mãe e, abrindo os braços, enlaça-lhe o peito iniciando um forte “riso doente”. O médico que o trouxera — o pai estava sumido e não se sabia ao certo se já falecera ou não — se constrange por não ter conseguido curá-lo. João Urso passeia pelas ruas à noite, escondendo-se entre as sombras dos becos para que não o reconheçam. Em uma de suas saídas, depara-se com um circo e vê, pela sombra da mulher que se apresenta, o número de trapézio. Admirado pelos saltos da “bailarina”, solta sua maior gargalhada, fato que desconcentra a bailarina, que tomba “num voo de pássaro ferido” (ACCIOLY, 1995, p. 32). Sem rumo, João Urso volta para casa, onde uma multidão o “aprisiona”, e deita-se, aguardando que o expulsem de Santana do Ipanema.
Inicialmente, o narrador descreve o espaço das serras em meio à tempestade: “Os morros são fardos rompidos. Por lá saltam ecos de fortíssimas vozes, mas a cidade é um enorme silêncio de pesado sono, de um sono estremecido pelas bocas das serras. E parece que a noite das serras é diferente da que mergulha a cidade” (ACCIOLY, 1995, p. 19). Os diferentes espaços apresentados contrapõem-se: a serra, ao olhar do narrador, brada em direção à cidade. Essa, por outro lado, é silenciosa e adormecida.
A descrição inicial desses espaços apresenta um quadro amplo. A visão do narrador observa “o vermelho dos relâmpagos” sobre as serras e sobre as árvores, que rapidamente se banham nessa vermelhidão e retornam ao tom verde. Essas cores serão recorrentes na narrativa, sobretudo a vermelha. Provavelmente, simbolizam o sofrimento do garoto, o vermelho como a dor e o verde numa perspectiva da inocência dele diante do mundo.
O espaço da cidade, que se mostra na narrativa, é de caráter passivo, quieto, assistindo ao espetáculo (da vida?), sem nada mais fazer a não ser ajustar sua visão para ver melhor a cena: “Dir-se-ia que a cidade fosse uma pessoa assistindo a um espetáculo e que, por estar nas últimas cadeiras, manejasse um binóculo” (ACCIOLY, 1995, p. 19).
É apenas posteriormente que a visão do narrador se estreita. Esse “zoom”, por assim dizer, mira João Urso, que, apoiado em uma das janelas do casarão onde vive com a mãe, observa os clarões do temporal: “João Urso talvez nunca tenha visto binóculo. Mas parece defender os olhos, fazendo das mãos um anteparo contra aquela claridade agressiva” (ACCIOLY, 1995, p. 19). O binóculo seria capaz de proporcionar a João Urso a ampliação e o recuo de sua visão sobre os espaços (e, de modo abrangente, sobre sua vida?). Não obstante, esse controle não está nas mãos do garoto. É o narrador que expõe as descrições espaciais como se manejasse um binóculo, é ele que amplia e recua os espaços, podendo contar a história por diferentes ângulos, alterando a forma como o espaço é visto, ouvido e sentido. Assim, ora se tem o espaço em sentido denotativo, ora em sentido conotativo.
Trata-se de um espaço dinâmico em que os aspectos conotativos se sobrepõem aos denotativos, visto que os recursos da linguagem verbal se revestem de caráter simbólico (LINS, 1976). Dessa forma, no sentido conotativo, o espaço pode representar ainda algo que se passa com o personagem. Essa característica é percebida quando o narrador observa João Urso olhando a tempestade da janela. O garoto anseia por uma “tromba d’água” que possa devastar telhados, mas, diante da incapacidade de realizar tal coisa, apenas gargalha delirantemente com a cena. É possível lançar a hipótese de que o espaço tempestuoso é o reflexo dos sentimentos do menino, que, solitário, nada pode fazer para alterar a realidade.
A noite é um espaço extremamente vivo e pulsante (a tempestade, as serras e as árvores dão movimento ao lugar, elas gritam, parecem bravejar contra a cidade; é na noite que João Urso se posta diante da janela e que, posteriormente, sairá de casa, caminhando por becos escuros) entretanto, como o narrador a descreve, é uma noite ferida, uma vez que somente aquelas figuras rejeitadas, isto é, malquistas, pela cidade interagem com ela. Como se desencadeasse uma espécie de lógica narrativa que segue um enfermo, o narrador mira o hospital: “O muro do hospital e seus pavilhões também são manchas visíveis, embora mais fracas, e se não tivessem pintado a cadeia de vermelho, seria outra mancha a se destacar” (ACCIOLY, 1995, p. 20). O hospital e a cadeia são espaços de aflição, são lugares que borram a paisagem e parecem expor lesões abertas, que sangram, daí o destaque para o vermelho.
