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NARRATIVAS DE SI: UMA INTERPRETAÇÃO DAS VÁRIAS IDENTIDADES DO CONDE OLAF, NA OBRA DESVENTURAS EM SÉRIE
David Junior de Souza Silva; Germana Callyne Rodrigues de Araújo; Marcos Paulo Torres Pereira
David Junior de Souza Silva; Germana Callyne Rodrigues de Araújo; Marcos Paulo Torres Pereira
NARRATIVAS DE SI: UMA INTERPRETAÇÃO DAS VÁRIAS IDENTIDADES DO CONDE OLAF, NA OBRA DESVENTURAS EM SÉRIE
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 134-149, 2023
Universidade Federal do Acre
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Resumo: Objetivo deste trabalho é compreender como ocorrem as criações de identidades desenvolvidas pelo personagem Conde Olaf, na obra Desventuras em Série. Tomamos como corpus a adaptação em formato de série, na Netflix. A escolha dessa obra foi feita porque a mesma possui um personagem que, durante as três temporadas da série, desenvolve várias identidades, adotando perspectivas distintas mediante atos específicos. No eixo teórico, utiliza-se de conceitos de Paul Ricoeur (1991), que delineou as lides de Identidade Narrativa; por Zygmunt Bauman (2001), de Identidade Líquida; e os de Suzi Frankl Sperber (2009), de Pulsão de Ficção. Buscamos compreender como as identidades fluidas de Olaf podem ser matizadas para além do simples disfarce, pois essas não se tratam somente de emprego de indumentárias e acessórios, porém de uma nova essência, de um devir balizado pela intriga da narrativa.

Palavras-chave: Identidade Narrativa, Intriga, Identidade Líquida.

Abstract: : The objective of this paper is to understand how the creations of identities developed by the character Count Olaf occur, in the Series of Unfortunate Events. We took as corpus the adaptation in TV show format, on Netflix. The choice of this work was made because it has a character that during the three seasons of the series develops several identities, adopting different perspectives through specific acts. In the theoretical axis, we use concepts from Paul Ricoeur (1991), who delineated the struggles of Narrative Identity; by Zygmunt Bauman (2001), of Liquid Identity; and those of Suzi Frankl Sperber (2009), of Pulsion for Fiction. We seek to understand how Olaf’s fluid identities can be nuanced beyond simple disguise, for these are not just about the employment of garments and accessories, but of a new essence, of a becoming marked by the intrigue of the narrative.

Keywords: Narrative Identity, Intrigue, Liquid Identity.

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NARRATIVAS DE SI: UMA INTERPRETAÇÃO DAS VÁRIAS IDENTIDADES DO CONDE OLAF, NA OBRA DESVENTURAS EM SÉRIE

David Junior de Souza Silva
Universidade Federal do Amapá, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Brazil
Germana Callyne Rodrigues de Araújo
Universidade Federal do Amapá, Brazil
Marcos Paulo Torres Pereira
Universidade Federal do Amapá - Unifap, Brazil
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 134-149, 2023
Universidade Federal do Acre

Received: 23 March 2023

Accepted: 26 May 2024

INTRODUÇÃO

A coleção de livros Desventuras em Série, escrita no ano de 2004 pelo autor Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler), é uma série de livros que teve sua primeira adaptação para outra mídia, realizada por Brad Silberling no ano de 2004, com o filme[1] que empregava o mesmo título, cujo enredo cobria somente os três primeiros livros da coleção.

Em 2017, a obra foi adaptada para o formato de série, que será o objeto sobre o qual nos debruçaremos. Nesse formato, a obra teve como produtor Barry Sonnenfeld com a participação do próprio Daniel Handler, lançada na plataforma de streaming Netflix. Essa modificação feita em seu formato, de filme para série, possibilitou maiores condições de desenvolvimento do enredo, porque, ao invés dos 108 minutos do filme, a nova produção contava com 26 episódios, com 50 minutos em média, para trabalhar todas as nuances dos 13 livros que compõem a coleção. A primeira temporada, contendo oito episódios, baseou-se nos 4 primeiros livros da coleção; a segunda, com dez episódios, baseou-se nos livros de 5 a 9; e a terceira temporada, nos últimos 4 livros, contendo 7 episódios.

A estrutura de adaptação seguia um dístico de dois episódios[2], no qual se integrava dois livros e se apresentava a música tema de abertura[3] com adaptações ao enredo dos episódios. O conde Olaf – objeto de nosso material de estudo – mudava a sua representação adotando disfarces e novas identidades como forma de se sobressair na intriga narrativa.

A trama é centrada nas aventuras dos órfãos Baudelaire durante a jornada que buscava a reconstrução de uma vida estável que outrora possuíam, mas que se esvaíra com a morte de seus pais durante um incêndio que consumira sua casa. O protagonismo deles é um dos atrativos mais fortes da obra, por serem crianças muito inteligentes e corajosas: a mais velha, Violet Baudelaire, é uma inventora; o do meio, Klaus Baudelaire, é um leitor voraz; e Sunny Baudelaire, a caçula, mesmo nas limitações físicas de um bebê, adquire função deveras importante, pois naquilo que possuía bem desenvolvia: roía objetos e se comunicava com uma linguagem que apenas seus irmãos conseguiam entender.

Após a morte de seus pais, os órfãos são destinados a viverem sob os cuidados de um tutor e são passados para a responsabilidade de pessoas que se tornariam seus pais adotivos. Logo no começo da série, o Conde Olaf, que não era a pessoa escolhida pelos pais das crianças para assumi-las, toma conhecimento que essas passarão a viver com um responsável e decide agir: ele vai até o banqueiro que era responsável pela gestão do testamento dos Baudelaire e se faz passar por outra pessoa, já demonstrando que a mentira[4] faz parte das características de sua identidade.

Durante o desenrolar da trama, o Conde Olaf assume o papel de vilão, fazendo e pondo em prática diferentes planos para tomar a fortuna dos órfãos, situação que é exposta logo nos primeiros capítulos da primeira temporada. Os órfãos, por sua vez, colocam-se como antagonistas desse vilão e passam a lutar para se livrarem das armadilhas do Conde e para ficarem com a fortuna que lhes pertencia por direito. As ações dos dois lados envolvidos geram consequências: mortes, perdas e importantes descobertas acerca dos pais dos Baudelaire e de seus amigos (companheiros da ordem secreta que viriam a ser tutores dos órfãos) e do próprio Conde Olaf, personagem que iremos analisar neste estudo.

O caráter literário do narrador, a construção das personagens e a dimensão social que estruturam a ficção da obra já foram estudados por outras pesquisadoras, como Heidi Bayoumy, que realiza um estudo sobre a obra Desventuras em Série, investigando o lugar do narrador. Aponta seu caráter de narrador-autor e a metanarrativa que é assim criada, indicando também haver certa relação no interior da obra entre o narrador-autor e as crianças: esse teria tido uma relação de afeto com a mãe das crianças, antes de ela escolher se casar com Baudelaire. Após a morte do casal, o ex-enamorado sente-se na obrigação de investigar a causa do incêndio, que não descobre, e de contar a história das crianças. (BAYOUMY, 2020).

Ainda assim, mesmo sendo um personagem da trama, que testemunha e relata os infortúnios das crianças, assume também a característica de um narrador onisciente:

The reason behind such narration is to underscore how the minds of the children are filled with unanswered questions and confusing thoughts. Thus, the focus on the emotions is delayed till later on when the use of “representation of thought/ free indirect thought” is strongly present to create empathy for the protagonists and to highlight their “misfortunes” because Count Olaf has become their custodian. (BAYOUMY, 2020, p. 56)

Para os fins do presente artigo, é importante ter em mente o lugar do narrador, pois este ajuda a consolidar a mesmidade e a ipseidade ao longo da trama. O estudo de Julia de Oliveira foca na construção dos personagens na obra. É uma construção sofisticada, pois os personagens têm sua identidade e uma relação dialética que se preserva no decorrer de quase toda a obra (exceto no momento final), porém não encampam arquétipos estanques. Os personagens se encontram em dialética entre si e em dinâmicas de mesmidade e ipseidade, sem reificar-se em arquétipos e sem congelar o mundo de forma binária.

A própria distinção entre vilão e protagonista e entre bem e mal desvanece-se na obra.

Dessa maneira, a segunda metade da série revela a maneira não-binária do mundo, em que qualquer pessoa pode esconder más intenções e rejeitar o altruísmo.

A busca pela misteriosa C.S.C., assim, orienta os objetivos e a jornada dos irmãos e revela a natureza ambígua do homem à medida que mescla a linha entre o bem e o mal. (OLIVEIRA, 2021, s/p)

Pode-se dizer que esse desvanecimento vem a ser também parte fundamental da narrativa. O estudo de Clarissa Freitas tematiza a condição social de descredibilidade da fala das crianças, que dá condição de possibilidade ao enredo. A autora argumenta que socialmente certos discursos são negados.

Em seu livro A Ordem do Discurso (1996), Foucault mostra como certos discursos são ignorados ou excluídos por conta de direitos privilegiados do sujeito que fala, sendo muitas as situações nas quais as falas infantis têm muito pouca ou nenhuma validade. A construção do enredo em Desventuras em Série explicita o único impasse para a validação das crianças no mundo social: a exclusão de seus discursos pelos indivíduos adultos. (FREITAS, 2018, p. 223)

Essa é uma verdade sociológica, todavia adentra a obra como parte de seu realismo e verossimilhança... Um dado social que passa a fazer parte do enredo.

Em Desventuras em Série, esse “silenciamento” é evidente em vários momentos: quando as crianças tentam avisar ao Sr. Poe que Olaf tentou assassiná-las e ele diz que elas estão exagerando; quando Violet é forçada a casar com Olaf em um espetáculo e tenta avisar à plateia de que é tudo real, mas é ignorada; quando Olaf tenta culpar uma cobra de estimação pela morte do tio das crianças, e elas atestam à docilidade do animal, mas são ridicularizadas. (FREITAS, 2018, p. 223)

No presente artigo, levando em conta estas interpretações da obra, procuramos tematizar uma questão singular: a identidade – ou as transformações identitárias – do Conde Olaf. Faremos isso instrumentalizados pelos conceitos de narrativa de si, mesmidade e ipseidade de Paul Ricoeur, que delineou a Identidade Narrativa como a representação de si exposta através da narrativa, seja da narrativa de si sobre si mesmo ou na narrativa de si realizada pelo outro. Também será empregado para o desenvolvimento deste trabalho o conceito de Zygmunt Bauman sobre a Identidade Líquida, que trata da liquidez das relações e como a identidade também se tornou fluida, ou seja, transveste-se com muita facilidade.

Aplicaremos o conceito de identidade fluida de Bauman, pois compreendemos que o que temos no desenvolver da intriga são disfarces, no entanto, neste trabalho, vamos tratá-los conceitualmente como identidades, numa estratégia hipotética que esperamos justificar no desenvolvimento dos argumentos. Para obter a “posse” de uma nova identidade, há a escolha de uma construção, de um jogo teatral, porque ele se apodera dos universais (imaginário, simbolização, efabulação).

A partir disso, procuraremos compreender as transformações de identidade do conde Olaf, as ferramentas de que ele fazia uso para que pudesse alcançar seus objetivos e como conseguia convencer/enganar as pessoas a sua volta através de suas transformações identitárias.

IDENTIDADE NARRATIVA E A REPRESENTAÇÃO DE SI

O escritor Paul Ricoeur, em seu livro O si mesmo como o outro (RICOEUR, 1991, p. 140), apresenta a identidade da mesmidade e da ipseidade, evocando os conceitos em confrontação simbólica ulterior à manifestação do tempo, “de um lado a identidade como mesmidade (latim: idem; inglês: sameness; alemão: Gleichheit), possui características que não mudam nem mesmo com o passar do tempo, enquanto a identidade como ipseidade (latim: ipse; inglês: selfhood; alemão: Selfbstheit)”, que, de acordo com o autor, carrega uma junção de acontecimentos e experiências que somam para a sua formação e colaboram tornando a identidade mais ampla e em motivos que a formam.