É na noite que tudo desaparece ou se mantém oculto da luz do dia. A noite expõe a solidão, o silêncio, o repouso, o abandono e as fragilidades humanas que costumam ser ignoradas (BLANCHOT, 2011). O espaço da noite é o abrigo do protagonista.
João Urso, solitário, esfrega as mãos. O narrador volta-se ao espaço da natureza, descreve os gameleiros, as árvores, o rio, e a ausência de vento, tudo sugere a solidão do protagonista. Os espaços urbanos também são de solidão, como se vê no seguinte fragmento: “as ruas sem bêbados, sem notívagos, nenhum cachorro uivando” (ACCIOLY, 1995, p. 20).
Enfático, o narrador diz mais uma vez que João Urso está sozinho assistindo “ao espetáculo das serras”, destaca a vermelhidão, os relâmpagos, e descreve um pouco do espaço da sala do casarão.
Quando os relâmpagos, mais fortes, entram com uma vermelhidão pela janela, fazem doer-lhe os olhos [de João Urso]; por um instante mostram pedaços da sala de jantar: cadeiras retratadas num espelho oval, um metro de parede preenchido por um quadro do Sagrado Coração de Jesus, um Deus de manto azul e vermelho, sustentando na mão esquerda o globo do mundo, a direita repousando sobre o peito como se estivesse aliviando uma profunda dor. E quantos retratos dos antepassados de João Urso ficam tingidos, sangrando na luz dos relâmpagos!
Como o velho piano pareceu ensanguentado! (ACCIOLY, 1995, p. 20).
O espaço dessa sala é de abandono, dor e violência. O sangue rodeia o menino. Não há contato com familiares, e o instrumento que poderia representar a imponência, o símbolo do status da família, banha-se de sangue. O belo, o nobre, o elevado — considerando-se o sangue pela perspectiva da vida ou do divino — que o piano poderia simbolizar mostra-se deteriorado.
No íntimo, o personagem principal sabe que está isolado, feito um prisioneiro que não compreende a razão de sua condenação e se angustia com a situação (“João Urso suspira”, p. 20), e como se se rendesse à cidade, abaixa o rosto, suspende os olhos, observa as torres e os sinos, e “solta outro suspiro” (ACCIOLY, 1995, p. 20). Fixando o olhar na torre, João Urso imagina (ou deseja?) uma tromba-d’água capaz de abrir um imenso buraco que “para se ver o fundo fosse preciso lanterna!” (ACCIOLY, 1995, p. 20). Esse pensamento faz com que o menino gargalhe, imaginando presos fugindo e indo às ruas. Ninguém compreende o riso e consideram-no maluco.
O riso trágico é a destruição, a interrupção do ser, e, dessa maneira, o protagonista torna-se cúmplice daquilo que o destrói. A noção desse riso trágico é a afirmação “do nada, do desaparecimento, do acaso, enfim, da destruição do sentido sem que nada seja dado em troca” (ALBERTI, 2002, p. 22). João Urso seria uma espécie de caos contra a ordem. Ao rir, ele expõe seu sofrimento, sua solidão e suas mazelas à cidade que não o acolhe. Esse espaço de riso é um espaço de rejeição (“Quando via, era a mãe gritando-lhe”, ACCIOLY, 1995, p. 21) que ele já não suporta. Sua mãe impõe-lhe o castigo de ler sonetos, sentado em um tamborete por horas. Tal punição faz o protagonista chorar e perder a própria voz. O narrador observa a face do garoto, de bochechas arredondadas e olhos espremidos, que mais uma vez gargalha diante do sofrimento.
A gargalhada de João Urso perpassa os diversos espaços do casarão, chegando a invadir outros lugares: “De repente os ecos dos risos de João Urso atravessavam os corredores, enchiam o quarto, venciam a monotonia do imenso sobrado, todo de pedra, de largas paredes, avançando para as bandas do rio [...]” (ACCIOLY, 1995, p. 22). De outro espaço da casa, o protagonista ouve a mãe chorar durante noites, desolada, sem conseguir compreender por que o filho gargalha desse modo.