A questão da identidade narrativa para Paul Ricoeur é profundamente explorada com o intuito de entender o processo da formação de uma identidade através do discurso, em intrigas narrativas, sabendo que o mesmo é formado com grande influência nas crenças, vivências, defesas ou acusações sobre assuntos corriqueiros, como moventes de motivos e ações que resultaram na formação de uma nova identidade. A identidade narrativa estudada e descrita por Paul Ricoeur possui duas tarefas importantes à sua comprovação, “levar ao seu mais alto grau a dialética da mesmidade e da ipseidade, implicitamente contida na noção de identidade narrativa”, além de “completar esta investigação do si relatado, pela exploração das mediações que a teoria narrativa pode operar entre teoria da ação e teoria moral” (RICOEUR, 1991, p. 167). Para o autor, a ação de narrar acontece através da descrição, caracterização, retratação, entre outros traços que somam para a representação de uma identidade narrativa.

A teoria da leitura advertiu-nos sobre isto: a estratégia de persuasão fomentada pelo narrador visa impor ao leitor uma visão de mundo que nunca é eticamente neutra, mas de preferência induz, implícita ou explicitamente, uma nova avaliação do mundo e do próprio leitor; nesse sentido a narrativa já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da narração, à correção ética. (RICOUER, 1997, p. 429)

Diante das tantas possíveis criações de novas identidades, ressaltamos que todas essas mudanças de si operadas por Olaf poderiam obter resultados tanto positivos quanto negativos, que esses dependiam não somente da intencionalidade daquele que performatizava seu disfarce, mas também pelo aceite daqueles partícipes da intriga e das testemunhas da ação, em uma espécie de contrato social tácito, que pessoas que verão todas as mudanças de traços identitários adquiridos de forma positiva, mas também haverá aqueles que farão a cobrança de antigos discursos que, após a geração de novas identidades, tornaram-se inválidos.

Na experiência cotidiana, tem-se dito que elas tendem a se recobrir e a se confundir; assim, contar com alguém é, ao mesmo tempo, apoiar-se na estabilidade de um caráter e esperar que o outro cumpra a palavra, quaisquer que sejam as mudanças suscetíveis de afetar as disposições duráveis em que ele se deixa reconhecer. (RICOEUR 1991, p. 176)

Através das falas de várias identidades construídas/atribuídas por Olaf, mesmo diante de tantas mudanças, fantasias e nomes, é possível encontrar traços do corpo da identidade base, que permanecem com ele. Dessa maneira, o presente estudo trata sobre o discurso do conde Olaf, objetivando analisar sua constituição identitária como promessa (mesmidade) e delimitada pelas ações do tempo no enredo (ipseidade). A proposta é compreender o que caracteriza a identidade narrativa na órbita do discurso e da intriga.

As diversas identidades desempenhadas[5] pelo conde Olaf tomavam existência com a ajuda de experiências passadas e com o conhecimento e amor pelo teatro, sempre levando em consideração para a sua construção alguns aspectos, tais como lugares, pessoas, indumentárias e adereços que serviriam de matizes à criação, buscando resultados satisfatórios para o momento de vivência com essas novas identidades, enganando a todos os envolvidos por uma promessa de verdade, exceto aos órfãos, que sempre o reconheciam. A narrativa aponta para o reconhecimento visual que os Baudelaire faziam de Olaf, que esses prestavam atenção aos aspectos físicos, como formato do corpo, sobrancelha e a tatuagem na perna, contudo seu reconhecimento ia além de tais imputações, pois, ao analisar as novas identidades, acabavam por desnudar tudo o que fora adquirido ao novo ente através da focalização na mesmidade identitária de Olaf, reconhecendo aquele que mentia, trapaceava, que era egoísta e não valorizava as amizades, que focava tão somente em sua vontade e que usava as pessoas da trupe para que seu objetivo fosse alcançado no véu de enganação que buscara criar.

Para fins da intriga e para que se gerasse reconhecimento e empatia aos jovens leitores, os adultos não davam credibilidade às crianças, acreditavam que essas estavam traumatizadas com as ações do conde e não conseguiam esquecer a dor que sentiam. Assim, no desenvolvimento da intriga, olhos adultos eram anuviados no contrato discursivo estabelecido, possibilitando a identidade criada se manifestar em novos caracterizadores através do ato discursivo, oriundos da ação da ipseidade na mesmidade, fazendo com que seu resultado necessitasse do equilíbrio à hermenêutica de si... Novas situações discursivas atuariam na identidade que seria a promessa, gerando uma quebra naquela que se buscava permanecer, fazendo com que ela passasse a mudar durante o tempo. Essa situação pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente, por vezes tão natural ao ponto de que a identidade que passa por esse processo não perceba as mudanças que com ela ocorrem.

Com as vivências que cada pessoa passa, a identidade vai sendo reconstruída de acordo com a experiência apreendida. Esse processo ocorre de forma individual, pois cada ser tem um processo e um resultado que geram novas experiências de acordo com a bagagem que levam a tais vivências, que não são as mesmas das pessoas que o rodeiam e/ou que com ele compartilham tal vivência. Os traços identitários revividos pelo discurso são compreendidos como a variedade identitária basilar que é desempenhada pelo conde Olaf, em relação a qual constroem-se outras verdades narrativas que o vilão buscava instaurar, pois a linguagem usada por cada nova identidade não é uma linguagem falsa, mas sim uma linguagem adequada depois da mudança.

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, e a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento quanto para a “identidade”. (BAUMAN, 2004, p. 17)

Para que seu objetivo final fosse alcançado, Olaf desenvolve várias identidades durante a trama, desempenhando suas criações sempre de forma a adequar seu instrumento ao novo local em que as crianças se encontram, fazendo o uso de caracteres que corroboram para o surgimento da nova identidade, a identidade que o conde Olaf quer ser, assim como afirma (BAUMAN, 2004). Sempre que seu verdadeiro interesse em ficar com as crianças era revelado, o que desconstruía a identidade por ele gerada, as crianças passavam a viver com outro tutor, o que servia de gatilho à criação de nova identidade de Olaf ao novo contexto, possuidora de caracteres que o permitisse viver no mesmo lugar em que as crianças viviam.

AS TRANSFORMAÇÕES IDENTITÁRIAS DE OLAF

Fazendo uso do conceito de mimese apresentada por Ricoeur (1994), buscaremos a compreensão da intriga presente na atuação performática das novas identidades devolvidas pelo conde Olaf, mediante processo de reconstrução e simbolização de si em constructos que lhe propiciariam atuações instrumentais à conquista da fortuna dos Baudelaire, a fim de compreendermos como as criações do vilão resultam em novas identidades que se articulariam ao momento, espaço e função narrativa – por vezes discursivamente verborrágicas, por vezes outras quase que pantomímicas –, por reconhecermos nesse processo a caracterização prática de uma leitura mimética da personagem, numa imitação ou representação que remeteria a um substrato de sua percepção do real.

A identidade para ele, nesses termos, mais do que um cogito, é uma ferramenta ao desempenho de funções, constituições e verdades de si, gerando pluralidades não tão somente de ações, porém de constituições imagéticas e identitárias que maximizam o enredo. Segundo Ricoeur (1991, p. 95), uma ação intencional é uma ação feita objetivando a um fim, a um porquê que somente teria razão de ser na narratividade da ação, mobilizada por uma razão primária que forneceria elementos à interpretação, que saber o motivo “pela qual alguém agiu como agiu é conhecer a intenção na qual a ação foi feita”, por isso que a intriga de Desventuras em Série evoca em vários momentos o passado de Olaf, ressignificando experiências obtidas que (de)marcam sua vida e burilam a simbólica de cada nova identidade criada.

Para entendermos todo o processo de criações identitárias, será preciso entender quais foram os caracteres usados para engendrar a nova identidade[7]. Reputando que a definição de intriga (RICOEUR, 1994) é um ponto determinante para os próximos passos no desenvolvimento deste trabalho, argumentamos que essa se manifesta nas, perante e para as criações identitárias do vilão, que “a armação da intriga é muito mais que um nível entre outros: é ela quem faz a transição entre narrar e explicar” (RICOEUR, 1994, p. 242). Em Desventuras, a intriga tem como um dos elementos de gatilho cada momento em que o conde resolve conscientemente colocar uma nova identidade em ação em forma de disfarce, porém os moventes, constituintes e aplicação delas acabam por gerar mudanças na personagem, proporcionando motivos, constituições e consequências que colaboraram para uma nova criação identitária, sejam elas de forma consciente ou inconsciente.

As criações do conde – bem elaboradas – observavam às necessidades miméticas que um predador deveria adotar para não assustar ou afastar sua presa, por isso se adequavam perfeitamente ao espaço, ao tempo e às funções pretendidas: ele fazia o uso de roupas, maquiagem, estilo de cabelo, indumentárias e adereços, pondo em prática sua vivência nos palcos, “para a criação de sua mercadoria, o tecelão tomava de fios de história e de ficção, entrecruzando-as em trama, tornando o tempo narrado em ponte entre o tempo fenomenológico e o tempo cronológico” (PEREIRA, 2019, p. 145), dotando de profundidade o que aparentaria ser tão plano... Mesmo que as identidades criadas pelo conde só existissem até ele ser descoberto, por isso tão efêmeras, enquanto existiam, evocavam o humano de sua natureza, por isso tão indeléveis.

Um delicado paradoxo de destruição/criação e continuidade matiza o processo de novas manifestações identitárias que, por mais que várias mudanças e transformações aconteçam, sempre se dariam engendradas na teia da narratividade, no tear de lances desenvolvidos pela intriga que se encarregam de gerar porquês na ação dos universais (imaginário, simbolização, efabulação) em seu tempo de existência, pois “as metamorfoses da intriga consistem em investimentos sempre novos do princípio formal de configuração temporal nos gêneros, tipos e obras singulares inéditas” (RICOEUR, 1995, p. 16-7). Por cada identidade ser gerada com características novas e por se enquadrar ao contexto de cada episódio, o vilão soma a cada nova criação as experiências de suas criações passadas.

Essa possibilidade de recriação constante é característica das identidades, como explicado por Bauman: “melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham ‘data de validade’, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura” (BAUMAN, 2001, p. 67). Nessa toada, compreendemos a facilidade e rapidez com que Olaf fazia ou se desfazia de uma nova identidade, de acordo com as consequências de ações prévias ou necessidades que se apresentavam pela intriga que lhe exigiram novo foco, novas imputações e caracteres. Ao ser descoberto, o vilão pegava o motivo que o levou a ser descoberto e já trabalhava para aprimorar esse “erro” e não mais o cometer.

A facilidade de desfazer-se de uma identidade no momento que ela deixa de ser satisfatória, ou deixa de ser atraente pela competição com outras identidades mais sedutoras, é muito mais importante do que o ‘realismo’ da identidade buscada ou momentaneamente apropriada. (BAUMAN, 2003, p. 62)

Compreendemos que há uma pulsão movente às identidades engendradas por Olaf que irão se contagiar na identidade primária, infundido ipseidade em sua identidade de promessa, em sua mesmidade. Bauman nos auxilia à compreensão das ações do conde por uma perspectiva mais exterior, enquanto os escritos de Ricoeur nos auxiliam à compreensão da dinâmica interna de cada nova identidade... Somados os auxílios, põem-se à mostra fatores que nos possibilitam a interpretação da profundidade de Olaf como personagem, pois a personagem vivia o que programava, cada elaboração identitária era mimética, era nova persona porque humanava seu disfarce.