Ao observar o protagonista, o narrador volta sua visão para o passado e conta o episódio em que a mãe de João Urso recebeu uma visita que viera acompanhada de crianças. Ao brincar no sótão, as crianças ouviram uma longa gargalhada e, assustadas, caíram em prantos: “Ao meio do corredor, João Urso era um vulto rindo nervosamente, rindo às gargalhadas, enchendo de pavor as crianças que continuavam a chorar, chamando pelos pais, pedindo o socorro de alguém” (ACCIOLY, 1995, p. 22). O garoto era uma “assombração terrível” nos corredores estreitos da casa. Desse modo, o espaço do sótão e dos corredores escuros caracterizam o protagonista como uma figura assombrosa. Para Bomfim,
a ambivalência do riso assustador instaura um sentido perverso, alienado e alienante para a personagem central, fazendo dessa criatura insana um ser sem lugar que desliza entre antinomias: dócil mas assustador; altamente triste, mas gargalhando; rindo profundamente e sendo temido (BOMFIM, 2005, p. 167).
O espaço em que ocorrem tais ambiguidades tende a ser fator determinante para a forma como o garoto é observado. Em linhas gerais, João Urso é visto como um ser monstruoso, e os locais em que ele se encontra têm um ambiente sombrio, obscuro e assustador, e isso torna o seu riso uma peça que pende mais para o horror do que para o cômico, mais para o triste do que para o alegre.
O olhar do narrador segue os passos do personagem principal. Entristecido e com receio de ser castigado, o garoto pensa em ir à igreja, mas desiste da ideia ao lembrar-se do dia em que pegou uma das lanternas da via-sacra. Peralta, João Urso desobedeceu às ordens do padre e, de lanterna em punho, principiou a rir, e o fez tão fortemente que chegou a ter convulsões, interrompendo a via-sacra.
Assustados, os presentes rezavam e, de longe, jogavam água-benta no menino (“o padre de breviário aberto, os olhos pesados de espanto, o terço abandonado no braço direito como uma força inútil”, (ACCIOLY, 1995, p. 23)). A cidade toda estava presente, e João Urso nunca esqueceu aquele dia. O espaço que João Urso pensou ser de acolhida tornou-se de total rejeição (“as beatas se encheram de jaculatórias, de sinais-da-cruz, e soltaram muitas vezes a palavra ‘excomungado’”, (ACCIOLY, 1995, p. 23)).
Santana do Ipanema não sabe guardar segredos, é uma voz que transmite tudo, diz o narrador. Por isso, o fatídico fato envolvendo o protagonista logo se espalhou pelas redondezas. Nas feiras, no açougue, na prefeitura ou em casas só se fala “da doença de João Urso”. As pessoas chegam, inclusive, a imitar seu riso.
Após lembrar o episódio da igreja, “como se fosse um condenado”, encostado na janela o protagonista olha a rua e aguarda a mãe dar-lhe o castigo. Entretanto, quando eles se encontram não há castigo. Ela chora e o abraça, desconsolada. João Urso não acompanha o choro da mãe: ao perceber que a pena de decorar sonetos não lhe será aplicada, enche toda a casa de gargalhadas.
Vale salientar que o protagonista não frequentava a escola porque os professores se recusavam a aceitá-lo. Quando viam uma criança rindo sem motivo aparente, logo indagavam se não seria “a doença de João Urso”.
O narrador insiste em pontos já avistados anteriormente, seu olhar se volta corriqueiramente para relâmpagos, para árvores “ensanguentadas”, para manchas da cidade, ou ainda, para nódoas de sangue. Os olhos dele são semelhantes aos da cidade, são olhares de vigília, que, vermelhos, “apagando, acendendo, rapidamente apagando” (ACCIOLY, 1995, p. 25), observam tudo, inclusive o garoto de “peito atrofiado, as mãos pequenas, a cabeça descomunal” (ACCIOLY, 1995, p. 25) que, apoiado à janela, não pode ocultar-se da visão dos outros, pois “também é uma nódoa” (ACCIOLY, 1995, p. 25) perceptível. No pequeno espaço de enquadramento da janela, João Urso baixa a vidraça e observa a chuva lavando o vidro. Esse espaço é a representação de toda a angústia do menino, de seu choro interno, não manifestado fisicamente, mas projetado no espaço fora de seu corpo.