PERCURSOS IDENTITÁRIOS EM DESVENTURAS EM SÉRIE: O TRILHAR DO VILÃO

“O passo decisivo em direção de uma concepção narrativa da identidade pessoal é dado quando passamos da ação ao personagem. É personagem aquele que faz a ação na narrativa” (RICOEUR, 1991, p. 170) e, logo no início da série – propriamente nos dois episódios iniciais da obra –, Olaf já se apresenta na narrativa desempenhando a função de antagonismo aos órfãos Baudelaire, fazendo-se notar como um vilão canhestro, quase caricatural, mostrando-se mentiroso, egoísta, interesseiro, subserviente ou tirânico quando lhe fosse oportuno... predicados ulteriores a um caráter nocivo que matizariam a percepção do público quanto a sua vilania, por isso é esperado que ele desenvolvesse nos próximos capítulos da obra uma identidade baseada no conceito da mesmidade – como acontece com os vilões – que ele continuasse até o final da obra com as mesmas características, interesses e objetivos, mas, ao acompanhar a obra até o fim, veremos que isso não acontece, o vilão desenvolve outras identidades, assim como outros interesses e objetivos, agindo positiva ou negativamente, de acordo com tempo e a função que desempenhará na intriga.

As crianças Baudelaire descobrem no primeiro episódio que houvera um incêndio em sua casa, vitimando seus pais. Como eram apenas crianças, precisariam de um tutor que se responsabilizasse por elas... Os pais deixaram em testamento indicação de quem deveria desempenhar esse papel, contudo o conde Olaf, interessado pela fortuna dos Baudelaire, emprega um de seus ardis e se apresenta ao banqueiro responsável pela curatela do testamento como a pessoa escolhida para tomar conta das crianças. Aqui nos permitimos nova antecipação: pareceria àqueles que obtivessem o primeiro contato com a obra que o interesse de Olaf fora despertado pelo interesse no golpe, mas, no desenrolar das ações da intriga, demonstra-se que o passado de Olaf e dos pais da criança estivera interligado e que seus motivos seriam maiores e mais profundos do que se pudera perceber nos primeiros episódios.

Olaf se apresenta ao banqueiro como uma pessoa gentil, educada, atenciosa, um tutor que cuidaria das crianças com muita excelência. Ao ter as crianças sob sua responsabilidade, no entanto, as características daquela que se apresentava como sua identidade base passam a se manifestar e a vilania passa a ter centralidade em suas ações. Com auxílio de toda a sua trupe teatral, o vilão arma, inclusive, plano em que, mediante uma apresentação teatral, ele se casaria com Violet Baudelaire para ter também o direito a administrar toda a herança dos Baudelaire. O vilão não colocara limites a seus planos, a posse da fortuna lhe era necessária, por isso ele buscava se encaixar no papel e lugar que fosse necessário, para que parecesse uma pessoa verdadeira e que pudesse alcançar o que tanto almejava.

Bem ao contrário, a vontade de encontrar é o que a motiva e o que eu quero encontrar é a verdade da própria coisa. Aquilo que se duvida, com efeito, é que de que as coisas sejam tais como elas parecem ser. A este respeito, não é indiferente que a hipótese do gênero maligno seja a de um grande enganador. O engano consiste precisamente em fazer passar o parecer para o ‘ser verdadeiro’. (RICOEUR, 1991, p. 16-7).

Após o plano do conde ser descoberto e ele desmascarado pela primeira vez, as crianças vão morar com outro tutor, que agora é realmente um tutor indicado pelos pais. As crianças passam a morar com o Dr. Montgomery, herpetologista de renome e antigo companheiro dos pais das crianças. Para conseguir cuidar dos répteis que possuía e agora das crianças, Dr. Montgomery decide contratar um ajudante, Stephano, que na verdade se tratava de um disfarce do conde Olaf.

As roupas, modo de falar, vocabulário e até trejeitos de Stephano se encaixariam perfeitamente no seu lugar de atuação, mesmo que aqueles que assistiam à série pudessem reconhecer de chofre Olaf por trás do ajudante, as personagens adultas da série aceitavam de bom grado a existência desse ajudante e todas as suas alegações e imputações. As crianças, no entanto, comungam com a percepção dos espectadores e não se deixam enganar pela personagem.

A representação canhestra e caricata, insistimos, detém um motivo: a revolta da assembleia com os adultos que não conseguiam enxergar Olaf por trás de Stephano, o que faria com que se ligassem aos jovens Baudelaire, que com eles dividissem a impotência de não poder reagir, de não poder se defender ou denunciar o vilão, por que não haveria quem os ouvisse. “As crianças, vistas como incapazes, enxergam através dos disfarces dos vilões e tentam denunciá-los, mas nunca são levadas a sério. Suas próprias habilidades e engenhosidade é que garantem sua sobrevivência livro após livro” (OLIVEIRA, 2021, s/p). A empatia fora despertada pelas vítimas enquanto a aversão ao antagonista se intensificava.

Ricoeur (1991 p. 47) explica que a noção primitiva de corpo reforça o primado da categoria de mesmidade. As crianças procuraram em Stephano traços e sinais que pudessem apontar os sinais de Olaf presentes no disfarce, como a tatuagem com o símbolo da ordem que trazia na perna.

A tatuagem do conde, seus olhos brilhantes e intensos e sua única sobrancelha são as principais características físicas do vilão que sempre ajudam as crianças a reconhecerem seus mais variados disfarces e a provar sua verdadeira identidade. A figura do olho é recorrente em toda trama e simboliza uma dualidade entre Olaf e os Baudelaire. (OLIVEIRA, 2021, s/p)

As crianças não foram enganadas por Olaf, mas não conseguiram salvar seu tutor, que Olaf, além de conseguir se aproximar dele, também o matara, para atingir seus intentos – mais um traço identitário se assoma à manifestação de vilania, o de assassino - .. Mais uma vez as crianças ficaram sem tutor.

Assim como nova tutora se apresentaria aos órfãos, Tia Josepheni, novo disfarce de Olaf para os perseguir: Sham, um capitão de navio. Nessa nova identidade, o vilão faz o uso de um tampão de olho para esconder a sua sobrancelha e de uma perna de pau para esconder a tatuagem, características de mesmidade que Olaf trazia no corpo. Josepheni era viúva sofrida e solitária e Olaf tinha ciência disso, por isso a nova criação requeria instrumentos que pudessem atender à atuação e ao aceite, em exercício mimético diferente daquele que antes empregara. Sham não possuía somente roupas diferentes de Stephano, mas uma personalidade distinta, pois o capitão era atencioso, viril, corajoso e aventureiro, assim como o finado marido de Josepheni era. Olaf conhecia – e damos ênfase ao termo – o caminho que deveria trilhar para que sua performance obtivesse sucesso. O conde, para a tessitura de seu plano, via-se livre para “usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar” (BAUMAN, 2001, p. 12).

Josepheni fora mais uma das vítimas de Olaf, ela perde sua casa e segurança, o que faz os Baudelaire fugirem. Durante a fuga, chegaram à Serralheria Baixo-Astral e se dispuseram a trabalhar naquele lugar, pois queriam mais informações sobre os seus pais e pensaram que lá poderiam recobrar forças. Além disso, consideraram que estariam longe do vilão e em segurança naquele lugar distante, porém logo descobririam que estavam erradas. O vilão mais uma vez apareceria com nova identidade.

Olaf descobrira o paradeiro dos Baudelaire e que a Doutora Orwell, uma antiga paixão, trabalhava na serralheria. De pronto, o vilão monta novo ardil, contudo esse iria empregar recursos de seu passado na ordem e amavios à sedução de Orwell através do rememorar dos bons momentos que tiveram no passado, pois sabia que as lembranças boas teriam o poder de convencê-la a fazer o que ele queria. Ela aceita o ardil do conde e se torna cúmplice do vilão para alcançar a fortuna dos órfãos. Shirley, a nova identidade de Olaf, vem à intriga.

Na serralheria as crianças novamente conseguem derrotar Olaf e, em seguida, descobrem que seus falecidos pais são acusados de terem colocado fogo em uma cidade, destruindo várias vidas. Os órfãos não acreditaram nisso, porque seria uma ação completamente contrária à imagem que faziam dos pais e vão atrás de mais informações que expliquem o que realmente aconteceu. A busca por mais pistas que explicassem a causa da morte de seus pais continuaria, todavia agora se assomando à necessidade de desvendar o motivo que levou aquelas pessoas a acusarem seus pais de tamanha tragédia.

Os percursos identitários percorridos por Olaf em Desventuras em Série acabam por corporificar uma proposta de construção de si na narrativa, pois a ressignificação da personagem é balizada pela intriga a qual está submetida, demarcando composições que atravessam momentos de figuração, configuração e reconfiguração de si, naquilo que Ricoeur (1995) viria a chamar de tríplice mimese, pela determinação da identidade promessa de Olaf, uma mesmidade que seria confrontada pela ipseidade (com as configurações que lhe seriam ulteriores no processo) e pela alteridade, na refiguração de “outridades” em si, gerando uma identidade oriunda de mediações.

As relações de Olaf com a Doutora Orwell, com os Baudelaire, com os membros da ordem são organizadas na narrativa de forma a densificar uma composição que, em origem, poderia parecer diáfana, sem profundidade, em direção a uma intriga que reordenaria os fragmentos que os órfãos foram recolhendo no percurso da narrativa, a fim de tornar possível o entendimento e a interpretação do sentido completo da história. Se narrar, nos termos de Ricoeur, é “discernir pelo espírito”, então a intriga de Desventuras em Série fora organizada de forma a gerenciar um agenciamento de fatos que pudessem evocar a nova formulação da noção de sujeito que se apresentaria aos órfãos, maturados pela ipseidade, mas também para Olaf, que ressignificara sua função primária durante o exercício de interposições identitárias estabelecidas, numa hermenêutica de si através de mediação de símbolos, culturas, experiências, alteridade, efabulações e imaginário.

Depois de passarem por vários tutores, as crianças são levadas pelo banqueiro para uma escola-internato, pois acreditava-se que assim estariam mais seguras. Lá os Baudelaire conhecem as crianças Quagmire, Isadora e Quigley, com história de vida análoga à dos protagonistas. Na escola se mobiliza um percurso discursivo de reconhecimento: das crianças de famílias diferentes, mas que passaram pela mesma experiência; dos filhos com a ordem a qual os pais pertenceram; de Olaf com seu passado, que ele fora também aluno dessa escola, mas fora expulso por comportamento inadequado; e de Olaf para com os Quagmire, que também eram filhos de membros da ordem que faleceram.

Esse reconhecimento tornara-se potência para o vilão, que pudera formular sua nova identidade por intermédio de caracteres específicos que mimetizariam não somente as funções a serem desempenhadas na escola e na intriga, mas numa existência burilada pelas relações e memórias. Olaf se fizera então em instrutor Genghis, um treinador estrangeiro que usava turbante para encobrir a sobrancelha e uma bota de cano alto como principais adereços, a fim de se esconder marcadores corporais antes empregados para o reconhecimento do conde. Assim como as outras identidades do vilão, essa figuração também possuía poderes sobre as crianças, mas, se antes Olaf detinha poderes que a persona criada poderia constituir, sua autoridade agora era diferente porque era institucionalizada, o instrutor Genghis representava a própria escola-internato.

Genghis empregava essa competência com o intuito de minar a confiança e a segurança das crianças, que o contexto social e ideológico o favorecia naquele momento da intriga, regulando, classificando, engendrando ao erro, mediante uma estratégia de poder que buscava a dominância sobre corpos, espíritos e saberes, pois o “corpo também está diretamente mergulhado num campo político, as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 2000, p. 25).

Ainda que o poder de Olaf nesse momento fosse maior, as crianças conseguiram derrotá-lo outra vez.

Outras identidades sobrevieram na intriga, à medida que os Baudelaire seguiam seu percurso. Quando o banqueiro nomeara por tutor Jacques Snicket, Olaf criara Gunther, um estrangeiro com dificuldades no idioma.