Mais uma vez a luz de um relâmpago clareia o espaço e, a partir disso, o narrador descreve um pequeno momento do passado do personagem central. A luz do relâmpago aviva inicialmente o retrato da mãe de João Urso e o garoto lembra-se das tardes de março em que, por determinação médica, caminhava pelos morros respirando levemente para tentar curar-se dos risos excessivos enquanto a mãe descansava em uma sombra. A procura por um médico, aliás, só veio a ocorrer depois que ela percebeu que os risos do filho não eram nenhum tipo de insubordinação. Desesperada, ela repetia sozinha a recomendação médica para que o garoto respirasse tão manso “como se estivesse dormindo”.
Quantas vezes a mãe, rezando as matinas, encaixava, sem perceber, aquela frase do médico! Quantas vezes! E João Urso respirava como se estivesse dormindo, obediente, chegando mesmo a se deitar sobre as folhas, fingir adormecer. Como João Urso não deixasse de rir, uma viagem de cavalo, depois de trem, afastou-o das serras, dos comentários, da mãe, que ficou acenando, cheia de lágrimas, acenando até os cavalos se perderem (ACCIOLY, 1995, p. 27).
Sem remédio eficaz, o protagonista é mandado para outro lugar. O menino agora é uma cobaia para estudos, os especialistas nunca tinham visto alguém gargalhar daquela forma. Espantados, eles o examinavam conjuntamente, e chegaram a proibir o jovem de ler as cartas da mãe (“nada de emotividade, nada de sentimento” (ACCIOLY, 1995, p. 27)). João Urso passou a ser visto como uma preciosidade. Houve consulta a algum tratamento europeu. Os remédios multiplicavam-se, mas nada funcionava. João Urso permaneceu cinco anos no sanatório. Nesse tempo, o narrador observa — quase em lamento — a ausência de festejos de Natal e São João, que o jovem esperava ansiosamente.
Ao sair, o protagonista não retorna a Santana do Ipanema, mas se encaminha a Recife, acompanhado do pai: “o abraço do pai abria uma curva, como se quisesse abraçar os serrotes, filhotes de dromedários nos morros verdes” (ACCIOLY, 1995, p. 28). O abraço vago transparece o vazio da relação, pois o menino nunca tivera a aproximação do pai. Além disso, a visão do narrador revela um protagonista animalizado (como já se podia perceber nos cinco anos de sanatório, exposto como um animal para experimentos).
Os espaços pelos quais João Urso transitou representam o confinamento: a igreja, o casarão, o corredor próximo ao sótão e a janela. O único espaço em que ele poderia estar livre dos olhares que o vigiavam lhe foi pouco acessível: pouco frequentou o espaço dos morros (quando lá ia, era acompanhado pela mãe). É somente ao encontrar o pai que os horizontes espaciais de João Urso se dilatam:
Metiam a chibata, esporeavam, e os cavalos alargavam as passadas, relinchavam, as ancas molhadas de suor como se tivessem acabado de atravessar um rio.
Depois, o trem de Recife correndo léguas inteiras de canavial, mostrando usinas de compridos bueiros. João Urso deslumbrava-se (ACCIOLY, 1995, p. 28).
Essa é uma nova perspectiva para João Urso: se antes o mundo lhe poderia parecer estreito, visto da janela, agora os espaços alargam-se sobre o desconhecido: “O pai ia dizendo-lhe os nomes das terras, contando histórias daquelas usinas” (ACCIOLY, 1995, p. 28).
Pai e filho só se conheceram quando o menino já sabia falar. Na perspectiva de João Urso, o pai era um aventureiro. A mãe passava horas debruçada à janela, esperando o retorno do marido, porém, quando ele chegava, logo partia “sem avisar, deixando no olhar da mãe de João Urso aquela saudade tão repetida, uma saudade que se normalizava pelas repetições” (ACCIOLY, 1995, p. 28-29). Sobre a relação dos pais do garoto, o narrador pouco conta. O pai é, em suma, uma figura desconhecida.
João Urso retorna à cidade natal 30 anos depois:
Viu a mãe trinta anos mais velha, escutou aquele silencioso coração que dantes batia forte. Sentiu comoção, uma vontade imperiosa de chorar, de abraçar a mãe aos soluços. Abriu os braços, enlaçou o peito da mãe num violento aperto, e começou a rir-se como nunca havia rido, um riso doente, entrecortado de gritos profundos, de alucinantes gargalhadas (ACCIOLY, 1995, p. 29).
O reencontro revela que a gargalhada não cessou. O médico que o trouxera (João Urso fez tratamento por 30 anos?) fica constrangido por não ter conseguido curar o protagonista e, no desespero, tenta à força separar o abraço. Esse encontro traz tudo à tona. Quando ele termina de rir, o eco de sua gargalhada reverbera nas paredes “como se outros Joões Urso estivessem escondidos” (ACCIOLY, 1995, p. 29).