Derrotado Gunther, os Baudelaire são levados à cidade Sinistra dos Corvos por membros da CSC, a ordem a qual seus pais pertenciam, e Olaf se apresenta como detetive Dupin, a fim de novamente se apoderar de um poder institucionalizado, dessa vez o coercitivo, que emprega para acusar um homem inocente de que seria o criminoso. O detetive Dupin mata o integrante da CSC que fora preso de forma enganosa, por pensarem que ele era o conde Olaf e coloca toda a culpa nas crianças, que seriam presas na cadeia da cidade.

Até esse momento da intriga, por mais que os Baudelaire seguissem em suas desventuras, poderiam contar com a proteção do Estado, que eles estavam no lado certo da institucionalidade, contudo isso não mais lhes era possível, porque Olaf subvertera a representação que detinham junto a sociedade. Um novo contrato social se instituíra, porquanto novas funções passariam a ser desempenhadas na intriga. Com inteligência e criatividade, Violet Baudelaire planeja a fuga da prisão. O detetive Dupin e toda a trupe teatral conseguem convencer a população da cidade Sinistra dos Corvos para perseguirem as crianças, que a condição de fugitivos se lhes impusera.

Foucault (2000) nos explica que a manifestação de poderes se faz perceber por intermédio de seus efeitos, fenomenologicamente delineados, no constructo de relações que se estabelecem entre os indivíduos, o que nos possibilita compreender a nova identidade delineada por Olaf, Mattathias, o novo diretor de recursos humanos do hospital Hostil, onde estavam os Baudelaire investigando. Por já ter uma vasta experiência adquirida no decorrer da trama, considerando as identidades anteriormente desenvolvidas, na identidade de Mattathias ele não aparece fisicamente, apenas faz o uso da voz para ter contato com os demais. Antes, os poderes das identidades de Olaf eram personificados, depois passaram a representações institucionais, primeiro educacionais, depois coercitivos e agora administrativos.

Após várias tentativas frustradas de capturar os Baudelaire, as crianças se veem na necessidade de, para fugir, incendiar o hospital. No caminho percorrido, os órfãos iniciaram a narrativa como vítimas, assumiram o protagonismo de suas ações, foram injustamente acusados e agora tiveram que tomar medidas que feririam a ordem social, o que lhes atribuiu a imputação de culpadas.

Mesmo nosso corpus se restringindo à aO Fimdaptação de Desventuras em Série para o formato de série de streaming, há uma passagem da obra fonte, retirada do último volume da série, O Fim, que matiza as mudanças sofridas pelas personagens:

Quando os Baudelaire se encontraram com o conde Olaf pela primeira vez, suas bússolas morais nunca lhes teriam dito para se livrar do homem terrível, fosse empurrando-o para fora de seu misterioso quarto na torre, fosse atropelando-o com o seu longo automóvel preto. Mas agora, no Carmelita, os órfãos Baudelaire não tinham certeza do que deveriam fazer com aquele vilão que estava tão debruçado na borda da embarcação que bastaria um leve empurrão para mandá-lo ao seu túmulo de água. (SNICKET, 2016, p. 24)

A marcação temporal da narrativa acabara por gerar uma identidade ipse também aos Baudelaire, que de forma alguma seriam capazes de relativizar sua bússola moral no início do percurso, repetimos, contudo se encontraram em um momento da intriga que os questionara sobre a possibilidade. A narrativa não permite que eles decidam, que são interrompidos, mas, para o fim a que se destina esse momento, melhor seria a suspensão, o não-dito, que ele daria espaço às inferências dos leitores, que acompanharam as personagens durante todo o percurso das desventuras.

Se as mais puras crianças puderam questionar sua identidade de promessa, sua mesmidade, pela ação do tempo, pelo questionamento hermenêutico de si, Olaf também não passaria por um análogo momento hermenêutico? A intriga isolara Olaf e as crianças numa ilha para que o ápice acontecesse. Vamos aqui nos abster de maiores detalhes acerca do desenrolar do fio narrativo, que o caminho de leitura revela surpresas que não nos autorizamos a revelar, contudo se faz necessário esclarecer que o vilão, capaz de cometer assassínio durante a série, voluntariamente, realize ato heroico de salvamento e, em diálogo franco com seus parceiros na intriga, confessa às crianças que tinha ciência de tudo que fizera, que feriu pessoas, mas que também fora ferido e magoado, traído e abandonado... Suas palavras não se tratavam de uma tentativa de justificação, tampouco de apelo ao perdão, mas um momento de reconhecimento identitário, de reconhecimento da condição humana que lhe era ulterior, numa racionalização que de forma alguma o vilão do início da série poderia realizar.

CONCLUSÃO

Não há identidade que não seja construída. Toda identidade é uma narrativa de si que se estabelece mediante o exercício hermenêutico mediador entre o poder da ação e a responsabilidade de si. Olaf, no percurso da narrativa, atravessara esse processo constituinte de si mediando experiências, marcas culturais, espaciais e temporais, simbolizações, imaginários e fabulações, performances de uma identidade de promessa a uma identidade ipse maturada pelo tempo e pela narratividade da intriga, ressignificando aos leitores uma personagem que, na origem da narrativa, era rasa, caricatural, canhestra em uma personagem profunda, repleta de camadas.

A pluralidade de Olaf era perceptível pelas demais personagens da obra, não só por sua maturação no tempo, mas também pela identidade fluida adotada. Nota-se que a perspectiva de cada integrante da obra sobre o vilão é algo muito pessoal, os órfãos Baudelaire, por exemplo, o viam como uma pessoa totalmente má; a trupe teatral, por sua vez, o via como um líder dedicado e que os amava; os integrantes da CSC o viam como vilão; as companheiras pelas quais fingiu ter sentimento e que foram envolvidas em sua órbita de amavios o viam como um homem sedutor e apaixonante... Interpretações buriladas em experiências que, assomadas, tornam-se elementos à mediação hermenêutica identitária.

Contudo, por mais que a identidade da promessa, a mesmidade, não percebesse ou não atentasse a essas diferenças até que o quadro final fosse exposto, elas estavam lá, pulsantes, latentes, matizadas por olhares e perspectivas que ressignificam Olaf. Balizadas pela ipseidade, insistimos, tais experiências vão se dando em pontos diferentes da intriga, em tempos diferentes. Essa indefinição da ipseidade é performada até pelo próprio narrador – nessa hora não tão onisciente: “Significantly, despite being the film’s villain, Count Olaf never got any detailed description at the beginning of the film to allow the audience to form their own perception of him” (BAYOUMY, 2020, p. 56).

É possível percebermos como se passa a construção de uma identidade de mesmidade e ipseidade. Os traços dos caracteres da mesmidade que estavam com o conde no começo da série seguem até o final da mesma forma, já os traços de ipseidade mudam a cada encontro com um novo lugar ou nova pessoa, por isso o vilão torna as suas novas identidades cada vez mais realistas. Uma característica da mesmidade do conde era a ganância pelo dinheiro. Porém, mais profundamente, era a repetição ad infinitum do fracasso. Parecia não ter intenção genuína de ter sucesso em alguma identidade, mas construí-las cuidadosamente para fracassarem a cada vez. Fracassar nas suas pretensões de ser e ser sempre descoberto é o que repete sempre, denotando mesmidade.

A busca permanente pela proximidade com as crianças, para jogar o jogo do disfarce e da redescoberta, parece fazer parte dessa mesma mesmidade. Se isso não fosse escondido pela parcialidade do narrador – seletivamente – onisciente, a antipatia pelo conde, que estrutura sua posição na narrativa como vilão, se desvaneceria, e no lugar do vilão teríamos o sujeito desamparado em busca de renovar constantemente a proximidade com as crianças. A linha entre o bem e o mal é novamente turvada.

Olaf passara por um caminho de descobertas nessas desventuras da narrativa e, em seu fim, olhara para o abismo e o abismo olhara de volta, repetindo o aforismo nietzschianio, e compreendera o papel e a função que desempenhara na narrativa, que a intriga organizara esse quadro geral não somente àqueles que assistiram à série, mas ao próprio conde, que pode se ver como vários outros, um si mesmo como outros, e interpretar sua identidade narrativa.

A canção de abertura da séria repetira tantas vezes que “é melhor não olhar”, contudo o olhar para si como um outro revelou todo o corolário e profundidade de Olaf, o conde performático.

Supplementary material
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Plínio Dentzien (Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
BAYOUMY, H. Who is Telling the Tale? A Narratological Reading of the Roles of the Narrators in Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events and Qarun. Textual Turnings: An International Peer-Reviewed Journal in English Studies. V. 1, Issue 1, 2020, p. 48-63.
BENJAMIM, W. Experiência e pobreza. In: O anjo da história. Org. e Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 85-90.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 1996
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 22ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
FREITAS, C. P. Silenciamento infantil de cada dia – os irmãos Baudelaire fora da ficção. In: ENCONTRO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS LITERÁRIOS, 15., 21 a 23 nov. 2018, Fortaleza (CE). Anais [...]. Fortaleza (CE): UFC, 2018. p. 218-228.
OLIVEIRA, J. S. Desventuras em Série: um estudo sobre a construção da personagem. Mafuá, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 35, 2021.
PEREIRA, M. P. T. Tramas de Anansi: Identidade Narrativa em O Vendedor De Passados. In: PEREIRA, Marcos Paulo Torres; LIMA, Francisco Wellington Rodrigues. (Org.). Olhos d’África: Pós-colonialismo e literatura africana. 1ed.Macapá: UNIFAP, 2019.
RICOEUR, P. Da metafísica à moral; Paul Ricoeur, “Autobiografia Intelectual”. Lisboa: Piaget, 1995.
RICOEUR, P. O si-mesmo como outro. Tradução Lucy Moreira Cesar. – Campinas, SP: Papirus, 1991.
RICOEUR, P. Tempo e narrativa – Tomo I. Trad. Constança Mendes Cesar. Campinas: Papirus, 1994.
RICOEUR, P. Tempo e narrativa – Tomo II. Trad. Marina Appenzeller; revisão técnica Maria da Penha Villela – Petit. Campinas: Papirus, 1995.
ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Notes
Notas
[1] O filme foi estrelado pelos atores Jim Carrey (Conde Olaf), Meryl Streep (Josephine), Jude Law (Lemony Snicket), Emily Browning (Violet Baudelaire), Liam Aiken (Klaus Baudelaire), Timothy Spall (Mr. Poe) e Billy Connoolly (tio Monty), entre outros.
[2] A série apresentada na Netflix segue a estrutura de adaptar um livro a cada dois episódios, alterando esse seguimento no último capítulo da terceira temporada, onde houve uma mudança que se conteve em um único episódio.
[3] A música de abertura servia como preparação para que a audiência pudesse encarar a narrativa, resumindo os fatos que seriam apresentados, personagens que seriam apresentados nos episódios e a contumaz advertência para que a audiência evitasse assistir o programa
[4] O conde Olaf usava da mentira e de outros atributos para alcançar o que desejava, mas o próprio também mostra suas características positivas, e recebeu várias interpretações de quem o rodeava, quando era visto como vilão pelos órfãos também era visto como um salvador pela trupe teatral e pelos demais envolvidos nos episódios.
[5] Empregamos o termo “desempenhada” para dar ênfase ao caráter utilitário que as identidades assumidas por Olaf adquirem no enredo da narrativa. O conceito de enredo que empregaremos neste estudo se deve aquele cunhado por Paul Ricouer em o si mesmo como o outro tempo e narrativa, que, em seu terceiro volume, se apresenta sob o conceito de identidade narrativa.
[6] O conceito de performance que aqui empregamos devemos a Paul Zumthor (2007, p. 33), que explica que ela seria “a ação complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida”, que se estabelece mediante presença e ação do interlocutor, à proporção que se segue o ato performático em seu percurso, tornando texto não somente aquilo que se manifesta verbalizado, mas o corpo, o momento, os suportes e linguagens que se integram à comunicação.
[7] Será preciso entender não as “partes” do poema, mas as da arte de compor (RICOEUR, 1994, p. 58).
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