Os espaços mostram-se abandonados e degradados. É na figura da mãe que a degradação primeiramente se evidencia: ela perde os sentidos, desmaia, chega a ter convulsões e para dormir precisa de morfina, completamente entristecida. Voltar para casa faz com que o protagonista nunca mais voltasse a rever o pai. A figura do pai vira uma espécie de lenda para a cidade, e correm histórias sobre seu poderio financeiro e sobre mulheres com quem provavelmente ele teria se relacionado.
Mesmo tantos anos depois, João Urso ainda é uma “nódoa de sangue” na vidraça da janela. Entretanto, tudo agora é espaço de abandono e memória: “Nem as pêndulas ferem o silêncio do sobrado. Os relógios estão como mapas atrasados apontando horas de outro tempo. Tudo à distância” (ACCIOLY, 1995, p. 30). Em linhas gerais, o protagonista está órfão de mãe e abandonado pelo pai (“talvez morto”, ACCIOLY, 1995, p. 30). Agora, não é somente o narrador que olha para a vida de João Urso, mas o próprio personagem (“E como se estivesse a lançar um derradeiro olhar sobre sua vida [...]”, ACCIOLY, 1995, p. 30) se observa e se percebe sozinho no mundo.
Não reconhecendo seu lugar no mundo, é à noite, no vazio das ruas, que o protagonista busca encontrar o outro e a si mesmo. A noite é dos animais noturnos que não podem sair à luz do dia. João Urso é “como um bicho que ama as madrugadas” (ACCIOLY, 1995, p. 30), e sente-se acolhido, ainda que por um instante, quando alguém o cumprimenta no meio da escuridão ou lhe pede um fósforo. Entre as sombras, a pequena chama para indicar o “incessante que se faz ver” (BLANCHOT, 2011, p. 177), aquilo que surge na noite. Essa é para o personagem central o refúgio, o aconchego que o dia não lhe oferece.
Nas madrugadas, João Urso explora espaços pouquíssimo frequentados, como o cemitério, o posto de meteorologia, o cata-vento e “a casa dos aparelhos”, e lá se maravilha com termômetros, tubos de mercúrio e redomas de alumínio.
Seus olhos se fixavam àquilo tudo, àquele mundo defendido por tábuas brancas, riscadas de persianas. E sentiu-se dono de um mundo que somente ele visitava às madrugadas. Não se cansava de ver os termômetros, a geografia das constelações traçando caminhos luminosos de cometas, de caudas brilhantes de astros longínquos (ACCIOLY, 1995, p. 31).
A visão do narrador atém-se aos passos do personagem que sonha com o mundo, mas que é prisioneiro da solidão e dos espaços em que vive. João Urso não pode trilhar o caminho que avista, a sua geografia é restrita, degradada e obscura. Subitamente, o olhar do narrador mira uma multidão que quer linchar João Urso.
Se antes a cidade o evitava, obrigando-o a ficar sozinho e aprisionando-o indiretamente, agora o prende de forma direta no sobrado envelhecido. O olhar do narrador mira o caos. Soldados armados praguejam sem deixar ninguém entrar ou sair do casarão. A cena ocorre em plena tempestade, enquanto o delegado ameaça João Urso (“— Se esse renegado tentar fugir, já sabem: fogo” (ACCIOLY, 1995, p. 31)). Enfurecida, a multidão atira pedras sobre as vidraças, quebrando parte do lugar em que ele tantas vezes se postou para olhar as serras ou mesmo a cidade.
E atiraram pedra, partiram as vidraças da varanda, gritaram de punhos erguidos, crispados na cólera da multidão. O povo se apinhava, lutava por um lugar defronte do sobrado, querendo linchar João Urso. E lá de cima João Urso ouvia seu nome estraçalhado na boca do povo (ACCIOLY, 1995, p. 31-32).
O espaço da janela estraçalhada é a representação do próprio personagem: é como ele se sente, quebrado, sem perspectiva, acuado como um bicho caçado. Mas, afinal, por que a cidade queria linchá-lo? O final da história está fragmentado, a ordem dos acontecimentos é invertida. O narrador retrocede no tempo e explica como João Urso chegou à sua situação atual.
Certa noite, João Urso avista luzes do circo e dirige-se ao local. Ao ver a sombra de uma equilibrista, ele fica encantado e, no último salto dela, gargalha estrondosamente, causando o desequilíbrio da circense, que vem a cair.
O homem do bombo suspendeu o braço para tocar quando se cumprisse o salto da morte. Mas não pôde comemorá-lo efusivamente. João Urso havia-se aproximado, chegando à porta do circo. E no momento do salto, quando os pés da bailarina voaram feito duas asas de lantejoulas, de estreitas calças de cetim vermelho, de um porta-seios robusto, neste momento João Urso soltou um agudo de um riso estrangulado, cortante, talvez o maior de sua vida. E a bailarina pareceu um pássaro ferido, um voo que tombava (ACCIOLY, 1995, p. 32).
A cidade revolta-se contra o protagonista e o encurrala. Para ele, resta apenas o espaço do quarto. Deita-se sem saber qual será seu destino, fecha os olhos (“e sente unicamente o desejo de dormir [...] (ACCIOLY, 1995, p. 33)) e imagina as geografias das constelações, os termômetros amigos e, sobretudo, o voo incerto da bailarina. Blanchot (2011, p. 290) diz que “o sono é, talvez, desatenção ao mundo, mas essa negação do mundo conserva-nos no mundo e afirma o mundo”. É possível supor que o personagem queira que tudo não passe de um sonho, de um terrível pesadelo? João Urso é, antes de tudo, um sonhador incompreendido. Daí seus momentos à janela e suas gargalhadas exageradas, pensando em coisas extravagantes, tal como sua própria imagem.
João Urso passou toda a vida entre o anseio de vivenciar bons momentos e a realidade predominantemente infernal. Viveu em espaços de tormenta nos quais não conseguiu se encontrar ou ser aceito. Há uma espécie de “jogo antitético”, de um lado as serras barulhentas, do outro a cidade silenciosa; um João Urso inquieto, capaz de romper o silêncio com sua estridente gargalhada e peripécias, quebrando a organização das coisas (“a via-sacra fora interrompida” (ACCIOLY, 1995, p. 23)). O espaço em “João Urso” caracteriza o próprio isolamento do personagem.
O espaço da janela, o primeiro espaço em que o protagonista é observado pelo narrador, representa uma barreira fronteiriça onde o personagem é torturado (é da janela, igualmente, que sua mãe se martiriza à espera do marido que raramente retorna) porque anseia ver o mundo, porém o pequeno espaço lhe dá apenas um quadro minúsculo. Além disso, representa uma espécie de portal que precisa ser atravessado pelo garoto (ou saltado como “o voo incerto da bailarina”), pois se de um lado há uma sala vazia, do outro há uma natureza pulsante, viva e que exprime liberdade, um estado de liberdade que João Urso não consegue alcançar.
A casa é um espaço que se converte numa espécie de armadilha representativa do corpo de João Urso. É descomunal, demasiadamente grande para duas pessoas, e é vazia e silenciosa, assim como João Urso, cuja “voz parecia ter sumido” (ACCIOLY, 1995, p. 21). O protagonista é, pois, a própria representação da desproporção. O sobrado é reflexo do garoto, e suas paredes guardam o riso dele como se vários “Joões Ursos” estivessem gargalhando concomitantemente. Tudo ali envelhece e se degrada.
O maior dos espaços e o espaço de maior crueldade é o da cidade. É pelo espaço urbano que o garoto é rejeitado, humilhado, impedido de viver (nem sequer pode ter contato com outras crianças, posto que não é aceito na escola). Quando criança, caminhava apenas pelos morros, afastado das pessoas. Adulto, transita somente à noite, esgueirando-se pelas ruas escuras e pelos becos.
A cidade retratada no conto vê João Urso à distância. Ele não lhe desperta senão repugnância, ódio e incompreensão, e ela reage tirando-lhe metaforicamente a vida, encurralando-o no velho sobrado, aprisionando seu corpo, estraçalhando-o e impedindo-lhe qualquer possibilidade de voo. A cidade busca, a todo custo, manter a sua ordem. Para João Urso, restam apenas as incertezas do destino.
REFERÊNCIAS
ACCIOLY, B. João Urso. Prefácio de José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
ALBERTI, V. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BOMFIM, E. A. Razão mutilada: ficção e loucura em Breno Accioly. Maceió: EDUFAL, 2005.
BRANDÃO, L. A. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Fapemig, 2013.
LINS, O. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
ROCHA, T. Modernismo & Regionalismo. 3. ed. Maceió: EDUFAL, 2014.
Notas
Dissertação disponível em < http://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/15206 >.